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Democracia agonística e partidos políticos

Democracia agonística e partidos políticos

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Trata-se de estudo acerca da democracia como um ambiente de conflitos e antagonismos, para a compreensão da democracia agonística proposta por Chantal Mouffe.

Introdução

Em uma primeira análise, a temática a ser abordada neste artigo pode parecer verdadeiramente esgotada. Afinal, são tantos os livros e os estudos que se debruçam sobre a questão democrática que não é totalmente despropositado cogitar a inexistência de novas ideias pertinentes ao tema.

Entretanto, sem embargo dessas variadas discussões que já se fazem presentes no ambiente acadêmico, vislumbra-se a persistência de um problema concreto e efetivo a ser enfrentado. A democracia representativa tem se marcado, notadamente na realidade brasileira, por uma distorção de sua real finalidade e pela discrepância, cada vez maior, entre os interesses defendidos pelos representantes eleitos e os anseios da sociedade em geral. Aventa-se, nesse tocante, a existência de uma crise de legitimidade que alcançaria todas as instâncias institucionais da representação política, corporificadas nos poderes constituídos.

Este é, portanto, o problema motivador da discussão que será doravante travada. A constatação empírica de uma crise vivenciada pela representação política requer, como sói ocorrer, a busca de alternativas que façam frente ao cenário desfavorável que se observa nos tempos atuais.

De outro lado, não parece ser possível negar a figura da representação no contexto político contemporâneo. Alguns fatores – dentre os quais se destaca o tamanho dos Estados – representam severos obstáculos à concepção de uma democracia de caráter direto, que talvez fosse a mais adequada.

Entretanto, mesmo que não seja possível suplantar os mecanismos de representação política, inerentes ao contingente populacional e ao tamanho dos Estados na era contemporânea, é certo que a aproximação entre a sociedade e as decisões políticas tende a diminuir os problemas encontrados no sistema de representação, conferindo maior legitimidade e eficiência à atuação estatal.

Nesse contexto, salta aos olhos a importância dos mecanismos de participação direta da sociedade na condução do Estado, muitos deles previstos de forma expressa na Constituição Federal de 1988. Além disso, faz-se imperioso repensar o papel dos partidos políticos no regime democrático, através da análise de uma democracia partidária, que redefina o contexto político-representativo hodiernamente vigente.

Buscar-se-á refletir, desse modo, sobre a instigante e inovadora visão de Chantal Mouffe (1996), uma autora cujas teorias chamam a atenção para os potenciais equívocos verificados nos pensamentos que apregoam a necessidade de democracias de cunho deliberativo e popular.

A partir daí, será possível reavaliar o papel dos partidos políticos no atual cenário, de modo a verificar a possibilidade de uma redefinição das funções exercidas por tais instituições, ambientes propícios para a participação dos cidadãos no universo político, através de uma democracia partidária.


1. Democracia representativa: a necessidade de uma reestruturação democrática.

A representação política é, de fato, um fenômeno aparentemente inevitável no cenário político contemporâneo. Afinal, em face de diversas peculiaridades da formação estatal nos dias de hoje, a condução dos negócios públicos por uma assembleia composta por todos os indivíduos que fazem parte da sociedade tende a ser algo verdadeiramente irrealizável.

A esse respeito, quadra destacar a impressão levada a efeito por Robert A. Dahl (2001). Para o referido autor, um dos maiores impeditivos da chamada “democracia direta” no atual contexto é o próprio tamanho dos Estados, senão veja-se:

O tamanho tem importância. O número de pessoas numa unidade política e a extensão do seu território têm conseqüências para a forma da democracia. [...] Talvez hoje e cada vez mais no futuro seja possível resolver o problema territorial com o emprego dos meios de comunicação eletrônicos [...] Contudo, uma coisa é possibilitar “reuniões” eletrônicas e outra muito diferente é resolver o problema apresentado por números imensos de cidadãos. Além de certo limite, a tentativa de fazer com que todos se reúnam e se envolva em discussão frutífera, mesmo por meios eletrônicos, torna-se um disparate. (DAHL, 2001, p. 120-121).

Depreende-se da visão acima reproduzida uma percepção de real incredulidade no que concerne à participação popular na gestão dos negócios públicos. Ao prosseguir com sua análise, Dahl (2001) realiza uma série de exercícios aritméticos que, em princípio, demonstram o quão inviável seria a prática democrático-participativa nos grandes agrupamentos humanos.

Apenas a título de ilustração, verifique-se um pequeno trecho da exposição realizada pelo citado estudioso:

[...] Imagine agora, por exemplo, uma aldeia de duzentas pessoas, das quais cem adultos, todos os quais assistem às reuniões das assembléias. Cada um deles tem o direito de falar por dez minutos. Esse modesto total exigiria dois dias de oito horas de reunião – o que não é impossível, mas com toda a certeza não é nada fácil de conseguir! Por enquanto, mantenhamos o nosso pressuposto em apenas dez minutos para a participação de cada cidadão. Conforme aumentam os números, mais absurda se torna a situação. Numa “polis ideal” de dez mil cidadãos com plenos direitos, o tempo requerido ultrapassa em muito quaisquer limites toleráveis. Os dez minutos concedidos a cada cidadão exigiriam mais de duzentos dias de oito horas de trabalho! A concessão de meia hora a cada um exigiria quase dois anos de reuniões constantes! (DAHL, 2001, p. 122).

De outro lado, não obstante seja um caminho aparentemente inviável atribuir a grandes assembleias de cidadãos a gestão das questões públicas, não se pode deixar de destacar a existência de uma série de vicissitudes que permeiam o sistema representativo.

Afinal, sem deixar de reconhecer sua hegemonia e sua potencial inevitabilidade em tempos contemporâneos, não é possível fechar os olhos para os defeitos que evidencia a representação política em sua formatação atual.

Ao analisar tal aspecto, percebe-se que as críticas e desconfianças que dizem respeito à sistemática da representação não são exatamente uma novidade. Ao contrário, remontam ao tempo da própria concepção de tal formato, no âmbito das teorias contratualistas sobre a gênese do Estado moderno.

Com efeito, já àquela época, Jean-Jacques Rousseau (2003) alertava com veemência para a nocividade da prática representativa, ocorrida em detrimento da efetiva participação do indivíduo no seio político, por entender que a representação significava verdadeira fraude, cujo resultado não era outro que não a alienação da própria soberania.

Como é cediço, Rousseau ocupa, ao lado de Thomas Hobbes e John Locke, uma posição de indiscutível importância para a compreensão das clássicas teorias contratualistas sobre a gênese do Estado Moderno. Entretanto, diferentemente dos dois outros autores aqui referidos, seu pensamento se marcou pela verdadeira aversão à figura da representação política.

