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A função social da propriedade pública e o edifício Wilton Paes de Almeida

A função social da propriedade pública e o edifício Wilton Paes de Almeida

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Explora-se a função social da propriedade pública por meio de estudo de caso da situação atual de um dos edifícios que marcaram a arquitetura brasileira e paulista na década de 1960.

1. INTRODUÇÂO; 2. NATUREZA JURÍDICA DO BEM PÚBLICO EDIFÍCIO WILTON PAES DE ALMEIDA; 3. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA E OS BENS DOMINICAIS; 3.1. O EDIFÍCIO E O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO; 4. IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DECORRENTES DO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL; 5. CONCLUSÃO.


1. INTRODUÇÃO

Um dos mais importantes arquitetos do século XX, o suíço Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo seu pseudônimo Le Corbusier, afirmara, certa vez, que a história material da Arquitetura mostra a existência, através dos séculos, de uma luta incansável em favor da luz contra o obstáculo imposto pelas leis da estabilidade: é a história das janelas[1].

Desde o século XVII, a construção experimenta a crescente substituição dos espaços cheios pelos vãos e janelas, e o vidro, nesse contexto, acompanha a evolução dos vazios na história arquitetônica mundial[2].

Um dos primeiros projetos em que se explorou a substituição do binômio alvenaria-massa pelo conceito concreto-alumínio-vidro foi a fachada sul do edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública, no final da década de 1930, no Rio de Janeiro, em projeto orientado por Le Corbusier. Nesta obra, deparamo-nos com um exemplo típico da chamada curtain-wall (pano de vidro ou caixilho contínuo), que posteriormente, no final da década de 1940, foi utilizada na construção do edifício sede da Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque[3], o que rendeu a este prédio propagandas de que seria a “maior janela do mundo”[4].

Esta tendência arquitetônica é também encontrada em um dos marcos históricos da arquitetura brasileira, o edifício Wilton Paes de Almeida.

Situado na esquina da avenida Rio Branco com o Largo do Paissandu, na região central da capital bandeirante, o edifício foi projetado em 1961 pelo premiado arquiteto brasileiro Roger Zmekhol para ser a sede da Companhia Comercial de Vidros do Brasil.

Vanguardista e audacioso, o projeto do edifício previa, já naquela época, ar condicionado totalmente embutido e centralizado, cujo sistema primário seria insuflado pelos rodapés dos pilares e o secundário, das colunas e lambris de alumínio de cada pavimento, com subunidades em cada andar, possibilitando, assim, a racionalização de seu uso. Além disso, o edifício era equipado com sistema de água filtrada e gelada, heliporto e restaurante com capacidade para 600 (seiscentas) refeições por hora[5].

Em seus 22 (vinte e dois) pavimentos e 12.000m² (doze mil metros quadrados) de construção, este edifício era, como podemos ver, um claro exemplo de construção funcional que se integrava ao meio ambiente local, valorizando tanto a região urbana na qual foi construído como também a imagem da empresa que o ocuparia. Além disso, previa mecanismos que objetivavam melhorar a qualidade do trabalho, do bem estar e da convivência daqueles que ali exerceriam seu labor, demonstrando a preocupação com o meio ambiente artificial.

No ano de 1992, o edifício foi levado a tombamento por meio da Resolução 37/92, do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo - Conpresp, que classificou inúmeros imóveis na região do Vale Anhangabaú como de interesse arquitetônico, histórico, paisagístico e ambiental, estabelecendo quatro níveis de proteção a esses imóveis. O edifício Wilton Paes de Almeida foi elencado entre estes imóveis, com proteção de nível 3, justamente em razão de sua famosa fachada externa (courtain wall), que não poderá ser alterada.

O edifício foi adquirido pela União Federal em decorrência de contrato de dação em pagamento firmado com a Caixa Econômica Federal, tendo abrigado em suas dependências até o ano de 2002 a Superintendência da Polícia Federal em São Paulo e, após esta data, entre 2007 e 2010, uma agência do Instituto Nacional da Previdência Social.

Desde então, o prédio, outrora tido como marco na arquitetura moderna brasileira, está desocupado e parcialmente depredado, resultado de diversas invasões que culminaram em furto de fiação e outros materiais de construção.

É importante destacar a existência de tentativas de destinação do edifício a finalidades públicas, como sua utilização como centro cultural pelo Município de São Paulo ou como sede de um instituto de ciências jurídicas pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP. Todavia, nenhum dos citados projetos se concretizou e em dezembro de 2013 o imóvel foi novamente invadido por particulares, invasão que motivou o ajuizamento de ação de reintegração de posse pela União no ano de 2014[6].

