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Da não representatividade do Estatuto do Nascituro à legalização do aborto

Da não representatividade do Estatuto do Nascituro à legalização do aborto

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O projeto de lei conhecido como Estatuto do Nascituro não irá solucionar os problemas sociais de saúde pública envolvendo o aborto no Brasil.

Entre Direito e Moral

O Estatuto do Nascituro[1] é um projeto de lei criado em 2007, que tem sofrido diversas críticas por grupos da sociedade civil, em especial das pautas feministas, e que, portanto, tem dividido opiniões sobre a proteção dada aos nascituros em contrapartida a autonomia feminina. O Estatuto criminaliza veemente o aborto, já tipificado no código penal[2], no entanto, estende a tipificação criminalizando também a utilização do nascituro seja in vivo ou in vitro como material de experimentação científica.

O Estatuto prevê ainda algumas “garantias” ao nascituro como a assistência e concessão de pensão alimentícia ao filho gerado em decorrência de estupro, esta última garantia quando houver identificação do genitor, o nascituro tem ainda o direito de ser encaminhado à doação.

Pode-se perceber que os direitos assegurados no Estatuto fazem sempre referência ao nascituro, não garantindo à mulher gestante o papel de sujeito de direitos nessa situação. O principal objetivo do projeto é definir o conceito de nascituro assegurando-lhe o papel de sujeito de direitos. O nascituro é assim definido:

Art. 2º Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido.

Parágrafo único. O conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos “in vitro”, mesmo antes da transferência para o útero da mulher.

Art. 3º Reconhecem-se desde a concepção a dignidade e natureza humanas do nascituro conferindo-se ao mesmo plena proteção jurídica (PL 478/07, 2007, p.1)

Tal definição põe fim ao debate sobre o momento inicial da vida, impondo a concepção como ponto de início da vida e da atribuição de direitos. No entanto, determinar o início da vida, tema controverso dentro do próprio campo científico, não é papel do Direito. Não cabe a este suprimir um debate não pertencente a sua esfera, ao Direito cabe antes analisar concretamente a realidade que o forma.

É fato que o Direito surge e evolui de acordo com a própria sociedade e que é diretamente interligado a ela. Habermas na obra “Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade” já afirmava que fato e norma não se dissociam, estão em constante tensão representados pela facticidade e validade das normas. Miguel Reale, jurista brasileiro, também nos serve pra dizer que o Direito se constrói tridimensionalmente, possui um aspecto normativo, um fático e um axiológico, isso implica dizer, que não basta que haja normas se estas não possuem uma correlação com a realidade fática e valorativa vivida socialmente, esses elementos atuam em conjunto como num processo, tornando o Direito uma interação dialética entre eles (REALE, 2011).

Todo o Direito surge com a finalidade de assegurar o bem comum, ele tem a pretensão de solucionar problemas cotidianos, o que por vezes afasta a liberdade de ação individual em relação às questões morais, isso significa que muitas decisões são tomadas, tanto na esfera legislativa como judiciária, mas em pouco se discute a sua eficácia ou se quer se chega ao centro real do problema. Qual é então o problema central encoberto pelo Estatuto do Nascituro? Esse esconde a realidade das mulheres oprimidas da classe popular que sofrem ao realizar um aborto devido à negação do atendimento médico, devido a falta de estrutura e segurança sanitária das clínicas clandestinas as quais se reportam e que ainda sofrem com a criminalização de seus atos. Encobre ainda o sofrimento daquelas mulheres abusadas sexualmente que, apesar de toda violência já sofrida serão ainda obrigadas a carregar em seu ventre algo não desejado. E por fim, encobre toda uma cultura machista e patriarcal que subjuga as mulheres ao longo da história.

O Estatuto do Nascituro aparenta carregar em seu seio aspectos morais de uma parte da sociedade embasada, principalmente, num discurso religioso de sacralização da vida, que perpetua a dinâmica social patriarcal, a pesar das grandes conquistas femininas. No entanto, é importante lembrar, que por mais que o tema possua um conteúdo moral, é preciso afastar discursos morais não-racionais da construção jurídica, pois estes podem distorcer o real papel do Direito dentro de um Estado Democrático, pois não se pode interpretar os direitos fundamentais constitucionalmente positivados como simples cópias de direitos morais (HABERMAS, 2003). Isso não significa dizer que Direito e moral não se relacionam ou não devam se relacionar, pelo contrário, segundo Habermas eles são co-originários, dependem um do outro. O Direito, no entanto, não deve se subordinar a moral, como se esta fosse hierarquicamente superior, o Direito não é mero reflexo da moral.