A rigor, nenhum pensador contemporâneo de Rousseau atribuiu à participação política do indivíduo um papel tão relevante. Com efeito, Rousseau foi um árduo defensor da democracia direta, por enxergar na representação política uma verdadeira fraude, passível de restringir a liberdade dos indivíduos, a qual, segundo deduz, somente se verifica, nesse modelo, no momento da eleição ou do voto. Para ele, enquanto sistemática de organização política, a representação implica inexoravelmente na alienação da soberania pertencente ao corpo social, sendo este um problema insuperável de tal modelo.

Analisando a diferença entre os pensamentos de Locke – que desenvolveu verdadeiros pilares para a compreensão da representação política, com ênfase no papel do Parlamento – e Rousseau, assim se manifesta Miguel E. Vatter (1996, p. 31):

[...] según Locke la integracíon de los hombres en sociedad sólo puede preservar sus derechos naturales si cada cual transmite la possiblidad de obedecerse a sí mismo, lo que implica un gobierno representativo; mientra que, según Rousseau, para transmitir esa liberdad natural, si uno quiere seguir obedeciéndose a sí mismo, es necesario formar parte del ‘pueblo soberano’ cuya faculdad de outo-normación no puede ser nunca transmitida al Estado.

Vê-se, portanto, que ao desenvolver sua teoria, Rousseau concebe a existência de uma soberania eminentemente popular, assim entendida como o poder pertencente aos membros da sociedade, que culmina na formação da vontade geral. Tal soberania, na compreensão do autor aqui estudado, não pode ser alienada ou dividida, sendo intrínseca aos próprios cidadãos.

Tal percepção fica bastante clara nos tópicos iniciais do ‘livro II’ da obra mais famosa de Rousseau, ‘Do Contrato Social’, como se vê nos excertos a seguir reproduzidos:

[...] só a vontade geral pode dirigir a força do Estado segundo o fim de sua instituição, o bem comum [...]

Digo, portanto, que não sendo a soberania mais que o exercício da vontade geral, não pode nunca alienar-se; e o soberano, que é unicamente um ser coletivo, só por si mesmo se pode representar. É dado transmitir o poder, não a vontade.

[...]

A soberania é indivisível pela mesma razão de ser inalienável. Porque ou a vontade é geral, ou não; ou é a do corpo do povo, ou só de uma parte dele. No primeiro caso, a vontade declarada é um ato de soberania e faz a lei. No segundo, não é mais que uma vontade particular, ou ato de magistratura; é, quando muito, um decreto. (ROUSSEAU, 2003, p. 39-40).

Na leitura da referida obra – ‘Do Contrato Social’ –, percebe-se que para Rousseau há dois momentos que merecem ser distinguidos com o devido cuidado. O primeiro deles corresponde à formalização da vontade geral, o que se dá através da lei. Tal momento reclama a participação direta e indispensável de todo o corpo social, ante a soberania que lhe é própria e indelegável.

O segundo momento, de mera aplicação dessa lei, pode até ser feito por intermédio de representantes escolhidos, para fins de pura e simples execução da vontade anteriormente externada pelos indivíduos, reunidos na qualidade de membros do contrato social.

Logo, à luz do pensamento rousseauniano, é até possível que o povo escolha representantes, mas jamais para fins de formação da vontade geral, o que não se coadunaria, em seu sentir, com a lógica democrática.

Todavia, não obstante fosse realmente um defensor da democracia direta, percebe-se no pensamento do próprio Rousseau certa desesperança quanto ao ideal democrático por ele concebido.

Afinal, várias eram as exigências para a consolidação da prática democrática no formato idealizado. Com efeito, ao separar a soberania do governo, atribuindo à própria sociedade a formalização da “vontade geral”, Rousseau passou a perceber o quão essenciais eram o tamanho do Estado e outras diversas variáveis, para que assim pudesse se tornar minimamente possível a reunião dos indivíduos para os fins deliberativos pretendidos. Nesse contexto, verifica-se que a consolidação da organização política imaginada por Rousseau exigia uma série de características de difícil combinação:

Primeiramente, bem pequeno o Estado, em que se ajunte facilmente o povo e onde seja fácil a cada cidadão conhecer todos os demais; em segundo lugar, grande simplicidade nos costumes, que evite a multidão de negócios e discussões difíceis; muita igualdade ainda nas classes e nas fortunas, sem o que não poderia subsistir longo tempo a igualdade nos direitos e na autoridade; ao fim, pouco ou nenhum luxo; porque luxo é o efeito das riquezas, ou as faz precisas e corrompe ao mesmo tempo, este com a possessão, aquele com a cobiça; o luxo vende a Pátria à frouxidão e à vaidade, rouba ao Estado todos os cidadãos para submeter uns aos outros, e todos à opinião. (ROUSSEAU, 2003, p. 71).

E, certamente, em face da grande dificuldade na conjugação desses requisitos, o próprio Rousseau passa a desconfiar da possibilidade democrática por ele aduzida, senão veja-se:

Rigorosamente nunca existiu verdadeira democracia, e nunca existirá. É contra a ordem natural que o grande número governe e seja o pequeno governado.

Não se pode imaginar que o povo reúna-se continuamente para cuidar dos negócios públicos, e é fácil ver que não poderia estabelecer comissões para isso sem mudar a forma de administração.

[...]

Se houvesse um povo de deuses, seria governado democraticamente, mas aos homens não convém tão perfeito governo. (ROUSSEAU, 2003, p. 71-72).

Logo, o que se extrai da perspectiva rousseaniana é que a democracia direta é único caminho adequado, ante as inegáveis vicissitudes da representação política. Entretanto, infelizmente talvez não seja possível trilhá-lo.

Ademais, faz-se mister ressaltar que, embora seja a base para toda uma compreensão da democracia e da própria formação do Estado Moderno, mormente em face da concepção de elementos valiosos como o ‘contrato social’ e a ‘vontade geral’, o pensamento de Rousseau, como sói ocorrer, não está imune a críticas.

Em interessante estudo das ideias deste filósofo, o cientista político Wanderlei Guilherme dos Santos (2007, p. 73-78) aponta claramente para o paradoxo que se faz presente em sua obra:

Sustento a existência de um paradoxo no universo rousseauniano, que formulo da seguinte maneira: o que cada cidadão deseja como soberano (o governo de que é elemento constitutivo) – a saber, impostos com que financiar a produção de bens públicos, redistribuição de renda com o objetivo de minimizar desigualdades etc. – esse mesmo cidadão repudia como súdito, pois, nesta capacidade, deseja pagar o mínimo de impostos, desaprova egoisticamente ver sua renda diminuída em benefício de quem quer que seja etc. E o que aspira como súdito – subsídios especiais, isenções tributárias etc. – é para ele inaceitável, em sua capacidade de soberano, como um programa de governo universalista.

