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A extrafiscalidade na jurisprudência dos Tribunais

A extrafiscalidade na jurisprudência dos Tribunais

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A extrafiscalidade, posto que sua dogmática ainda esteja em desenvolvimento, perdeu o caráter acessório, praticamente extrajurídico e passou a ser parte integrante e destacada do direito tributário construído pelos tribunais.

Sumário:Introdução; Imposto Territorial Rural – ITR; Imposto de Importação – II; Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI; Imposto sobre a Renda – IR; Conclusões.


Introdução

A extrafiscalidade sempre foi reconhecida na literatura brasileira do direito tributário e da ciência das finanças. Raros os manuais que não tratavam da matéria, seja do ponto de vista jurídico[1] seja do ponto de vista econômico[2], embora a extrafiscalidade fosse vista de maneira muito limitada, vale dizer, apenas como as medidas tributárias deliberadamente tomadas pelo legislador para estimular ou reprimir condutas no campo da economia.

Em nossa pesquisa, procuramos ampliar a noção da extrafiscalidade para abranger também qualquer efeito da norma tributária que se afastasse da pura arrecadação ou exoneração, ainda que tal efeito: 1. não fosse manifestamente pretendido pelo legislador; 2. ocorresse em áreas distintas da economia; 3. não decorresse de indução ou repressão a comportamento. Defendemos, ainda, que a extrafiscalidade: 1. não é meramente residual ou pontual no direito tributário, mas uma marca constante deste ramo do direito; 2. não é o oposto da “fiscalidade”, sendo ambas, fiscalidade e extrafiscalidade, efeitos comuns da incidência tributária; e 3. atua de maneira ponderada com os princípios clássicos do direito tributário, de forma que pode tanto agir em consonância com a capacidade contributiva, quanto excepcionar o princípio por razões de política pública[3].

Ademais, surgiram outros trabalhos específicos sobre a extrafiscalidade como parte do direito tributário[4], bem como estudos específicos sobre os incentivos fiscais[5] ou sobre a norma tributária como meio de indução de comportamentos ou como instrumento de regulação econômica[6], revelando a preocupação crescente com o tema.

Mais do que isso, a extrafiscalidade deixou de ser mero capítulo de livros ou conceito abstrato sem aplicação prática para a ser considerada razão de decidir na jurisprudência nacional.

Como veremos, a extrafiscalidade, posto que sua dogmática ainda esteja em desenvolvimento, perdeu o caráter acessório, praticamente extrajurídico e passou a ser parte integrante e destacada do direito tributário construído pelos tribunais.

Sem a pretensão de enaltecer ou repudiar a extrafiscalidade, nosso objetivo neste texto é passar em revista a algumas decisões que abordam o tema, tecendo comentários apenas ocasionais sobre a jurisprudência.

Contudo, o estudo da matéria se justifica por, pelo menos duas razões: 1. é necessário para compreender o regime jurídico da extrafiscalidade que vem sendo construído pelos tribunais; e 2. para estudar o controle jurisdicional da extrafiscalidade[7].


Imposto Territorial Rural - ITR

O Imposto Territorial Rural possui função extrafiscal expressa no art. 153, VI e § 4°, da Constituição, segundo o qual o imposto será progressivo, fixado de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas.

Embora sujeito aos rigores dos princípios da legalidade estrita, da anterioridade nonagesimal e da anterioridade do exercício, o ITR é considerado, sem maiores divergências, um imposto extrafiscal, como instrumento relacionado com a função social da propriedade.

A este propósito, dispo o art. 186, da CF/88:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

O art. 186, da Constituição apresenta redação simples e o significado de seus termos, como aproveitamento racional, utilização adequada e bem estar de proprietários e trabalhadores são comuns da língua portuguesa. Sua compreensão, pois, depende mais do senso comum, da tecnologia disponível e das relações sociais, que da ciência jurídica, sem prejuízo das interpretações judiciais nas demandas que envolvam o imposto.

Em outra oportunidade, abordamos a extrafiscalidade do ITR com destaque para o estímulo da produção rural e ao atendimento desta função social da propriedade, na linha do art. 186, da CF/88:

Outro instrumento relevante é o Imposto Territorial Rural, que tem sua origem como contribuição social, instituída pela Lei n. 2.613/55. Encontra-se hoje previsto pelo art. 153, VI, da Constituição e estabelecido pela Lei n. 9.393/96. Sendo imposto, sua receita não é destinada a finalidades específicas. Impostos geram receitas gerais, destinadas ao caixa único da esfera do poder público, federal (como hoje é o caso), estadual ou municipal. Entretanto, por incidir sobre a propriedade rural, pode ser manejado no sentido da obtenção de efeitos extrafiscais, adequados a uma política econômica constitucionalmente definida.

A CF/88 dispõe que o imposto “terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas e não incidirá sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore, só ou com sua família, o proprietário que não possua outro imóvel” (art. 153, VI, § 4º).

Dessa forma, o ITR é dotado de significativa função extrafiscal, visando a desestimular, por meio de alíquotas elevadas, a manutenção de propriedades improdutivas, constituindo, assim, importante instrumento de consecução do respeito à função social da propriedade. De outra sorte, não incidindo sobre pequenas glebas rurais, reduz o ônus tributário de pequenos proprietários de terra[8].

No Judiciário, porém, outro aspecto extrafiscal do imposto recebeu maiores atenções, por ocasião de demandas relativas à prova das áreas de preservação permanente e de reserva legal: o aspecto ambiental. Vejamos o que restou decidido no REsp 1.158.999/SC:

TRIBUTÁRIO - AMBIENTAL - PROCESSO CIVIL - ITR - RESERVA LEGAL - PERCENTUAL MAIOR QUE O MÍNIMO LEGAL - ART. 16 DO CÓDIGO FLORESTAL - ATO VOLUNTÁRIO - DEDUÇÃO DA BASE DE CÁLCULO - POSSIBILIDADE - PRESTAÇÃO JURISDICIONAL - SUFICIÊNCIA.

