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As Influências de Hobbes, Locke, Rousseau e Montesquieu no desenho institucional Madisoniano

As Influências de Hobbes, Locke, Rousseau e Montesquieu no desenho institucional Madisoniano

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Madison se baseia nas obras clássicas de Hobbes, Locke, Rousseau e Montesquieu para montar uma forma de governo inovadora, o Federalismo, que procura remediar os males decorrentes da combinação de um governo popular republicano e da união de Estados soberanos sob a gerência de um governo central.

Introdução

Este artigo não tem por objetivo exaurir o debate, mas o de mapear as influências das obras clássicas como O Leviatã, Do Contrato Social, o Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, o Segundo Tratado sobre o Governo Civil e o Espírito das Leis sobre o desenho institucional traçado por James Madison em seus artigos federalistas. Madison cita Montesquieu no artigo federalista de nº 47 e, embora não cite outros autores, há evidências de que outros pensadores o influenciaram. Esse trabalho se propõe a verificar em termos comparados, similitudes, antagonismos e aperfeiçoamentos baseados nos escritos clássicos acima indicados. Aqui é feita uma abordagem dos principais pontos tratados por Madison juntamente com as reflexões dos autores europeus sobre a mesma temática e adicionando as contribuições de Dahl (1966), Chevallier (1983), Held (1987), Albuquerque (2003) e Mello (2003).

A ideia não é a de esgotar todas as influências de Madison, mesmo porque ele, juntamente com Alexander Hamilton e Jon Jay, aperfeiçoaram ideias do pensamento político e filosófico europeu, mas demonstrar a presença dos autores aqui elencados sobre os pontos mais importantes do desenho institucional proposto por  Madison. Pode-se dizer que ele se baseia nas obras clássicas de Hobbes, Locke, Rousseau e Montesquieu para montar uma forma de governo inovadora. É importante salientar que Madison, Hamilton e Jay foram os pioneiros ao criar o Federalismo como forma de governo, procurando remediar os males que derivam da combinação de um governo popular republicano e da união de estados soberanos sob a gerência de um Governo Central (União).

É interessante apontar para o fato de que, muitos dos filósofos dos quais Madison teve acesso à obra, refletiram e discutiram muito a questão da criação do Estado Civil e a criação e separação dos poderes. A partir disso, Madison já tinha experiência nas falhas e virtudes do modelo de Westminster, passando então a pensar sob que instituições seria erigido o novo governo, como otimizar sua eficácia e como evitar a tirania e o desrespeito aos direitos individuais. Em vários momentos Madison pontua os mecanismos (checks and balances ou freios e contra-pesos) que permitem o bom funcionamento do governo.

 O artigo está montado em quatro pontos principais. No primeiro se discute a natureza do homem e a violência das facções, onde se percebe uma forte influência de Hobbes, Rousseau e Lock, inclusive sobre a tendência tirânica dos que chegam ao poder. No segundo há o debate da república e da democracia clássicas onde se destacam as distinções de Chevallier (1983) e Held (1987) sobre ambas, os argumentos de Montesquieu sobre a república e as observações de Dahl (1966) sobre a democracia madisoniana. Já no terceiro ponto, o grande embate se dá entre Madison e Montesquieu na questão da divisão dos poderes e o poder federativo. No quarto e último ponto é analisada  a formação do governo e a questão da representatividade, onde o debate gravita em torno de Madison e Rousseau.


1. A Natureza do Homem e a Violência das Facções

No artigo federalista nº 10, a maior das preocupações de Madison é a de criar mecanismos que amortizem a violência entre as facções (grupos formados por maiorias e por minorias de cidadãos, unidos por interesses corporativos e antagônicos entre si). Essa preocupação parte de uma premissa por ele levantada de que o homem é mau e ambicioso. Tal observação realista-pessimista sobre o comportamento do homem ao dizer que o governo é o maior de todos os reflexos da natureza humana, onde se humanos fossem anjos, não seria necessário haver governo (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 77), reflete a concepção de Hobbes onde afirmou que se  

[...] se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. [...] é provavelmente de se esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade. (Leviatã, cap. XIII, p. 74-76)

Hobbes, um contratualista[1], mostra que no Estado de Natureza, onde há ausência do Estado (contrato), haverá guerra entre homens. Logo, a existência do Estado através do contrato tem o objetivo de evitar a violência. Hobbes argumenta haver a necessidade de um Estado-contrato para amortizar a luta entre as facções. Madison aperfeiçoa essa ideia chamando à atenção para mecanismos de freios e contra-pesos capazes de atenuar a luta entre essas facções quando uma delas chegar ao poder e passar a dirigir o Estado. Essa preocupação reside na questão da prevalência dos interesses particulares dessa facção em relação à supressão dos direitos e liberdades daquelas que estão fora do poder.

É importante frisar que essa questão das facções reside no seio do governo representativo onde a vontade geral deve prevalecer. Nesse aspecto, Rousseau faz uma breve distinção entre a vontade de todos e a vontade geral:

Há comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e não passa de uma soma de vontades particulares. Quando se retiram, porém, dessas mesmas vontades, os excessos e as faltas que nela se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral. (Do Contrato Social, Livro II, capítulo III)

No artigo federalista de nº 10 Madison defende que “entre as vantagens prometidas por uma União[2] bem constituída, nenhuma merece ser mais detalhadamente acentuada do que sua tendência para conter e controlar a violência das facções” (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 77). Segundo Madison, os cidadãos se queixavam da pouca estabilidade dos governos e do esquecimento do bem público nos conflitos entre partidos (facções) rivais. Todo esse debate sobre a disputa entre facções rivais tem como pressuposto a existência de um governo democrático-republicano, que será abordado no ponto 3, cujo domínio por uma facção majoritária pode degenerar em tirania da maioria.

Então, como Madison trataria a questão da tendência tirânica daqueles grupos ao chegarem ao poder? Ainda no artigo 10 Madison alega que há dois mecanismos para se evitar a tirania das facções: primeiro – pela remoção de suas causas ou pelo controle de seus efeitos. Segundo – pela destruição da liberdade, essencial à sua existência ou fazer com que “todos os cidadãos tenham as mesmas opiniões, os mesmos sentimentos e os mesmos interesses” (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 87). Simplificando: corrigir os efeitos da litigância entre os partidos rivais. Nesse ponto inicia-se um debate acerca das liberdades individuais de associação.

