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Da não representatividade do Estatuto do Nascituro à legalização do aborto

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O projeto de lei conhecido como Estatuto do Nascituro não irá solucionar os problemas sociais de saúde pública envolvendo o aborto no Brasil.

Entre Direito e Moral

O Estatuto do Nascituro[1] é um projeto de lei criado em 2007, que tem sofrido diversas críticas por grupos da sociedade civil, em especial das pautas feministas, e que, portanto, tem dividido opiniões sobre a proteção dada aos nascituros em contrapartida a autonomia feminina. O Estatuto criminaliza veemente o aborto, já tipificado no código penal[2], no entanto, estende a tipificação criminalizando também a utilização do nascituro seja in vivo ou in vitro como material de experimentação científica.

O Estatuto prevê ainda algumas “garantias” ao nascituro como a assistência e concessão de pensão alimentícia ao filho gerado em decorrência de estupro, esta última garantia quando houver identificação do genitor, o nascituro tem ainda o direito de ser encaminhado à doação.

Pode-se perceber que os direitos assegurados no Estatuto fazem sempre referência ao nascituro, não garantindo à mulher gestante o papel de sujeito de direitos nessa situação. O principal objetivo do projeto é definir o conceito de nascituro assegurando-lhe o papel de sujeito de direitos. O nascituro é assim definido:

Art. 2º Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido.

Parágrafo único. O conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos “in vitro”, mesmo antes da transferência para o útero da mulher.

Art. 3º Reconhecem-se desde a concepção a dignidade e natureza humanas do nascituro conferindo-se ao mesmo plena proteção jurídica (PL 478/07, 2007, p.1)

Tal definição põe fim ao debate sobre o momento inicial da vida, impondo a concepção como ponto de início da vida e da atribuição de direitos. No entanto, determinar o início da vida, tema controverso dentro do próprio campo científico, não é papel do Direito. Não cabe a este suprimir um debate não pertencente a sua esfera, ao Direito cabe antes analisar concretamente a realidade que o forma.

É fato que o Direito surge e evolui de acordo com a própria sociedade e que é diretamente interligado a ela. Habermas na obra “Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade” já afirmava que fato e norma não se dissociam, estão em constante tensão representados pela facticidade e validade das normas. Miguel Reale, jurista brasileiro, também nos serve pra dizer que o Direito se constrói tridimensionalmente, possui um aspecto normativo, um fático e um axiológico, isso implica dizer, que não basta que haja normas se estas não possuem uma correlação com a realidade fática e valorativa vivida socialmente, esses elementos atuam em conjunto como num processo, tornando o Direito uma interação dialética entre eles (REALE, 2011).

Todo o Direito surge com a finalidade de assegurar o bem comum, ele tem a pretensão de solucionar problemas cotidianos, o que por vezes afasta a liberdade de ação individual em relação às questões morais, isso significa que muitas decisões são tomadas, tanto na esfera legislativa como judiciária, mas em pouco se discute a sua eficácia ou se quer se chega ao centro real do problema. Qual é então o problema central encoberto pelo Estatuto do Nascituro? Esse esconde a realidade das mulheres oprimidas da classe popular que sofrem ao realizar um aborto devido à negação do atendimento médico, devido a falta de estrutura e segurança sanitária das clínicas clandestinas as quais se reportam e que ainda sofrem com a criminalização de seus atos. Encobre ainda o sofrimento daquelas mulheres abusadas sexualmente que, apesar de toda violência já sofrida serão ainda obrigadas a carregar em seu ventre algo não desejado. E por fim, encobre toda uma cultura machista e patriarcal que subjuga as mulheres ao longo da história.

O Estatuto do Nascituro aparenta carregar em seu seio aspectos morais de uma parte da sociedade embasada, principalmente, num discurso religioso de sacralização da vida, que perpetua a dinâmica social patriarcal, a pesar das grandes conquistas femininas. No entanto, é importante lembrar, que por mais que o tema possua um conteúdo moral, é preciso afastar discursos morais não-racionais da construção jurídica, pois estes podem distorcer o real papel do Direito dentro de um Estado Democrático, pois não se pode interpretar os direitos fundamentais constitucionalmente positivados como simples cópias de direitos morais (HABERMAS, 2003). Isso não significa dizer que Direito e moral não se relacionam ou não devam se relacionar, pelo contrário, segundo Habermas eles são co-originários, dependem um do outro. O Direito, no entanto, não deve se subordinar a moral, como se esta fosse hierarquicamente superior, o Direito não é mero reflexo da moral.