[...]

2. O ITR possui função extrafiscal de proteção ao meio ambiente, razão pela qual a legislação pertinente prevê, no art. 10, II, a da Lei 9.393/96, a possibilidade de dedução da base de cálculo do imposto o percentual relativo à reserva legal, conceituada como a área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas.

(STJ; T2; REsp 1.158.999/SC; Min. Eliana Calmon; DJe de 17/08/2010)

Conquanto a extrafiscalidade do ITR atrelada à função social da propriedade seja mandamento constitucional inafastável, o Judiciário encontrou no imposto função extrafiscal ambiental.

De fato a composição legal da base de cálculo do imposto retira sua incidência de áreas de interesse ambiental, descritas no art. 10, da Lei 9.393/96, tais como:

Art. 10.

§ 1º Para os efeitos de apuração do ITR, considerar-se-á:

I - VTN, o valor do imóvel, excluídos os valores relativos a:

d) florestas plantadas;

II - área tributável, a área total do imóvel, menos as áreas:

a) de preservação permanente e de reserva legal, previstas na Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, com a redação dada pela Lei nº 7.803, de 18 de julho de 1989;

b) de interesse ecológico para a proteção dos ecossistemas, assim declaradas mediante ato do órgão competente, federal ou estadual, e que ampliem as restrições de uso previstas na alínea anterior;

d) sob regime de servidão ambiental;

[...]

e) cobertas por florestas nativas, primárias ou secundárias em estágio médio ou avançado de regeneração;

[...]

Assim, com legitimidade, o STJ reconheceu função extrafiscal ambiental do imposto não expressamente prevista na Constituição e a utilizou como fundamento de decidir em situações concretas.


Imposto de Importação - II

Os impostos sobre o comércio exterior, que incidem exclusivamente na importação e na exportação de bens[9] tem função extrafiscal fortemente reconhecida, tanto pela economia, pelo fato de serem utilizados como instrumento de regulação da oferta e do preço de bens, quanto pela teoria clássica da extrafiscalidade no direito, tendo em vista a flexibilização do princípio da anterioridade e da legalidade estrita aplicáveis às exações.

A exceção ao princípio da legalidade ganha a seguinte redação no art. 21, do CTN:

Art. 21. O Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas ou as bases de cálculo do imposto, a fim de ajustá-lo aos objetivos da política cambial e do comércio exterior.

O art. 21, do Código fora recepcionado em parte, pois a Constituição de 1988 permite a flexibilização apenas para a alíquota. A base de cálculo deve ser estabelecida por lei ou norma equivalente, como medida provisória ou tratado internacional.

De outro turno, sem prejuízo de sua constitucionalidade, a norma acrescenta o objetivo extrafiscal desta flexibilização, vale dizer, ajustar o imposto aos objetivos da política cambial e do comércio exterior.

O art. 26, do CTN, para o qual valem as mesmas observações, disciplina a exceção ao princípio da legalidade estrita para o imposto de exportação. Vejamos:

Art. 26. O Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas ou as bases de cálculo do imposto, a fim de ajustá-los aos objetivos da política cambial e do comércio exterior.

Diante deste quadro normativo, nos manifestamos:

O imposto sobre importação, ao onerar o preço dos bens importados, apresenta como primeiro e principal efeito a proteção da empresa nacional, contra a concorrência estrangeira tanto sob o ponto de vista histórico quanto econômico.

A função do II não é de compensar a inexistência de carga tributária nos países de origem para bens exportados. Essa função é desempenhada pelos tributos internos comuns, sobre a produção e o consumo, no nosso caso o ICMS, o IPI, o ISS e, mais recentemente, o PIS e a COFINS. O II cria uma vantagem extra à produção nacional, por incidir sobre a operação em caráter adicional aos impostos submetidos à tributação ordinária.

De outro turno, o II é capaz de contribuir com a regulação do fornecimento de bens. Havendo escassez do produto, a abertura para importações, com redução das alíquotas, permite o suprimento do mercado interno, ao mesmo tempo em que promove a redução do preço do similar nacional, caso exista. Da mesma forma que os demais impostos sobre a produção e a circulação, também interfere nos preços relativos e na elasticidade–preço, dos produtos importados e de seus similares nacionais[10].

O imposto de importação é, assim, medida intermediária entre a vedação de importações e o comércio livre de barreiras.

Também pode se mencionar como função do imposto a redução das importações, com vistas ao equilíbrio da balança comercial dos países e seu desenvolvimento econômico. O GATT também reconhece esta função extrafiscal do imposto. Embora tenha como finalidade o livre comércio entra as nações, expressa o art. XII do Acordo:

3. (a) Na execução da sua política nacional, as Partes Contratantes se comprometem a levar devidamente em conta a necessidade de manter ou de restabelecer o equilíbrio de suas balanças de pagamentos sobre uma base sã e durável e a oportunidade de evitar que os seus recursos produtivos sejam utilizados de uma maneira anti-econômica. Elas reconhecem que para alcançar estes objetivos é conveniente a adoção na medida do possível de medidas que visem mais ao desenvolvimento que à contratação das trocas internacionais[11].

Ainda mais explicito, o art. XVIII do GATT reconhece que o desenvolvimento econômico das partes no acordo tende a facilitar o alcance de seus objetivos de livre comércio, razão pela qual autoriza a utilização de política tarifária visando a proteção e, com isso, o desenvolvimento de setores das economias nacionais. Leia-se:

1. As Partes Contratantes reconhecem que a realização dos objetivos do presente Acordo será facilitada pelo desenvolvimento progressivo de suas economias, em particular nos casos das Partes Contratantes cuja economia não asseguram à população senão um baixo nível de vida e que está nos primeiros estágios de seu desenvolvimento.