Segundo Mello (2003: p. 86), o contrato social em Locke é uma antítese à visão de Hobbes para quem o contrato social é um pacto de submissão onde o homem abdica de sua liberdade natural em um ambiente inseguro e caótico para fazer parte de um corpo político único, capaz de garantir a propriedade e a liberdade individual através da segurança do Estado. Segundo a interpretação de Mello, a liberdade “lockeana” seria aquela descrita e acertada no Contrato Social como um “pacto de consentimento”, no qual os homens “concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam” (Mello, 2003, p. 86). As garantias dessa liberdade era ponto fundamental da sustentação do Estado Civil, pois de que adiantaria sair de um cenário de liberdade total, embora precária, para um cenário de segurança sem liberdade? “A liberdade do homem, em sociedade, tem de estar sob o poder Legislativo estabelecido pelo consenso, não sob o domínio de qualquer vontade ou restrita por qualquer lei, mas pela norma que o corpo legislativo criar de acordo com a confiança nele depositada” (tradução do autor)[3] (Segundo Tratado sobre o Governo Civil, cap. IV, sessão 22). Segundo Jean-Jacques Chevallier

[...] o ponto de partida de toda sociedade civil é o consentimento dado por um certo número de homens para a formação de um único corpo político. Será preciso ainda que esse corpo possa agir como tal, ou seja, numa única direção. Nesse ponto, intervém o princípio majoritário. Que a maioria do corpo possa decidir pelo resto é uma condição inelutável de sua própria existência. A direção mais considerável, a qual consiste na vontade de maioria. É preciso, pois, que cada indivíduo aceite ver no consentimento daquela o equivalente em “razão” da decisão de todos. Caso contrário, o pacto inicial, original compact, o contrato social, não teria qualquer sentido. (Chevallier, 1983: 44)

Cabe aos homens estabelecer a forma de governo. E ela deverá ser baseada na confiança entre governantes e governados. Neste sentido, Madison vê a quebra de confiança quando um partido chega ao poder e tenta utilizar o Estado em benefício próprio, impondo aos demais a supressão de seus direitos, configurando-se a tirania da maioria. Também alerta que a tirania da minoria é tão perversa quanto a tirania da maioria.

 Madison alertou para o fato de que a repressão à liberdade era um mal maior que a própria tendência à tirania, e que o homem é dotado de uma razão falível, gerando divergência de opinião ao exercitar a razão. Logo, ele chega à conclusão de que a diversidade de faculdades nos homens, que é a origem dos direitos de propriedade, é um obstáculo igualmente invencível à uniformidade dos interesses. A proteção dessas faculdades é o primeiro fim do governo.

Essa proteção das faculdades desiguais resultará na desigualdade da extensão e natureza da propriedade, nos diferentes sentimentos e opiniões dos proprietários e culminará na divisão da sociedade em diferentes interesses e em diferentes partidos. Nesse ponto Madison começa a entrar na questão da propriedade privada como base da sociedade. Essa abordagem também remete a Locke que afirma ser a propriedade privada o ponto principal do Contrato Original. Na abordagem da desigualdade Rousseau entende que há

“[...] duas espécies de desigualdade entre os homens: a natural ou física que deriva da natureza e consiste nas diferenças de idade, saúde, força, inteligência e alma e a que pode ser chamada de moral ou desigualdade política, porque depende do tipo de convenção e é estabelecida, ou ao menos autorizada, pelo consentimento comum da humanidade”. (A Discourse Upon The Origin and the Foundation of the Inequality Among Mankind, p. 3) (tradução do autor)[4]

Madison afirma que para resolver o problema da disputa das facções é necessário estimular os cidadãos a organizarem-se, dando aos pares os mesmos interesses, para que não haja conflito. Para ele o Estado deve proteger a diversidade das faculdades dos homens, onde reside a origem da propriedade, pois é ela que diferencia os diferencia. O Estado deve proteger a liberdade e a autodeterminação dos homens. Ele também alerta para a neutralização dos efeitos das facções para o fortalecimento da democracia[5], pois as facções são inevitáveis, por isso a necessidade de se evitar que interesses de grupos majoritários ameacem os direitos das facções minoritárias (tirania da maioria), já que num governo popular as decisões são regidas pelo Princípio da Decisão da Maioria.

Para Madison, a neutralização dos efeitos das facções seria a pulverização dos seus interesses dentro de um território extenso, pois para ele a diferença das propriedades bem como as diferenças entre os proprietários e os não-proprietários gerariam interesses diferentes e conflitantes. Sobre as facções e a vontade da maioria Rousseau comenta no Livro II, capítulo III de O Contrato Social, refletindo sobre os efeitos das facções e associações:

Se, quando o povo suficientemente informado, deliberava, e os cidadãos não tinham nenhuma comunicação entre si, de grande número de pequenas diferenças resultaria a vontade geral, e a deliberação seria sempre boa. Mas quando se fazem tramas, associações parciais com grandes despesas, a vontade de cada uma dessas associações se torna geral em relação a seus membros, e, particularmente, em relação ao Estado; pode-se dizer então que não há mais tantos votantes quantos homens, mas apenas tantas associações. As diferenças tornam-se menos numerosas e fornecem um resultado menos geral. Enfim, quando uma dessas associações é tão grande que se torna maior que todas as outras, não se tem mais como resultado uma soma de pequenas diferenças, mas uma diferença única; e não há mais vontade geral e a opinião que vale não é mais que uma opinião particular.

Importa, pois, para ter bem enunciada a vontade geral, que não exista sociedade parcial no estado e que cada cidadão não opine senão depois dele. [...] Pois se há sociedades parciais, é preciso multiplicar-lhes o número e prevenir-lhes a desigualdade, como fizeram Sólon, Numa, Servius. Estas precauções são as únicas boas para que a vontade geral seja sempre esclarecida e que o povo não se engane mais. (Rousseau, 2002, p. 49-50)

Do texto podemos estabelecer uma relação com o discurso de Madison de pulverizar o número de facções e de se criar ao máximo o número de classes entre os homens para que seus interesses particulares ao serem somados, seja a vontade geral.

