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Reflexos da ampliação do campo de incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves

A PEC 140/2012 e 283/2013 - O inimigo agora é outro

Reflexos da ampliação do campo de incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves: A PEC 140/2012 e 283/2013 - O inimigo agora é outro

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No presente artigo abordaremos a discussão dos efeitos trazidos pelas PECS 140/12 e 283/13, que, dentre outras medidas, pretende modificar o inciso III do artigo 155 da Constituição Federal, determinando a incidência do IPVA sobre aeronaves e embarcações.

“Acho que houve um momento da nossa história que a gente esqueceu do mar”. Amyr Klink           

1. Introdução

            A possibilidade de se satisfazer a sede arrecadatória dos diversos Estados da Federação, por meio da ampliação do campo de incidência do IPVA (Imposto Sobre Veículos Automotores) é um tema antigo que, de tempos em tempos, adquire uma nova roupagem. A tentativa de se conferir elasticidade máxima ao seu campo de incidência, por meio da edição de normas estaduais, foi um tema amplamente debatido no passado recente, tendo sido, inclusive, reconhecida a inconstitucionalidade das referidas iniciativas. Inconformados com o reconhecimento da inconstitucionalidade de suas iniciativas, partem agora para uma medida extrema: uma Proposta de Emenda a Constituição, as PEC’s 140/2012 e 283/2013 - popularmente apelidadas de PEC dos Jatinhos que se prestam não apenas a criar novas hipóteses de incidência do tributo, mas a subverter a própria ordem tributária esquadrinhada pelo Poder Constituinte.

            No presente artigo abordaremos a discussão dos efeitos trazidos pela referida proposta de emenda a constituição, que, dentre outras medidas, pretende modificar o inciso III do artigo 155 da Constituição Federal, afim de determinar  a incidência do IPVA para além dos veículos terrestres.

            Como veremos, mesmo sob argumento de que se estaria fazendo justiça fiscal, criando-se uma nova hipótese de incidência do tributo sob uma espécie de propriedade vista como voluptuosa, o legislador descuida-se da generalidade do termo e faz parecer que todos que manifestam aquela propriedade (embarcações) são sujeitos dotados de riqueza, acima da média. Ambos os termos, aeronave e embarcações, abrangem diversas espécies de bens, de grandes iates e aeronaves executivas à pequenas embarcações e veleiros voltados para práticas esportivas.

            Nosso estudo inicialmente se dará pelo histórico do tributo IPVA e seus antecedentes, definindo quais as reais razões da sua instituição, passando para a abordagem da tentativa desesperada dos Estados-membro em instituirem o IPVA por meio de sua competência legislativa, sobre embarcações e aeronaves; após esta última abordagem partiremos para a problematização das PEC’s 140/12 e 283/2013 que se predispõem a alterar a própria constituição em favor dos Estados-membros, lhes outorgando uma competência que desafia os limites da abstração da norma e infringe a sistemática da constituição, tornando a expressão “conflito aparente” um verdadeiro eufemismo; após a abordagem, passaremos as consequências da tributação para a sociedade e para a indústria ainda incipiente.


2.  Histórico do Tributo

            Do ponto de vista histórico, o IPVA é um tributo relativamente recente no ordenamento jurídico, foi introduzido a partir da Emenda constitucional n.º 27/85. O IPVA reconhecidamente sucedeu a TRU (Taxa Rodoviária Única), que era cobrada anualmente pela União no momento do licenciamento do veículo, cuja receita era aplicada no custeio de obras para conservação de rodovia, ou seja, enquanto existia a TRU toda a receita originária era destinada para fins específicos.

Como prova de que o IPVA foi o sucessor da TRU, já nos trabalhos preparatórios, que antecederam a promulgação da EC 27/85, já se fazia alusão direta a ligação de ambos os tributos (DCN nº 140, 1985, p. 2088):

"com relação ao art. 2º. o que se pretende é a criação de um imposto para substituir a Taxa Rodoviária Única. (...) " Sem dúvida alguma, esse é um acréscimo fundamental e de grande significação nas receitas dos grandes e médios Municípios brasileiros, já Taxa Rodoviária Única tem os seus efeitos geradores, na sua imensa maioria, ocorrendo nos granes e médios Municípios".

            A opção de transformar a TRU em IPVA foi uma forma de flexibilizar a aplicação dos recursos, conferindo ao gestor público maior liberdade ao decidir sobre a destinação da arrecadação do referido tributo, garantindo uma maior parcela de receita não afetada para fins específicos.

            O aumento da parcela da arrecadação não afetada só seria possível por meio da instituição de um imposto ou transformação, pelo advento de uma nova constituição ou emenda à antiga, tendo isto ocorrido, substitui-se em 1985 uma taxa (TRU) por um imposto (IPVA) por meio da EC 27/85. A transformação da TRU em IPVA se deu em razão deste último ser um tributo com finalidade eminentemente fiscal, um imposto, sendo defeso, inclusive, a sua afetação prévia para determinados fundos ou despesas (BALEEIRO; 2003; pág. 198):

“O imposto difere da taxa, conceituada no art. 77 do CTN e no art. 18, I, da CF, porque independe de qualquer prestação estatal específica ao contribuinte ou por ele provocada. A atividade específica, atual ou potencial, solicitada ou provocada pelo contribuinte, dá a tônica da taxa”.

            A Constituição de 1988 repetiu a previsão da instituição do IPVA por parte dos Estados e do Distrito Federal, exclusivamente sob os veículos automotores:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

III - propriedade de veículos automotores.

            O princípio da não afetação da receita dos impostos, resta-se consagrado pelo art. 167, IV, da Constituição de 1988, e proíbe a vinculação de das receitas de impostos a órgãos, fundos ou despesas.

“Art. 167. São vedados:

IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo;

            A partir da promulgação da EC/85 e de sua incorporação na Constituição de 1988 toda a receita arrecada por este “novo” tributo passou a ser desafetada, garantindo a liberdade ao gestor público em conferir a melhor destinação da arrecadação que lhe convir.