As decisões do Direito devem ser pautadas, segundo a lógica habermasiana, de acordo com dois princípios: o princípio da moral e o princípio de democracia. O primeiro implica na argumentação racional, ou seja, não é qualquer construção moral que irá direcionar as decisões jurídicas, mas sim aquelas racionalmente justificadas, ou seja, aquelas que são plenamente debatidas e que se sustentam diante dos questionamentos e que não carreguem pré-conceitos arraigados da sociedade, a exemplo dos discursos de ódio. O segundo princípio implica na participação de todos os interessados e atingidos pelas normas, pois é o processo democrático, que possibilita a livre flutuação de temas e de contribuições (HABERMAS, 2003), permitindo que através da ação comunicativa se chegue a uma decisão fundamentada e justificada perante todos.

É nessa perspectiva habermasiana que buscamos discutir o Estatuto do Nascituro não simplesmente na sua repercussão moral, mas também, social, e isso se faz num constante lembrar que esse é um problema de saúde pública e que afeta diretamente a vida de diversas mulheres que sofrem com a criminalização do aborto.


Alcance dos direitos fundamentais, interpretação e ponderação

Iniciar uma discussão sobre Estatuto do Nascituro e a necessidade da legalização do aborto como forma antagônica de discurso e medida mais razoável para a realidade que temos é discutir também a dinâmica dos direitos fundamentais, e como se dá a relação entre estes no ordenamento jurídico brasileiro e mais importante, como eles se reinventam cotidianamente na concretude das nossas vivências como comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais.

Nessa perspectiva é indispensável uma abordagem que trate também dos processos de interpretação e aplicação da constituição, partindo, principalmente, da ideia de que “o papel do conhecimento não é somente a interpretação do mundo, mas também sua transformação” (BARROSO, 2008, p 279). Os direitos fundamentais, que fazem parte desse mesmo plano epistemológico, passam a ser compreendidos nesse mundo de transformações, “como princípios, a um só tempo opostos e complementares entre si” (CARVALHO NETTO, 2011, p.15). Menelick continua a dizer então, que os direitos fundamentais por isso mesmo

estão aptos a gerar tensões produtivas e, assim, instaurar socialmente uma eticidade reflexiva capaz de se voltar criticamente sobre si própria, colocando em xeque tanto preconceitos e tradições naturalizados quanto a própria crença no papel não principiológico e meramente convencional das normas jurídica (CARVALHO NETTO, 2011, p. ).

            Dworkin alinhado a essa mesma perspectiva vai compreender o direito humano fundamental como aqueles que deverão ser tratados pelas instituições detentoras de autoridade com uma certa atitude ou postura, que reflita o igual respeito e consideração pela dignidade de cada um. No campo jurídico, da vida e da autonomia da mulher, cumpre ao legislador e aos governantes a implantação de leis e políticas públicas que garantam amplamente a efetividade desses direitos. Não deve aqui haver uma perspectiva de conflito, à medida que se garante a legalização do aborto e a negação do Estatuto Nascituro, está se protegendo o direito à vida da mulher, isso porque, vida é um conceito bem mais amplo que o simples aspecto biológico.

Como criminalizar uma mulher por um aborto provocado pelo esforço de ter que fazer trabalhos domésticos pesados, carregar crianças no colo ou ter que andar de bicicleta? Não existe respeito à individualidade e a realidade das mulheres que são pobres, mães solteiras ou que não podem deixar de trabalhar quando é estabelecido crime culposo àquelas que, mesmo incidentalmente, provocarem aborto.