As facções nada mais representam que os interesses dos seus próprios integrantes sejam eles agricultores, comerciantes, pecuaristas etc. A tônica do discurso de Madison para a questão de se evitar a tirania da maioria era o de justamente criar inúmeras facções com diversos interesses, pois para formarem um corpo majoritário teriam de chegar a um consenso, e um consenso dentre de um grande grupo com inúmeros interesses se aproximaria, segundo Madison, do que ele entendia por bem público e interesse coletivo. Nesse sentido vê-se uma forte influência de Locke no discurso de Madison, pois à medida em que ele enxerga o homem como um ser mal, ele também admite que o poder usurpa sua virtude, e é essa virtude o princípio pelo qual se baseia o governo popular de acordo com Montesquieu, pois “os políticos gregos, que viveram sob um governo popular, não conheciam outro pilar senão a virtude[6]” (tradução do autor) (The Spirit of Laws, Book 3).

Essa característica do poder de usurpar e de degenerar para a tirania está também presente em Lo>Do mesmo modo que a usurpação consiste no exercício do poder a que outrem tem direito, a tirania é o exercício do poder além do direito, o que não pode caber a pessoa alguma. E esta consiste em fazer uso do poder que alguém tem nas mãos, não para o bem daqueles que lhes estão sujeitos, mas a favor da vantagem própria, privada e separada – quando o governante, embora autorizado, toma como regra não a lei mas a própria vontade, não se orientando as suas ordens e ações para a preservação das propriedades do povo, mas para a satisfação da ambição, vingança, cobiça ou qualquer outra paixão irregular que o domine. [...]

É um engano supor que esta imperfeição é própria somente das monarquias; outras formas de governo estão a ela igualmente sujeitas. Pois onde quer que o poder, que é depositado em quaisquer mãos para o governo do povo e a preservação da propriedade, for aplicado para outros fins, e dele se fizer uso para empobrecer, perseguir ou subjugar o povo às ordens arbitrárias e irregulares dos que o possuem, torna-se realmente tirania, sejam um ou muitos os que assim o utilizem. [...]

[...] se a parte prejudicada puder encontrar remédio e os seus danos reparados mediante apelação à lei, não haverá qualquer necessidade de recorrer à força, que somente se deverá usar quando alguém se vir impedido de recorrer à lei; porque só se deve considerar força hostil a que não possibilita o recurso a semelhante apelação, e é tão-só essa força que põe em estado de guerra aquele que faz dela uso, e torna legítimo resistir-lhe. [...] (Locke adpud Mello, 2003: 107-108)

Mas, é importante observar que, as preocupações de Madison acerca da tirania eram diferentes das de Locke. O receio do pensador americano era o de que um grupo controlasse os três poderes, senão todos, pelo menos o Poder Legislativo que na República torna-se o mais forte, já que deriva do povo e é composto por seus representantes. O receio não era apenas o de haver um grupo tirânico que agisse contrariamente às leis, mas sim de um grupo que as manipulasse de forma a inibir e desrespeitar direitos individuais (impensável sob a égide do Estado Natural), mesmo que de forma não tão eficaz quando na perspectiva do Estado Civil. Madison trata do comportamento dos eleitos ao dizer que “homens de caráter faccioso, cheios de prejuízos, filhos de circunstâncias locais ou de projetos sinistros, podem, por intriga, por corrupção e por outros meios ainda, obter os votos do povo e lhes atraiçoar depois, os interesses” (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 83.)

Daí a preocupação de Madison em criar mecanismos que pudessem limitar a força da Casa dos Representantes, fazendo com que estes respeitassem a Constituição não degenerando na supremacia e imposição da maioria.

Vê-se aí que até então que tanto Hobbes quanto Rousseau e Locke estão presentes nas entrelinhas da retórica madisoniana, precisamente quando Madison trata da questão da formação de um governo, de um contrato social que contemple não só a União (Federação), mas também a Nação (população) onde o consentimento deveria prevalecer para que o princípio da decisão da maioria não degenerasse e se transformasse em tirania da maioria.


2. República e Democracia

Durante a propagação do pensamento federalista (em choque com o movimento confederativo), Madison destoava de Hamilton quanto à forma de governo a ser adotada nos Estados Unidos. Hamilton era defensor da monarquia e Madison defendia um governo republicano com base popular. Madison havia estudado o modelo de Westminster e via ali uma miscelânea de república (eleições populares) com Monarquia, Aristocracia (Câmera dos Lordes) e Democracia (Câmara dos Representantes). Entretanto, a idéia de Madison não era a de apenas haver eleições livres e sim um modelo onde a população pudesse votar e ser votada. Para Madison, o Chefe de Estado tinha de ser eleito pelo povo direta ou indiretamente, ocupando não apenas a direção da nação, mas também a chefia da administração da União.

Madison faz duras críticas ao sistema de democracia clássica alegando que para que um governo seja democrático não é necessária a participação de todos no governo, mas a participação de todos no processo de formação do governo, ou seja, todos participam do processo eleitoral onde um pequeno grupo assumirá as funções públicas. Em parte a boulé grega, que dirigia a ekklesia já fazia esse papel de gerir a Assembleia, como também desempenhavam o papel de nomear as magistraturas. É nesse sentido que Madison não usa o termo democracia e sim governo popular, onde os representantes deliberam pelo povo.