            Assim sendo, infere-se que a instituição do IPVA se deu em primeiro lugar para conferir ao gestor público maior liberdade em seu planejamento e aplicação de seus recursos orçamentários. Da perspectiva atual em que se noticia cada vez mais a aplicação indevida dos gastos públicos a ânsia arrecadatória, o aumento da liberdade se afigura também como um perigo para a sociedade.

            O Poder Legislativo, ao contrário do que fez com diversos outros tributos se eximiu de criar uma lei complementar que definisse seus principais contornos. A ausência desta lei ocasionou a instabilidade e insegurança jurídica no âmbito da federação, dando margem a ilações indevidas sobre o conteúdo e alcance do próprio imposto, como posteriormente foi visto em razão da interpretação reconhecidamente inconstitucional dos Governadores sobre a competência que lhes foi conferida pela Constituição Federal.

           O Poder Constituinte Originário traçou um sistema equilibrado, o chamado federalismo do equilíbrio, em superação ao federalismo hegemônico das constituições precedentes.   (CARRAZA; 2011, pág. 454):  

“A Constituição, ao determinar as competências tributárias, estabeleceu – ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador – a norma-padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra-matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributo. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma-padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital), enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional.”

            Diversas foram as tentativas dos Estados-Membros na tentativa de instituir novas hipóteses de incidência do IPVA, sob a interpretação extensiva da sua própria competência normativa, definida pela Constituição, desafiando, inclusive, os limites de abstração da norma. No próximo capítulo abordaremos os precedentes do STF que reconheceram a inconstitucionalidade da iniciativa de certos estados em cobrar o IPVA também sobre aeronaves e embarcações.

2.1. Precedentes do STF Sobre a Cobrança do IPVA

            Em 1986 o STF foi instado a se posicionar pela primeira vez sobre a possibilidade do Estado-membro, ente federativo, tributar embarcações e aeronaves, com base na interpretação extensiva e analógica do inciso III, do art. 2º, da EC 27/85, que, como visto introduziu o IPVA à carta de 1969. Naquele ano, por meio da RP 1344, oferecida pelo à época Procurador-Geral da República, que posteriormente se tornou Ministro do STF, Sepúlveda Pertence, o STF esteve próximo de se posicionar sobre a constitucionalidade do decreto-lei promulgado pelo Estado do Rio de Janeiro, pelo então Governador Leonel Brizola, bem como de outro ato normativo semelhante no Estado do Espírito Santo.

            Contudo, o julgamento da RP 1344 restou-se prejudicado com a promulgação da Constituição de 1988. Novamente, já com a nova constituição em vigor, foram interpostos dois Recursos Extraordinários em face de novas tentativas de se instituir a cobrança do IPVA, desta vez por parte dos Estados de Amazonas e São Paulo, RE 134.509/AM e 255.111/SP, respectivamente. Em ambos os casos decidiu o STF sobre a inconstitucionalidade da exação; reafirmando seu posicionamento em 2007, de forma semelhante ao que ocorreu em 1985, pelo RE 379.572/RJ.

2.1.1. Julgamento do RE 379.572/RJ

            O Recurso Extraordinário 379.572/RJ foi interposto em face do julgamento da Apelação julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que havia reconhecido a constitucionalidade das Leis Estaduais 948/85 e 9146/86 (do Rio de Janeiro), arts. 5º, II e 1º. Parágrafo Único, respectivamente, que previam a incidência do IPVA sobre embarcações.

            Em análise ao Recurso Extraordinário, o STF declarou a inconstitucionalidade da exação realizada pelo Estado do Rio de Janeiro, asseverando que as embarcações não estavam abrangidas em sua acepção pelo conceito utilizado pelo poder constituinte ao definir o campo de incidência do IPVA (veículos automotores), conforme abordado pelo Ministro Cesar Peluzo:

"A definição do alcance da expressão "veículos automotores", que deve ser tomada em sua acepção técnica, abrange exclusivamente os veículos de transporte viário ou terrestre; escapam de seu alcance, pois, as aeronaves ("aparelho manobrável de voo, apto a sustentar e circular no espaço aéreo mediante reações aerodinâmicas e capaz de transportar pessoas e coisas", de acordo com a legislação aeronáutica) e embarcações. Se houvesse pretendido abrangê-las o constituinte teria sido específico;

            Foi abordado também como um dos temas de relevância constitucional, que o IPVA foi o sucessor da Taxa Rodoviária Única (TRU), como abordado pelo Ministro Cesar Peluzo no voto do referido recurso extraordionário:

"o IPVA foi criado em substituição à Taxa Rodoviária Única (T.R.U.), como demonstram os trabalhos preparatórios e justificações do Congresso Nacional. Sua instituição oi motivada por razões de "distribuição mais equitativa do produto da arrecadação do novo imposto, em benefício dos Estados e Municípios", e não visou elastecer o âmbito material de incidência pertinente ao tributo substituido, para alancaçar novas áreas reveladoras de capacidade contributiva".

            Questão de extrema importância também foi a abordagem do conflito de competência que se instauraria entre a União, os Estados e Municípios caso fosse instituído o IPVA sobre aeronaves e embarcações por ente federativo que não fosse a União:

"não há atribuição de competência, seja aos Estados, seja aos Municípios, para legislar sobre navegação marítima ou aérea, ou para disciplinar "tráfego aéreo ou marítimo, espaço aéreo ou mar territorial, que são bens da União"

Diante de tantos argumentos, considerando os aspectos gramaticais, históricos, teleológicos e sistemáticos teve o RE 379.572/RJ as seguinte ementa:

 “EMENTA: Recurso Extraordinário. Tributário. 2. Não incide Imposto de Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) sobre embarcações (Art. 155, III, CF/88 e Art. 23, III e § 13, CF/67 conforme EC 01/69 e EC 27/85). Precedentes. 3. Recurso extraordinário conhecido e provido. STF, RE 379.572, Min. Relator Gilmar Mendes”.