As decisões do Direito devem ser pautadas, segundo a lógica habermasiana, de acordo com dois princípios: o princípio da moral e o princípio de democracia. O primeiro implica na argumentação racional, ou seja, não é qualquer construção moral que irá direcionar as decisões jurídicas, mas sim aquelas racionalmente justificadas, ou seja, aquelas que são plenamente debatidas e que se sustentam diante dos questionamentos e que não carreguem pré-conceitos arraigados da sociedade, a exemplo dos discursos de ódio. O segundo princípio implica na participação de todos os interessados e atingidos pelas normas, pois é o processo democrático, que possibilita a livre flutuação de temas e de contribuições (HABERMAS, 2003), permitindo que através da ação comunicativa se chegue a uma decisão fundamentada e justificada perante todos.

É nessa perspectiva habermasiana que buscamos discutir o Estatuto do Nascituro não simplesmente na sua repercussão moral, mas também, social, e isso se faz num constante lembrar que esse é um problema de saúde pública e que afeta diretamente a vida de diversas mulheres que sofrem com a criminalização do aborto.


Alcance dos direitos fundamentais, interpretação e ponderação

Iniciar uma discussão sobre Estatuto do Nascituro e a necessidade da legalização do aborto como forma antagônica de discurso e medida mais razoável para a realidade que temos é discutir também a dinâmica dos direitos fundamentais, e como se dá a relação entre estes no ordenamento jurídico brasileiro e mais importante, como eles se reinventam cotidianamente na concretude das nossas vivências como comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais.

Nessa perspectiva é indispensável uma abordagem que trate também dos processos de interpretação e aplicação da constituição, partindo, principalmente, da ideia de que “o papel do conhecimento não é somente a interpretação do mundo, mas também sua transformação” (BARROSO, 2008, p 279). Os direitos fundamentais, que fazem parte desse mesmo plano epistemológico, passam a ser compreendidos nesse mundo de transformações, “como princípios, a um só tempo opostos e complementares entre si” (CARVALHO NETTO, 2011, p.15). Menelick continua a dizer então, que os direitos fundamentais por isso mesmo

estão aptos a gerar tensões produtivas e, assim, instaurar socialmente uma eticidade reflexiva capaz de se voltar criticamente sobre si própria, colocando em xeque tanto preconceitos e tradições naturalizados quanto a própria crença no papel não principiológico e meramente convencional das normas jurídica (CARVALHO NETTO, 2011, p. ).

            Dworkin alinhado a essa mesma perspectiva vai compreender o direito humano fundamental como aqueles que deverão ser tratados pelas instituições detentoras de autoridade com uma certa atitude ou postura, que reflita o igual respeito e consideração pela dignidade de cada um. No campo jurídico, da vida e da autonomia da mulher, cumpre ao legislador e aos governantes a implantação de leis e políticas públicas que garantam amplamente a efetividade desses direitos. Não deve aqui haver uma perspectiva de conflito, à medida que se garante a legalização do aborto e a negação do Estatuto Nascituro, está se protegendo o direito à vida da mulher, isso porque, vida é um conceito bem mais amplo que o simples aspecto biológico.

Como criminalizar uma mulher por um aborto provocado pelo esforço de ter que fazer trabalhos domésticos pesados, carregar crianças no colo ou ter que andar de bicicleta? Não existe respeito à individualidade e a realidade das mulheres que são pobres, mães solteiras ou que não podem deixar de trabalhar quando é estabelecido crime culposo àquelas que, mesmo incidentalmente, provocarem aborto.

Ainda segundo Dworkin, a responsabilidade coletiva nasce do respeito pelo direito de todos os indivíduos e não de uma homogeneização ética:

A integração ética na ação coletiva de uma comunidade a qual alguém de algum modo pertence não é sempre apropriada e às vezes é perversa. Certamente teria sido perverso para as vítimas judias do Holocausto compartilhar uma culpa coletiva pela sua existência. (...) Tampouco é apropriada para aqueles indivíduos que a comunidade não reconhece como membros plenos, mesmo quando esses participam da vida política. (...) A integração ética com os atos coletivos de uma sociedade política se mostra apropriada apenas para os cidadãos tratatados pela sociedade como membros plenos e iguais. (DWORKIN, 1998 apud CARVALHO NETTO, 2011, p. 95)

É justamente essa integração ética que falta na sociedade brasileira hoje, principalmente, em projetos de lei como o Estatuto do Nascituro. As mulheres neste caso, não são reconhecidas como membros plenos, ainda que participem da vida política, a comprovar pelo fato do projeto de lei ser elaborado por um deputado homem, em matéria que, total, diz respeito à autonomia privada das mulheres. Realizar uma integração, a partir da ponderação do direito à vida do nascituro como sendo mais importante, é sacrificar qualquer tentativa de real coletividade.


Análise do Estatuto do Nascituro

O Estatuto do Nascituro ainda é apenas um projeto de lei (PL nº 478 de 2007), mas já provoca grandes polêmicas e muita preocupação por parte dos movimentos feministas, visto ser uma verdadeira tentativa de quebra de braço que os setores conservadores e fundamentalistas querem travar com a luta pelos direitos democráticos das mulheres.