Outro autor que constrói uma rica perspectiva crítica – e mais atual – acerca da democracia representativa é o português Boaventura de Sousa Santos. Para este estudioso, a crise da representação é apenas um dos resultados de uma crise ainda maior, que ele atribui ao próprio contrato social.

Em sua reflexão, Boaventura de Sousa Santos (2005, p. 5) assevera que

o contrato social é [...] a expressão de uma tensão dialética entre a regulação e a emancipação social que se reproduz pela polarização constante entre a vontade individual e a vontade geral, entre o interesse particular e o bem comum.

Nesse cenário, e revisitando os clássicos teóricos contratualistas, Boaventura aponta para as diversas antinomias que se fazem presentes na própria concepção do contrato social, mormente na análise de tal teoria à luz dos fenômenos sociais contemporâneos. Dentre tais antinomias, convém destacar: a liberdade e a igualdade; a coerção e o consentimento; o soberano e o súdito. (SANTOS, 2005, p. 6).

Para além disso, é imperioso também alertar, ainda à luz das constatações de Boaventura, para o fato de que o contrato social carrega consigo caracteres de territorialidade que certamente não mais se coadunam com a ordem política e econômica vigente.

Afinal, segundo a construção originária de tal conceito, apenas os cidadãos pertencentes a uma determinada localidade poderiam participar da atividade política, seja na construção da vontade geral – conforme a perspectiva de Rousseau –, ou na escolha de representantes para a gestão dos interesses públicos – conforme o pensamento de Locke.  Àqueles que não estão contemplados como originários da localidade ou do Estado respectivo, restaria o afastamento da arena política, o que significaria, em uma análise superficial dos fatos, o próprio regresso ao estado de natureza outrora vigorante, em uma perspectiva deveras excludente.

Todavia, o que se vê em tempos atuais é a verdadeira perda da primazia do espaço-tempo nacional, que cede lugar aos espaços-tempo global e local, incompatíveis com a temporalidade política e burocrática do Estado. Isso sem mencionar a relevância irrefreável de outras temporalidades e ritmos distintos e incompatíveis como o espaço-tempo nacional, como é exemplo o mercado financeiro, que inviabiliza qualquer regulação.

Logo, fica bastante evidente para Boaventura que a crise da representatividade política é apenas uma das várias facetas de uma crise muito maior, que atinge o próprio contrato social ou, quiçá, o próprio Estado. Trata-se de uma decorrência inevitável da fragmentação do regime geral de valores, aliada à crescente polarização dos interesses sociais, econômicos, culturais e políticos.

Defende o referido autor, ademais, que uma das características do atual estágio do pensamento liberal é completa ausência de uma problematização da representação política, o que acarreta no que ele chama de naturalização da política do Estado.

Com efeito, torna-se absolutamente natural a passividade política dos cidadãos em geral, que deixam de manter relações efetivas com o Estado, contentando-se com a igualdade formal decorrente da doutrina liberal e com uma representação política que decerto não reproduz os seus anseios e não atende as suas necessidades.

Em face desse cenário, o que Boaventura propõe é que sejam reformuladas as estruturas estatais, para que assim seja desenvolvida uma nova teoria democrática, calcada em inovadores pressupostos, dentre os quais deve estar presente a ampliação da participação popular no cenário político.

É necessário, portanto, que se substitua a ‘ação conformista’ pela ‘ação rebelde’, calcada na criatividade e na espontaneidade, com o fito de eliminar o cenário de exclusão pertencente ao contrato social hodiernamente vigente.

Ademais, faz-se mister reinventar espaços-tempo que promovam – ou que permitam – a efetiva deliberação democrática. E aqui surge uma ideia bastante interessante – e que marca com bastante ênfase o pensamento de Boaventura de Sousa Santos –, consistente na substituição do ‘espaço estatal’ pelo ‘espaço público não estatal’.

Segundo Boaventura, a participação popular pode e deve ocorrer na atuação estatal. Todavia, é preciso que se faça presente também no âmbito dos agentes privados, já que

[...] não faz sentido democratizar o Estado se simultaneamente não se democratizar a esfera não estatal. Só a convergência dos dois processos de democratização garante a reconstituição do espaço público de deliberação democrática. (SANTOS, 1995, p. 62).

Traz-se à lume, ainda, as ideias do constitucionalista cearense Paulo Bonavides, para quem a representação política tem sido marcada cada vez mais pela ausência completa de legitimidade. Com efeito, ao tratar desse tema, Paulo Bonavides apresenta um panorama absolutamente nefasto da realidade vigente, senão veja-se:

[...] as instituições representativas padecem em todo o País de uma erosão de legitimidade como jamais aconteceu em época alguma da nossa História, ficando, assim, a cláusula constitucional da soberania popular reduzida a um mero simulacro de mandamento, sem correspondência com a realidade e a combinação dos interesses que se confrontam e se impõem na região decisória onde se formulam as regras de exercício efetivo do poder. (BONAVIDES, 1996, p. 29).

Registre-se, a esse respeito, que o pensamento aqui analisado aborda a legitimidade enquanto conceito político, considerado de per si. Bonavides não pretende, ao contrário do que fazem a maioria dos estudos jurídicos, resumir a legitimidade a uma mera legalidade, totalmente despolitizada e não condizente com o real significado do termo.

Esse reducionismo, aliás, é enxergado com clareza pelo próprio Paulo Bonavides (2003, p. 17), para quem a despolitização da legitimidade

É fenômeno bem ao gosto dos neoliberais e de sua doutrina de senhorio absoluto, por via oblíqua, dos interesses sociais e da teleologia do poder. Com efeito, a legitimidade tem se apresentado, de último, nas reflexões jurídicas sobre a matéria, despolitizada, neutralizada e subsumida, por uma suposta evidência de sua identidade conceitual e axiológica com a legalidade, enquanto expressão formal e acabada do triunfo das ideologias liberais.

Para Bonavides (2003), portanto, a legitimidade política vem sendo abandonada e substituída por um singelo critério formal, calcado numa legalidade eminentemente positiva, através do qual o cidadão eleito é o irrefutável representante de seu eleitor, desconsiderados quaisquer outros elementos na análise de tal relação.

 A alternativa a ser perseguida, nesse contexto, perpassa pela consolidação de efetivas práticas democrático-participativas, através das quais se confira ao próprio povo as condições necessárias para o exercício do poder político. Faz-se necessário, ademais, redefinir o papel da Constituição no cenário jurídico vigente, de modo a se permitir a mudança paradigmática aqui cogitada.