2. As Partes Contratantes reconhecem além disso que pode ser necessário para as Partes Contratantes previstas no parágrafo primeiro, com o objetivo de executar seus programas e suas políticas de desenvolvimento econômico orientados para a elevação do nível geral de vida de suas populações, tomar medidas de proteção ou outras medidas que afetem as importações e que tais medidas são justificadas na medida em que elas facilitem a obtenção dos objetivos deste Acordo. Elas estimam, em consequência, que estas Partes Contratantes deveriam usufruir facilidades adicionais que as possibilitem: (a) conservar na estrutura de suas tarifas aduaneiras suficiente flexibilidade para que elas possam fornecer a proteção tarifária necessária à criação de um ramo de produção determinado, e (b) instituir restrições quantitativas destinadas a proteger o equilíbrio de suas balanças de pagamento de uma maneira que leve plenamente em conta o nível elevado e permanente da procura de importação suscetível de ser criada pela realização de seus programas de desenvolvimento econômico[12].

Em síntese, pela letra do CTN e dos art. XII e XVIII do GATT, dos quais o Brasil é signatário, são funções extrafiscais do imposto de importação e do imposto de exportação a regulação da oferta e demanda de bens, a regulação do preço dos bens, a manutenção equilíbrio da balança comercial e o desenvolvimento econômico nacional.

A jurisprudência tem abordado a extrafiscalidade em causas concretas envolvendo especialmente o imposto de importação.

No REsp 1.145.540/SC, o STJ asseverou não competir

ao Poder Judiciário adentrar nos motivos pelos quais a CAMEX [...] limitou o benefício a equipamentos com determinada capacidade, sobretudo porque a redução de alíquota do Imposto de Importação, em razão de sua natureza extrafiscal, está afeta às políticas sociais e econômicas elaboradas pelo Poder Executivo, cujo mérito administrativo, [...], não se sujeita ao controle jurisdicional, salvo quanto à sua constitucionalidade e legalidade.

(STJ; T2; REsp 1.145.540/SC; Min. Mauro Campbell Marques; DJe de 28/10/2010)

Assim, no julgado, o tribunal reconheceu a função extrafiscal do imposto, considerando-a parte integrante do mérito do ato administrativo. O acórdão rejeitou a alegada violação aos princípios da igualdade e da capacidade contributiva ao adotar a extrafiscalidade como razão de decidir.

O mesmo STJ, em outra oportunidade, disciplinou o alcance da própria extrafiscalidade da norma tributária, ao afastar a incidência do imposto de importação, em caso em que o objeto importado não se enquadrava como mercadoria. Na mesma decisão, frisou que as normas do imposto devem ser interpretadas “no contexto da atual função extrafiscal”. Leia-se:

1. Interpretam-se as normas referentes ao Imposto de Importação no contexto da atual função extrafiscal desta exação, tida como instrumento de regulação do comércio exterior.

2. O termo mercadoria – constante do artigo 1º do Decreto n. 37/66 – deve ser entendido no seguinte sentido: "Aquilo que é objeto de comércio; bem econômico destinado à venda; mercancia", conforme anotado no Novo Dicionário Eletrônico Aurélio, versão 5.11a.

3. In casu, os quadros saíram e voltaram, com o registro pertinente, com a destinação "enfeite de residência particular", sem finalidade de comércio, não se tratando, portanto, de mercadoria e não incidindo na espécie o imposto de importação.

Recurso especial improvido.

(STJ; T2; REsp 601.022/RJ; Min. Humberto Martins; DJe de 16/12/2009)

Tomando, pois, a extrafiscalidade como fundamento jurídico da decisão, afastou a incidência do imposto de importação na entrada em território nacional de bem sem finalidade comercial, incapaz, pois, de afetar a oferta ou o preço de bens no país, a balança comercial ou o desenvolvimento nacional[13].


Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI

O IPI é o grande imposto federal sobre o consumo, ou, na classificação do CTN, sobre a produção e a circulação de bens e serviços e é mencionado com freqüência como imposto extrafiscal ou regulatório, acompanhado do clássico exemplo da incidência sobre o cigarro.

A extrafiscalidade do IPI pode decorrer da natureza da sua incidência (art. 153, IV, da CF/88 e art, 46 e 47, do CTN), do princípio da seletividade (art. 153, IV, § 3º, I da CF/88), do princípio da não-cumulatividade (art. 153, IV, § 3º, II da CF/88), bem como das disposições constitucionais de não incidência nas exportações e da redução do impacto na aquisição de bens de capitais (art. 153, IV, § 3º, III e IV da CF/88).

Sobre a extrafiscalidade do IPI e dos tributos sobre o consumo, em geral, nos manifestamos:

Em termos específicos, extraem-se efeitos extrafiscais da tributação sobre o consumo mediante a implementação particular da não-cumulatividade, da seletividade, da incidência nas exportações e da flexibilidade diante dos princípios da legalidade e da não-surpresa em cada um dos tributos.

A Constituição determina que o IPI e o ICMS sejam não-cumulativos, o que constitui vantagem sobre a tributação cumulativa, notadamente pelos efeitos extrafiscais. A tributação cumulativa distorce preços, onera exportações e estimula a verticalização das empresas, valores sobre os quais a incidência não cumulativa é neutra. Entretanto, como o princípio não é plenamente concretizado e está a demandar constante regulamentação, seus efeitos ficam limitados.

[...]

A não-cumulatividade é, também, elemento relevante no incremento das exportações. Seguindo o princípio de que impostos não devem ser exportados, o IPI, o ICMS e o ISS não incidem nas exportações por desígnio constitucional. Com isso, reduzem o preço do bem exportado, aumentando sua competitividade internacional. PIS e COFINS não-cumulativos igualmente não incidem nas exportações. Porém a parcela cumulativa destes tributos oneram o preço do bem exportado, de modo a reduzir a competitividade do produto nacional no exterior.