O citado projeto de lei, já aprovado na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados seria de fato interessante para a nossa realidade se caminhasse no sentido de promover a discussão e alteração da Lei de Biossegurança, ou avançasse no debate quanto às pesquisas com células-tronco, fertilizações artificiais e outros temas que afligem e necessitam de verdadeira atenção. Porém, ele se apresenta prolixo à medida que apenas procura repetir garantias que já são dadas pelo ordenamento jurídico ao nascituro, não se tratando de um “projeto inovador, que trata sistematicamente de um assunto nunca tratado em outra lei” como afirma a sua justificativa. Pois então, qual seria a real intenção desse projeto, se já temos dentro da própria legislação ordinária várias garantias dispostas ao nascituro? Seria a de abafar a discussão a cerca da legalização do aborto? Ou ainda, de sacralizar mais o ordenamento jurídico com ataques explícitos aos direitos das mulheres, criminalizando-as e submetendo-as ao que teríamos de mais machista no nosso corpo de leis?

É certo que o Estatuto do Nascituro invade principalmente o campo dos direitos fundamentais, em especial, aqueles que tratam da autonomia e da liberdade do indivíduo, à medida que a maioria dos seus dispositivos que procuraram garantir direitos ao nascituro já se encontram previstos no Código Civil e Código de Processo Civil. É claro, como será constatada a partir da análise dos artigos desse projeto de lei, que esse Estatuto não nos traz, em primeira mão, extensão de direitos ou garantias ao nascituro, mas sim a extensão dos casos de criminalização do aborto ou da mulher gestante, que tem sua liberdade ameaçada e um futuro mais temoroso.

Observando os dispositivos do referido projeto, observa-se que há apenas uma reafirmação dos direitos do nascituro quanto: a sua personalidade (que já é assegurado pelo Código Civil no seu art. 2º, “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”); a legitimidade do nascituro para receber doação (já previsto no art. 542 do Código Civil, “A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal”); o direito de receber um curador especial (art. 1.179 do CC/02, “Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar”); ao direito de adquirir herança (já garantido pelos arts. 1.798 e 1.799 do CC/02); ao direito de ser beneficiário de sentença declaratória de direitos (assegurados pelo Código de Processo Civil, arts 877 e 878). Ou seja, de fato não percebemos aqui uma clara pretensão de extensão de direitos ao nascituro.

O projeto de lei inicia logo trazendo o conceito do que seria o nascituro, -“Art.2º. Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido” – e da sua proteção integral desde a concepção – “Parágrafo único. O conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos “in vitro”, os produzidos através de clonagem ou por outro meio cientificamente e eticamente aceito”. Esse entendimento reforçado pela teoria concepcionista apenas causa mais insegurança dentro do ordenamento jurídico, pois ainda é bastante complicado se afirmar, com precisão, quando se daria o início da vida humana, como diria Humberto Eco,

não me sinto em condições de fazer qualquer afirmação sensata sobre este limiar, se é que de fato, existe um. Não há uma teoria matemática das catástrofes capaz de nos dizes se existe um ponto de guinada, de explosão súbita: talvez estejamos condenados a saber apenas que existe um processo, que seu resultado final é o milagre do recém-nascido. (ECO, 2001, p. 33)

De efeito, a incerteza encontrada no direito comparado evidencia a divergência no tratamento de tão delicado tema. A leitura desses artigos legitima o entendimento de que a partir da concepção, chegada do espermatozoide até o óvulo, já existe vida humana, neste caso, o nascituro já seria sujeito de direito e qualquer tipo de aborto seria um atentado a sua vida. Estranho, pois ainda que muitos tribunais acompanhe essa teoria concepcionista nas suas decisões, parece que a posição majoritária em nosso ordenamento ainda é a de que “ antes do nascimento a posição do nascituro não é, de modo algum, a de um titular de direitos subjetivos; é uma situação de mera proteção jurídica” (DANTAS, 2001, p.  134).

Nesse desenrolar, o art.4º do Estatuto diz que ao nascituro deve estar assegurada “com absoluta prioridade” a expectativa de direito à vida, à saúde entre outras coisas. Nota-se aqui o que o legislador procura estabelecer como prioridade, colocando os direitos do nascituro sobre o direito de qualquer pessoa, inclusive sobre os da mulher que o carrega. Significa, portanto, que ainda que a gravidez seja uma ameaça à saúde da gestante, a “vida” do feto terá prioridade sobre a vida da mulher.

O artigo 5º do Projeto de Lei determina que qualquer forma de “negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” contra o nascituro será punida na forma da lei, inclusive os profissionais de saúde responsáveis pela paciente grávida. Caso isso seja aprovado, poderíamos ter aqui no Brasil grandes problemas como ocorreram na Nicarágua a partir de 2006, quando foram proibidos os abortos terapêuticos. Segundo a organização internacional Human Rights Wach, no seu relatório intitulado “Over Their Dead Bodies”[3] (Por Cima de Seus Cadáveres), as gestantes na Nicarágua evitam procurar os serviços de saúde quando apresentam algum problema relacionado à gravidez, com medo de serem acusadas por ter provocado tal enfermidade ou por estarem realizando uma tentativa de aborto. E se não bastasse o temor das próprias gestantes, muitos profissionais da saúde passaram a trabalhar com bastante medo de sanções penais e perda de licenças profissionais, tendo como consequência a inacessibilidade por parte das gestantes a tratamentos como quimioterapia, radioterapia, cirurgia cardíaca e até mesmo a analgésicos, pois tudo isso poderia afetar o nascituro. 