Saindo do Estado de Natureza onde a ausência do Estado propicia um cenário de guerra (perspectiva hobbesiana), passando pela ótica lockeana onde o Estado não é um Leviatã, necessário para resolver conflitos beligerantes, e sim um aperfeiçoador das relações naturais de propriedade, Madison trabalha o Estado Civil dentro da perspectiva de um governo formado por homens, e que estes tendem a degenerar em tirania. Madison afirma que o poder é usurpador por natureza, e precisa ser eficazmente contido para que não ultrapasse os limites que lhes foram fixados. O grande problema está em estabelecer as bases de um governo popular, onde o poder possa ser contido sem ferir a liberdade. Afinal, há diferença entre república e democracia? Apesar de David Held (1987) mostrar que a res publicae romana é outra denominação para a demo kratia grega, Chevallier distingue ambos:

O governo republicano é aquele em que o povo, “como um todo”, ou somente uma parcela do povo (“certas famílias”) possuem o poder soberano. No primeiro caso, trata-se de uma democracia: o povo é, sob alguns aspectos, o monarca; sob outros, o súdito (ele só pode ser o monarca “pelos sufrágios que constituem suas vontades; a vontade do soberano é o próprio soberano”); no segundo caso, é uma aristocracia.

O princípio da democracia ou Estado popular é a virtude:”Os políticos gregos, que viviam no governo popular, só reconheciam uma força capaz de mantê-los: a força da virtude”, entendendo-se por virtude, no íntimo de cada cidadão, um espírito de constante renúncia pessoal em favor do bem comum, amor à pátria e às suas leis; um espírito de igualdade que exclua todo o privilégio: um espírito de frugalidade hostil ao luxo, ao excesso de gozos privados. (Chevallier, 1983: 73)

Certas famílias é um termo que no discurso de Madison, pode-se dizer que significa facções. No Livro Segundo, capítulo I de O Espírito das Leis, Montesquieu afirma que ”[...] o governo republicano é aquele em que todo o povo, ou apenas uma parte do povo, tem o poder soberano[...]”. Ainda no mesmo capítulo Montesquieu afirma que “O povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua autoridade”. Nesse ponto Madison destoa da visão de Montesquieu, pois parte do pressuposto que o homem é mal e tende a tiranizar caso não haja controles externos.

Convém frisar que as colônias britânicas (hoje Estados Unidos) tinham acabado de se tornarem independentes do jugo da capital e apesar de Hamilton ser monarquista, Madison aprofundou suas argumentações em cima do estabelecimento de um governo popular e republicano. Após a independência as colônias tornaram-se estados soberanos, vinculados por tratados internacionais onde estabeleciam um sistema confederado. O intuito dos federalistas era justamente o que criar uma Federação, na qual cada Estado teria de abrir mão de sua soberania em prol da União. Madison não poderia enxergar outra forma de governo senão a de uma república com a participação do povo e dos Estados-membros. Ele relutava em falar de democracia, pois para ele esta é a forma de governo onde todos participam do governo de forma direta, e devido à extensão territorial dos Estados Unidos e ao seu contingente populacional, isso seria impossível. Também argumentava que no modelo grego de democracia havia a polarização de interesses, e essa polarização seria prejudicial, pois uma das formas de se neutralizar os efeitos nocivos das facções era justamente a da pulverização ou da pluralidade de interesses, hipoteticamente possíveis apenas na república. Para ele quanto mais facções existissem melhor seria para se evitar o agrupamento em torno de uma maioria, argumentando que havendo a multiplicação de facções ocorreria a neutralização recíproca. Para o pensador americano é interessante a coordenação dos interesses, não o conflito.

Madison afirma que a república ou governo representativo, como ele prefere chamar, possui remédios contra a tirania, que numa democracia pura, seria impossível. Segundo ele

A república aparta-se da democracia em dois pontos essenciais: não só a primeira é mais vasta e muito maior o número de cidadãos, mas os poderes são nela delegados a um pequeno número de indivíduos que o povo escolhe. O efeito dessa segunda diferença é de depurar e argumentar o espírito público, fazendo-o passar para um corpo escolhido de cidadãos, cuja prudência saberá distinguir o verdadeiro interesse da sua pátria, e que, pelo seu patriotismo e amor da justiça, estarão mais longe de o de sacrificar as considerações momentâneas ou parciais.

Num tal governo é mais provável que a vontade pública, expressa pelos representantes do povo, esteja em harmonia com o interesse público do que no caso de ser ela expressa pelo povo mesmo, reunido para esse fim. (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 82-83).

Robert Dahl (1996, p. 37-38), ao analisar a democracia madisoniana, argumenta que Madison tinha a preocupação de “criar mecanismos de ‘controle externo’ capazes de aplicar recompensas ou penalidades de alguma fonte que não fosse o próprio indivíduo”. A democracia para Madison seria uma república não-tirânica, onde o governo deriva todos os seus poderes direta ou indiretamente do grande corpo do povo e é administrado por pessoas que exercem seus cargos enquanto assim agradar ao povo, por um período limitado e enquanto tiverem bom comportamento. Segundo ele, na ausência de controles externos quaisquer, determinado indivíduo ou grupo de indivíduos tiranizará os demais. Ele também alerta que a acumulação de todos os poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário nas mesmas mãos implica na eliminação dos controles externos, e nessa ausência uma minoria de indivíduos tiranizará uma maioria, sendo necessário pelo menos duas condições para a existência de uma república não-tirânica: 1) evitar a acumulação dos três poderes nas mesmas mãos e 2) as facções devem ser controladas de forma a não agir de forma contrária aos direitos dos demais cidadãos ou aos interesses permanentes e comuns da comunidade. Segue alegando eleições populares freqüentes não criam controles externos suficientes para impedir a tirania. As facções da minoria podem ser controladas pelo princípio republicano de votação de um corpo legislativo, onde a maioria venceria a minoria e na hipótese de uma tirania da maioria o remédio seria um eleitorado numeroso, onde os mais diversos interesses e segmentos sociais estariam representados, havendo portanto uma pulverização de interesses, sendo menos provável um cenário onde haja uma facção da maioria.

Nota-se que Madison tanto conhecia os males de uma república como também os males de uma democracia e ao construir o Federalismo americano, procurou estabelecer mecanismos que os remediassem. A formação de uma república federativa partiu de reflexões que Madison fez acerca de repúblicas maiores e de repúblicas menores. Ele alega que em repúblicas maiores os interesses locais não serão tratados e que nas repúblicas menores os representantes estarão fortemente ligados aos que elegeram. Segundo Madison em seu artigo 10

[...] Aumentando-se demasiadamente o número dos eleitores, os representantes que eles nomearam serão poucos instruídos de suas circunstâncias locais e dos seus interesses particulares; diminuindo-se demais, ficarão os representantes em dependência muito imediata de quem os elege e não poderão os eleitores, muito ocupados, reconhecer o interesse geral da nação e conformar-se com ele na eleição que fizeram.