Por se tratar de próprio federal, situado em região privilegiada da cidade de São Paulo/SP, e, cientes de que a propriedade deve cumprir sua função social, cumpre-nos avançar em nosso estudo para verificar a atual situação jurídica do edifício Wilton Paes de Almeida e os corolários que o ordenamento brasileiro prevê para tanto.


2. NATUREZA JURÍDICA DO BEM PÚBLICO EDIFÍCIO WILTON PAES DE ALMEIDA

Com base no histórico alhures traçado acerca do Edifício Wilton Paes de Almeida, a conclusão à qual chegamos é a de que ele é um bem público.

Bens públicos são todos os bens que pertencem às pessoas jurídicas de Direito Público, isto é, União, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Público (estas últimas, aliás, não passam de autarquias designadas pela base estrutural que possuem), bem como os que, embora não pertencentes a estas pessoas, estejam afetados à prestação de um serviço público. O conjunto de bens públicos forma o “domínio público”, que inclui tanto bens imóveis como móveis.[7]

Os bens públicos, como é sabido, estão sujeitos a regime jurídico próprio e diferente dos bens particulares e podem ser classificados de acordo com sua titularidade, destinação e disponibilidade.[8] Quanto à titularidade, podem ser federais, estaduais, distritais ou municipais, a depender da natureza da pessoa jurídica de direito público à qual pertençam.

No que tange à destinação, os bens públicos são classificados em bens de uso comum do povo, de uso especial ou dominicais. Aliás, esta é a classificação trazida no artigo 99, do Código Civil.

Bens de uso comum do povo são aqueles que se destinam à utilização geral pelos indivíduos, prevalecendo, para tal classificação, a destinação pública no sentido de sua utilização efetiva pelos membros da sociedade. São os mares, as praias, os rios, as praças, os logradouros públicos, as estradas e as ruas.[9]

Os bens de uso especial são aqueles que visam à execução dos serviços administrativos e dos serviços públicos em geral, consistindo naqueles bens que representam o aparelhamento estatal da Administração Pública para atingir suas finalidades. Amoldam-se nessa categoria os edifícios públicos, as escolas, as universidades, os veículos oficiais etc., não perdendo essa classificação ainda que sejam utilizados por particulares, especialmente sob o regime de delegação.[10]

Por fim, os bens públicos consideram-se dominicais quando, a despeito de constituírem patrimônio de ente público, não são utilizados ao uso geral do povo ou a usos específicos da Administração Pública. Trata-se, como vemos, de uma noção residual, isto é, o bem será dominical se não for de uso comum ou de uso especial. São bens públicos dominicais as terras sem destinação pública específica, os prédios públicos desativados, os bens móveis inservíveis etc.[11]

Ainda, os bens públicos podem ser classificados quanto à disponibilidade, podendo ser bens indisponíveis, bens patrimoniais indisponíveis e bens patrimoniais disponíveis.

Os bens indisponíveis não ostentam caráter tipicamente patrimonial, isto é, não admitem uma correlação de valor, não podendo ser alienados, onerados ou desvirtuados de suas finalidades; são desta categoria os bens de uso comum do povo. Já os bens patrimoniais indisponíveis, embora indisponíveis por serem de utilização da Administração Pública, admitem correlação de valor, sendo suscetíveis de avaliação pecuniária. Há, também, os bens patrimoniais disponíveis, os quais podem ser alienados de acordo com as condições previstas em lei, correspondendo, em geral, aos bens dominicais.[12]

À luz das classificações acima trazidas, amplamente difundidas pela doutrina brasileira, verificamos que o Edifício Wilton Paes de Almeida pode ser classificado como bem público federal, dominical e patrimonial disponível.

A história do edifício, vista acima, passa por diversas fases que interferem e alteram sua natureza jurídica. Inicialmente, por óbvio, o imóvel era particular, passando a ser bem público de uso especial com sua afetação aos serviços da Polícia Federal. Após a saída da Polícia Federal do prédio e a partir do momento em que a Universidade Federal de São Paulo desistiu do projeto que instalaria ali sua Faculdade de Direito, o prédio perdeu sua destinação pública, estando destrelado de qualquer objetivo da Administração Pública Federal.

Atualmente, portanto, o Edifício Wilton Paes de Almeida é um bem público federal, dominical e patrimonial disponível, estando integralmente desocupado em área urbana da cidade de São Paulo.

Embora historicamente os bens públicos dominicais fossem atrelados a interesses meramente patrimoniais dos entes públicos, a doutrina moderna defende que sua administração pode visar, paralelamente, a objetivos de interesse geral.[13] E, nesse panorama, o edifício não gera receita corrente patrimonial ao Poder Público Federal e tampouco vem sendo empregado no atendimento de outras finalidades públicas, relacionadas ao interesse público primário.