 2.1.2. Julgamento do RE 134.509/AM

            No ano de 2002 foi proferido o julgamento do RE 134.509/AM interposto em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Amazonas que reconheceu a inconstitucionalidade do Decreto Estadual nº. 10.816/87 que estabelecia, à semelhança da iniciativa de outros Estados, a cobrança do IPVA sobre “qualquer veículo automotor, veículo aéreo, terrestre, aquático ou anfíbio dotado de força motriz própria, ainda que complementar ou alternativa de fonte de energia natural”.

            O RE 13.509/AM é em especial emblemático devido à riqueza e abrangência do estudo sistemático que antecedeu a decisão plenária, em especial, com relação ao relatório e análise do então Ministro José Francisco Rezek que se debruçou sobre as sutilezas da questão constitucional.

            A Procuradoria Geral do Estado do Amazonas sustentou a constitucionalidade do referido decreto por considerar que o termo veículos automotores, utilizado na redação do art. 155, II, da Constituição Federal, abrangeria qualquer tipo de veículo independente de ser terrestre, aéreo ou aquático. Rebatendo a tese do recorrente, que insistia sustentava a constitucionalidade da norma de seu estado, discorreu o Min. Francisco Rezek:

“É claro: se se fizer a análise etimológica da expressão "veículos automotores", como fez o autor citado nos autos, é sempre possível concluir que se pode enquadrar no conceito de veículo automotor o navio e a aeronave. Pode ser enquadrada também qualquer criatura do reino animal, veículo que é porque capaz de transportar coisas, e automotor porque independente de qualquer tração externa à sua própria estrutura física. Dos animais mais lentos, na espécie dos moluscos, aos mais velozes; dos mais robustos, como a formiga que carrega vinte e cinco vezes o seu próprio peso, aos mais frágeis, todos nos incluiríamos no conceito de veículo automotor se ele devesse ser compreendido semanticamente”.

Reclamando a consciência do hermeneuta, o Min. Francisco Rezek, com extrema lucidez, por ocasião do mesmo acórdão, mencionou qual metodologia que recordou, pois pareciam ter esquecido, como deveria ser aplicada à interpretação de normas tributárias e, a nosso ver, de qualquer norma:

 “O que se espera do doutrinador, quando escreve sobre direito tributário, não é que nos diga aquilo que pensa sobre o significado das palavras. Sua especialidade reclama a ele, aos olhos do leitor da sua obra, algo mais. Por exemplo, o histórico do tributo. A que textos sucede aquele que está sendo examinado? Do que aquele tributo é legatário na marcha histórica da Constituição? O que existe no âmbito dos trabalhos preparatórios do texto constitucional a indicar uma intenção de mudança?”

Desta forma, a conclusão alcançada e endossada pelo STF é a de que o IPVA, por sua trajetória, foi um tributo que sucedeu a TRU e que sua cobrança sob embarcações pelos Estados-Membros ou por qualquer célula da federação fora a União seria, devido a sua natureza, inconstitucional e além de tudo inviável, sem qualquer suporte prático, devido a diversos fatores.

Do julgamento do referido Recurso Extraordinário foi extraída a seguinte ementa:       

“EMENTA: IPVA - Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (CF, art. 155, III; CF 69, art. 23, III e § 13, cf. EC 27/85): campo de incidência que não inclui embarcações e aeronaves. STF, RE 255111, Min. Relator Marco Aurélio”.

              Faremos alusão a trechos deste célebre acórdão no decorrer do presente artigo, sua importância é crucial para a compreensão da história constitucional do referido tributo e suas implicações práticas na análise de futuras exações em meio ao atual quadro de repartição de receitas.

2.1.3. Julgamento do RE 255.111/SP

            No mesmo ano de 2002, à semelhança do RE 134.509/AM, o STF realizou o julgamento do RE 255.111/SP interposto em face de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que reconheceu a constitucionalidade do art. 34, § 3º, da Lei Estadual Lei 6.606/89 que estabelecia, à semelhança da iniciativa de outros Estados, a cobrança do IPVA sobre  embarcações e aeronaves.

            Em síntese, o Tribunal Excelso, vencido o Relator Min. Marco Aurélio, não conheceu o recurso extraordinário, declarando a inconstitucionalidade constitucionalidade do art. 34, § 3º, da Lei Estadual Lei 6.606/89.  O Ministro Sepúlveda Pertence reportou-se ao voto proferido nos autos do RE 134.509/AM, proferido no mesmo dia, a ementa foi a seguinte.

2.4.  Das Iniciativas dos Estados-Membros

            Diversos Estados brasileiros chegaram a legislar sobre a forma de cálculo e incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves. Como foi o caso da Bahia que além de isentar as embarcações com mais de 15 anos de fabricação, diminuiu a alíquota para 1,5, isentou a cobrança dos pescadores e das embarcações com potência inferior a 25 HP, como estipulava a 6348/91:

Art. 2º O imposto será devido no local onde o veículo deva ser registrado e licenciado, inscrito ou matriculado, perante os órgãos competentes, podendo o Poder  Executivo vincular o licenciamento do veículo ao pagamento do imposto.

V - o veículo terrestre com potência inferior a 50 (cinqüenta) cilindradas e a embarcação com motor de potência inferior a 25 (vinte e cinco) HP;

X - a embarcação de propriedade de pescador profissional, pessoa física, por ele utilizada na atividade pesqueira;

              A iniciativa da Bahia comparada aos demais Estados-membros foi a menos lesiva ao contribuinte considerando diversos fatores intrínsecos a dinâmica da navegação de esporte e recreio e de atividades profissionais como a pesca e o transporte.

              Ao beneficiar proprietários de embarcações com mais de 15 anos de fabricação e de embarcações com motorização abaixo de 50 HP a Bahia se mostrou um Estado sensível ao Princípio da Capacidade Contributiva, considerando que, por vezes, embarcações com motorização abaixo de 50 HP utilizam o motor como forma auxiliar de propulsão.