[...]

Da seletividade também decorrem efeitos extrafiscais dos tributos, a ponto de o IPI ser considerado imposto regulatório, devido a sua seletividade obrigatória, em razão da essencialidade do produto (CF/88, art. 153, § 3º, I), que implica encarecimento dos bens supérfluos em relação àqueles de maior importância para a vida humana, criando, assim, estímulo tanto para a produção, quanto para o consumo dos diversos tipos de bens[14].

O IPI, portanto, tem como efeitos extrafiscais o estímulo a horizontalização da economia (não-cumulatividade), desestímulo a produção e consumo de bens supérfluos e estímulo a produção e consumo de bens essenciais (seletividade, que opera pela interferência do imposto nos preços relativos dos bens) e estímulo às exportações, pela sua não incidência.

Devemos registrar, contudo, que uma as características das extrafiscalidade no direito é a possibilidade de mitigar a aplicação de outros princípios jurídicos. Dessa forma, não é raro a redução da incidência do IPI para certos produtos, com vistas ao estímulo a sua produção e consumo, sem que haja o mesmo tratamento a outros produtos de igual essencialidade. Assim, por razões de política econômica, de bens igualmente necessários podem receber alíquotas diferentes, posto que uma tal medida descuide os rigores do princípio da seletividade, nos termos do art. 153, § 3º, I, da CF/88.

O Judiciário também tem reconhecido estas funções extrafiscais do imposto. Seguindo o clássico exemplo da incidência sobre o cigarro, decidiu o STJ:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. [...]. CIGARROS E CIGARRILHAS. IPI. ÔNUS REPASSADO AO CONSUMIDOR FINAL. COMPOSIÇÃO DO CUSTO DO BEM VENDIDO. [...].

[...]

7. Por sua natureza jurídica e econômica, o ônus financeiro do IPI é repassado ao longo da cadeia comercial e será suportado, invariavelmente, pelo consumidor final. Aliás, é esta a função extrafiscal da altíssima alíquota incidente sobre cigarros e cigarrilhas: onerar pesadamente o consumo de modo a desestimulá-lo ou, ao menos, suprir o Estado com recursos financeiros para mitigar as elevadas despesas médico-hospitalares decorrentes, sem prejuízo de medidas ressarcitórias de caráter não-tributário.

[...]

(STJ; T2; EDcl no Ag 1.083.030/MT; Min. Herman Benjamin; DJe de 17/06/2009)

Contudo, a jurisprudência tem avançado mais neste campo.

Na decisão cuja ementa passamos a transcrever, discutiu-se a classificação de bens na Tabela do IPI – TIPI. Nela, o destaca o STJ que a extrafiscalidade não se apresenta por medidas isoladas, mas por um conjunto de medidas, que devem ser interpretadas coletivamente. Vejamos:

PROCESSUAL CIVIL - TRIBUTÁRIO E ADMINISTRATIVO - RECURSO ESPECIAL - PREQUESTIONAMENTO AUSENTE - SÚMULAS 282 E 356 DO STF - IPI – DECRETO 97.410/88 E DL 1.199/71 - EMBALAGENS METÁLICAS - ALTERAÇÃO NA POSIÇÃO OCUPADA NA TIPI - ADEQUAÇÃO DO SISTEMA BRASILEIRO AO SISTEMA INTERNACIONAL DE DESIGNAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DE MERCADORIAS (NOMENCLATURA ADUANEIRA DE BRUXELAS) - OBSERVÂNCIA À MOTIVAÇÃO QUE EMBASOU A EDIÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO.

[...]

7. Os reflexos do aumento de alíquota do IPI sobre as finanças das empresas e sobre o custo final dos produtos deve ser analisado a partir da visão global da cadeia produtiva, e não isoladamente, pois, como é cediço, em razão do caráter extrafiscal do mencionado imposto, as alterações e reduções promovidas pelo Poder Executivo, de regra, são implementadas no âmbito de um conjunto de medidas econômicas com objetivos diversos. Dito de outra maneira, não é raro que, concomitantemente ao aumento ou à redução de alíquotas do IPI, o governo adote iguais medidas em relação aos demais tributos incidentes sobre a cadeia produtiva.

8. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido.

(STJ; T2; REsp 989.593/DF; Min. Eliana Calmon; DJe 25/11/2008)

Assim, o Judiciário aperfeiçoa a disciplina jurídica da extrafiscalidade ao remeter o tema à interpretação sistemática do direito, onde já se encontravam as normas “fiscais” do direito tributário.

O STF também tem enfrentado questões de extrafiscalidade do IPI.

No RE 606.314/PE discute-se a alteração da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – TIPI de embalagens para acondicionamento de água mineral. Na redação do Decreto 2.092/96, o produto era classificado como embalagem para alimentos e tributado à alíquota zero, da mesma forma que a água mineral. A TIPI do Decreto 3.777/01, a seu turno, previu rubrica específica “garrafões, garrafas, frascos e artigos semelhantes”, com a alíquota de 15%, afastando a classificação do produto como “embalagem para alimentos”.

Ao apreciar a matéria, o STF entendeu pela existência dos requisitos da repercussão geral e assim decidiu:

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS. SELETIVIDADE. APLICAÇÃO DE ALÍQUOTA MAIS FAVORÁVEL À OPERAÇÃO DE INDUSTRIALIZAÇÃO DE EMBALAGENS. ALEGADA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE. SUSTENTADA APLICAÇÃO APENAS ÀS INDÚSTRIAS ALIMENTÍCIAS. PROPOSTA PELO RECONHECIMENTO DA REPERCUSSÃO GERAL.