É certo que os bens públicos dominicais possuem certas peculiaridades em seu regime jurídico que o diferencia das duas outras classificações de bens públicos quanto à destinação (uso comum do povo e uso especial). De fato, a despeito de imprescritível, inalienável e impenhorável, os bens públicos dominicais não demandam prévia desafetação em caso de alienação, eis que não estão previamente ordenados ao atendimento de fim público.[14]

O hodierno estado do edifício e sua natureza jurídica nos conduzem, então, a reflexões acerca da função social que tal próprio vem cumprindo, uma vez que, independentemente da destinação conferida ao bem público (uso comum, especial ou nenhuma), é patente que ele deve atender aos objetivos fundamentais da República, o que obriga o Estado à observância do princípio da função social da propriedade.[15] Tal discussão ganha relevo em nosso estudo especialmente quando levamos em conta a localização privilegiada do imóvel em questão e os crescentes esforços tanto do Poder Público Municipal como de associações de bairro de revitalizar o centro antigo da capital.


3. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA E OS BENS DOMINICAIS

A Constituição Federal previu dentre as garantias fundamentais que “a propriedade atenderá sua função social” (art. 5º, XXIII). Assim, ao delinear o direito à propriedade, já o condicionou ao exercício de uma função social. A citada função social foi igualmente eleita à categoria de princípio informador da ordem econômica (art. 170, III).

Constitucionalmente, em relação à propriedade imóvel, a função social da propriedade urbana[16] é atingida quando “atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (art. 182, §2º). A propriedade rural, por sua vez, atende aos ditames de sua função social quando, em síntese, é utilizada de forma racional e adequada aos recursos naturais disponíveis, observando-se as disposições trabalhistas, além da preservação do meio ambiente (art. 186).

A função social da propriedade, portanto, mostra-se como um dos pilares da ordem constitucional, permeando e informando todo o seu texto.

É importante destacar que o texto constitucional, ao prescrever a função social da propriedade, não faz distinção entre bens públicos e bens privados. Entretanto, apesar da inexistência de distinção pelo constituinte, a aplicação da função social da propriedade de bens públicos é controvertida. É certo que, em razão da diferença entre regimes e, sobretudo, a supremacia do interesse público sobre o privado, é compreensível que o direito de propriedade do Poder Público possua diversa moldura do direito de propriedade dos entres privados. Todavia, ainda que com contornos distintos, os dois regimes submetem-se à função social da propriedade, como pretendemos demonstrar.

A princípio, é necessário investigar qual o conteúdo da função social da propriedade, entendendo-a como um princípio informador da Ordem Econômica tal qual prevista na Constituição Federal.

Inicialmente tratada de forma individualista, especialmente a partir do século XX, a propriedade passa a ser observada por uma perspectiva mais socializante do que a verificada em seu perfil clássico. Citando Roberto Dromi, José dos Santos Carvalho Filho explica que "a concepção individualista da propriedade já foi há muito abandonada, porque predomina atualmente a visão de que o instituto, muito mais que um fim, se configura como meio para alcançar o bem-estar social".[17]

Muito contribuiu para esta mudança de perspectiva a difusão da doutrina socialista, especialmente após a polarização política socialismo/capitalismo ocorrida após a Segunda Guerra Mundial.

No âmbito jurídico pátrio, as ideias do publicista francês Leon Duguit foram determinantes na construção do perfil jurídico deste princípio em nosso ordenamento. O citado autor, influenciado pelo positivismo de Comte, propugnou uma inversão conceitual ao considerar a propriedade não um direito do indivíduo, mas sua detenção o exercício de uma função. Consoante Duguit:

A propriedade implica, para todo detentor de uma riqueza, a obrigação de empregá-la em acrescer a riqueza social, e, mercê dela, a interdependência social. Só ele pode cumprir certo dever social. Só ele pode aumentar a riqueza geral, fazendo valer a que ele detém. Se faz, pois, socialmente obrigado a cumprir aquele dever, a realizar a tarefa que a ele incumbe em relação aos bens que detenha, e não pode ser socialmente protegido se não a cumpre, e só na medida em que a cumpre.[18]

Como visto, a Constituição Federal tratou em diversos dispositivos a respeito da função social da propriedade. Apesar de não ser um estatuto fundamental de natureza socialista, garantindo-se ao indivíduo o direito de propriedade, tal direito não mais possui uma natureza exclusivamente individualista, devendo ser conjugado às necessidades sociais. A respeito deste caráter duplamente individualista e socializante do direito de propriedade, bem ilustra André Ramos Tavares:

A circunstância de a propriedade apresentar, simultaneamente, caráter dúplice, servindo ao individualismo e às necessidades sociais, impõe, pois, a necessidade de uma compatibilização de conteúdos dos diversos mandamentos constitucionais. Como direito individual, o instituto da propriedade, como categoria genérica, é garantido, e não pode ser suprimido da atual ordem constitucional. Contudo, seu conteúdo já vem parcialmente delimitado pela própria Constituição, quando impõe a necessidade de que haja o atendimento de sua função social, assegurando-se a todos uma existência digna nos ditames da justiça social.[19]

Assim, qualquer interpretação do direito de propriedade deve se conformar a este seu perfil constitucional de uso adequado consoante sua função social.

O texto constitucional, contudo, apesar de delinear de forma distinta a propriedade imóvel rural da propriedade imóvel urbana, não trouxe diferenciação quanto aos bens submetidos ao regime jurídico privado e aqueles submetidos ao regime jurídico público. Com efeito, no tocante à função social da propriedade, a Constituição Federal não distingue a natureza pública ou privada do detentor da propriedade, apreendendo ao seu influxo os bens imóveis submetidos aos dois regimes jurídicos.

E, estando o Poder Público vinculado a fins de interesse público, mais especificadamente ao bem comum, não há dúvida que todo patrimônio público deve ser utilizado com esse objetivo.[20]

Ocorre que, ao contrário do princípio da função social da propriedade privada, sua aplicação à propriedade pública não é extraída de maneira expressa do texto constitucional. E tal fato acaba ensejando controvérsias a respeito da necessidade de observância a tal máxima por parte da Administração Pública, as quais são repercutidas, inclusive, na jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, podendo ser encontrados diversos arestos que discutem o cabimento de se argumentar a existência de uma função social aos bens públicos.[21]

O princípio da função social da propriedade privada, que serviu de inspiração para a inclusão de nova modalidade de desapropriação (por interesse social) na Constituição de 1946, aparece pela primeira vez na Constituição de 1967. Antes disso, já estava consagrado no Estatuto da Terra, de 1964. Na Constituição atual ele está previsto em vários dispositivos: a) no artigo 5º, XXIII, está prescrito que “a propriedade atenderá a sua função social”; ao mesmo tempo em que impõe um dever ao proprietário, protege o interesse coletivo; b) no artigo 170, inciso III, está inserido entre os princípios da ordem econômica que têm por objetivo “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”; no artigo 182, está definida a função social da propriedade urbana (§2º) como aquela que “atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”, impondo ao proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena de sujeitar-se às medidas previstas no §4º (parcelamento ou edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública); d) no artigo 186, define-se a função social da propriedade rural, sujeitando os proprietários que a descumprirem à desapropriação para reforma agrária, nos termos do artigo 184. Vale dizer que a função social da propriedade privada cria para o particular um dever de utilização de seu patrimônio. Cria um ônus para o particular. O princípio da função social da propriedade pública não está consagrado com tanta clareza na Constituição. Ele não é definido senão por meio de diretrizes a serem observadas pelo poder público. Ele está sintetizado no artigo 182. O dispositivo coloca como objetivo da política de desenvolvimento urbano “o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.[22]

A despeito da controvérsia acima mencionada, atualmente não há como negarmos que a propriedade pública também deve observar uma função social, especialmente quando tomamos em consideração bens públicos urbanos, dado o fato de estarmos inseridos em uma rede normativa que prestigia e demanda a construção de ambientes urbanos sustentáveis (vide, a exemplo, o Estatuto da Cidade). Nessa toada, o princípio da função social da propriedade, ao ser aplicado aos bens públicos, cria para o Poder Público o ônus de conferir utilização adequada a seus próprios, bem como faz exsurgir à coletividade o direito de exigir a observância desta máxima constitucional.[23]

É essa, também, a conclusão do festejado professor Sílvio Luís Ferreira da Rocha, que entende haver indistinta aplicação da função social da propriedade aos bens submetidos a ambos os regimes de direito público e privado:

O fim obrigatório que informa o domínio público não acarreta sua imunização aos efeitos emanados do princípio da função social da propriedade, de modo que o princípio da função social da propriedade incide sobre o domínio público, embora haja a necessidade de harmonizar o referido princípio com outros.[24]

Uma das formas de classificação da propriedade pública, como vimos no item anterior, é feita de acordo com sua destinação e, aqui, os bens podem ser classificados em de uso comum, de uso especial e dominicais.