E para que se torne possível a adoção de tais práticas democrático-participativas, nota-se também presente no pensamento de Paulo Bonavides uma releitura do Direito Constitucional, a qual evidencia um viés fortemente pós-positivista, conferindo ao texto constitucional e aos princípios nele presentes um papel de considerável destaque no cenário jurídico. Veja-se, a esse respeito, o seguinte excerto da obra analisada:

A construção teórica da democracia participativa no âmbito jurídico-constitucional demanda o concurso de elementos tópicos, axiológicos, concretistas, estruturantes, indutivos e jusdistributivistas, os quais confluem todos para inserir num círculo pragmático-racionalista o princípio da unidade material da Constituição, o qual impera, de necessidade, para sua prevalência e supremacia, uma hermenêutica da Constituição ou Nova Hermenêutica Constitucional [...]

Quem teoriza acerca da democracia participativa, assim como não pode prescindir de uma nova hermenêutica, com o propósito de fazê-la exeqüível, também não pode desfazer-se de um conceito-chave ao concretizá-la, que é o conceito de soberania. [...] soberania do povo havida por pedra angular da democracia de participação. (BONAVIDES, 2003, p. 42).

E é justamente essa nova leitura do Direito Constitucional que permite a consolidação do que Bonavides chama de teoria constitucional da democracia participativa. Afinal, somente a partir de uma nova compreensão da Constituição no cenário jurídico, faz-se também possível robustecer a participação do cidadão na atuação estatal, como elemento de máxima efetividade do princípio da soberania popular, referido e elogiado alhures.


2. Ainda sobre a reestruturação democrática: a compreensão da democracia em Chantal Mouffe.

No tópico antecedente, este artigo se debruçou sobre algumas das variadas críticas que costumam recair sobre os sistemas democrático-representativos, com ênfase para a análise dos pensamentos de Jean-Jacques Rousseau, Boaventura de Sousa Santos e Paulo Bonavides.

E a primeira conclusão a que se chega diante das ideias dos referidos autores é a de que as faces da crise vivenciada pela representação política são múltiplas e variadas, não havendo exatamente uma unanimidade nas análises relacionadas a esse tema.

Entretanto, para além dessa visão crítica da representação política, é forçoso também reconhecer a existência, mesmo em dias contemporâneos, de visões bem mais entusiasmadas em relação a tal formato de organização democrática.

  Com efeito, em artigo que analisa o ativismo do Poder Judiciário brasileiro, Lenio Luiz Streck e Martônio Mont’Alverne Barreto Lima (2011) apontam para a existência de

[...] uma multidão de juristas a discursar a respeito de uma eventual má qualidade da representação política que chega a cada legislatura em Brasília e nas assembléias estaduais; todos recebem aplausos e são “apoiados” de todas as formas [...].

Tal visão, todavia, não é compartilhada pelos referidos estudiosos. Ao contrário, em uma compreensão bem mais otimista da realidade observada, eles defendem que

[...] o legislativo brasileiro tem sido um dos mais atuantes do mundo – acumula as funções de legislar de fiscalizar e de julgar – sendo ele o responsável por uma consolidada democracia, que construiu uma das assembléias constituintes mais abertas do mundo, enfrentou o impeachment de um Presidente no escorreito limite da legalidade, tendo passado por escândalos de toda ordem sob todos os governos, corresponde a ignorar com preconceito o que o voto dos pobres, dos incultos também ajudou a produzir. (STRECK e LIMA, 2011, on line).

Em tal análise, Streck e Lima (2011) concluem que a “aparente confusão” que impera nos Parlamentos em geral, e no Congresso Nacional brasileiro em particular, constitui um fenômeno intrínseco à vida política. Afinal, segundo os referidos autores, a política democrática é naturalmente conflituosa, já que o órgão legislativo evidencia nada mais que as tensões sociais decorrentes da heterogeneidade da sociedade que lhe constituiu.

Com efeito, a relação entre o sistema democrático e o caráter naturalmente conflituoso da vida em sociedade não fica muito clara nas análises críticas da democracia representativa até aqui perfilhadas.

Ao contrário, bem comum e vontade geral são expressões bastante corriqueiras nos pensamentos dos autores até agora referidos, que além de críticos em relação ao sistema representativo, parecem querer enxergar na democracia um mecanismo de construção de consensos e de pacificação social.

Aventa-se, destarte, que talvez nesse quesito resida um considerável equívoco a ser possivelmente debelado, conforme se perceberá nas linhas que se seguem.

A cientista política Chantal Mouffe, autora, dentre outras obras, do ensaio intitulado ‘O Regresso do Político’ (1996), tem enfrentado com clareza e coragem o debate contemporâneo acerca da teoria democrática. Ao fazê-lo, a citada estudiosa costuma problematizar o discurso da democracia liberal, mas, ao mesmo tempo, foge do lugar comum presente nas perspectivas de caráter eminentemente deliberativo – ou participativo.

Com efeito, para Mouffe (1996), o novo paradigma de democracia deliberativa, que se faz presente em variadas propostas oferecidas pelos estudiosos do tema – muitas das quais já referidas na presente pesquisa –, pretende que as decisões políticas sejam alcançadas por intermédio de uma efetiva deliberação entre cidadãos livres e iguais. Trata-se, destarte, do renascimento de um tema ou de uma perspectiva bastante antiga, e não exatamente da emergência de algo verdadeiramente inovador.

Convém reconhecer, todavia, que tal alternativa, ao carregar consigo o que Mouffe aponta como sendo um renovado interesse pela deliberação, tenciona combater os problemas da já clássica e hegemônica democracia liberal, de caráter marcadamente formal, que se fundamenta basicamente na escolha de representantes e no desestímulo à efetiva participação popular nas questões do Estado. Trata-se, como dito alhures, de um modelo que tem sofrido severas críticas, e que padece de verdadeira crise de legitimidade no contexto presente.

Mas, ao analisar a proposta de uma democracia deliberativa, Mouffe (1996) faz questão de esclarecer que tal modelo, ao contrário do que se poderia imaginar, não tem o condão de negar o liberalismo político. Diversamente, reinterpretando o conceito de soberania popular, enxerga na democracia um poder gerado comunicativamente, por intermédio da consolidação de um consenso racional.

Logo, a democracia deliberativa tão propugnada em tempos hodiernos, na visão de Mouffe (1996), busca preservar os valores liberais clássicos, na medida em que concilia, ao menos em tese, a racionalidade na construção das decisões políticas e a legitimidade democrática.

Tal perspectiva, segundo Mouffe (1996), embora dotada de boas intenções, eis que tende a prestigiar a deliberação conquanto forma de inserção do indivíduo na esfera pública, padece de alguns defeitos cruciais.

