Introdução
Em uma primeira análise, a temática a ser abordada neste artigo pode parecer verdadeiramente esgotada. Afinal, são tantos os livros e os estudos que se debruçam sobre a questão democrática que não é totalmente despropositado cogitar a inexistência de novas ideias pertinentes ao tema.
Entretanto, sem embargo dessas variadas discussões que já se fazem presentes no ambiente acadêmico, vislumbra-se a persistência de um problema concreto e efetivo a ser enfrentado. A democracia representativa tem se marcado, notadamente na realidade brasileira, por uma distorção de sua real finalidade e pela discrepância, cada vez maior, entre os interesses defendidos pelos representantes eleitos e os anseios da sociedade em geral. Aventa-se, nesse tocante, a existência de uma crise de legitimidade que alcançaria todas as instâncias institucionais da representação política, corporificadas nos poderes constituídos.
Este é, portanto, o problema motivador da discussão que será doravante travada. A constatação empírica de uma crise vivenciada pela representação política requer, como sói ocorrer, a busca de alternativas que façam frente ao cenário desfavorável que se observa nos tempos atuais.
De outro lado, não parece ser possível negar a figura da representação no contexto político contemporâneo. Alguns fatores – dentre os quais se destaca o tamanho dos Estados – representam severos obstáculos à concepção de uma democracia de caráter direto, que talvez fosse a mais adequada.
Entretanto, mesmo que não seja possível suplantar os mecanismos de representação política, inerentes ao contingente populacional e ao tamanho dos Estados na era contemporânea, é certo que a aproximação entre a sociedade e as decisões políticas tende a diminuir os problemas encontrados no sistema de representação, conferindo maior legitimidade e eficiência à atuação estatal.
Nesse contexto, salta aos olhos a importância dos mecanismos de participação direta da sociedade na condução do Estado, muitos deles previstos de forma expressa na Constituição Federal de 1988. Além disso, faz-se imperioso repensar o papel dos partidos políticos no regime democrático, através da análise de uma democracia partidária, que redefina o contexto político-representativo hodiernamente vigente.
Buscar-se-á refletir, desse modo, sobre a instigante e inovadora visão de Chantal Mouffe (1996), uma autora cujas teorias chamam a atenção para os potenciais equívocos verificados nos pensamentos que apregoam a necessidade de democracias de cunho deliberativo e popular.
A partir daí, será possível reavaliar o papel dos partidos políticos no atual cenário, de modo a verificar a possibilidade de uma redefinição das funções exercidas por tais instituições, ambientes propícios para a participação dos cidadãos no universo político, através de uma democracia partidária.
1. Democracia representativa: a necessidade de uma reestruturação democrática.
A representação política é, de fato, um fenômeno aparentemente inevitável no cenário político contemporâneo. Afinal, em face de diversas peculiaridades da formação estatal nos dias de hoje, a condução dos negócios públicos por uma assembleia composta por todos os indivíduos que fazem parte da sociedade tende a ser algo verdadeiramente irrealizável.
A esse respeito, quadra destacar a impressão levada a efeito por Robert A. Dahl (2001). Para o referido autor, um dos maiores impeditivos da chamada “democracia direta” no atual contexto é o próprio tamanho dos Estados, senão veja-se:
O tamanho tem importância. O número de pessoas numa unidade política e a extensão do seu território têm conseqüências para a forma da democracia. [...] Talvez hoje e cada vez mais no futuro seja possível resolver o problema territorial com o emprego dos meios de comunicação eletrônicos [...] Contudo, uma coisa é possibilitar “reuniões” eletrônicas e outra muito diferente é resolver o problema apresentado por números imensos de cidadãos. Além de certo limite, a tentativa de fazer com que todos se reúnam e se envolva em discussão frutífera, mesmo por meios eletrônicos, torna-se um disparate. (DAHL, 2001, p. 120-121).
Depreende-se da visão acima reproduzida uma percepção de real incredulidade no que concerne à participação popular na gestão dos negócios públicos. Ao prosseguir com sua análise, Dahl (2001) realiza uma série de exercícios aritméticos que, em princípio, demonstram o quão inviável seria a prática democrático-participativa nos grandes agrupamentos humanos.