A combinação que oferece a esse respeito o governo federativo é amais feliz de todas as que podem imaginar: os interesses gerais são confiados à legislatura nacional; os particulares e locais aos legisladores dos Estados.

Outra circunstância que favorece mais as repúblicas federativas que as democracias é que as primeiras podem compreender maior número de cidadãos em um território mais vasto que as últimas; e é precisamente esta circunstância que torna os planos dos facciosos menos temíveis naquelas.

Quanto menos extensa é uma sociedade, tanto menor é o número dos partidos e tanto menos diferentes são os interesses; e quanto menor é o número dos interesses e dos partidos, tanto mais facilmente o mesmo partido pode reunir maioria: ora, quanto menor é o número de indivíduos de que se compõe a maioria, tanto menor é o círculo que a encerra e tanto mais facilmente ela pode concentrar e executar planos de opressão (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 77-83).

Entretanto, apesar de Madison tratar a questão da mensuração da República em relação aos seus efeitos neutralizadores em relação à tirania das facções, ele afirma que o conceito de República é inexato. Argumenta que a Holanda não tem no poder supremo as derivações do povo, que em Veneza o poder é exercido por nobres hereditários, na Polônia há mistura de aristocracia e monarquia, e critica o modelo de Westminster como já afirmamos anteriormente: miscelânea de monarquia, aristocracia e democracia. Todos esses exemplos, afirma Madison, “mostram a extrema inexatidão com que a palavra república tem sido empregada em discussões políticas” (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 243-248). Segundo ele

[...] diremos que o governo republicano é aquele em que todos os poderes procedem direta ou indiretamente do povo e cujos administradores não gozam senão de poder temporário cada, a arbítrio do povo ou enquanto bem se portarem.

E é da essência que não uma só classe favorecida, mas que a maioria da sociedade tenha parte em tal governo; porque de outro modo um corpo poderoso de nobres, que exercitasse sobre o povo uma autoridade opressiva, ainda que delegada, poderia reclamar para si a honrosa denominação de república.

É bastante, para que tal governo exista, que os administradores do poder sejam designados direta ou indiretamente pelo povo [...] (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 243-248)

Nesse trecho acima, extraído do artigo federalista 39, Madison demonstra com precisão como procura definir a república dos Estados Unidos, criticando outros sistemas que se autodenominam repúblicas mas na verdades são monarquias. Para ele a conditio sine qua non de um sistema republicano (pelo menos para os Estados Unidos) é a eleição direta ou indireta dos administradores da nação por parte da população. Entretanto, para haver uma boa fruição dos atos desses administradores é preciso haver mecanismos de controle externo (checks and balances).


3. A Separação dos Poderes e o Poder Federativo

É inquestionável que Madison se baseou na teoria tripartite da divisão dos poderes de Montesquieu. Ele afirma isso textualmente no artigo 47

O oráculo sempre consultado e citado a respeito é o famoso Montesquieu. Se não foi o autor deste inestimável preceito da ciência política, pelo menos tem o mérito de tê-lo divulgado e recomendado, fazendo com que fosse objeto da universal atenção. (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 301-302).

Segundo Montesquieu, os três poderes não estavam distintos e separados na Inglaterra, onde havia uma mistura de atribuições entre eles. Madison cita textualmente as palavras de Montesquieu afirmando

Portanto, visto que estes fatos foram o norte de Montesquieu para estabelecer o princípio de que se trata, podemos concluir que, quando ele estabeleceu “que não há liberdade todas as vezes que a mesma pessoa ou a mesma corporação legisla e executa ao mesmo tempo, ou por outras palavras, quando o poder de julgar não está bem distinto e separado do Legislativo e Executivo”, não quis proscrever toda a ação parcial, ou toda a influência dos diferentes poderes uns sobre os outros; o que quis dize, segundo se colige das suas expressões, e ainda melhor dos exemplos que lhe serviram de regra, foi que, quando dois poderes, em toda sua plenitude, se acham concentrados numa só mão, todos os princípios de um governo livre ficam subvertidos. (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 301-303).

Argumenta Madison que a Constituição Inglesa não subverte a liberdade, pois o Rei tem poder de veto sobre todas as leis, mas não pode fazer nenhuma. Se lhe compete a nomeação dos administradores da Justiça, não lhe compete administrá-la. Para Madison não bastaria apenas a separação dos poderes de forma distinta e explícita, era necessário que houvesse na própria formação de cada poder, elementos que fizessem com que eles se fiscalizassem entre si, exercendo o controle externo de um sobre os demais.

De acordo com J. A. Guilhon Albuquerque (2003), Montesquieu não defendia uma separação pura e simples de poderes. Ele pretendia estabelecer uma equipotência, no sentido de um ser forte o bastante para evitar uma subreposiçao de poderes. Guilhon cita os estudos de Louis Althusser[7] e de Charles Eisenmann[8], cuja análise aponta que Montesquieu mostra claramente que há uma imbricação de funções e uma interdependência entre o Executivo, Legislativo e o Judiciário. “A separação de poderes da teoria de Montesquieu teria, portanto, outra significação” (Albuquerque, 2003, p. 119). Nesse sentido Madison argumenta

Fica provado no capítulo antecedente que o axioma político que se examina não exige a separação absoluta dos três poderes; demonstrar-se-á agora que sem uma tal ligação que dê a cada um deles o direito constitucional de fiscalizar os outros, o grau de separação, essencial à existência de um governo livre, não pode na prática, ser eficazmente mantido.

[...] Como todo o poder tende naturalmente a estender-se, é preciso colocá-lo na impossibilidade de ultrapassar os limites que lhe são prescritos. Assim depois de ter separado em teoria os diferentes Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, o ponto mais importante é defendê-los em prática das suas usurpações recíprocas [...]