Ainda que se trate de um ato político, muito preocupa os efeitos que os art. 9º, 10º e 11º do referido projeto iriam acarretar para a integridade do direito, sem se ater, portanto, as construções já realizadas anteriormente. Os artigos citados trazem expressamente nos seus textos a proteção incondicional ao nascituro portador de qualquer tipo de deficiência ou com probabilidade de sobrevida, incluindo, portanto, àqueles com anencefalia. Acontece, que esta matéria, ainda que tenha sido alvo de discussões primordialmente no judiciário, já nos conduz a um entendimento constitucional bem conciso em face do que foi discutido e decidido no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 pelo Supremo Tribunal Federal, como confirma o ministro relator do caso Marco Aurélio:

Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. (...) o feto anencéfalo, mesmo biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, acrescento, principalmente proteção jurídico-penal. Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica. (Voto min. Marco Aurelio, p.30)[4]

O entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal não impede que o legislativo também se pronuncie sobre o tema, mas é importante que se possa garantir que o “romance” não seja quebrado mais uma vez e que as mulheres gestantes de fetos anencéfalos não sofram ainda mais com a onda de insegurança jurídica.

O que é necessário para essa conjuntura de avanço político é que o legislativo garanta essa grande conquista evolutiva do direito, demonstrando sensibilidade para com as mulheres, seus companheiros e suas famílias, resguardando o direito à vida e à saúde total da gestante, de forma a aliviá-la de sofrimento maior, livrando-a do sentimento de meros “caixões ambulantes”, como assinala Débora Diniz (2012).                                

Conforme o art. 12 do PL 478/07 (Estatuto do Nascituro), que veda “ao Estado e aos particulares causar qualquer dano ao nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores”, a gestante que sofrer violência sexual não poderá interromper a gravidez, pois o nascituro não poderia ter qualquer tipo de dano, e sendo o estuprador o próprio genitor do nascituro, ficaria aqui resguardado o direito do nascituro em face do direito do aborto sentimental.

Casando com os demais dispositivos do projeto de lei, o art. 13 só confirma o total descompromisso com as mulheres, principalmente com aquelas vítimas de violência sexual. Praticamente, tira a responsabilidade criminal do estuprador e transfere para a mulher, que não pode mais optar se quer ou não carregar o fruto da violência, sendo obrigada, inclusive, a manter vínculos com o agressor. Percebe-se, então, que a real preocupação do projeto é retirar, a todo custo, do Código Penal qualquer possibilidade de se realizar aborto no Brasil. É bem claro que o art.13 do Estatuto do Nascituro acaba por revogar tacitamente o art.128 do Código Penal, retirando e invalidando a existência e eficácia do dispositivo penal que permite o aborto terapêutico e o aborto sentimental.

Para completar, o art. 13 ainda diz que o agressor é responsável por pagar pensão alimentícia até que a criança complete 18 anos, e caso não seja identificado, a obrigação recai sobre o Estado. Teríamos aqui um caso de completo absurdo, onde o criminoso teria o livre direito de conviver com a criança e com a vítima. Fica aqui exposta a tamanha insensibilidade para com as mulheres vítimas de violência sexual. Isso nos faz lembrar a antiga legislação criminal, onde se previa a extinção da punição do infrator de tal violência, caso a vítima se casasse com ele (redação anterior do inciso VII do art. 107 do Código Penal, revogado pela Lei n. 11.106 de 2005).

Sob a desculpa de proteger a mulher vítima de violência sexual, o art. 13 do projeto de lei institui o que os movimentos sociais feministas e a mídia em geral têm chamado de "Bolsa Estupro", que além de reduzir o valor de pensão que eventualmente poderia ser maior, caso o criminoso possua posses, retrocede na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, com o objetivo claro e conservador de controle do corpo feminino.

Quanto à criminalização de qualquer tipo de aborto, é importante que se faça uma leitura do que os sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos têm dito a cerca do tema. A criminalização do aborto já foi condenada pelo Sistema Internacional de Direitos Humanos em inúmeras oportunidades. A própria Organização das Nações Unidas enviou uma recomendação explícita pela revogação imediata dos dispositivos criminalizadores do aborto, bem como pela retirada da tutela penal sobre assuntos que recorrem a questões de saúde pública coletiva[5].