Em primeiro lugar, é completamente impossível a obtenção de um consenso racional que não implique em exclusão. Tal perspectiva não se coadunaria com o cenário eminentemente pluralista da sociedade contemporânea. A esse respeito, analisando as reflexões democrático-deliberativas de Rawls e Habermas, Mouffe (2006, p. 170) é peremptória ao aduzir

[...] a impossibilidade de conseguir-se o que cada um deles, apesar de por diferentes caminhos, está realmente perseguindo, ou seja, circunscrever um domínio que não seria sujeito ao pluralismo de valores e em que um consenso sem exclusão poderia ser instaurado. [...] Rawls e Habermas querem fundamentar a adesão à democracia liberal com um tipo de acordo racional que fecharia as portas para a possibilidade de contestação. Eles precisam, por esse motivo, relegar o pluralismo para um domínio não-público, isolando a política de suas conseqüências.

Além disso, retomando tradicional discussão acerca da ‘liberdade dos antigos’ e da ‘liberdade dos modernos’, Mouffe (1996) aponta para o paradoxo que se faz presente na democracia moderna, em face daquilo que ela aponta como sendo uma tensão fundamental entre a lógica da democracia e a lógica do liberalismo. Ao fazê-lo, Mouffe (1996, p. 142-143) realiza verdadeiro elogio a Carl Schmitt, ao deduzir que ele

[...] conclui que a moderna democracia de massas se funda numa confusão entre a ética liberal de absoluta igualdade humana e a forma de identidade política democrática entre governados e governantes. Portanto, a sua crise resulta da contradição entre um liberalismo individual sobrecarregado com uma conotação moral e um sentimento democrático guiado por ideais políticos. [...]

Este não é o único problema que Schmitt encontra na democracia parlamentar. Também a critica por ser uma união entre dois princípios políticos completamente heterogêneos, o da identidade, próprio da forma democrática de governo, e o da representatividade, próprio da monarquia. Este sistema híbrido é o resultado do compromisso que a burguesia liberal conseguiu estabelecer entre a monarquia absoluta e a democracia proletária, conjugando dois princípios de governo opostos.

Percebe-se, destarte, que Mouffe (1996), embora mais adiante venha a discordar da tese de Carl Schmitt acerca da existência de uma contradição insuperável entre o liberalismo e a democracia, não deixa de ponderar e valorizar os insights evidenciados no pensamento do referido estudioso, os quais contribuem consideravelmente para a compreensão das deficiências da democracia liberal.

Segundo Mouffe (1996, p. 145),

[...] Schmitt escrevia [...] em 1923 e a sua análise respeita particularmente à República de Weimar, mas ainda hoje é relevante. As actuais democracias liberais não estão certamente à beira do colapso; porém, a imensa quantidade de literatura das últimas décadas respeitante à crise da legitimidade e a crescente preocupação com a desafectação massiva relativamente à política indicam que os problemas levantados por Schmitt ainda não encontraram solução.

Logo, embora não vislumbre a democracia liberal como fadada ao insucesso, Mouffe (1996) propõe uma releitura do tema, que propicie a construção de um conjunto de práticas que venha a permitir a criação daquilo que ela chama de “cidadãos democráticos”. A esse respeito, a autora aqui referida defende

[...] que o que realmente está em jogo na fidelidade a instituições democráticas é a constituição de um conjunto de práticas que façam possível a criação de cidadãos democráticos. Essa não é uma questão de justificação racional, mas de disponibilidade de formas democráticas de individualidade e subjetividade. [...]

[...] não é com a construção de argumentos sobre a racionalidade incorporada em instituições liberal-democráticas que se contribui para a criação de cidadãos da democracia. Indivíduos da democracia só serão possíveis com a multiplicação de instituições, discursos, formas de vida que fomentem a identificação com valores democráticos. (MOUFFE, 2006, p. 171-172).

E aqui se chega a um ponto essencial do delineamento teórico de Chantal Mouffe. Com efeito, a referida autora deixa claro que concorda com os defensores da democracia deliberativa acerca da necessária redefinição do cânone democrático. Todavia, enxerga nas propostas que se baseiam no consenso racional um caráter verdadeiramente contraproducente.

De outro lado, em face da crise vivenciada pela democracia liberal, reconhece-se ser imprescindível

[...] formular uma alternativa ao modelo agregativo e à concepção instrumental da política que esse modo fomenta. Está claro que ao desencorajarem o envolvimento ativo dos cidadãos no funcionamento da unidade política e ao encorajarem a privatização da vida, eles não asseguram a estabilidade que anunciaram. (MOUFFE, 2006, p. 172).

Logo, o que se faz necessário, diante do contexto atual, é retomar a participação política dos cidadãos, que, segundo Mouffe, tem sido desviada para outras instâncias[1]. Todavia, tal participação não necessariamente desaguará na consolidação de consensos racionais. Ao contrário, tende a evidenciar com ainda maior ênfase os conflitos naturais da vida em sociedade.

E nesse contexto, é forçoso reconhecer a dimensão do antagonismo e seu caráter inerradicável nas relações humanas, eis que inerente ao pluralismo de valores vigorante na sociedade contemporânea.

Diante disso, Mouffe (2006, p. 173) propõe um modelo “agonístico” de democracia, “[...] capaz de apreender a natureza do político. Isso requer o desenvolvimento de uma abordagem que inscreve a questão do poder e do antagonismo em seu próprio centro”.

Com efeito, se as relações de poder são inevitáveis, é preciso torná-las compatíveis com os valores democráticos. Segundo Mouffe (2006, p. 173),

Considerando-se que qualquer ordem política é a expressão de uma hegemonia, de um padrão específico de relações de poder, a prática política não pode ser entendida como simplesmente representando os interesses de identidades pré-constituídas, mas como constituindo essas próprias identidades em um terreno precário e sempre vulnerável.

Tem-se, portanto, que a questão primordial a ser enfrentada pela política democrática não reside na eliminação do poder e na construção de consensos. Ao contrário, é preciso constituir formas de poder mais compatíveis com os valores democráticos, para que assim não haja uma lacuna insuperável entre poder e legitimidade.

Nesse tocante, deve-se compreender que se algum poder é capaz de se impor, significa que foi reconhecido como legítimo. De outro lado, se a legitimidade não se constitui como fundamento apriorístico, significa que se fundamenta em um poder bem-sucedido.

Faz-se mister, destarte, a preservação do que Mouffe (2006) denomina “pluralismo agonístico”, cuja peculiaridade é reconhecer e prestigiar a dimensão conflitual da vida em sociedade.