             Já o Rio de Janeiro, na contramão dos demais Estados, optou por tributar em 5% a propriedade de embarcações, contra os 1,5% concedidos pelo Estado da Bahia. Certamente a Bahia não abriu mão de boa parte da alíquota em vão, agiu de forma sábia, por saber os efeitos extrafiscais da diminuição da carga tributária de determinada atividade: atração de mais investimentos para a área beneficiada.

            Em 1999, no Rio de Janeiro, foi promulgada a Lei 5.430/09, revogando o inciso VIII, do art. 5º, da Lei 2877/97, que previa a isenção do pagamento do tributo sobre embarcações e aeronaves com mais de 30 anos de fabricação - em evidente descompasso com as necessidades setoriais e com o tão aclamado Princípio da Capacidade Contributiva - por qual razão proprietário de embarcações com mais de 30 anos teriam menos direitos que proprietários de veículos com mais de 15 anos? A revogação do mencionado decreto torna a medida que já era inconstitucional mais grave ainda.

Dispositivo da 2.877/97 revogado pela Lei 5.430/09:

Art. 5º - Estão isentos do pagamento do imposto: 

 VIII - embarcações e aeronaves com mais de 30 (trinta) anos de fabricação;

Outro ponto a ser ressaltado é o conflito de competência entre a União, Estado e Município, como bem salientado por Francisco Rezek no julgamento do RE 134.509/AM:

"navios e aeronaves não se vinculam, por nenhum ato registral, à célula que é o município. Sequer aos Estados, visto que existem capitanias de portos que abrangem mais de uma unidade federada. E o registro aeronáutico é único - aí não se trata apenas de escapar às municipalidades, mas também a qualquer vínculo estadual.

              Outro limitador de ordem prática seria a fiscalização e exação do tributo, além da descoberta daquilo que seria a base de cálculo. Tanto Aeronáutica quanto Marinha são os detentores das informações necessárias para o lançamento do tributo, arcando, inclusive, com todos os gastos relativos ao custeio do banco de dados e da própria fiscalização do espaço aéreo e marítimo. A solução encontrada à época em que os Estados pensavam serem capazes de tributar embarcações e aeronaves, ao arrepio da constituição, foi a criação de convênios, por mais criativa que fosse, se esbarra na própria lógica da repartição de competências:

Art. 20. O Poder Executivo poderá firmar convênios com órgãos do Ministério da Marinha e da Aeronáutica para efeito de controle e cadastramento das embarcações e aeronaves, visando à tributação dos referidos veículos.

              Abordaremos nos capítulos seguintes os empecilhos da criação de um imposto estadual sobre bens sujeitos a registro junto a União, que produzem efeitos que se interpenetram em toda a economia nacional e, que, naturalmente só poderiam se sujeitar a incidência de tributos federais.


3. O IPVA Sobre Embarcações

Ante a pacificação do entendimento de que os Estados-Membros em hipótese alguma estariam autorizados a tributar a propriedade de embarcações e aeronaves não restaram alternativas aos Estados senão a de insistir na formação de um lobby audacioso - buscar a aprovação de uma Proposta de Emenda a Constituição - PEC. O inimigo agora é outro: não são mais decretos e leis estaduais e sim uma Proposta de Emenda a Constituição.

De fato, não nos limitando ao presente caso, como já afirmado, torna-se evidente que a sede arrecadatória não encontra limites. Décadas a fio determinados Estados-membros insistiram em realizar exações evidentemente eivadas de inconstitucionalidade, mesmo vencidos nos Tribunais Superiores, inconformados com a derrota, os Estados mudaram de estratégia e partiram para o audacioso projeto de alterar a Constituição Federal sob o arrepio do sistema tributário nacional e dos princípios mais caros a federação, tentando incluir no pacto federativo algo impensável aos arquétipos constitucionais. Se não podemos aplicar a Constituição, vamos alterá-la, este é o pensamento que sobressalta a referida proposta.  

No dia 06 de março de 2012 o Deputado Assis Carvalho do Partido dos Trabalhadores do Piauí, encaminhou, com fulcro no art. 3º, do art. 60, da Constituição Federal, a Proposta de Emenda a Constituição nº. 140/2012, visando adicionar mais um inciso ao art. 155 da Constituição, ampliando, desta forma, o campo de incidência do IPVA também para veículos aéreos e aquáticos.

Art. 1º O inciso III do Art. 155 da Constituição Federal, passa a vigorar com a seguinte redação:

III – Propriedade de veículos automotores terrestres, aéreos e aquáticos.

            O aumento da frota de aviões executivos e de embarcações de esporte e recreio chamaram a atenção dos Estados e Municípios (já altamente beneficiados pela reforma tributária de 1988), como fez constar na justificativa apresentada pelo Deputado:

“Com o consequente aumento da arrecadação do IPVA, quando da cobrança deste tributo sobre a propriedade de veículos automotores aéreos e aquáticos - Considerando o Brasil possuir a maior frota de aviões executivos do hemisfério sul, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil que aponta para uma média de 12 mil aeronaves registradas e uma frota náutica esportiva em torno de 168 mil unidades segundo dados do Departamento de Portos e Costa da Marinha do Brasil – seria possível reduzir sensivelmente as alíquotas hoje aplicadas em carros e motos de todo o Brasil e com isso garantir uma maior justiça fiscal”.

 Os Estados repassam cinquenta por cento da sua arrecadação para os Municípios, fruto da arrecadação do licenciamento dos veículos licenciados em seu território, como define a Constituição Federal:

Art. 158. Pertencem aos Municípios:

III – cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios;

Nesta hipótese, os Estados deverão repassar 50% do produto da arrecadação do IPVA para os Municípios onde estiverem matriculados os veículos. Como por nós afirmado no artigo “Não Incidência do ISS Sobre a Atividade de Produtoras e Distribuidoras de Conteúdo Audiovisual” (2013, pág. 5):

“A reforma tributária de 1988 acarretou de forma surpreendente o aumento da arrecadação dos Municípios, que incorporam o movimento de descentralização de recursos tributários, nunca os municípios tiveram uma importância relativa tão elevada na administração pública nacional.”