Apenas a título de ilustração, verifique-se um pequeno trecho da exposição realizada pelo citado estudioso:
[...] Imagine agora, por exemplo, uma aldeia de duzentas pessoas, das quais cem adultos, todos os quais assistem às reuniões das assembléias. Cada um deles tem o direito de falar por dez minutos. Esse modesto total exigiria dois dias de oito horas de reunião – o que não é impossível, mas com toda a certeza não é nada fácil de conseguir! Por enquanto, mantenhamos o nosso pressuposto em apenas dez minutos para a participação de cada cidadão. Conforme aumentam os números, mais absurda se torna a situação. Numa “polis ideal” de dez mil cidadãos com plenos direitos, o tempo requerido ultrapassa em muito quaisquer limites toleráveis. Os dez minutos concedidos a cada cidadão exigiriam mais de duzentos dias de oito horas de trabalho! A concessão de meia hora a cada um exigiria quase dois anos de reuniões constantes! (DAHL, 2001, p. 122).
De outro lado, não obstante seja um caminho aparentemente inviável atribuir a grandes assembleias de cidadãos a gestão das questões públicas, não se pode deixar de destacar a existência de uma série de vicissitudes que permeiam o sistema representativo.
Afinal, sem deixar de reconhecer sua hegemonia e sua potencial inevitabilidade em tempos contemporâneos, não é possível fechar os olhos para os defeitos que evidencia a representação política em sua formatação atual.
Ao analisar tal aspecto, percebe-se que as críticas e desconfianças que dizem respeito à sistemática da representação não são exatamente uma novidade. Ao contrário, remontam ao tempo da própria concepção de tal formato, no âmbito das teorias contratualistas sobre a gênese do Estado moderno.
Com efeito, já àquela época, Jean-Jacques Rousseau (2003) alertava com veemência para a nocividade da prática representativa, ocorrida em detrimento da efetiva participação do indivíduo no seio político, por entender que a representação significava verdadeira fraude, cujo resultado não era outro que não a alienação da própria soberania.
Como é cediço, Rousseau ocupa, ao lado de Thomas Hobbes e John Locke, uma posição de indiscutível importância para a compreensão das clássicas teorias contratualistas sobre a gênese do Estado Moderno. Entretanto, diferentemente dos dois outros autores aqui referidos, seu pensamento se marcou pela verdadeira aversão à figura da representação política.
A rigor, nenhum pensador contemporâneo de Rousseau atribuiu à participação política do indivíduo um papel tão relevante. Com efeito, Rousseau foi um árduo defensor da democracia direta, por enxergar na representação política uma verdadeira fraude, passível de restringir a liberdade dos indivíduos, a qual, segundo deduz, somente se verifica, nesse modelo, no momento da eleição ou do voto. Para ele, enquanto sistemática de organização política, a representação implica inexoravelmente na alienação da soberania pertencente ao corpo social, sendo este um problema insuperável de tal modelo.
Analisando a diferença entre os pensamentos de Locke – que desenvolveu verdadeiros pilares para a compreensão da representação política, com ênfase no papel do Parlamento – e Rousseau, assim se manifesta Miguel E. Vatter (1996, p. 31):
[...] según Locke la integracíon de los hombres en sociedad sólo puede preservar sus derechos naturales si cada cual transmite la possiblidad de obedecerse a sí mismo, lo que implica un gobierno representativo; mientra que, según Rousseau, para transmitir esa liberdad natural, si uno quiere seguir obedeciéndose a sí mismo, es necesario formar parte del ‘pueblo soberano’ cuya faculdad de outo-normación no puede ser nunca transmitida al Estado.
Vê-se, portanto, que ao desenvolver sua teoria, Rousseau concebe a existência de uma soberania eminentemente popular, assim entendida como o poder pertencente aos membros da sociedade, que culmina na formação da vontade geral. Tal soberania, na compreensão do autor aqui estudado, não pode ser alienada ou dividida, sendo intrínseca aos próprios cidadãos.
Tal percepção fica bastante clara nos tópicos iniciais do ‘livro II’ da obra mais famosa de Rousseau, ‘Do Contrato Social’, como se vê nos excertos a seguir reproduzidos:
[...] só a vontade geral pode dirigir a força do Estado segundo o fim de sua instituição, o bem comum [...]
Digo, portanto, que não sendo a soberania mais que o exercício da vontade geral, não pode nunca alienar-se; e o soberano, que é unicamente um ser coletivo, só por si mesmo se pode representar. É dado transmitir o poder, não a vontade.