Ainda segundo Dworkin, a responsabilidade coletiva nasce do respeito pelo direito de todos os indivíduos e não de uma homogeneização ética:

A integração ética na ação coletiva de uma comunidade a qual alguém de algum modo pertence não é sempre apropriada e às vezes é perversa. Certamente teria sido perverso para as vítimas judias do Holocausto compartilhar uma culpa coletiva pela sua existência. (...) Tampouco é apropriada para aqueles indivíduos que a comunidade não reconhece como membros plenos, mesmo quando esses participam da vida política. (...) A integração ética com os atos coletivos de uma sociedade política se mostra apropriada apenas para os cidadãos tratatados pela sociedade como membros plenos e iguais. (DWORKIN, 1998 apud CARVALHO NETTO, 2011, p. 95)

É justamente essa integração ética que falta na sociedade brasileira hoje, principalmente, em projetos de lei como o Estatuto do Nascituro. As mulheres neste caso, não são reconhecidas como membros plenos, ainda que participem da vida política, a comprovar pelo fato do projeto de lei ser elaborado por um deputado homem, em matéria que, total, diz respeito à autonomia privada das mulheres. Realizar uma integração, a partir da ponderação do direito à vida do nascituro como sendo mais importante, é sacrificar qualquer tentativa de real coletividade.


Análise do Estatuto do Nascituro

O Estatuto do Nascituro ainda é apenas um projeto de lei (PL nº 478 de 2007), mas já provoca grandes polêmicas e muita preocupação por parte dos movimentos feministas, visto ser uma verdadeira tentativa de quebra de braço que os setores conservadores e fundamentalistas querem travar com a luta pelos direitos democráticos das mulheres.

O citado projeto de lei, já aprovado na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados seria de fato interessante para a nossa realidade se caminhasse no sentido de promover a discussão e alteração da Lei de Biossegurança, ou avançasse no debate quanto às pesquisas com células-tronco, fertilizações artificiais e outros temas que afligem e necessitam de verdadeira atenção. Porém, ele se apresenta prolixo à medida que apenas procura repetir garantias que já são dadas pelo ordenamento jurídico ao nascituro, não se tratando de um “projeto inovador, que trata sistematicamente de um assunto nunca tratado em outra lei” como afirma a sua justificativa. Pois então, qual seria a real intenção desse projeto, se já temos dentro da própria legislação ordinária várias garantias dispostas ao nascituro? Seria a de abafar a discussão a cerca da legalização do aborto? Ou ainda, de sacralizar mais o ordenamento jurídico com ataques explícitos aos direitos das mulheres, criminalizando-as e submetendo-as ao que teríamos de mais machista no nosso corpo de leis?

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É certo que o Estatuto do Nascituro invade principalmente o campo dos direitos fundamentais, em especial, aqueles que tratam da autonomia e da liberdade do indivíduo, à medida que a maioria dos seus dispositivos que procuraram garantir direitos ao nascituro já se encontram previstos no Código Civil e Código de Processo Civil. É claro, como será constatada a partir da análise dos artigos desse projeto de lei, que esse Estatuto não nos traz, em primeira mão, extensão de direitos ou garantias ao nascituro, mas sim a extensão dos casos de criminalização do aborto ou da mulher gestante, que tem sua liberdade ameaçada e um futuro mais temoroso.

Observando os dispositivos do referido projeto, observa-se que há apenas uma reafirmação dos direitos do nascituro quanto: a sua personalidade (que já é assegurado pelo Código Civil no seu art. 2º, “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”); a legitimidade do nascituro para receber doação (já previsto no art. 542 do Código Civil, “A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal”); o direito de receber um curador especial (art. 1.179 do CC/02, “Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar”); ao direito de adquirir herança (já garantido pelos arts. 1.798 e 1.799 do CC/02); ao direito de ser beneficiário de sentença declaratória de direitos (assegurados pelo Código de Processo Civil, arts 877 e 878). Ou seja, de fato não percebemos aqui uma clara pretensão de extensão de direitos ao nascituro.

O projeto de lei inicia logo trazendo o conceito do que seria o nascituro, -“Art.2º. Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido” – e da sua proteção integral desde a concepção – “Parágrafo único. O conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos “in vitro”, os produzidos através de clonagem ou por outro meio cientificamente e eticamente aceito”. Esse entendimento reforçado pela teoria concepcionista apenas causa mais insegurança dentro do ordenamento jurídico, pois ainda é bastante complicado se afirmar, com precisão, quando se daria o início da vida humana, como diria Humberto Eco,

não me sinto em condições de fazer qualquer afirmação sensata sobre este limiar, se é que de fato, existe um. Não há uma teoria matemática das catástrofes capaz de nos dizes se existe um ponto de guinada, de explosão súbita: talvez estejamos condenados a saber apenas que existe um processo, que seu resultado final é o milagre do recém-nascido. (ECO, 2001, p. 33)