Corroborando com os indícios de aumento vertiginoso da arrecadação municipal, José Roberto Rodrigues Afonso e Erika Amorim Araújo em A Capacidade de Gasto dos Municípios Brasileiros: Arrecadação Própria e Receita Disponível (2000; pág. 35):

“A receita própria municipal (não computadas as transferências recebidas) vem apresentando excelente desempenho nos últimos anos. Desde a promulgação da Constituição de 1988 até 2000, o volume de recursos próprios dos municípios elevou-se em cerca de R$ 12,2 bilhões, um acréscimo de aproximadamente 196%. Seu crescimento médio anual foi duas vezes mais rápido que o dos tributos estaduais e que o dos federais (ver Tabela 1). Em 2000, a receita tributária municipal atingiu um dos maiores níveis históricos: cerca de 1,7% do PIB, mais de R$ 18 bilhões anuais, montante que supera a principal transferência federal líquida, o Fundo de Participação Municipal (FPM), da ordem de R$ 13 bilhões”.

Portanto, justificar a PEC 140/12 com base na necessidade de se aumentar a arrecadação dos Estados-membros é uma falácia e se contradiz logo nos parágrafos seguintes da proposta, ao afirmar que em contraposição a exação do IPVA sobre aeronaves e embarcações, haveria a diminuição das alíquotas do mesmo imposto sobre veículos automotores - algo impensável justamente ante a necessidade de se diminuir a frota de carros.

Em conjunto com a PEC 140/12 tramita também a PEC 283/13 proposta pelo Deputado Vicente Candido da Silva, que visa amenizar os efeitos da PEC 140/12, excluindo do campo de incidência as embarcações destinadas à pesca e ao transporte de passageiros e de cargas:

“155. (...)

III – não incidirá sobre veículos aquáticos e aéreos de uso comercial, destinados à pesca e ao transporte de passageiros e de cargas.”

            Consta como justificativa da PEC 283/13 que as alterações sugeridas, em relação a PEC 140/12, beneficiariam as transportadoras com uma regra imunizante, considerando que os mercados de transporte de passageiros são oligopolistas e facilmente repassariam o aumento dos custos para o cliente final:

“A exclusão das aeronaves de uso comercial justifica-se pelo fato de que tais veículos sejam utilizados na prestação de um serviço de grande abrangência e utilidade nacional: o transporte de passageiros ou de cargas, mercados oligopolistas, que têm muita facilidade em transferir para os seus preços quaisquer incrementos nos seus custos, o que poderia resultar num efeito macroeconômico indesejado: maiores índices de inflação”.           

            Em linhas gerais a própria existência da PEC 283/13 já é uma demonstração do reconhecimento de apenas um dos diversos efeitos negativos da instituição do IPVA sobre embarcações e aeronaves. Ou seja, apenas um entre os diversos efeitos ocasionados por este absurdo tributário é combatido.

            Além da imposição do IPVA por si só ser um abuso que provavelmente aniquilará mais uma vez qualquer chance de termos um país também voltado para uma das nossas maiores riquezas, o mar, a ânsia arrecadatória não encontra limites nem em termos de isonomia da exação, como foi o caso do Rio de Janeiro que revogou a única isenção, antecipando-se a pretensa instituição do IPVA, para embarcações com mais de 30 anos de fabricação:

          Dispositivo da 2.877/97 revogado pela Lei 5.430/09:

Art. 5º - Estão isentos do pagamento do imposto: 

 VIII - embarcações e aeronaves com mais de 30 (trinta) anos de fabricação;

                Em termos comparativos o mercado automobilístico é um dos setores da indústria mais incentivados, sem falar no custeio da malha rodoviária que é altíssimo e da poluição causada por este meio de transporte. Estamos na contramão da atual lógica desenvolvimentista.

3.1. O Conflito de Competência

            Outro ponto a ser ressaltando, como bem asseverou o Min. Francisco Rezek, citando a obra de Rubens Gomes de Souza (2011; pág 72) é que a competência para legislar sobre direito marítimo ou aeronáutico é exclusiva da União:

“Os Estados-membros têm competência para legislar supletivamente sobre tráfego e trânsito nas vias terrestres, sendo natural, assim, a atribuição constitucional de competência impositiva sobre a propriedade de veículos automotores. Mas, em nenhum ponto, a autonomia estadual se estende ao campo da navegação marítima ou aérea. A competência para legislar sobre direito aeronáutico e marítimo é exclusiva da União. Embarcações e aeronaves constituem meios de transporte de pessoas ou coisas cujos efeitos econômicos difundem-se e interpenetram toda a economia nacional, razão por que, se fosse caso de tributar-se as atividades correspondentes, a competência deveria ser naturalmente afeta à União. Embarcações e aeronaves constituem meios de transporte de pessoas ou coisas cujos efeitos econômicos difundem-se e interpenetram toda a economia nacional, razão por que, se fosse caso de tributar-se as atividades correspondentes, a competência deveria ser naturalmente afeta à União.

Portanto, aduz-se que a competência para instituir, inclusive, tributos sobre embarcações e aeronaves é exclusiva da União. Por aplicação da lógica quem suporta a repercussão da atividade sobre seu território tem o direito de realizar exações sobre os bens que nele circula, assim como o encargo de fiscalizá-la. 