Por ventura, será bastante para esse fim que os limites dos poderes sejam marcados com precisão e clareza na Constituição – e poder-se-ia esperar que estas trincheiras de papel tenham força suficiente para prevenir as usurpações? Pelo menos, tal foi o caminho que tomaram todos os legisladores da América; mas breve a experiência lhes mostrou que mais seguras armas eram precisas para defender os membros mais fracos do governo contra os mais fortes. O corpo legislativo estende por toda a parte a esfera de sua atividade e engole todos os poderes no seu turbilhão impetuoso. (Madison, Hamilton e Jay , 2003: 307-311).

Novamente Madison se preocupa com a questão da supremacia do legislativo, argumentando serem necessários mecanismos que reprimam a Casa dos Representantes, caso esta tenda a legislar em proveito dos interesses de seus membros. Para isso é criada a figura do Senado.

 Antes do modelo federativo as repúblicas eram estabelecidas em um Estado unitário, havendo uma única e exclusiva esfera de governo. De início, Madison argumenta que nenhum dos três poderes deve ficar nas mesmas mãos. Aduz que se tal fato aconteça, a república poderá degenerar em tirania. Para se entender a separação dos poderes nos Estados Unidos é necessário lembrar que a partir do momento em que diversos Estados nacionais se unem para formar uma União de Estados, é preciso haver mecanismos de freios e contra-pesos (checks and balances) para que haja equilíbrio entre a representação dos Estados no Congresso. Madison passa então a estabelecer um modelo até então inédito no mundo: O Federalismo.

Madison faz uma reflexão acerca da finalidade do Governo e de cada Poder. Outros filósofos como Locke, Rousseau e Montesquieu também faziam essa reflexão. Com base no modelo de Westminster, o Legislativo é o Poder fundamental nas democracias. Para Madison o Legislativo era muito forte numa república enquanto que na monarquia essa força era exercida pelo Executivo. Ao traçar o perfil dos poderes nos Estados Unidos, Madison refletiu acerca da questão dos Estados-membros e a necessidade de uma segunda câmara legislativa, a exemplo do modelo de Westminster onde a Aristocracia estava representada na Câmara dos Lordes. Madison então, com base no desenho institucional da república romana, recriou a figura do Senado. Na antiguidade o Senado era o conselho de anciãos, pois a palavra Senado deriva da expressão latina senex que significa idoso, experiente. No desenho federativo americano o Senado iria abrigar não a Aristocracia nem os mais velhos e experientes – não intencionalmente, mas ocasionalmente haja vista que a idade mínima para o ingresso no Senado exige certa experiência política e vivência – mas a representação de todos os Estados-membros da Federação. Assim, a população estaria nacionalmente representada pela Câmara dos Representantes e as Unidades Federativas estariam representadas pelo Senado, havendo mecanismos cujo poder de um limitaria o poder do outro.

Até então a questão dos três poderes era tênue. Locke enxergava apenas o Executivo e o Legislativo. O Judiciário caberia aos magistrados do Executivo. Entretanto Locke discutia a questão de um terceiro poder, por ele chamado de poder federativo. Já Montesquieu se preocupa com o desenho institucional da Constituição, alegando que os poderes devem ser equipotentes. Logo, para agregar a representatividade dos demais Estados-membros, pode-se afirmar que Madison se baseia em Locke no sentido de trazer para o âmbito interno um poder, que anteriormente funcionava no plano das relações exteriores, que é o Poder Federativo. Chevallier comenta as ideias de Locke no seguinte sentido

Locke prevê um terceiro[9] poder, a que chama federativo e cuja missão é de ordem exterior (as alianças, os tratados, a guerra e a paz). Embora distinto em si esse poder está praticamente associado sempre ao Executivo. Portanto, pode-se raciocinar em função sempre de apenas dois poderes, uma vez que o Judiciário não tem lugar à parte e constitui “o atributo geral do Estado”. (Chevallier, 1983, p. 47)

Madison aprimorou o raciocínio de Locke transferindo o poder federativo para o Legislativo e dando-lhe casa própria e atribuições especiais. Não é em vão que o Executivo precisa do Legislativo para referendar declarações de guerra e de paz, entre outros assuntos pertinentes às relações exteriores.

Como Madison argumenta que os três poderes não podem cair nas mesmas mãos, além dos mecanismos de controle externo, ele estabeleceu diferentes formas de composição dos poderes. No Legislativo, a Câmara dos Representantes é eleita diretamente pelo povo. Já o Senado é nomeado pelo Governador do estado que representa[10]. No Executivo, o Presidente é eleito indiretamente através de um colegiado, onde cada Estado tem um peso no Colégio Eleitoral. O Judiciário também tem seus membros indicados pelo voto indireto do povo.

Alem da composição, Madison trabalhou em cima da questão do tempo de duração dos mandatos, sendo tempos diferenciados para cada casa legislativa. Segundo Madison no artigo 48

[...] Numa democracia em que o povo exercita diretamente as funções legislativas, em que é capaz de deliberações regulares e de medidas refletidas, se adia entregue à ambição e às intrigas dos seus magistrados executivos, também estes podem aproveitar-se de uma ocasião favorável para tornarem tirânico o seu poder. Mas numa república representativa, em que a magistratura executiva é limitada, tanto na extensão como na duração de seus poderes, e onde o Poder Legislativo é exercitado por uma assembléia cheia de confiança nas suas próprias forças, pela certeza que tem da sua influência sobre o povo[...]

O corpo legislativo deve, nos nossos governos, a sua preponderância a outras causas. Os seus poderes constitucionais, sendo mais extensos e menos suscetíveis de ser circunscritos em limites certos, não lhe é tão difícil das às suas usurpações a cor que melhor lhe parecer, por meio de medidas complicadas e indiretas [...]

[...] Ainda não é tudo: como o Poder Legislativo é o único que pode achar o caminho para as algibeiras do povo, tendo, além disso, em algumas constituições poder ilimitado, e em todas grande influência sobre as retribuições pecuniárias dos agentes dos outros poderes, daqui a dependência em que de necessidade há de se conservar os ditos poderes, e por conseqüência a facilidade de levar por diante suas usurpações. (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 307-311).