[...]
A soberania é indivisível pela mesma razão de ser inalienável. Porque ou a vontade é geral, ou não; ou é a do corpo do povo, ou só de uma parte dele. No primeiro caso, a vontade declarada é um ato de soberania e faz a lei. No segundo, não é mais que uma vontade particular, ou ato de magistratura; é, quando muito, um decreto. (ROUSSEAU, 2003, p. 39-40).
Na leitura da referida obra – ‘Do Contrato Social’ –, percebe-se que para Rousseau há dois momentos que merecem ser distinguidos com o devido cuidado. O primeiro deles corresponde à formalização da vontade geral, o que se dá através da lei. Tal momento reclama a participação direta e indispensável de todo o corpo social, ante a soberania que lhe é própria e indelegável.
O segundo momento, de mera aplicação dessa lei, pode até ser feito por intermédio de representantes escolhidos, para fins de pura e simples execução da vontade anteriormente externada pelos indivíduos, reunidos na qualidade de membros do contrato social.
Logo, à luz do pensamento rousseauniano, é até possível que o povo escolha representantes, mas jamais para fins de formação da vontade geral, o que não se coadunaria, em seu sentir, com a lógica democrática.
Todavia, não obstante fosse realmente um defensor da democracia direta, percebe-se no pensamento do próprio Rousseau certa desesperança quanto ao ideal democrático por ele concebido.
Afinal, várias eram as exigências para a consolidação da prática democrática no formato idealizado. Com efeito, ao separar a soberania do governo, atribuindo à própria sociedade a formalização da “vontade geral”, Rousseau passou a perceber o quão essenciais eram o tamanho do Estado e outras diversas variáveis, para que assim pudesse se tornar minimamente possível a reunião dos indivíduos para os fins deliberativos pretendidos. Nesse contexto, verifica-se que a consolidação da organização política imaginada por Rousseau exigia uma série de características de difícil combinação:
Primeiramente, bem pequeno o Estado, em que se ajunte facilmente o povo e onde seja fácil a cada cidadão conhecer todos os demais; em segundo lugar, grande simplicidade nos costumes, que evite a multidão de negócios e discussões difíceis; muita igualdade ainda nas classes e nas fortunas, sem o que não poderia subsistir longo tempo a igualdade nos direitos e na autoridade; ao fim, pouco ou nenhum luxo; porque luxo é o efeito das riquezas, ou as faz precisas e corrompe ao mesmo tempo, este com a possessão, aquele com a cobiça; o luxo vende a Pátria à frouxidão e à vaidade, rouba ao Estado todos os cidadãos para submeter uns aos outros, e todos à opinião. (ROUSSEAU, 2003, p. 71).
E, certamente, em face da grande dificuldade na conjugação desses requisitos, o próprio Rousseau passa a desconfiar da possibilidade democrática por ele aduzida, senão veja-se:
Rigorosamente nunca existiu verdadeira democracia, e nunca existirá. É contra a ordem natural que o grande número governe e seja o pequeno governado.
Não se pode imaginar que o povo reúna-se continuamente para cuidar dos negócios públicos, e é fácil ver que não poderia estabelecer comissões para isso sem mudar a forma de administração.
[...]
Se houvesse um povo de deuses, seria governado democraticamente, mas aos homens não convém tão perfeito governo. (ROUSSEAU, 2003, p. 71-72).
Logo, o que se extrai da perspectiva rousseaniana é que a democracia direta é único caminho adequado, ante as inegáveis vicissitudes da representação política. Entretanto, infelizmente talvez não seja possível trilhá-lo.
Ademais, faz-se mister ressaltar que, embora seja a base para toda uma compreensão da democracia e da própria formação do Estado Moderno, mormente em face da concepção de elementos valiosos como o ‘contrato social’ e a ‘vontade geral’, o pensamento de Rousseau, como sói ocorrer, não está imune a críticas.