O Ministro Sepúlveda Pertence, relator do RE 134.509/AM, destacou o eminente conflito de competência que se daria caso os Estados-membros passassem a ter legitimidade ativa para a cobrança do IPVA sobre embarcações e aeronaves:

“Já as aeronaves e embarcações devem ser registradas no Registro Aeronáutico Brasileiro e no Tribunal Marítimo, respectivamente, nos termos da legislação relativa. No tocante às aeronaves nacionais, dispõe o Código Brasileiro do Ar (Decreto-lei nº 32, de 18/11/66) que são bens registráveis para efeito de sua condição jurídica, só podendo constituir objeto de direito através de assentamentos no Registro Aeronáutico Brasileiro do Ministério da Aeronáutica, órgão encarregado de emitir os certificados de matrícula que é condição para utilização (arts. 10 e 12). Quanto às embarcações, a Lei nº 2.180, de 5/2/54, exige o registro de sua propriedade no Tribunal Marítimo, registro este que tem o efeito de conferir validade, segurança e publicidade de sua propriedade, sendo que, para as de menos de vinte toneladas, vale como registro a inscrição na Capitania dos Portos, que dela fornecerá cópia ao Tribunal Marítimo (arts. 75, 76 e 80).”

Aliomar Baleeiro em Direito Tributário Brasileiro (1973; pág. 251) traça interessante análise sobre o panorama das constituições pretéritas em relação a competência para a instituição de tributos sobre embarcações e aeronaves:

“O Ato Adicional de 1834 (Lei 16/34) incluía na receita geral as taxas sobre a navegação em águas territoriais e nos grandes Rios, e a Lei 108/40 inseria na competência do Governo Central direitos sobre embarcações estrangeiras que passavam por território nacional, o imposto sobre barcos do interior e o imposto sobre a venda de embarcações nacionais, enquanto que às províncias eram atribuídas a taxa sobre a viação nas estradas provinciais. As Constituições de 1891 (art. 7º, 2º), de 1934 (art. 62, II)  e de 1937 (art. 20, II) incluíram entre os tributos da União os direitos de entrada, saída e estadia de navios, tornando livre o comércio de cabotagem às mercadorias nacionais, bem como às estrangeiras que já houvessem pago imposto de importação. No regime constitucional vigente, compete à União instituir imposto sobre transportes, terrestres, aquáticos ou aéreos, exceto os intramunicipais (Constituição, art. 21, VIII). Já as aeronaves e embarcações devem ser registradas no Registro Aeronáutico Brasileiro e no Tribunal Marítimo, respectivamente, nos termos da legislação relativa. No tocante às aeronaves nacionais, dispõe o Código Brasileiro do Ar (Decreto-lei nº 32, de 18/11/66) que são bens registráveis para efeito de sua condição jurídica, só podendo constituir objeto de direito através de assentamentos no Registro Aeronáutico Brasileiro do Ministério da Aeronáutica, órgão encarregado de emitir os certificados de matrícula que é condição para utilização (arts. 10 e 12). Quanto às embarcações, a Lei nº 2.180, de 5/2/54, exige o registro de sua propriedade no Tribunal Marítimo, registro este que tem o efeito de conferir validade, segurança e publicidade de sua propriedade, sendo que, para as de menos de vinte toneladas, vale como registro a inscrição na Capitania dos Portos, que dela fornecerá cópia ao Tribunal Marítimo (arts. 75, 76 e 80).”

            Quanto às repercussões econômicas da instituição de tributos estaduais ou municipais sobre aeronaves e embarcações a qual recai a competência da União (SOUZA; 2011; pág 11):

“Embarcações e aeronaves constituem meios de transporte de pessoas ou coisas cujos efeitos econômicos difundem-se e interpenetram toda a economia nacional, razão por que, se fosse caso de tributar-se as atividades correspondentes, a competência deveria ser naturalmente afeta à União”.

Como observou o Min. Francisco Rezek, em seu voto vista, nos autos do RE 134.509/AM aeronaves e embarcações não se vinculam aos Estados e Municípios por qualquer célula registral, sendo toda repercussão gerada pelo exercício do poder de polícia do espaço aéreo e marítimo suportada única e exclusivamente pela União:

"navios e aeronaves não se vinculam, por nenhum ato registral, à célula que é o município. Sequer aos Estados, visto que existem capitanias de portos que abrangem mais de uma unidade federada. E o registro aeronáutico é único - aí não se trata apenas de escapar às municipalidades, mas também a qualquer vínculo estadual.

Permitir a instituição de um tributo estadual ao invés de um federal, sobre a propriedade de embarcações e aeronaves seria subverter a ordem imposta pelo poder constituinte originário. Tal medida desvirtua o propósito para o qual o IPVA foi criado e desafia os limites de abstração da norma, apoiando-se apenas no caráter meramente fiscal ou patrimonial do tributo, se descuidando da justiça fiscal nele empregada. Em termos de Direito Comparado, a prática consgrada internacionalmente é a tributação apenas da circulação da riqueza, ou seja, tributa-se apenas a transferência da propriedade de embarcações e aeronaves.

A justificativa apresentada pelo Deputado Assis Carvalho para a aprovação da PEC 140/12 se baseia na necessidade do aumento da arrecadação dos Estados-membros e na necessidade de tributar o patrimônio de acordo com a capacidade contributiva:

“Com o consequente aumento da arrecadação do IPVA, quando da cobrança deste tributo sobre a propriedade de veículos automotores aéreos e aquáticos - Considerando o Brasil possuir a maior frota de aviões executivos do hemisfério sul, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil que aponta para uma média de 12 mil aeronaves registradas e uma frota náutica esportiva em torno de 168 mil unidades segundo dados do Departamento de Portos e Costa da Marinha do Brasil – seria possível reduzir sensivelmente as alíquotas hoje aplicadas em carros e motos de todo o Brasil e com isso garantir uma maior justiça fiscal”.

            Como visto anteriormente, jamais os Estados tiveram tamanha arrecadação, sendo assim, a expansão da hipótese de incidência do referido tributo não se justifica. A outra justificativa de que seria possível, por via reflexa, a diminuição das alíquotas referentes aos veículos automotores, não convence. Se é necessário realmente o aumento da arrecadação por qual motivo se diminuiria as alíquotas de outros segmento de bens?