Madison tinha grande preocupação em relação ao Poder Legislativo, o que o levou em diversos momentos a expressar de forma taxativa a temeridade e a probabilidade de o Legislativo se fortalecer e tiranizar os demais poderes. Como já mencionado, para evitar tais problemas Madison estabeleceu duas casas legislativas, cujos mandatos tinham durações diferenciadas, exatamente para não haver um conluio de interesses por parte dos representantes do povo. Ao concluir Madison diz que é preciso algo mais que fixar os limites dos poderes na Constituição, é preciso mecanismos que dificultem a concentração deles em uma só mão.


4.O Funcionamento do  Governo e a Representatividade

Madison preferia usar o termo “popular” ao invés de democracia, pois para ele a democracia seria aquela criada pelos gregos, pura e direta. Além de ser impossível uma democracia pura na extensão que já tomava os Estados Unidos, se todos participassem do poder decisório, a probabilidade de haver polarizações seria maior, degenerando em tirania. Nesse sentido Madison argumenta que o governo republicano tem de ser um governo popular, democrático no sentido de que todos participam, ou seja, podem votar e serem votados. E aqueles que são eleitos passam a ser os representantes do povo, num cenário de democracia indireta, representativa.

Madison argumenta que é preciso combater o comportamento dos governantes de forma equiparada. Segundo ele deve-se combater a ambição com ambição, travando os interesses dos homens para que o maior interesse seja não o da corrupção, mas o da perseguição do bem comum, dos interesses coletivos. Madison alega que

Numa república simples, toda autoridade delegada pelo povo é confiada a um governo único, cujas usurpações são prevenidas pela divisão dos poderes; mas, na república composta da América, não somente a autoridade delegada pelo povo está dividida em dois governos bem distintos, como também a porção de poder confiada a cada um deles é ainda subdividida em frações muito distintas e separadas. [...]

Quando em uma república se têm obtido os meios de defender a nação contra a tirania dos seus chefes, não resta ainda resolvidas todas as questões sociais; trata-se de defender uma parte da sociedade contra a injustiça de outra parte mais numerosa . As diferentes classes de cidadãos têm necessariamente interesses diversos; e quando a maioria está unida por um interesse comum, acham-se em perigo os direitos da minoria. (Madison, Hamilton e Jay, 2003, p. 301-306).

Madison argumenta que em um governo popular republicano, quanto maior o número de classes de cidadãos representados, menor será a probabilidade de haver uma tirania da maioria. Vê-se que a saída para se evitar a tirania é justamente a questão da pulverização da representação.

Rousseau faz uma reflexão acerca dos representantes ou deputados. Ele argumenta que os cidadãos preferem servir aos próprios negócios de que, ao Estado. Se for preciso ir a combate, pagarão uma tropa e descansarão em casa. Para Rousseau o dinheiro e a preguiça conseguem soldados para defender a pátria e representantes para vendê-la. Segundo ele “Quanto melhor constituído é o Estado, mais negócios públicos prevalecem sobre os particulares no espírito dos cidadãos” (Do Contrato Social, cap. XI). Esse questionamento que Rousseau faz é bastante pertinente à temática de Madison: a questão da composição do governo e o comportamento da sociedade. Para Rousseau quanto pior for um governo, maior o desinteresse pela população acerca do que ali se faz.

No discurso de Rousseau em Do Contrato Social ele alega que

A soberania não pode ser representada, pela mesma razão por que não pode ser alienada; ela consiste essencialmente, na vontade geral, e a vontade não se representa; ela é a mesma ou é outra; não há meio termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser, seus representantes, já que não passam de comissários, nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o povo não ratificou em pessoa é nula, não é uma lei.

A idéia dos representantes é moderna: ela nos vem do governo feudal, daquele iníquo e absurdo governo, no qual a espécie humana é degradada, e onde o nome do homem está desonrado. (Do Contrato Social, Livro III, capítulo XV).

Esse ponto levantado por Rousseau diverge de Madison, que diz o oposto. Para Rousseau não existe representação e o que tem de ser feito será feito pelo povo. Ele monta seu raciocínio numa perspectiva de democracia pura e direta. Já Madison argumenta que é impossível uma democracia direta na América e que a única forma de se constituir o governo é através da representatividade. Entretanto, Madison vê que a representatividade por si só não é um remédio para os problemas republicanos. Argumenta que é preciso haver a maior participação possível com os mais diversos interesses para que os objetivos particulares jamais alcancem a maioria, sendo esta composta pelo verdadeiro espírito público. Rousseau lida com radicalismos e expressões extremas. Ao afirmar que “onde o direito e a liberdade são tudo, os inconvenientes nada são” (Do Contrato Social, Livro III, Capítulo XV), acaba assumindo uma posição.

Madison sabia que o argumento de Rousseau já havia sido derrubado pela experiência e aperfeiçoou a questão da representatividade, que posteriormente seria tratada por John Stuart Mill.


Conclusão

Pensar instituições não é recente. Tem ocupado espaço nas teorias contemporâneas, como também ocupou espaço nas obras dos pensadores clássicos. Entre os clássicos analisados destacam-se dois pontos centrais nas preocupações de Madison, Locke, Hobbes, Rousseau e Montesquieu: o de como criar o governo e de como exercer o poder.