Em interessante estudo das ideias deste filósofo, o cientista político Wanderlei Guilherme dos Santos (2007, p. 73-78) aponta claramente para o paradoxo que se faz presente em sua obra:
Sustento a existência de um paradoxo no universo rousseauniano, que formulo da seguinte maneira: o que cada cidadão deseja como soberano (o governo de que é elemento constitutivo) – a saber, impostos com que financiar a produção de bens públicos, redistribuição de renda com o objetivo de minimizar desigualdades etc. – esse mesmo cidadão repudia como súdito, pois, nesta capacidade, deseja pagar o mínimo de impostos, desaprova egoisticamente ver sua renda diminuída em benefício de quem quer que seja etc. E o que aspira como súdito – subsídios especiais, isenções tributárias etc. – é para ele inaceitável, em sua capacidade de soberano, como um programa de governo universalista.
Outro autor que constrói uma rica perspectiva crítica – e mais atual – acerca da democracia representativa é o português Boaventura de Sousa Santos. Para este estudioso, a crise da representação é apenas um dos resultados de uma crise ainda maior, que ele atribui ao próprio contrato social.
Em sua reflexão, Boaventura de Sousa Santos (2005, p. 5) assevera que
o contrato social é [...] a expressão de uma tensão dialética entre a regulação e a emancipação social que se reproduz pela polarização constante entre a vontade individual e a vontade geral, entre o interesse particular e o bem comum.
Nesse cenário, e revisitando os clássicos teóricos contratualistas, Boaventura aponta para as diversas antinomias que se fazem presentes na própria concepção do contrato social, mormente na análise de tal teoria à luz dos fenômenos sociais contemporâneos. Dentre tais antinomias, convém destacar: a liberdade e a igualdade; a coerção e o consentimento; o soberano e o súdito. (SANTOS, 2005, p. 6).
Para além disso, é imperioso também alertar, ainda à luz das constatações de Boaventura, para o fato de que o contrato social carrega consigo caracteres de territorialidade que certamente não mais se coadunam com a ordem política e econômica vigente.
Afinal, segundo a construção originária de tal conceito, apenas os cidadãos pertencentes a uma determinada localidade poderiam participar da atividade política, seja na construção da vontade geral – conforme a perspectiva de Rousseau –, ou na escolha de representantes para a gestão dos interesses públicos – conforme o pensamento de Locke. Àqueles que não estão contemplados como originários da localidade ou do Estado respectivo, restaria o afastamento da arena política, o que significaria, em uma análise superficial dos fatos, o próprio regresso ao estado de natureza outrora vigorante, em uma perspectiva deveras excludente.
Todavia, o que se vê em tempos atuais é a verdadeira perda da primazia do espaço-tempo nacional, que cede lugar aos espaços-tempo global e local, incompatíveis com a temporalidade política e burocrática do Estado. Isso sem mencionar a relevância irrefreável de outras temporalidades e ritmos distintos e incompatíveis como o espaço-tempo nacional, como é exemplo o mercado financeiro, que inviabiliza qualquer regulação.
Logo, fica bastante evidente para Boaventura que a crise da representatividade política é apenas uma das várias facetas de uma crise muito maior, que atinge o próprio contrato social ou, quiçá, o próprio Estado. Trata-se de uma decorrência inevitável da fragmentação do regime geral de valores, aliada à crescente polarização dos interesses sociais, econômicos, culturais e políticos.
Defende o referido autor, ademais, que uma das características do atual estágio do pensamento liberal é completa ausência de uma problematização da representação política, o que acarreta no que ele chama de naturalização da política do Estado.
Com efeito, torna-se absolutamente natural a passividade política dos cidadãos em geral, que deixam de manter relações efetivas com o Estado, contentando-se com a igualdade formal decorrente da doutrina liberal e com uma representação política que decerto não reproduz os seus anseios e não atende as suas necessidades.
Em face desse cenário, o que Boaventura propõe é que sejam reformuladas as estruturas estatais, para que assim seja desenvolvida uma nova teoria democrática, calcada em inovadores pressupostos, dentre os quais deve estar presente a ampliação da participação popular no cenário político.
É necessário, portanto, que se substitua a ‘ação conformista’ pela ‘ação rebelde’, calcada na criatividade e na espontaneidade, com o fito de eliminar o cenário de exclusão pertencente ao contrato social hodiernamente vigente.
Ademais, faz-se mister reinventar espaços-tempo que promovam – ou que permitam – a efetiva deliberação democrática. E aqui surge uma ideia bastante interessante – e que marca com bastante ênfase o pensamento de Boaventura de Sousa Santos –, consistente na substituição do ‘espaço estatal’ pelo ‘espaço público não estatal’.