            A frota de veículos automotores atinge ano após ano recordes, o Brasil a partir da década de setenta investiu pesado na malha rodoviária às custas do sucateamento das ferrovias e das hidrovias. O mundo caminha no sentido de diminuição do número de veículos nas grandes cidades, principais responsáveis pela emissão gás carbônico na atmosfera. Certamente a diminuição do IPVA acarretaria, da mesma forma que a criminosa diminuição do IPI causou, o aumento da frota de veículos.

            Outro fator a ser considerado é o contexto atual da indústria de construção de embarcações amadoras, bem como, o impacto da aplicação generalista do conceito “embarcações” e “aeronaves” poderia causar. A década de 90 foi marcada pela “quebradeira” de boa parte dos estaleiros de construção de embarcações amadoras, devido as instabilidades econômicas vivida no Brasil. Não queremos que isso torne a acontecer.

           Não restam dúvidas que o Estado depende da arrecadação de tributos para atingir seus objetivos fundamentais e que o IPVA seja um tributo eminentemente fiscal - seria uma grande ingenuidade afirmar o contrário ou negar a legitimidade do sistema tributário por seus próprios fundamentos. Contudo, tal poder-dever deve comportar certos limites, a tributação deve ser praticada de acordo com o ordenamento jurídico e com os postulados éticos e regras de mercado, guardando simetria com a lógica ínsita ao sistema tributário. Deve-se reservar especial reflexão para a análise sistemática dos efeitos produzidos, sobretudo, extrafiscais, pela criação ou expansão da hipótese de incidência de determinados tributos.

            Segundo a boa técnica legislativa, o legislador deve acautelar- se do uso de conceitos vagos e indeterminados, sob pena de não produzir os efeitos desejados e produzir justamente os indesejados, tal tarefa não é das mais fáceis devido a semiótica dos signos linguísticos, mas deve ser perseguida, jamais esquecida.

3.2. A Cultura Náutica Por um Fio

            Nos idos das décadas de 80/90 houve o fechamento de importantes estaleiros de construção de embarcações amadoras, desde lanchas a veleiros. A área naval propriamente dita foi massacrada pela crise econômica. Contudo, com o bom desempenho da economia brasileira em conjunto com programas de incentivo a indústria naval o mercado encontra-se atualmente em efervescência.

         Contudo, o milagre econômico da indústria naval não é uma verdade absoluta e não chegou a todos os segmentos. Segmentos da indústria de construção de embarcações a vela, como exemplo, ainda lutam para quiçá se manterem no mercado. A realidade é que boa parte das embarcações no Brasil são embarcações antigas, construídas com aquilo que restou dos tempos áureos da década de 80 e 90.

        Segundo a pesquisa de mercado realizado pela Associação Brasileira de Construtores de Barcos e Seus Implementos (ACOBAR) apenas 16% das embarcações nacionais são veleiros ou possuem capacidade de se locomover pelo vento, mais de 50% dos veleiros brasileiros têm tamanho igual ou menor a 26' (8 metros de comprimento), sendo que 35,6 % desses veleiros medem de 16 a 19' (equivalente a 5 metros). Ou seja, uma embarcação de 16’ pés usada custa em média R$ 10.000,00, valor este inferior a qualquer carro usado ou a carros populares. Certamente seus proprietários não se enquadram no conceito de alguém que detém alto poder aquisitivo como pretendem nos fazer acreditar.  A PEC dos Jatinhos como ficou conhecida a PEC 140/12 tributa sim determinados segmentos com alto poder aquisitivo, mas tributa de forma injusta embarcações que em nada tem haver com isso - estabelecendo o mesmo peso para medidas diferentes.

            A atividade náutica tem um potencial imenso para a geração de empregos diretos e indiretos, conforme se verifica do estudo realizado pela ACOBAR (2012), a principal associação voltada para o mercado de construção amadora no Brasil:    

“As estruturas de apoio náutico no Brasil empregam aproximadamente 7.000 trabalhadores diretos e cerca de 5.000 trabalhadores temporários que são contratados durante os período de maior movimento. As marinas são, ainda, base de trabalho de cerca de 9.000 marinheiros particulares e seus auxiliares: funcionários contratados e pagos pelos proprietários e embarcações de médio e grande porte."

  Dentro do mesmo setor de construção de embarcações de esporte e recreio há uma interessante e histórica linha de estaleiros que desenvolvem técnicas artesanais, como é o caso das embarcações construídas no Maranhão e em galpões (ACOBAR; 2012):

“É importante destacar que as características semiartesanais e altamente especializadas do processo de fabricação de uma embarcação de esporte e recreio viabilizam a coexistência de estruturas produtivas de diferentes tamanhos dentro do mercado sem prejuízo para a qualidade e competividade do produto final. Isso significa que pequenos estaleiros, que operam com padrões de qualidade de processo e produto mantêm-se ativos no mercado e disputam com produtos semelhantes fabricados por empresas de maior porte (...)”.

Em 2012 a comunidade náutica se reuniu para um abaixo assinado viabilizado pela Avaaz a ser direcionado à Câmara dos Deputados a fim de se manifestar contrária à PEC 140/12, reunindo a Associação Brasileira de Velejadores de Cruzeiro (ABVC), Associação Brasileira de Velejadores de Oceano (ABVO) e a ACOBAR:

“A matéria já foi objeto de discussão no STF em maio de 2002. Na época, a tentativa de impor o tributo era a mesma, mas sem a alteração constitucional e o Supremo vetou porque o IPVA (imposto sobre veículos automotores) é um sucessor da antiga TRU (Taxa rodoviária Urbana) e voltada apenas para veículos automotores terrestres. Agora, entretanto, com a tentativa de mudança da Constituição a manobra política poderá tornar a cobrança viável. O tema, que vem sendo defendido por alguns como sendo de “interesse popular" na verdade revela a ignorância sobre o uso dos veleiros. Sendo o IPVA um imposto para “veículos automotores”, jamais poderia incidir, por exemplo, sobre um veleiro, movido eminentemente por vento. Num veleiro, o motor é apenas auxiliar em manobras quando da atracação/desatracação ou em emergências causadas pela falta de vento. Não é cabível mais um imposto sobre qualquer uma das embarcações produzidas no Brasil - incluindo as lanchas. Todas as categorias de barcos já tem uma carga tributária elevada, que tem acarretado prejuízos junto a estaleiros, navegadores, trabalhadores das pequenas empresas e, por consequência, beneficiando a indústria estrangeira e as importações”.