Sobre a natureza do homem e a violência das facções, Madison traça uma linha de raciocínio que parte da disputa entre grupos. Em comparação com Hobbes, observou-se que em perspectiva diversa, ele também aborda a questão da disputa de poder, mas diante da ausência do Estado e em um ambiente onde o homem é mal, tirânico. Na ótica hobbesiana o estado é um mal necessário. Já para Locke o Estado é a solução, o amadurecimento de uma sociedade livre. Para Madison a necessidade do Estado é indiscutível, entretanto o sistema político precisa de mecanismos que evitem a degeneração em tirania através das facções e associações, cujos interesses particulares se sobrepõem aos interesses da coletividade. Como evitar a tirania é ponto de divergência entre Locke e Madison. Para Locke a tirania, caso houvesse, seria contra a lei. Para Madison a tirania poderia vir legitimada pela lei, através de um Legislativo forte e dominado por facções. Na questão das facções é importante assinalar as reflexões de Rousseau acerca das associações e dos grupos como forma de ludibriar a vontade geral, tendo-se na verdade uma vontade de todos, de uma maioria. Rousseau argumenta ser necessário debelar essas associações e facções, pulverizando-as. Madison vai aperfeiçoar esse raciocínio alegando que proibir seria suprimir o direito à liberdade. O que poderia ser feito é diminuir os efeitos dessas facções tornando-as pequenas ao ponto de que a soma dos das vontades resultasse na vontade geral. 

Sobre a república e a democracia, Madison aperfeiçoa a Teoria dos Governos de Montesquieu ao distinguir a república da democracia. Montesquieu acreditava que a separação e distinção dos poderes na Constituição seriam suficientes para haver uma equipotência entre eles. Para Madison faltava algo mais. Dahl argumenta que Madison se volta para a questão dos controles externos, onde não basta apenas um desenho institucional escrito na Constituição, é preciso mecanismos que sejam capazes de dar aos poderes autonomia e independência.

Sobre a separação dos poderes e o poder federativo, Madison e Montesquieu possuem visões diferentes acerca da divisão dos poderes embora os objetivos fossem os mesmos: coexistência harmônica e não interferência de um poder em outro. Mais uma vez Madison se baseia em Montesquieu e Locke para montar uma estrutura republicana e federativa nos Estados Unidos.

Sobre o funcionamento do governo e a representatividade, Madison faz duras críticas à questão da boa formação do governo e destoa de Rousseau quanto à questão da representatividade. Rousseau argumenta que a liberdade está acima de qualquer problema. Entretanto, esses problemas se agravaram com o decorrer dos tempos e levaram Madison a argumentar que o governo representativo é o único viável (pelo menos nos Estados Unidos), para que haja uma república popular.


Referências

MADISON, James, HAMILTON, Alexander, JAY, John. O Federalista. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2003.

HOBBES, Thomas. Leviatã Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

ROSSEAU, Jean-Jacques. Do Contato Social. Tradução de Rolando Roque da Silva. Edição eletrônica Ridendo Castigat Mores. 1762

ROSSEAU, Jean-Jacques. Do Contato Social. Tradução José Cretella Jr e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

LOCKE, John. Second Treatise of Civil Government. Public Domain Book. Digitalized by Dave Gowan, 1690.

MELLO, Leonardo Itaussu Almeida. John Locke e o Individualismo Liberal. In Francisco Weffort (org.). Os Clássicos da Política. v.1. 13. ed. 9. reimp. São Paulo: Ática, 2003, pp. 79-110.  

ROSSEAU, Jean-Jacques. A Discourse Upon The Origin and the Foundation of the Inequality Among Mankind. Public Domain Book

MONTESQUIEU. Spirit of Laws. Translated by Thomas Nugent (based on 1752 edition). Lonang Institute, 2010.

HELD, David. Modelos de Democracia. Tradução de Alexandre Sobreira Martis. Belo Horizonte: Paideia, 1987.

DAHL, Robert Alan. Um Prefácio à Teoria Democrática. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1966

ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon. Montesquieu: sociedade e poder. In Francisco Wefffort (org.), Os Clássicos da Política. v.1. 13. ed. 9. reimp. São Paulo: Ática, 2003, p. 111-186

CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do Pensamento Político.  2ed . trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1983.


Notas

[1] Entende que a origem do Estado está em um contrato firmado pela sociedade estabelecendo regras de poder político e de obediência às normas.

[2] O termo União, escrito com a primeira letra em maiúsculo, refere-se à esfera de poder que fora criada para receber o governo nacional a partir da transferência de soberania dos Estados-membros da Federação.

[3] The liberty of man, in society, is to be under no other legislative power, but that established, by consent, in the commonwealth; nor under the dominion of any will, or restraint of any law, but what that legislative shall enact, according to the trust put in it. (Second Treatise of Civil Government, Chapter IV, Sec. 22)

[4] I conceive two species of inequality among men; one which I call natural, or physical inequality, because it is established by nature, and consists in the difference of age, health, bodily strength, and the qualities of the mind, or of the soul; the other which may be termed moral, or political inequality, because it depends on a kind of convention, and is established, or at least authorized, by the common consent of mankind.

[5] Como Madison tinha uma visão clássica da democracia (criada pelos gregos onde havia participação popular de todos aqueles considerados cidadãos, no governo) o termo democracia toma os contornos de governo popular, mas onde não há participação de todos e sim daqueles eleitos que representam o todo.

[6] The politic Greeks, who lived under a popular government, knew no support than virtue.

[7] Althusser, Louis, Montesquieu: La Politique et l’Histoire, Presses Universitaires de France, Paris, 1974

[8] Eisenmann, Charles L´esprit des lois et la separation de pouvoirs, Paris, Mélanges Carré de Malberg, 1933

[9] Locke não considerava o Poder Judiciário como poder autônomo, cabendo ao executivo a resolução dos litígios. Foi posteriormente com Montesquieu que surgiu a questão dos três poderes como conhecemos hoje.

[10] Após a Emenda 17 à Constituição dos Estados Unidos, os senadores passaram a ser eleitos pelo voto popular. Entretanto, em caso de vacância cabe ao Governador do Estado assumir o custo político da indicação do sucessor. 


Autor

  • Leon Victor de Queiroz Barbosa

    Mestre e Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco, Pesquisador do Centro de Estudos Legislativos da Universidade Federal de Minas Gerais e Pesquisador do PRAETOR – Grupo de Estudos sobre Poder Judiciário, Política e Sociedade da Universidade Federal de Pernambuco, Supervisor Parlamentar na Câmara Municipal do Recife e Advogado.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Leon Victor de Queiroz. As Influências de Hobbes, Locke, Rousseau e Montesquieu no desenho institucional Madisoniano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4251, 20 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34375. Acesso em: 4 maio 2024.