O discurso protagonizado aqui não é de ser contra a vida, até porque é sabido da dor e da punição que é o aborto até mesmo para aquelas mulheres que optam por esta via. Porém, é provado que a criminalização é ineficaz e causa terríveis danos e riscos para a mulher, para a sociedade e para as instituições do próprio Estado. A descriminalização do aborto não alterará e nem irá interferir nas influências que as religiões operam na vida de quem as segue. A contemporaneidade não suplica por submeter a júri popular pessoa que praticou aborto, nem que o aborto se torne crime hediondo, mas sim busca prestar assistência à saúde dessas mulheres para que tenham vida em abundância. Não se pode equiparar o fato típico da mulher cometer aborto por ter sofrido violência sexual ao próprio crime em que ela foi vítima (estupro), equiparando o aborto a crime hediondo. O que está contraposto aqui é o direito à saúde ao poder punitivo do Estado. 


Legalização do aborto

O aborto consiste na interrupção da gestação prematura do embrião ou feto, tal processo pode ocorrer de modo induzido ou espontâneo. A maior parte das pessoas que não concorda com o aborto induzido, possui tal convicção por acreditarem que abortar um feto/embrião em “vias de ser criança” é uma prática moralmente condenável, corresponderia a um verdadeiro homicídio. Para Dworkin (2003) há uma confusão em torno do debate sobre o aborto, na sua obra “Domínio da Vida – aborto, eutanásia e liberdades individuais”, o autor busca demonstrar o conflito em torno do tema e os motivos de tal prática ser desaprovada.

A confusão que, acredito, tem envenenado a controvérsia pública sobre o aborto, [...] é a confusão entre esses dois tipos de razões para acreditar que o aborto é frequentemente, quando não sempre, moralmente errado. A exaltada retórica do movimento “pró-vida” parece pressupor a afirmação derivativa de que um feto já é, desde o momento de sua concepção, uma pessoa em sua plenitude moral, [...] Muito poucas pessoas, porém – mesmo aquelas que pertencem aos grupos mais radicalmente antiaborto –, realmente acreditam nisso [...]. A divergência que realmente divide as pessoas é uma divergência bem menos polarizada sobre o melhor modo de respeitar uma ideia fundamental que quase todos compartilhamos de alguma forma: que a vida humana individual é sagrada. (DWORKIN, 2003, p. 15)

Há, portanto, duas vertentes do problema uma que Dworkin chama de derivativa e outra autônoma, a primeira acredita que o feto deve ser protegido e que tem direito à vida por ser uma pessoa, enquanto que a outra vertente acredita que a vida tem um valor em si mesmo, por isso que destruir uma vida é considerado moralmente errado. O que ele pretende é apontar que a discussão principal envolvendo o aborto não é saber se o feto/embrião é ou não uma pessoa, tendo assim direitos e garantias, para ele as pessoas discordam da prática abortiva por compreenderem que a vida é sagrada, termo utilizado aqui não somente numa perspectiva religiosa, mas para evidenciar que a vida tem um valor intrínseco.

Um exemplo de que o discurso predominante é, realmente, mais autônomo do que derivativo são as exceções abertas para a realização do aborto em determinados casos, como quando a gestação é proveniente de estupro ou quando a mãe sofre risco de vida. Tais exceções são incompatíveis com a ideia de que o feto tem direito a vida, elas demonstram o contrário, que a vida possui um valor e que nestes casos a vida da mãe é mais importante que a futura vida do feto.

Mas, o mais importante a se perceber é que adotar uma visão autônoma, de que a vida é sagrada e afirmar que a gestante tem o direito de decidir sobre realizar ou não o aborto, não implica numa contradição, pois tal concepção é antes uma ideologia carregada de preceitos morais. Agora, permitir que essa concepção moral seja imposta a todo e quaisquer indivíduo, seria, sim, recair em contradição, visto que vivemos num Estado Democrático de Direito em que as liberdades individuais devem prevalecer sobre os discursos ideológicos. Uma mulher que se vê obrigada a carregar em seu ventre um feto não desejado tornaria-se uma escrava do Estado e isto seria incorrer em tirania. Contrariando, portanto, a própria Constituição que assegura a todos o direito à liberdade.

A decisão de ter ou não um filho é, constitucionalmente, uma decisão que compete à esfera privada de cada um, não cabendo ao Estado intervir neste assunto retirando o direito da mulher de decidir sobre seu próprio corpo, ou melhor, sobre sua própria vida. Dizer, no entanto, que a escolha compete ao campo privado não exime o Estado de garantir assistência médica as optantes pelo aborto, visto que a saúde é um direito fundamental.

A discussão entre direito a vida, direito a proteção dos interesses do feto versus o direito de autonomia feminina, é na realidade, um embate aparente. Não há que se falar em interesse do feto, não há como determinar o interesse de algo por vício de recair numa regressão infinita, isso permitiria argumentos absurdos como o de que ao usar preservativo o casal estaria afetando o interesse do óvulo e do espermatozoide de realizar a fecundação. Só é possível se falar em interesse quando existe consciência, o que ocorre segundo estudos científicos somente após se passar mais da metade do período de gestação quando as ligações nervosas estão completamente formadas e o feto já possui a sensação de dor (DWORKIN, 2003, p.22), daí a importância de se regularizar o aborto para que este aconteça nos momentos iniciais da gestação, tanto para proteger a mãe quanto para não afetar a possível sensibilidade do feto.