            No epíteto do presente artigo citamos uma frase de Amyr Klink que afirmava o seguinte “Acho que houve um momento da nossa história que a gente esqueceu do mar”. Não nos resta dúvida, realmente o mar foi esquecido, sobretudo, por aqueles que se julgam nossos representantes. Temos um dos mais belos e extensos litorais do mundo, nossas águas são calmas, ideais para navegação costeira, nossos ventos são moderados e temos sol praticamente o ano inteiro. Países como os Estados Unidos tem em apenas um estado uma frota de mais de cinco vezes a nossa frota nacional de embarcações amadoras brasileiras.

Velejadores do passado singraram oceanos em busca de novos continentes, em função da necessidade expansionista. Tanto na Europa quanto na América do Norte a vela é um esporte fortemente marcado pela presença da classe média uma embarcação a vela de médio porte não custa praticamente a metade de um carro.

Amyr Klink em Linha D’Água (2009; 86/87) faz um paralelo entre a realidade vivida na França e no Brasil, tentando inspirar o leitor de alguma forma:

“A França virou referência no mundo náutico, criou os parâmetros e as normas que faltavam. Resgatou a cultura, a memória e história, que alguns choravam ter pedido para os saxões da ilha em frente. Transformou portos decadentes em destinos turísticos, marinas, museus, núcleos de preservação. Viu surgir um negócios bilionário que, ainda mais que o turismo, só funciona em escala mundial: o do afretamento de embarcações consignadas e o consequente ciclo virtuoso de atividades relacionadas. Escolas de vela aos milhares, compra compartilhada ou consignada de barcos novos que podem ser usados por equivalência em bases espalhadas pelo mundo, crescimento das indústrias náuticas e turística, leis ambientais mais eficazes acopladas a novas tecnologias de saneamento. (...) Esse movimento tem enorme probabilidade de acontecer no Brasil, onde, melhor do que ter feito errado, nada foi feito. Mais do que na Europa, aqui haverá ao lado do econômico, um grande benefício social.”

Atenta a necessidade de manter a chama da cultura náutica viva, a Marinha do Brasil lançou o Programa de Mentalidade Marítima, chamado de Promar (2013) que, em seu relatório inicial afirma que:

“Historicamente, o Brasil nasceu com vocação marítima, não só por ter sido descoberto e colonizado por uma nação marítima, mas também por ter sofrido suas primeiras invasões pelo mar. O desenvolvimento nacional ainda é, e continuará sendo, dependente das vias marítimas para grande parte de suas atividades”.

E em conclusão:

“Entretanto, devido a fatores conjunturais, ocorreu migração econômica para o interior, com “as costas” voltadas para o mar em diferentes aspectos entre eles os transportes e a alimentação. Dessa forma, houve, no seio da população brasileira, uma degradação de mentalidade marítima, a ponto de, nos dias atuais, os brasileiros, em sua grande maioria, pensarem no mar apenas de forma lúdica”.

            Como afirmado por Fernando Previdi (2013), existe um mundo de particularidades a serem consideradas, como, por exemplo, o uso habitacional que diversos velejadores conferem as suas embarcações:

“Os barcos de esporte e recreio, que muito diferente dos Automóveis, não necessitam de enorme investimento público para sua utilização (ruas, avenidas, viadutos, passarelas, muito asfalto, semáforos, etc), e também não concorrem o mesmo espaço público que o ônibus, o metrô, o pedestre e em nada contribui para o caos dos centros urbanos. Além disso os barcos ainda atendem a inúmeros quesitos de habitabilidade, e devido sua autonomia e autossuficiência, estão mais próximos de serem comparados com os sítios ou casas de campo/veraneio (longe dos centros urbanos), do que com os Automóveis”.

            Não restam dúvidas de que o mar e o espaço aéreo não implicam em investimento de qualquer monta do seu custeio por parte dos Estados-membro que justifique a cobrança de qualquer tributo. Forçoso é acreditar que a teoria tridimensional do tributo e o caráter eminentemente fiscal dos impostos possa ser capaz de tamanha abstração: distanciar por completo a lógica da exação ao seu campo de incidência.


 4. Conclusão

 Os Estados-membros não podem passar a ter uma competência que lhe é estranha e que pertence exclusivamente à União, a qual recai todos os gastos para o custeio e risco da manutenção e fiscalização do espaço aéreo e das águas marinhas e fluviais, talvez os únicos bens que ainda são de fruição universal. A tributação de embarcações, nos moldes trazidos pela PEC 140/12 e 283/13 afiguram-se como uma afronta ao sistema jurídico vigente, desafiando os arquétipos traçados pelo poder constituinte na divisão das receitas entre os entes federativos.

O Brasil novamente persegue a contramão do mundo, ao aplicar seu famoso "jeitinho brasileiro" até em propostas de emenda à Constituição. Os efeitos da referida tributação terão como consequência o novo sucateamento do mercado naval de embarcações de recreio no Brasil, cujo custo, para classe média ainda é elevado. Comparasse nossas embarcações no Brasil aos carros de cuba, contudo, aqui, o nosso inimigo é o nosso próprio Estado.


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BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº. 283/2013. Altera o inciso III do caput do art. 155 da Constituição Federal e acrescenta ao respectivo § 6º um inciso III com vedações a sua incidência. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=582954 em 04/10/2013

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EICHLER, Matheus dos Santos Buarque. Reflexos da ampliação do campo de incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves: A PEC 140/2012 e 283/2013 - O inimigo agora é outro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3849, 14 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26396. Acesso em: 1 maio 2024.