De efeito, a incerteza encontrada no direito comparado evidencia a divergência no tratamento de tão delicado tema. A leitura desses artigos legitima o entendimento de que a partir da concepção, chegada do espermatozoide até o óvulo, já existe vida humana, neste caso, o nascituro já seria sujeito de direito e qualquer tipo de aborto seria um atentado a sua vida. Estranho, pois ainda que muitos tribunais acompanhe essa teoria concepcionista nas suas decisões, parece que a posição majoritária em nosso ordenamento ainda é a de que “ antes do nascimento a posição do nascituro não é, de modo algum, a de um titular de direitos subjetivos; é uma situação de mera proteção jurídica” (DANTAS, 2001, p.  134).

Nesse desenrolar, o art.4º do Estatuto diz que ao nascituro deve estar assegurada “com absoluta prioridade” a expectativa de direito à vida, à saúde entre outras coisas. Nota-se aqui o que o legislador procura estabelecer como prioridade, colocando os direitos do nascituro sobre o direito de qualquer pessoa, inclusive sobre os da mulher que o carrega. Significa, portanto, que ainda que a gravidez seja uma ameaça à saúde da gestante, a “vida” do feto terá prioridade sobre a vida da mulher.

O artigo 5º do Projeto de Lei determina que qualquer forma de “negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” contra o nascituro será punida na forma da lei, inclusive os profissionais de saúde responsáveis pela paciente grávida. Caso isso seja aprovado, poderíamos ter aqui no Brasil grandes problemas como ocorreram na Nicarágua a partir de 2006, quando foram proibidos os abortos terapêuticos. Segundo a organização internacional Human Rights Wach, no seu relatório intitulado “Over Their Dead Bodies”[3] (Por Cima de Seus Cadáveres), as gestantes na Nicarágua evitam procurar os serviços de saúde quando apresentam algum problema relacionado à gravidez, com medo de serem acusadas por ter provocado tal enfermidade ou por estarem realizando uma tentativa de aborto. E se não bastasse o temor das próprias gestantes, muitos profissionais da saúde passaram a trabalhar com bastante medo de sanções penais e perda de licenças profissionais, tendo como consequência a inacessibilidade por parte das gestantes a tratamentos como quimioterapia, radioterapia, cirurgia cardíaca e até mesmo a analgésicos, pois tudo isso poderia afetar o nascituro. 

Ainda que se trate de um ato político, muito preocupa os efeitos que os art. 9º, 10º e 11º do referido projeto iriam acarretar para a integridade do direito, sem se ater, portanto, as construções já realizadas anteriormente. Os artigos citados trazem expressamente nos seus textos a proteção incondicional ao nascituro portador de qualquer tipo de deficiência ou com probabilidade de sobrevida, incluindo, portanto, àqueles com anencefalia. Acontece, que esta matéria, ainda que tenha sido alvo de discussões primordialmente no judiciário, já nos conduz a um entendimento constitucional bem conciso em face do que foi discutido e decidido no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 pelo Supremo Tribunal Federal, como confirma o ministro relator do caso Marco Aurélio:

Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. (...) o feto anencéfalo, mesmo biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, acrescento, principalmente proteção jurídico-penal. Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica. (Voto min. Marco Aurelio, p.30)[4]

O entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal não impede que o legislativo também se pronuncie sobre o tema, mas é importante que se possa garantir que o “romance” não seja quebrado mais uma vez e que as mulheres gestantes de fetos anencéfalos não sofram ainda mais com a onda de insegurança jurídica.

O que é necessário para essa conjuntura de avanço político é que o legislativo garanta essa grande conquista evolutiva do direito, demonstrando sensibilidade para com as mulheres, seus companheiros e suas famílias, resguardando o direito à vida e à saúde total da gestante, de forma a aliviá-la de sofrimento maior, livrando-a do sentimento de meros “caixões ambulantes”, como assinala Débora Diniz (2012).                                