Para tanto, deve-se realizar uma adequada distinção entre a “política” e “o político”. Com efeito:

Por “o político” refiro-me à dimensão do antagonismo inerente às relações humanas, um antagonismo que pode tomar muitas formas e emergir em diferentes tipos de relações sociais. A “política”, por outro lado, indica o conjunto de práticas, discursos e instituições que procuram estabelecer uma certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que são sempre conflituais porque são sempre afetadas pela dimensão do “político”. [...] Essa questão, vênia aos racionalistas, não é a de como tentar chegar a um consenso sem exclusão, dado que isso acarretaria a erradicação do político. A política busca a criação da unidade em um contexto de conflitos e diversidade [...]. (MOUFFE, 2006, p. 174)

Logo, percebe-se que a perspectiva propugnada por Chantal Mouffe não visa à superação das relações de enfrentamento e oposição. Afinal, tais relações são absolutamente naturais, e intrínsecas à dimensão do “político”. Portanto, fazem todo sentido dentre da ótica do “pluralismo agonístico”, que reconhece a legitimidade dos adversários, tolerando-os.

Nesse sentido, pede-se vênia para mais uma vez transcrever o pensamento de Chantal Mouffe (2006, p. 174):

Vislumbrada a partir da óptica do “pluralismo agonístico”, o propósito da política democrática é construir o “eles” de tal modo que não sejam percebidos como inimigos a serem destruídos, mas como adversários, ou seja, pessoas cujas ideias são combatidas, mas cujo direito de defender tais ideias não é colocado em questão. [...]

Um adversário é um inimigo, mas um inimigo legítimo, com quem temos alguma base comum, em virtude de termos uma adesão compartilhada aos princípios ético-políticos da democracia liberal: liberdade e igualdade. [...]

De fato, dado o pluralismo inerradicável de valores, não há solução racional para o conflito – daí sua dimensão antagonística.

Com efeito, no cenário aqui vislumbrado, a confrontação agonística passa a ser verdadeira condição para a própria existência da democracia. Afinal, é perfeitamente possível que os adversários cessem de discordar, mas isso não implica na eliminação do antagonismo que se faz presente entre eles. Ademais, é também possível a formalização de pactos ou acordos, como elementos naturalmente integrantes do cotidiano da política. Todavia, é cediço que tais pactos permitem apenas uma interrupção temporária da confrontação contínua dos adversários.

Explicitando melhor as terminologias que utiliza, Mouffe (2006, p. 175) deduz que

Introduzir a categoria do adversário requer tornar complexa a noção de antagonismo e a distinção de duas formas diferentes mediante as quais ela pode emergir: o antagonismo propriamente dito e o agonismo. O antagonismo é a luta entre inimigos, enquanto o agonismo representa a luta entre adversários [...] o propósito da política democrática é transformar o antagonismo em agonismo. [...] para o “pluralismo agonístico”, a tarefa primordial da política democrática não é eliminar as paixões da esfera do público, de modo a tornar possível um consenso racional, mas mobilizar tais paixões em prol dos desígnios democráticos.

Trata-se, destarte, daquilo que se poderia chamar – no máximo – de consenso conflituoso, eis que jamais se eliminará a confrontação agonística entre os adversários na cena política. Afinal, tal confrontação se faz presente no cotidiano da própria sociedade, não podendo ser excluída por intermédio do utópico consenso racional.

E é esse o cenário que permeia a reestruturação democrática proposta no título do presente capítulo. É preciso reconhecer que a democracia, como bem assevera Chantal Mouffe (1996), é um ambiente de conflitos e enfrentamentos, sendo essa uma decorrência lógica e natural do pluralismo de valores que se faz presente na sociedade contemporânea.

Ademais, sem prejuízo das críticas tecidas por Chantal Mouffe (1996) ao ideal da democracia deliberativa, é cediço que tais conflitos são justamente o motor da participação popular na política. Afinal, “muita ênfase no consenso e a recusa de confrontação levam à apatia e ao desapreço pela participação política” (MOUFFE, 2006, p. 175), o que apenas robustece a crise de legitimidade que atualmente permeia o cenário democrático hodierno.

Aventa-se, destarte, que a compreensão da democracia como ambiente agonístico corrobora sobremaneira a necessidade de uma efetiva participação popular na política, como ferramenta de combate às vicissitudes do sistema representativo.

Não obstante, não se cogita invalidar a eficiência e a necessidade de tal sistemática. Ao contrário, perceber-se-á no capítulo seguinte que, para além das práticas democrático-participativas, que serão analisadas à luz da Constituição Federal brasileira, há também um amplo espaço para a “democratização” da representação.

A esse respeito, a análise que se pretende realizar recai sobre a figura dos “partidos políticos”, também referidos na obra de Chantal Mouffe (1996, p. 16), para quem, acaso aceitos os pontos de vista aqui externados, será possível

[...] concluir que os partidos políticos podem desempenhar um papel importante ao darem expressão à divisão social e ao conflito de vontades. Mas, se falharem nesta sua tarefa, os conflitos assumirão outras formas e será mais difícil geri-los democraticamente.

Logo, é preciso reanalisar o papel desempenhado pelos partidos políticos no contexto democrático-representativo, para que se verifique se eles constituem ambiente adequado para a consolidação da participação popular na política, em cumprimento à democracia agonística proposta pela autora aqui estudada.


3. A democracia agonística e os partidos políticos.

Como é cediço, a compreensão da democracia representativa está intrinsecamente relacionada com a figura dos partidos políticos. O papel dessas instituições na formalização da vontade do Estado, por intermédio da sintetização das afinidades políticas dos indivíduos, se reveste de considerável importância.

Parece ser adequado, destarte, refletir minimamente sobre o papel desempenhado pelos partidos políticos nesse contexto.

Ao final, se buscará aproximar a função dos partidos políticos do ideal agonístico propugnado por Chantal Mouffe (2006), objeto de análise anterior, por se compreender que tais instâncias representam um ambiente adequado para o tratamento das relações de conflito inerentes à vida em sociedade.

Um dos elementos nodais a ser considerado nesse tocante diz respeito às bases ideológicas que marcam a associação partidária. Ou seja, aos critérios doutrinários básicos formuladores da visão do partido em relação ao exercício do poder estatal.

Afinal, é justamente a ideologia propugnada pela instituição partidária que permitirá a reunião de pessoas, que muitas vezes não possuem nenhuma relação pretérita, mas que compartilham de afinidades ou pensamentos comuns. Tais indivíduos, no cenário analisado, irão se unir por intermédio do partido político, para que assim possam apresentar ao restante da sociedade uma proposta ideológica de ação do Estado.