Proposta pelo reconhecimento da repercussão geral da possibilidade de o Judiciário estabelecer alíquota inferior àquela correspondente à classificação do produto que a autoridade fiscal entende como correta. Ademais, discute-se se tais critérios teriam ou não sido respeitados pelo Tribunal de origem neste caso, que envolve a produção de embalagens para acondicionamento de água mineral.

(STF; RE 606.314 RG/PE; Min. Joaquim Barbosa; DJe de 10.2.2012)

No inteiro teor, destacou o Relator:

O princípio da seletividade obriga a União a calibrar a carga do IPI conforme a essencialidade, a utilidade, a nocividade e a ociosidade do produto. Sem me comprometer de pronto com qualquer das teses sobre a matéria, registro que se discute a possibilidade de o Poder Judiciário controlar as alíquotas e as bases de cálculo do tributo a partir do exame da motivação dos atos legais emitidos pelos Poderes Legislativo e Executivo.

Em posição antípoda, argumenta-se que a motivação que revela o conceito de seletividade adotado é imune ao controle judicial, pois se trataria de ato pertencente à esfera decisória do executivo, segundo os critérios da conveniência e da oportunidade.

O STF discute, pois, os limites do controle jurisdicional sobre a fixação de alíquotas do imposto bem como a gradação das alíquotas em função da seletividade do IPI, instituto que carrega a extrafiscalidade do imposto.

Entendemos cabíveis duas observações acerca da seletividade, para além do simples argumento de que a alíquota se aplicaria ao produto (água) e não aos insumos (garrafas, garrafões e tampas), questão também relevante para definir os limites do (possível) controle judicial das alíquotas do imposto.

A primeira é a relação entre o produto cuja tributação se discute e o produto final, cuja essencialidade se pretende estender. Para bens com relação direta e indissociável, como grampeador e grampo, sem que se conceba outro uso para o grampeador sem os grampos, nem nos grampos sem o grampeador, a seletividade comanda resultado igual para os dois produtos. Para bens com relação indireta, ocasional, fraca, como o pão e a manteiga, a seletividade não leva necessariamente ao mesmo resultado, pois a manteiga possui outros usos e o pão pode ser servido com outros acompanhamentos.

Outra observação se refere diretamente à extrafiscalidade. Havendo razão bastante para elevar a tributação de um item, para fins de política econômica, a seletividade deixa de ser aplicada ainda que a elevação de alíquotas ocorra para apenas um dos produtos indissociáveis: tanto o preço final dos produtos quanto a carga tributária será menor que a elevação da alíquota para ambos os produtos, de forma que pode haver desconsideração do princípio da seletividade, mas não haverá margem para que se alegue violação a direitos subjetivos.

A seletividade também tem sido objeto de apreciação pelos tribunais, em recursos que versão sobre a tributação do açúcar, com possíveis reflexos para a disciplina da extrafiscalidade.

Um dos casos baseava-se na Lei 8.393/91 que revogou o a alíquota zero vigente para o açúcar de cana, autorizando a alíquota máxima de 18%, enquanto persistisse a política de preço nacional unificado do produto. Vejamos o art. 2º, da lei:

Art. 2° Enquanto persistir a política de preço nacional unificado de açúcar de cana, a alíquota máxima do Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI incidente sobre a saída desse produto será de dezoito por cento, assegurada isenção para as saídas ocorridas na área de atuação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE e da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM.(Revogado pela Lei nº 9.532, de 1997)

A alíquota foi assim estabelecida pelo Decreto 420/92:

Art. 1º Ficam elevadas para 18% (dezoito por cento) as alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI incidente sobre as mercadorias classificadas nos códigos 1701.11 e 1701.99.0100 da Tabela de Incidência aprovada pelo Decreto nº 97.410, de 23 de dezembro de 1988.

Pretendeu-se afastar a incidência do imposto, tendo como argumento a idéia de que a essencialidade do açúcar para a vida humana não permitia a tributação do IPI, sob pena de violar a seletividade.

O STJ, contudo, acolheu a primazia da política pública de regulação do preço do açúcar face as alegações de seletividade, como exemplifica a decisão no REsp 437.666/PR:

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS - IPI. AÇÚCAR DE CANA. POLÍTICA NACIONAL DE PREÇOS UNIFICADOS. LEI 8.393/91. DECRETO 420/92. EXTRAFISCALIDADE.

1. Cessada a política nacional de unificação dos preços do açúcar de cana, não se retorna ao regime anterior em que havia "tributação pela alíquota zero", porquanto a função extrafiscal, revelada no caso dos autos, autoriza o Poder Executivo a fixar as alíquotas, respeitadas as disposições legais, em prol do interesse nacional.

2. O art. 2º da Lei 8.393/91 não impôs taxativamente a fixação da alíquota em 18% (dezoito por cento), mas apenas explicitou que esta não poderia ser fixada em percentual superior.

3. Recurso especial conhecido e improvido.

(STJ; T1; REsp 437.666/PR; Min. Luiz Fux; DJe de 19/05/2003)

No STF, a Lei 8.393/91 foi considerada constitucional, bem como os decretos que definiram alíquotas positivas para o produto, em precedentes como o AI 630.997, relatado pelo Ministro Eros Grau, mantendo a solução do STJ.

Não houve, a propósito, acanhamento na jurisprudência, que enfrentou o tema dentro dos limites do controle da extrafiscalidade ou, melhor dizendo, das normas que veiculam medidas de política pública. Certo ou errado, o Judiciário ponderou todas as razões expostas, acolhendo, no caso, a prevalência da extrafiscalidade[15].

Não mais vigente a política de preços nacionais do açúcar, persiste a regra geral de tributação do produto, cujas alíquotas passíveis de ser estabelecidas pelo Poder Executivo, tem se estabilizado no patamar de 5%, a exemplo do Decreto 2.917/98 ou da TIPI atual.