Conforme o art. 12 do PL 478/07 (Estatuto do Nascituro), que veda “ao Estado e aos particulares causar qualquer dano ao nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores”, a gestante que sofrer violência sexual não poderá interromper a gravidez, pois o nascituro não poderia ter qualquer tipo de dano, e sendo o estuprador o próprio genitor do nascituro, ficaria aqui resguardado o direito do nascituro em face do direito do aborto sentimental.

Casando com os demais dispositivos do projeto de lei, o art. 13 só confirma o total descompromisso com as mulheres, principalmente com aquelas vítimas de violência sexual. Praticamente, tira a responsabilidade criminal do estuprador e transfere para a mulher, que não pode mais optar se quer ou não carregar o fruto da violência, sendo obrigada, inclusive, a manter vínculos com o agressor. Percebe-se, então, que a real preocupação do projeto é retirar, a todo custo, do Código Penal qualquer possibilidade de se realizar aborto no Brasil. É bem claro que o art.13 do Estatuto do Nascituro acaba por revogar tacitamente o art.128 do Código Penal, retirando e invalidando a existência e eficácia do dispositivo penal que permite o aborto terapêutico e o aborto sentimental.

Para completar, o art. 13 ainda diz que o agressor é responsável por pagar pensão alimentícia até que a criança complete 18 anos, e caso não seja identificado, a obrigação recai sobre o Estado. Teríamos aqui um caso de completo absurdo, onde o criminoso teria o livre direito de conviver com a criança e com a vítima. Fica aqui exposta a tamanha insensibilidade para com as mulheres vítimas de violência sexual. Isso nos faz lembrar a antiga legislação criminal, onde se previa a extinção da punição do infrator de tal violência, caso a vítima se casasse com ele (redação anterior do inciso VII do art. 107 do Código Penal, revogado pela Lei n. 11.106 de 2005).

Sob a desculpa de proteger a mulher vítima de violência sexual, o art. 13 do projeto de lei institui o que os movimentos sociais feministas e a mídia em geral têm chamado de "Bolsa Estupro", que além de reduzir o valor de pensão que eventualmente poderia ser maior, caso o criminoso possua posses, retrocede na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, com o objetivo claro e conservador de controle do corpo feminino.

Quanto à criminalização de qualquer tipo de aborto, é importante que se faça uma leitura do que os sistemas internacionais de proteção aos Direitos Humanos têm dito a cerca do tema. A criminalização do aborto já foi condenada pelo Sistema Internacional de Direitos Humanos em inúmeras oportunidades. A própria Organização das Nações Unidas enviou uma recomendação explícita pela revogação imediata dos dispositivos criminalizadores do aborto, bem como pela retirada da tutela penal sobre assuntos que recorrem a questões de saúde pública coletiva[5].

O discurso protagonizado aqui não é de ser contra a vida, até porque é sabido da dor e da punição que é o aborto até mesmo para aquelas mulheres que optam por esta via. Porém, é provado que a criminalização é ineficaz e causa terríveis danos e riscos para a mulher, para a sociedade e para as instituições do próprio Estado. A descriminalização do aborto não alterará e nem irá interferir nas influências que as religiões operam na vida de quem as segue. A contemporaneidade não suplica por submeter a júri popular pessoa que praticou aborto, nem que o aborto se torne crime hediondo, mas sim busca prestar assistência à saúde dessas mulheres para que tenham vida em abundância. Não se pode equiparar o fato típico da mulher cometer aborto por ter sofrido violência sexual ao próprio crime em que ela foi vítima (estupro), equiparando o aborto a crime hediondo. O que está contraposto aqui é o direito à saúde ao poder punitivo do Estado. 

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Sobre os autores
Keuelanne Alves Carvalho

Graduanda em Bacharelado em Direito UFPI.<br>Integrante do Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil – CORAJE.<br>Voluntária do Programa de Ensino Tutorial - Integração.<br>Estagiária do Ministério Público do Piauí.

Marcelo Raimundo de Souza Filho

Acadêmico de Direito da UFPI Integrante do Projeto Cajuína - Centro de Assessoria Jurídica Popular de Teresina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Keuelanne Alves ; FILHO, Marcelo Raimundo Souza. Da não representatividade do Estatuto do Nascituro à legalização do aborto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4089, 11 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29568. Acesso em: 5 nov. 2024.

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