Como consequência dos princípios ideológicos caracterizadores do partido, surge outro aspecto a ser considerado, que reside nas propostas programáticas da entidade aqui concebida, ou seja, o programa de atuação concreta do partido visando a implementar as ações pertinentes aos objetivos que defende.

Os partidos políticos afloram, desse modo, como ambiente absolutamente propício para a consolidação da participação popular aqui concebida.

Com efeito, um dos principais elementos constitutivos dos partidos políticos, que lhes assegura autonomia e representatividade, consiste na igualdade de tratamento que deve ser dispensada aos seus membros associados. Afinal, todos os componentes do partido gozam de igual relevância para a persecução dos objetivos delineados pela associação à qual pertencem.

Registre-se, a esse respeito, que as deliberações internas dos partidos políticos são tomadas na forma dos seus regimentos, e devem decorrer de amplas discussões e debates, de tal forma que garantam a participação e a colheita da opinião de seus membros.

Vale ressaltar, ademais, que outro elemento relevante dos partidos políticos consiste na liberdade associativa dos seus membros, cuja razão de ser reside na autonomia privada dos indivíduos, que podem ou não se associar ou se manter associados ao ente partidário respectivo.

Tem-se, portanto, que tal liberdade associativa carrega consigo a necessidade de um processo democrático interno no âmbito dos partidos políticos, que permita uma adequada construção das propostas a serem externadas, por intermédio da definição de metas e estratégias que visem a alcançar os escopos ideológicos da instituição.

A isso se pode chamar democracia interna dos partidos políticos, conquanto uma decorrência da liberdade associativa dos seus membros, sendo um elemento fundante do fortalecimento e da autonomia do próprio ente partidário, que passará a evidenciar, na sua atuação, a vontade democraticamente externada pelos seus filiados.

Para que isso ocorra, todavia, faz-se necessário que os indivíduos, hoje em grande monta alheios às questões políticas, passem a ocupar os espaços verdadeiramente vazios existentes nas instituições partidárias. Com efeito, merece ser registrada a empírica percepção de que a cada dia diminui o número de pessoas interessadas em ingressar nos partidos políticos já existentes.

Superada tal apatia e consolidada a potencialidade aqui vislumbrada, talvez seja possível se alcançar um cenário ainda mais sofisticado, no qual possa ser acolhida a teoria bem explanada por Orides Mezzaroba (2004) acerca da chamada “democracia partidária”. Ao tratar desse modelo, o referido estudioso explica que

[...] além de mediar os interesses dos órgãos representativos e dos representados, os partidos também funcionam como fator decisivo na mediação entre os cidadãos e seus representantes, caso em que estes últimos ficam submetidos ao mandato partidário, ou seja, à vontade única e exclusiva do Partido, pois considera-se que a vontade do indivíduo é inerente à vontade da organização partidária. Desta forma, o representante perde o seu caráter de exclusividade na atividade de representação “e, conseqüentemente, as eleições adquirem um caráter plebiscitário”, já que o eleitor passa a outorgar a sua confiança e a sua capacidade de decisão ao Partido como organização, e não aos candidatos apresentados por ele. (MEZZAROBA, 2004, p. 155).

Note-se, diante da proposta aqui ventilada, que ao prestigiar a decisão do partido político, e não do indivíduo eleito para o exercício do cargo respectivo, e partindo-se do pressuposto de que a decisão partidária terá sido adotada democraticamente, com a participação, no âmbito interno, do próprio eleitor, aproxima-se a decisão política final do cidadão.

Trata-se, destarte, de um mecanismo que prestigia a participação popular na política. Tal participação, no modelo proposto, se circunscreve mais especificamente ao âmbito partidário, e retira o indivíduo da condição de alheio às questões públicas, cenário tão corriqueiro no âmbito da tradicional democracia representativa.

Esse modelo, aqui apontado como democracia partidária, é também denominado Estado de Partidos. Segundo Mezzaroba (2004), tal perspectiva elucida sobremaneira a crise de representatividade vivenciada pela democracia representativa. Para ele,

o que não se tem privilegiado é a investigação das verdadeiras causas da crise de representatividade em que se encontram as instituições político-partidárias brasileiras, mudando o prisma de observação para o próprio desgastado modelo de representação política liberal. (MEZZAROBA, 2004, p. 314).

Logo, o que se cogita, diante das ideias aqui tratadas, é que a participação popular na política não necessariamente precisa ocorrer de forma direta. Tal participação pode ocorrer também por intermédio dos partidos, ambientes propícios à manifestação de vontade dos indivíduos. Essa perspectiva, sem dúvidas, permitiria a formalização da vontade estatal a partir da atuação coletiva da sociedade, de baixo para cima.

Para Mezzaroba (2004, p. 314),

Como nesse modelo a vontade do Estado é edificada pelo embate político entre as vontades partidárias, que por sua vez canalizam as vontades individuais, o centro das decisões políticas sofre um deslocamento radical, deixa o Parlamento e migra para o interior dos Partidos, onde a vida intrapartidária permitiria a livre e democrática participação direta da Sociedade em ampla escala.

[...]

Os Partidos Políticos tornam-se, com isso, sujeitos coletivos de cuja ação resultariam as políticas públicas do Estado. A representatividade de todo sistema político representativo fica, então, assegurada justamente por uma concepção radicalmente democrática de Partido, em que o próprio programa partidário é o resultado melhor concebido da construção de uma vontade coletiva.

Nota-se, ademais, que uma vez consolidado o formato aqui concebido, será possível também robustecer a ideia de que a democracia é um ambiente no qual se reproduzem os conflitos e antagonismos inerentes à vida em sociedade, o que foi enxergado com clareza por Chantal Mouffe (2006).

Com efeito, é natural e salutar que existam discordâncias na vida em sociedade. O antagonismo, que se faz presente nas relações sociais, também se reproduz claramente no seio político. Desse modo, a melhor forma de organizar os embates decorrentes de tal antagonismo, transformando-o em agonísmo – substituição do inimigo pelo adversário – perpassa justamente pelo fortalecimento dos partidos políticos, o que se faz possível por intermédio da participação popular no seu âmbito interno.

Logo, acredita-se que há uma consonância intrínseca entre a democracia agonística de Chantal Mouffe e a democracia partidária aqui perfilhada. Uma permite a consolidação da outra, ante as similitudes das premissas das quais partem.

Faz-se necessário ressaltar, todavia, que para que se torne efetivamente possível a figura do Estado de Partidos, a participação interna dos indivíduos, na construção das vontades partidárias, é elemento absolutamente inarredável. Afinal,

[...] a Democracia interna é um condicionante da formação racional da vontade partidária. Sem a garantia de participação democrática dentro da vida do partido, não há como admitir que este representa a vontade de algum setor da Sociedade, mas, somente, e no máximo, de restrito grupo de indivíduos ou de verdadeiras facções. (MEZZAROBA, 2004, p. 321).