Mais uma vez, a tributação do açúcar, produto que compõe a cesta básica, volta à apreciação do Judiciário, contrapondo-se novamente o princípio da seletividade e as razões de política econômica. Vejamos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – IPI – CANA-DE-AÇÚCAR – OPERAÇÕES RELATIVAS A AÇÚCAR E ÁLCOOL – FIXAÇÃO DE ALÍQUOTA ESPECÍFICA PARA O AÇÚCAR – FINALIDADE EXTRAFISCAL

Alegada ofensa ao princípio constitucional da seletividade – Relações entre o postulado da seletividade e o critério da essencialidade do produto – Decisão embargada proferida em momento no qual o STF ainda não reconhecera a transcendência da controvérsia constitucional – Repercussão geral da matéria que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em momento subsequente, veio a proclamar na apreciação do RE 567.948-RG/RS, substituído pelo RE 592.145-RG/SP – embargos de declaração acolhidos.

(STF; T2; AI 360461 AgR-ED/MG; Min. Celso De Mello; DJe de 10/06/2011)

IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS - MAJORAÇÃO DA ALÍQUOTA - CANA-DE-AÇÚCAR - ARTIGO 153, § 3º, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE - Possui repercussão geral a controvérsia sobre a constitucionalidade do Decreto nº 2.917/98, no que instituiu nova alíquota de IPI para o açúcar.

(STF; Tribunal Pleno; RE 567.948 RG/RS; Min. Marco Aurélio; DJe de 5/2/2010)

Nesta oportunidade, o STF pode entender que o açúcar deva ser exonerado, se acolher a necessidade absoluta e inafastável do produto para a vida humana. Em nossa opinião, esta não é a tendência, tendo em vista que o consumo excessivo do produto pode causar doenças e que as ações que impugnam a exação sejam propostas pelos produtores, não pelos consumidores do produto, em acréscimos aos fundamentos já expressos na jurisprudência.

Neste texto, cuja pretensão é apenas destacar a positivação da extrafiscalidade, os precedentes e  o reconhecimento da repercussão geral no RE 567.948 RG/RS mostram que a matéria passou a compor o direito vigente, deixando o campo extrajurídico.


Imposto sobre a Renda - IR

De um modo geral, o imposto de renda não é tratado entre os juristas brasileiros como meio de extrafiscalidade, salvo pelos variados benefícios fiscais que tomam o tributo como base.

Contudo, na teoria econômica e na literatura jurídica estrangeira e, em algumas obras jurídicas nacionais, discute-se sobre os efeitos econômicos do imposto sobre a renda, bem como sua utilização como instrumento de política fiscal ou de intervencionismo fiscal[16].

Os temas debatidos se referem à tributação da poupança ou, no caso brasileiro, à isenção da poupança, como estímulo à formação de capital; à depreciação acelerada de bens com vistas à renovação do parque industrial; o efeito de redistribuição de renda promovido pela progressividade das alíquotas; a tributação favorecida de investimentos desejáveis de acordo com a política econômica governamental, como a tributação regressiva no tempo dos planos de previdência complementar, entre outros.

Em outra oportunidade, sustentamos:

A tributação da renda permite efeitos extrafiscais. Segundo a doutrina econômica, a tributação sobre a renda é menos danosa à economia, gerando, conforme a terminologia keynesiana, menor efeito multiplicador negativo se comparada à tributação indireta. Proporciona, também, efeitos sobre a elasticidade–renda dos bens ofertados no mercado. Sua potencialidade de promover redução das desigualdades de renda é notória. Pode constituir meio de tratamento favorecido à renda da família, como assevera Misabel Derzi.

[...]

O IR, pela sua natureza, é o tributo mais afeito ao princípio da capacidade contributiva, analisada do ponto de vista objetivo, porque incide sobre acréscimos patrimoniais e, do ponto de vista subjetivo, porque permite a consideração de diferenças individuais em razão de cada contribuinte. De uma maneira geral, então, pode o imposto incidir de forma progressiva, onerando mais quem aufere mais renda o que lhe confere, conforme ensinam a economia e a ciência das finanças, maior capacidade contributiva. Daí, então, os efeitos extrafiscais da progressividade do IR, tanto pessoa física quanto pessoa jurídica. Alíquotas mais elevadas para os mais ricos proporcionam redistribuição de renda, permitem ao mais pobre permanecer com a pouca renda auferida para suprir suas necessidades mais básicas, fazem com que o contribuinte mais abastado suporte mais que proporcionalmente as despesas públicas e tende a igualar estes àqueles[17].

Afastando-se destes temas, contudo, a jurisprudência do STJ tem acolhido a extrafiscalidade como razão de decidir num caso peculiar, relativo aos percentuais aplicáveis na apuração do lucro presumido.

Para melhor exposição da matéria, precisamos estudar, ainda que de passagem, o conceito de renda e as modalidades de incidência do imposto.

No Brasil, o art. 43, do CTN, define renda de maneira ampla, mas consentânea com a Constituição, e é este o conceito de renda válido no país:

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

Conforme o Código, será renda a remuneração do trabalho, como o salário, do capital, como os juros e os alugueis, ou da combinação de ambos, como o lucro.

Misabel Derzi apresenta uma síntese das correntes que investigam o conceito de renda, separando-as conforme se ajustem a tributação da pessoa jurídica ou da pessoa física. Vejamos:

Do ponto de vista econômico-fiscal, classicamente, também são duas as principais correntes que buscam apreender o conceito de renda:

1. como excedente, ou acréscimo de riqueza, considerando o fluxo de satisfações e serviços consumidos (Irving Fisher) ou meramente disponíveis (Hewett), representados por seu valor monetário, fluxo que engloba as entradas e saídas em um período determinado de tempo. É conceito que melhor se ajusta àquele empregado pelo legislador na apuração da renda da pessoa física[18].