Há aqueles, no entanto, que defendem que não basta a sensibilidade do feto, é preciso que este possua consciência de si próprio, de sua existência é o caso do filósofo norte- americano Tooley que acredita que

ter o direito à vida [...] é ter o direito de continuar a existir enquanto sujeito de experiências e de outros estados mentais. Para se ter esse direito, acrescenta, é preciso ter a capacidade de desejar continuar a existir enquanto sujeito desse gênero. (GALVÃO, p.2)

José Afonso da Silva constitucionalista brasileiro defende o direito à vida proferido na constituição a partir de uma dimensão biográfica. “Vida no texto constitucional (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva” (2005, p.197). Esta dimensão implica que tal direito é atribuído a um ser consciente de si e do mundo, que possui história de vida, ser individuado perante o Direito positivo.

Para além desta discussão de natureza filosófica e moral é preciso ainda a verificação de dados fáticos, estatísticos que demonstram que a atuação proibicionista do aborto não resulta na sua expressa diminuição quantitativa, mas sim num desrespeito às mulheres de classes mais pobres que são excluídas do acesso a saúde. A criminalização do aborto, que é seletiva, gera, portanto, resultados mais desastrosos do que a sua legalização, pois não impede que os abortos sejam realizados clandestinamente. Recentemente a própria ONU – Organização das Nações Unidas – cobrou uma resposta do Brasil sobre a criminalização do aborto, recomendando o fim da legislação que promove penalidades a prática abortiva, inclusive tecendo críticas ao projeto do Estatuto do Nascituro[6].

O Estado brasileiro precisa tratar o aborto como um problema de saúde público, a sua proibição leva a abortos inseguros e consequentemente ao aumento da mortalidade feminina. Não há no Brasil dados precisos que demonstrem a quantidade de abortos induzidos realizados dentro de um determinado período de tempo, isto ocorre devido à extensão do país, assim como pela falta de dados, uma vez que, somente os abortos que geraram complicações chegam aos “ouvidos” do sistema de saúde. No entanto, em 2010 foram apresentados resultados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) que demonstram a média geral de mulheres brasileiras urbanas que já realizaram aborto induzido durante suas vidas, segundo os dados apresentados cerca de metade destes abortos geraram alguma complicação médica que poderia ter sido evitado se não houvesse a criminalização.

A PNA indica que o aborto é tão comum no Brasil que, ao completar quarenta anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto. Tipicamente, o aborto é feito nas idades que compõem o centro do período reprodutivo feminino, isto é, entre 18 e 29 anos, e é mais comum entre mulheres de menor escolaridade, fato que pode estar relacionado a outras características sociais das mulheres de baixo nível educacional (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p.6).

A pesquisa comprova que a lei penal não é um instrumento impeditivo para o aborto, assim como não o será o Estatuto do Nascituro. É preciso atentar-se aqui ao princípio da razoabilidade, que nos serve como uma diretriz de interpretação da constituição, segundo Luís Roberto Barroso (2010). Tal princípio implica na atribuição de valores como justiça, racionalidade e proporcionalidade, isso significa que as medidas tomadas pelo Estado devem ter um benefício superior às perdas que ela promove. A legislação brasileira que trata sobre o aborto desconsidera veemente este princípio, ao passo que, ao proteger o feto ela gera danos maiores a vida de diversas mulheres, principalmente daquelas que possuem baixa renda e que não tem acesso aos direitos básicos garantidos constitucionalmente.

A legalização do aborto, portanto, não fere nenhum direito constitucional de proteção à vida, a sua regulamentação busca, na realidade, promover tal direito, garantindo a possibilidade de escolha das mulheres sobre sua própria vida e seu livre desenvolvimento sem a intervenção de preceitos morais, promovendo o acesso a um aborto legal e seguro, permitindo ainda a existência de um Estado Laico e Democrático que respeita a liberdade de seus cidadãos.


Pluralismo Jurídico e Movimentos feministas

Quando tratamos da discussão da regulamentação do aborto na esfera legislativa é importante que identifiquemos os sujeitos políticos e sociais que participam dessa discussão polêmica. Geralmente, essa discussão é protagonizada por uma zona de conflito bem explícita. De um lado estão aqueles que são desfavoráveis ao aborto, capitaneado, principalmente, por grupos religiosos através de iniciativas contínuas e bem estruturadas, inclusive com uma atuação bastante incisiva no parlamento e na mídia. E de outro lado, uma construção de opinião pública favorável ao aborto que é demandada por vários sujeitos políticos e sociais, e não somente pelo movimento feminista.