Caso superado tal obstáculo, e uma vez garantida a democracia intrapartidária para fins de consolidação da vontade do partido – à qual certamente se oporá, no cenário agonístico já referido, a vontade de outro (ou de outros) partidos –, abre-se o caminho para a consolidação do mandato partidário, o qual evidenciará pura e diretamente os anseios dos integrantes da agremiação política, que a partir daí ostentarão a condição de partícipes diretos da cena política.


Conclusão

A amplitude conceitual da democracia, aliada às diversas e tão diferentes formas de sua manifestação, é uma constatação inicial e inevitável. Com efeito, o processo de consolidação das práticas democráticas ao redor do mundo tem percorrido um caminho longo e acidentado, marcado por avanços e retrocessos, assim como por variantes intrínsecas às próprias diferenças culturais e sociais concretamente observáveis.

Todavia, não obstante essa pluralidade de manifestações e de vertentes democráticas, é forçoso concluir que existe atualmente um cenário de crise no modelo hegemônico de democracia, qual seja, o modelo representativo e liberal.

Tal crise, que se manifesta na verdadeira discrepância entre a atuação política dos representantes e os anseios e necessidades da sociedade, e que se robustece na percepção de verdadeira desconfiança e desalento que o cidadão tem mantido para com o cenário político, é motivada por diversos fatores.

Há quem entenda, como fez Rousseau, que a democracia representativa sempre foi um equívoco. Existe quem defenda, outrossim, como fazem Boaventura de Sousa Santos e Paulo Bonavides, que tal crise é um fenômeno mais recente, e se marca pela verdadeira erosão da teoria do contrato social ou, ainda, pela crescente despolitização da legitimidade política.

Entretanto, em que pese a crise aqui versada seja real e manifesta, não se pode desconsiderar a existência de percepções mais otimistas, externadas por alguns estudiosos do cenário democrático. Afinal, embora contenha seus problemas e vicissitudes, a representação política também ostenta virtudes e qualidades, mormente por permitir a consolidação de práticas democráticas em ambientes que, em princípio, não seriam favoráveis a tal sistemática, como, por exemplo, os grandes e populosos Estados contemporâneos.

Ademais, é preciso reconhecer a necessária relação entre o sistema democrático e o caráter conflituoso da vida em sociedade. Tal aspecto, como se asseverou anteriormente, não parece estar muito presente nas teorias que apregoam a falência do sistema representativo, as quais, ao contrário, comumente se referem a expressões como bem comum e vontade geral, o que conduz à interpretação de que a democracia seria um mecanismo de construção de consensos e de pacificação social.

Certamente aí reside um equívoco a ser debelado. Com efeito, as relações de enfrentamento e de oposição são inerentes à vida em sociedade. Logo, são fenômenos absolutamente naturais e intrínsecos àquilo que Chantal Mouffe aponta como sendo a dimensão do político.

É necessário reconhecer, destarte, a dimensão do antagonismo e seu caráter inerradicável nas relações humanas, uma decorrência lógica e natural do pluralismo de valores vigorante na sociedade contemporânea.

E diante desse contexto, propõe-se a consolidação de uma democracia agonística, através da qual a política não procure a eliminação do poder e a construção de consensos, mas, ao contrário, sirva como ambiente para a construção de formas de poder mais compatíveis com os valores democráticos.

Para a consolidação desse ambiente agonístico, que se fundamenta, conforme exposto ao longo do texto, na transformação do inimigo em adversário legítimo, e na convivência com a constante tensão entre os grupos de poder presentes na sociedade, a participação popular na política parece ser o caminho mais adequado.

Tal participação até poderá se desenvolver em caráter que muito se aproxima do que se costuma denominar democracia direta. Entretanto, para além disso, é possível também conceber a participação popular na política por intermédio das próprias instâncias representativas hoje existentes. E nesse quesito, chama-se a atenção para o papel desempenhado pelos partidos políticos.

Com efeito, acredita-se que a participação popular na forma aqui concebida – por intermédio dos partidos políticos – deve ser também ampliada, em um formato que não invalida o sistema democrático-representativo.

Para que isso ocorra, todavia, faz-se necessário que os cidadãos se insiram cada vez mais nas instituições partidárias, consolidando o que aqui se chamou de democracia interna dos partidos políticos.

Nesse cenário, o que se tornará possível será a consolidação não mais da vontade do representante eleito, tal como ocorre no universo democrático-representativo. Ao contrário, passa-se à construção da vontade partidária, formalizada com a participação democrática, no âmbito interno, do próprio eleitor. Aproxima-se, assim, a decisão política final do cidadão enquanto indivíduo, conferindo-lhe maior participação no cenário político.

Tal sistemática, elucidada no presente artigo como democracia partidária ou Estado de Partidos, certamente se coaduna e valoriza o ambiente no qual se reproduzem os conflitos e antagonismos inerentes à vida em sociedade, em um reconhecimento agonístico do enfrentamento legítimo e das diferenças ideológicas observáveis no universo político.


Referências

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência por uma nova hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

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DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Trad.: Beatriz Sidou. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.

MEZZAROBA, Orides. Introdução ao direito partidário brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Lisboa, Gradiva, 1993.

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______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2005.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. O paradoxo de Rousseau: uma interpretação democrática da vontade geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

STRECK, Lenio Luiz e LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Constituição não prevê controle de constitucionalidade. Disponível em: <http://conjur.com.br/2011-jan-29/nao-espaco-controle-preventivo-constitucionalidade-brasil>. Acesso em: 11 mar. 2011.

VATTER, Miguel E. La democracia, entre representación e participación. In: NADALES, Antonio J. Porras (org.). El debate sobre la crisis de la representación política. Madrid: Tecnos, 1996.


Nota

[1] Para Mouffe (2006, p. 172), “O crescimento de várias religiões, bem como de fundamentalismos morais e étnicos, é [...] a conseqüência direta do déficit democrático que caracteriza a maior parte das sociedades liberal-democráticas”.


Autor

  • Pedro Henrique Peixoto Leal

    Possui graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza (2005), especialização em Direito Público pela Universidade de Brasília (2013) e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011). Atualmente é Procurador Federal - membro da Advocacia-Geral da União. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional e Teoria do Estado.

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Informações sobre o texto

Artigo elaborado para apresentação no XXI Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Outubro de 2012 na Universidade Federal Fluminense - UFF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Pedro Henrique Peixoto. Democracia agonística e partidos políticos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3939, 14 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27304. Acesso em: 2 maio 2024.