2. como acréscimo de valor ou de poder econômico, apurada a renda pela comparação dos balanços de abertura e encerramento de determinado período. É conceito utilizado na apuração da renda da pessoa jurídica, especialmente sociedades comerciais[19].

Explica K. Tipke (Steuerrecht. Ein systematicher Grundriss. 9. Köln, p. 213) que o dualismo tem longa tradição, pois, ainda no século XIX, a lei cedeu às exigências dos empresários do comércio e da indústria, que insistiram em identificar o lucro com o resultado da contabilidade comercial. A diferença de tratamento legal dispensado à pessoa física e à pessoa jurídica, ainda hoje, está assentada nos seguintes argumentos:

1. do risco do empreendimento, sendo a atividade empresarial muito mais sensível às oscilações da economia;

2. da necessidade de afetação de um patrimônio às atividades empresariais[20].

Para a pessoa física, pois, renda será o acréscimo patrimonial, enquanto para a pessoa jurídica será o resultado líquido da atividade no período, apurado mediante o somatório das receitas e a subtração das despesas. Como a atividade é contínua, a apuração do imposto também deverá ser, permitindo-se a compensação de prejuízos nos anos posteriores.

Já se poderia, a partir da distinção do conceito de renda da pessoa física e da pessoa jurídica perquirir sobre os efeitos fiscais e extrafiscais do imposto. Mas nosso objeto de estudo ainda não é este.

Para chegarmos a este objetivo, precisamos lembrar o art. 44, do CTN, que especifica a possível base de cálculo do imposto. Vejamos:

Art. 44. A base de cálculo do imposto é o montante, real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis.

A base do IRPJ poderá, nestes termos, ser a renda real, arbitrada ou presumida.

O ponto que nos interessa para discutir a jurisprudência é a do lucro presumido, relativo às discussões sobre o percentual aplicável a hospitais e a outras empresas do ramo da saúde.

A base de cálculo dos tributos, como adverte a literatura, é a dimensão econômica do fato gerador e, assim como este, está adstrito ao princípio da capacidade contributiva. Como leciona Misabel Derzi, a capacidade econômica objetiva determina que o legislador defina fatos geradores representativos de riqueza e a capacidade contributiva subjetiva, aliada ao princípio da pessoalidade, perfeitamente aplicável ao imposto de renda, impõe que a incidência tributária ocorra sobre a efetiva riqueza do contribuinte[21]. Tal fim, inarredavelmente, necessita dos ajustes na base de cálculo do sujeito passivo.

A questão torna-se simples no que toca ao lucro real, cabendo ao legislador permitir as despesas necessárias às diferentes atividades e aos diferentes contribuintes, para atingir a capacidade econômica subjetiva.

No lucro arbitrado surge o problema: o legislador não está autorizado a definir base de cálculo de maneira a descaracterizar o fato gerador renda (lucro da pessoa jurídica), sendo-lhe vedado tributar toda a receita ou dispensar a tributação, mas também não pode levar em conta as peculiaridades do contribuinte.

Assim, a base de cálculo presumida atende ao princípio da capacidade contributiva objetiva, desde que esta base corresponda, com maior ou menor precisão, ao conceito de renda. De outro lado, afasta-se da capacidade contributiva subjetiva e da personalização do imposto, em prestígio à praticidade dessa forma de apuração da base de cálculo do imposto em comparação com o lucro real.

Sob o ponto de vista jurídico econômico, o lucro presumido, vale dizer, o percentual da receita que corresponde ao lucro, deve ser uma aproximação, do tipo geral ou médio, da renda de cada atividade prevista pelo legislador, para que a capacidade econômica objetiva seja alcançada.

A definição do percentual de presunção de lucro, pois, não corresponde a benefício fiscal nem se deixa levar por razões extrafiscais.

O STJ, contudo, entendeu de forma diferente ao apreciar o art. 15, § 1º, da Lei 9.249/95, que, em sua redação original, determinou a aplicação do percentual de presunção de 8% para serviços hospitalares e 32% outros serviços, inclusive clínicas, laboratórios médicos.

Os contribuintes alegavam que não havia diferença entre o serviço médico, clínico ou laboratorial prestado em hospital ou em clínica médica e postulavam o percentual de 8% para a definição do lucro presumido, tese inicialmente rejeitada, como exemplifica o julgado no REsp 832.906/SC.

A Corte começou a mudar seu entendimento ao acolher a tese de que se tratava de benefício fiscal que não se pautava pela estrutura da pessoa jurídica, sendo irrelevante a possibilidade de internação, mas pela natureza do serviço. Assim, irrelevante que o prestador do serviço fosse hospital, clínica ou laboratório. Vejamos:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. LUCRO PRESUMIDO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO. BASE DE CÁLCULO. ARTS. 15, § 1º, III, "A", E 20 DA LEI Nº 9.249/95. SERVIÇO HOSPITALAR. INTERNAÇÃO. NÃO-OBRIGATORIEDADE. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DA NORMA. FINALIDADE EXTRAFISCAL DA TRIBUTAÇÃO. POSICIONAMENTO JUDICIAL E ADMINISTRATIVO DA UNIÃO. CONTRADIÇÃO. NÃO-PROVIMENTO.

1. O art. 15, § 1º, III, "a", da Lei nº 9.249/95 explicitamente concede o benefício fiscal de forma objetiva, com foco nos serviços que são prestados, e não no contribuinte que os executa. Observação de que o Acórdão recorrido é anterior ao advento da Lei nº 11.727/2008.

2. Independentemente da forma de interpretação aplicada, ao intérprete não é dado alterar a mens legis. Assim, a pretexto de adotar uma interpretação restritiva do dispositivo legal, não se pode alterar sua natureza para transmudar o incentivo fiscal de objetivo para subjetivo.

3. A redução do tributo, nos termos da lei, não teve em conta os custos arcados pelo contribuinte, mas, sim, a natureza do serviço, essencial à população por estar ligado à garantia do direito fundamental à saúde, nos termos do art. 6º da Constituição Federal.