O debate sobre o aborto sempre foi presente no Congresso Nacional. Em 1995, ano da Conferência Mundial sobre a Mulher, o deputado pernambucano Severino Cavalcanti deu entrada em uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC/95) para incluir, na Constituição, o direito à vida desde a concepção. Em outras palavras, assim como quer o Estatuto do Nascituro, a proposta pretendia proibir o aborto em qualquer circunstância. Apesar de ampla articulação da bancada evangélica e da bancada católica, essa proposta foi derrotada.

A provocação do debate a respeito do aborto a partir da proposta desta PEC influenciou no ano seguinte, a discussão sobre o Projeto de Lei 20/91, que versava sobre a obrigatoriedade de atendimento pelo SUS nos casos de aborto previstos por lei. Em 1997, após uma longa batalha, a PL 20/91 foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, porém, ainda hoje é pauta de difícil aprovação, visto a grande articulação dos parlamentares da bancada religiosa. Exemplo atual desse tipo de situação é o projeto da Deputada Iara Bernardi (PT-SC) que tem sido duramente atacado pela bancada religiosa, acusado de abrir “brechas” para ao aborto quando prevê a “profilaxia da gravidez” [7]. Acontece que o projeto apenas trata da prevenção à gravidez nas primeiras 72 horas depois do ato sexual violento, como já é previsto em lei.

Esse tipo de resistência imposta pelos parlamentares de bancadas mais conservadoras a projetos desse tipo, só mostra como os direitos das mulheres estão ainda mais suscetíveis ao fundamentalismo religioso e a questões morais dos parlamentares. É contrária à opinião pública e à vontade do povo que projetos como o Estatuto do Nascituro sejam aprovados. Ou que projetos como o proposto pela Deputada Iara Bernardi sejam negados. Isso pode ser aferido a partir da pesquisa realizada pelo Ibope Opinião em julho de 2003 sob encomenda da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) [8].

De acordo com a pesquisa: 1) seis em cada dez brasileiros são contrários à proibição do aborto; 2) 63% dos brasileiros não querem retrocesso da atual legislação; 3) a maioria (53%) apoia o aborto legal vigente; 4) 10% querem ampliar a permissão do aborto. Outro dado curioso da pesquisa, é que se selecionarmos as amostras a partir de alguns critérios como a região onde os entrevistados moram (urbana ou rural) ou pelo nível de escolaridade, veremos que a taxa de pessoas favoráveis ao aborto legal vigente e a sua ampliação chega a mais de 70%. Isso significa que, quanto mais informados e mais preparados para a questão, maior o apoio ao aborto legal e maior é a quantidade de pessoas favoráveis à ampliação da legislação para a permissão do aborto.

Um ponto tocado na pesquisa que vai de encontro diretamente com a falta de correspondência entre a vontade do povo e os seus representantes no que é proposto pelo Estatuto do Nascituro é que de acordo com o levantado, os brasileiros seguidores de alguma religião, são, em sua maioria, favoráveis ao "não-retrocesso" da legislação sobre o aborto: 63% dos católicos, 53% dos evangélicos, 65% dos que adotam outras religiões e 70% de religiosos não-seguidores, a exemplo do movimento de mulheres ‘Católicas pelo direito de decidir’. Esses dados demonstram, portanto, que as lideranças religiosas que pregam no parlamento a proibição do aborto em qualquer circunstância (ainda que de maneira tácita) estão distantes da opinião dos seguidores de diversas religiões.

Nesse sentido, constatamos que além de todos os abusos legais e principiológicos, o projeto de lei nº 478 carece de aceitação, não garantindo sequer, maioria de opinião acerca do assunto nos setores mais conservadores da sociedade. Como dito acima, vários são os sujeitos políticos e sociais que se colocam junto a luta pela legalização do aborto e a não-criminalização das mulheres, tendo o movimento feminista como grande vanguarda dessa pauta.

A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº54 como também o debate progressista que temos hoje no campo dos direitos humanos marca um avanço no campo dos direitos reprodutivos no Brasil. Ao abordar os movimentos sociais como fonte de produção jurídica, Wolkmer assim coloca:

o ponto de partida para a constituição e o desenvolvimento do Direito vivo comunitário não se prende nem à legislação, nem a ciência do Direito e tampouco à decisão judicial, mas às condições da vida cotidiana, cuja real eficácia apoia-se na ação de grupos associativos e organizações comunitárias. Nesse quadro de referência, as "vontade coletivas" organizadas, utilizando-se de práticas sociais que instrumentalizam suas exigências, interesses e necessidades, possuem a capacidade de instituir "novos" direitos, direitos ainda não contemplados e nem sempre reconhecido pela legislação oficial do Estado. (WOLKMER, 2001, p.153)