Segundo Boaventura, a participação popular pode e deve ocorrer na atuação estatal. Todavia, é preciso que se faça presente também no âmbito dos agentes privados, já que
[...] não faz sentido democratizar o Estado se simultaneamente não se democratizar a esfera não estatal. Só a convergência dos dois processos de democratização garante a reconstituição do espaço público de deliberação democrática. (SANTOS, 1995, p. 62).
Traz-se à lume, ainda, as ideias do constitucionalista cearense Paulo Bonavides, para quem a representação política tem sido marcada cada vez mais pela ausência completa de legitimidade. Com efeito, ao tratar desse tema, Paulo Bonavides apresenta um panorama absolutamente nefasto da realidade vigente, senão veja-se:
[...] as instituições representativas padecem em todo o País de uma erosão de legitimidade como jamais aconteceu em época alguma da nossa História, ficando, assim, a cláusula constitucional da soberania popular reduzida a um mero simulacro de mandamento, sem correspondência com a realidade e a combinação dos interesses que se confrontam e se impõem na região decisória onde se formulam as regras de exercício efetivo do poder. (BONAVIDES, 1996, p. 29).
Registre-se, a esse respeito, que o pensamento aqui analisado aborda a legitimidade enquanto conceito político, considerado de per si. Bonavides não pretende, ao contrário do que fazem a maioria dos estudos jurídicos, resumir a legitimidade a uma mera legalidade, totalmente despolitizada e não condizente com o real significado do termo.
Esse reducionismo, aliás, é enxergado com clareza pelo próprio Paulo Bonavides (2003, p. 17), para quem a despolitização da legitimidade
É fenômeno bem ao gosto dos neoliberais e de sua doutrina de senhorio absoluto, por via oblíqua, dos interesses sociais e da teleologia do poder. Com efeito, a legitimidade tem se apresentado, de último, nas reflexões jurídicas sobre a matéria, despolitizada, neutralizada e subsumida, por uma suposta evidência de sua identidade conceitual e axiológica com a legalidade, enquanto expressão formal e acabada do triunfo das ideologias liberais.
Para Bonavides (2003), portanto, a legitimidade política vem sendo abandonada e substituída por um singelo critério formal, calcado numa legalidade eminentemente positiva, através do qual o cidadão eleito é o irrefutável representante de seu eleitor, desconsiderados quaisquer outros elementos na análise de tal relação.
A alternativa a ser perseguida, nesse contexto, perpassa pela consolidação de efetivas práticas democrático-participativas, através das quais se confira ao próprio povo as condições necessárias para o exercício do poder político. Faz-se necessário, ademais, redefinir o papel da Constituição no cenário jurídico vigente, de modo a se permitir a mudança paradigmática aqui cogitada.
E para que se torne possível a adoção de tais práticas democrático-participativas, nota-se também presente no pensamento de Paulo Bonavides uma releitura do Direito Constitucional, a qual evidencia um viés fortemente pós-positivista, conferindo ao texto constitucional e aos princípios nele presentes um papel de considerável destaque no cenário jurídico. Veja-se, a esse respeito, o seguinte excerto da obra analisada:
A construção teórica da democracia participativa no âmbito jurídico-constitucional demanda o concurso de elementos tópicos, axiológicos, concretistas, estruturantes, indutivos e jusdistributivistas, os quais confluem todos para inserir num círculo pragmático-racionalista o princípio da unidade material da Constituição, o qual impera, de necessidade, para sua prevalência e supremacia, uma hermenêutica da Constituição ou Nova Hermenêutica Constitucional [...]
Quem teoriza acerca da democracia participativa, assim como não pode prescindir de uma nova hermenêutica, com o propósito de fazê-la exeqüível, também não pode desfazer-se de um conceito-chave ao concretizá-la, que é o conceito de soberania. [...] soberania do povo havida por pedra angular da democracia de participação. (BONAVIDES, 2003, p. 42).
E é justamente essa nova leitura do Direito Constitucional que permite a consolidação do que Bonavides chama de teoria constitucional da democracia participativa. Afinal, somente a partir de uma nova compreensão da Constituição no cenário jurídico, faz-se também possível robustecer a participação do cidadão na atuação estatal, como elemento de máxima efetividade do princípio da soberania popular, referido e elogiado alhures.