4. Qualquer imposto, direto ou indireto, pode, em maior ou menor grau, ser utilizado para atingir fim que não se resuma à arrecadação de recursos para o cofre do Estado. Ainda que o Imposto de Renda se caracterize como um tributo direto, com objetivo preponderantemente fiscal, pode o legislador dele se utilizar para a obtenção de uma finalidade extrafiscal.

5. Deve-se entender como "serviços hospitalares" aqueles que se vinculam às atividades desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde. Em regra, mas não necessariamente, são prestados no interior do estabelecimento hospitalar, excluindo-se as simples consultas médicas, atividade que não se identifica com as prestadas no âmbito hospitalar, mas nos consultórios médicos.

6. Duas situações convergem para a concessão do benefício: a prestação de serviços hospitalares e que esta seja realizada por instituição que, no desenvolvimento de sua atividade, possua custos diferenciados do simples atendimento médico, sem, contudo, decorrerem estes necessariamente da internação de pacientes.

[...]

(STJ; S1; REsp 951.251/PR; Min. Castro Meira; DJe de 03/06/2009)

Nestes exatos termos se pacificou a jurisprudência, no julgamento do REsp 1.116.399/BA. O STJ consolidou o entendimento de que o percentual de 8% para a definição da base de cálculo constitui benefício fiscal objetivo, voltado à atividade de saúde, que não pode ser restringido a estabelecimentos destinados ao atendimento global ao paciente, mediante internação e assistência médica integral.

Com a Lei 11.727/08, diversos serviços médicos passaram a ter o lucro presumido em 8% sobre a receita bruta.

Em nosso entendimento, sem perquirir pelo melhor percentual de presunção a ser aplicados para empresas prestadoras de serviços médicos, como clínicas e laboratórios, não havia espaço para discutir benefícios fiscais ou extrafiscalidade nas demandas.

Contudo, a jurisprudência demonstra a força que o argumento extrafiscal tem ganhado nos tribunais.


Conclusões

A título de conclusão, podemos afirmar que a extrafiscalidade tem recebido maior destaque, tanto nas discussões acadêmicas quanto nos foros judiciais.

Percebe-se que, a um tempo, a extrafiscalidade tem sido invocada como razão de decidir, especialmente nos casos levados às cortes superiores, bem como o regime jurídico da extrafiscalidade tem sido definido pelos tribunais, o que leva a positivação de matéria antes reservada ao campo do extrajurídico.

É certo que inclusão da extrafiscalidade no direito positivo é incipiente, havendo muito o que se desenvolver. As decisões recentes do STF e do STJ, contudo, convocam a comunidade jurídica à discussão do tema, abrindo espaço para a argumentação extrafiscal nos casos concretos e estimulando a produção científica do tema ainda em desenvolvimento.


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Notas

[1] BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1979.

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[2] BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução a ciência das finanças. Rio de Janeiro: Forense, 1971.

DEODATO, Alberto. Manual de ciência das finanças. São Paulo: Saraiva, 1971.

[3] GOUVÊA, Marcus. A extrafiscalidade no direito tributário. Del Rey, Belo Horizonte, 2006

[4] BERTI, Flávio de Azambuja. Impostos: extrafiscalidade e não-confisco. Curitiba: Juruá, 2006.

[5] CAMPOS, Cândido H. Exportações: inventivos fiscais e planejamento tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

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[6] EALI, André de Souza Dantas. Tributação e regulação econômica: um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP, 2007.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

[7] Estudamos os limites, mas não o controle judicial da extrafiscalidade em: GOUVEA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, Cap. 5.

[8] GOUVÊA, Marcus. A extrafiscalidade no direito tributário. Del Rey, Belo Horizonte, 2006, p. 111.

[9] Distinguindo-se, pois, dos tributos internos que também incidem na importação, como o IPI, o ICMS, o PIS e a COFINS, no processo de nacionalização de bens e serviços.

[10] GOUVEA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p 170-171.

[11] Disponível em: http://www.fazenda.gov.br/sain/sobre_sain/copol/acordo_gatts.pdf, acesso em 28.2.2013.

[12] Disponível em: http://www.fazenda.gov.br/sain/sobre_sain/copol/acordo_gatts.pdf, acesso em 28.2.2013.

[13] Vale registrar que não há exoneração do imposto para obras de arte, nem há norma que impeça a incidência do imposto sobre bens exportados, que reingressem em território nacional, de modo que a extrafiscalidade, por si, fora o fundamento da decisão em comento.

[14] GOUVÊA, Marcus. A extrafiscalidade no direito tributário. Del Rey, Belo Horizonte, 2006, p. 161 e seg..

[15] Neste caso, a ponderação da extrafiscalidade, entre outros elementos, levaram o Tribunal a legitimar a norma. O inverso, porém, ocorreu no caso do lucro presumido de empresas prestadoras de serviços médicos, instituídas na forma de clínicas, laboratórios etc, como veremos adiante.

[16] BIRK, Dieter. Steuerrecht. Heidelberg, C.F. Müller Verlag: 2007.

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TIXIER, Gilber; GEST, Guy. Droit fiscal. Paris: LGDJ, 1976.

UTZ. Tax policy: an introduction and survey of the principal debates. St. Paul: West Publishing Co., 1993.

[17] GOUVÊA, Marcus. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 148-149.

[18] DERZI, Misabel, in. BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 288.

[19] DERZI, Misabel, in. BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 289.

[20] DERZI, Misabel, in. BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 290.

[21] DERZI, Misabel, in. BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 200 e seg. e DERZI, Misabel, in. BALEEIRO, Aliomar. Limitações ao poder de tributar. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 687 e seg..


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade na jurisprudência dos Tribunais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3858, 23 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26493. Acesso em: 7 maio 2024.