Não há duvidas de que a criminalização do aborto acaba levando todo ano milhares de mulheres no Brasil, sobretudo as mais humildes, a se submeterem a procedimentos clandestinos perigosos, realizados sem a mínima condição de segurança e higiene. E as consequências desses procedimentos abortivos representa uma das maiores causas de mortalidade materna no país, tirando a vida de muitas mulheres que poderiam ser poupadas caso houvesse a legalização. E é por violar diretamente o direito a saúde, autonomia e a liberdade da mulher, que os movimentos feministas se articulam e levantam suas bandeiras em favor da legalização. Pois é justamente quando

as regras formais clássicas de legitimidade e os arranjos institucionais liberal-burgueses tornam-se inapropriados para canalizar e processar uma grande diversidade de demandas inerentes às sociedades de massa, que os movimentos sociais inauguram um estilo de política pluralista assentado em práticas não-institucionais e autossustentáveis, e nele avançam, buscando afirmar identidades coletivas e promovendo um lócus democrático, descentralizado e participativo. (WOLKMER, 2001, p.139)

A luta das mulheres atravessou muitas gerações em busca de igualdade e de proteção dos seus direitos fundamentais. O direito de não ser propriedade do marido, de educar-se, de votar e ser votada, de ingressar no mercado de trabalho, da liberdade sexual. E quanto ao aborto, cabe a mulher, e não ao Estado, analisar valores e sentimentos de ordem estritamente privada para deliberar pela interrupção ou não da gravidez. A luta pela não criminalização das mulheres que cometem ato abortivo, faz parte da luta histórica do movimento feminista de garantir o direito da mulher de autodeterminar-se, de escolher e de agir com a sua própria vontade.  Assinala Wolkmer que é a partir desse protagonismo por parte dos movimentos sociais, que representam interesses cotidianos concretos e necessidades históricas, que surge uma nova concepção de juridicidade, não mais identificada somente pela dogmática.


Conclusão

Como dito na primeira parte do artigo, o Direito serve à própria sociedade e deve, portanto, se perfazer num constante evoluir, buscando cotidianamente as soluções para os conflitos sociais, a partir da racionalidade comunicativa proposta por Habermas. Nessa perspectiva é que o Estatuto do Nascituro representa um retrocesso jurídico e social, visto que impõe limites já superados pelo Direito e conquistados pela luta feminina e pela ciência, como o aborto de fetos anencefálicos e o estudo com células-tronco embrionárias. O Brasil ao admiti-lo estará na contra mão de diversos outros países que já regulamentaram o aborto, 56 países tem o aborto liberado sem nenhuma restrição segundo a pesquisa realizada pelo Center for Reproductive Rights (Centro de Direitos Reprodutivos)[9].

Além disso, o Estatuto carrega em si preceitos morais, em geral, de cunho religioso, que não podem ser impostos aos indivíduos, pois representam uma invasão à esfera privada. A um Estado Democrático de Direito nada mais cabe, nesta situação, proteger a liberdade de seus cidadãos, permitindo que realizem suas próprias escolhas, oferecendo a assistência necessária para que essa decisão não se torne impossível ou demasiadamente onerosa, como ocorre atualmente devido a criminalização do aborto, que afeta diretamente as mulheres mais pobres, sinalizando que ainda vivemos numa sociedade de classes segregada, em que a criminalização escolhe uma classe, um gênero e muitas vezes uma cor.

A legalização do aborto se propõe, portanto, a solucionar um problema de saúde pública, que há muito é deixado de lado por questões políticas e religiosas, além de ser um mecanismo que busca superar a cultura patriarcal e moralista enraizada na sociedade, que torna as mulheres submissas ao seu próprio corpo, retirando-lhe o poder de escolha.


Referências

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WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Juridico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3 ed. Revisada e atualizada - São Paulo: Editora Alfa Omega, 2001.


Notas

[1] Projeto de Lei 478/07. Disponível em:< http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrar integra?codteor=443584&filename=PL+478/2007> 

[2] Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

Art. 124- Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: 

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Aborto provocado por terceiro

Art. 125- Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.

(...)Art. 128- Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

[3] Mais informações sobre a pesquisa, disponível em: <http://www.hrw.org/news/2007/10/01/nicar-gua-nova-proibi-o-de-aborto-coloca-vidas-de-mulheres-em-risco>.

[4] Texto completo do Voto do Min. Marco Aurélio na ADPF 54 disponível em: <http://www.stf.jus.br /arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF54.pdf>

[5] Informação retirada do Jornal eletrônico Estadão. Disponível em < http://www.estadao.com.br/notici as/imp resso,onu-recomenda-o-fim-da-criminalizacao-,846505,0.htm>

[6] Ver nota de rodapé anterior.

[7] Informação disponível em:< http://www.portugues.rfi.fr/geral/20130716-entidades-religiosas-exigem-veto-projeto-que-trata-do-atendimento-vitimas-de-violenci>.

[8] Informações sobre a pesquisa, disponível em: < http://www.ccr.org.br/uploads/noticias/Aborto _no_Brasil.ppt>.

[9] Informações sobre a pesquisa disponível em: <http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvi mento/conteudo_283054.shtml?func=2> 


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FILHO, Marcelo Raimundo de Souza; CARVALHO, Keuelanne Alves. Da não representatividade do Estatuto do Nascituro à legalização do aborto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4089, 11 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29568. Acesso em: 5 maio 2024.