A função social da propriedade pública de uso comum e de uso especial é visualizada de forma mais simples. Isso porque, em primeiro lugar, estes bens já estão afetados a uma finalidade pública principal. E, em segundo lugar, nada impede que o Poder Público, a fim de atender o bem comum, confira a estas espécies de bens públicos outros usos distintos ou mesmo complementares à afetação primária, até como forma de assegurá-la.

Com relação à função social da propriedade pública dominical, superada a tese que atribuía a tais bens a exclusiva função patrimonial ou financeira, não há dúvidas de que esta modalidade de bem público deve observar este princípio constitucional. Aliás, esta conclusão decorre também do fato de que os bens públicos dominicais, quando urbanos, sujeitam-se às condicionantes do plano diretor do município, e quando rurais, aos planos de reforma agrária.[25]

Nesse diapasão, trazendo o raciocínio supra delineado ao caso ora em estudo, temos que o Edifício Wilton Paes de Almeida, bem público federal dominical, deve observância à função social da propriedade, traduzida na conformação de sua utilização ao plano diretor do município de São Paulo. E, pelo histórico já traçado, o que temos é que tal prédio, por estar completamente inutilizado, não vem cumprindo sua função social.

3.1. O EDIFÍCIO E O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

A Lei Municipal 16.050/14 aprovou e instituiu o novo Plano Diretor para a cidade de São Paulo. Nele, a região onde está situado o Edifício Wilton Paes de Almeida é classificada como Macroárea de Estruturação Metropolitana, sendo certo que dentre os objetivos de tal Macroárea no Setor Central da cidade encontram-se a valorização das áreas de patrimônio cultural, com a proteção e a recuperação de imóveis e locais de referência da população da cidade, bem como a requalificação e a readaptação de áreas deterioradas e subutilizadas (art. 12, III e §3º).

Não há dúvidas que o prédio objeto de nosso estudo é um imóvel de referência da população da cidade. Além de todas as peculiaridades que envolveram seu projeto arquitetônico, o edifício é um bem tombado, conforme Resolução 37/92, do Conpresp, tendo nível de proteção 3, o que significa que se trata de imóvel com interesse histórico, arquitetônico, paisagístico ou ambiental, devendo suas características externas (o courtain wall) serem preservadas.

Com efeito, as inovações arquitetônicas que circundaram a construção do edifício tornaram sua fachada de vidro um inegável marco na arquitetura brasileira, deixando estreme de dúvidas a necessidade de tutela jurídica especial, o que foi feito por meio do tombamento.

Além disso, é patente que o edifício não se encontra utilizado. Desde que o projeto de instalação do instituto de ciências jurídicas pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP foi abandonado, no ano de 2013, o prédio não tem qualquer destinação pública e também não atende aos princípios entabulados no Plano Diretor do município para a Macroárea na qual ele está localizado. Em outras palavras, encontra-se totalmente inutilizado.

O Plano Diretor do município de São Paulo traz dois conceitos que merecem ser reproduzidos, quais sejam, o de função social da cidade e o de função social da propriedade urbana:

Art. 5º Os princípios que regem a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico são:

I – Função Social da Cidade;

II – Função Social da Propriedade Urbana;

III – Função Social da Propriedade Rural;

IV – Equidade e Inclusão Social e Territorial;

V – Direito à Cidade;

VI – Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado;

VII – Gestão Democrática.

§ 1º Função Social da Cidade compreende o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social, ao acesso universal aos direitos sociais e ao desenvolvimento socioeconômico e ambiental, incluindo o direito à terra urbana, à moradia digna, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho, ao sossego e ao lazer.

§ 2º Função Social da Propriedade Urbana é elemento constitutivo do direito de propriedade e é atendida quando a propriedade cumpre os critérios e graus de exigência de ordenação territorial estabelecidos pela legislação, em especial atendendo aos coeficientes mínimos de utilização determinados nos Quadros 2 e 2A desta lei.

À luz dos conceitos trazidos pela legislação municipal, temos que o edifício em questão descumpre, integralmente, a função social da cidade e a função social da propriedade urbana, lembrando, aqui, que ambos têm aplicabilidade à propriedade pública, inexistindo distinção, seja na referida lei municipal, seja na Constituição Federal.

A função social da cidade é descumprida na medida em que o prédio, por estar integralmente inutilizado, não vem sendo empregado no desenvolvimento socioeconômico da região e ao acesso e pleno exercício dos direitos dos cidadãos.

É importante rememorar que a função social da propriedade (que dá origem à chamada função social da cidade) tem esteio, também, na Constituição Econômica brasileira (art. 170, CF), devendo, assim, ser interpretada de modo a conferir meios à concretização da existência digna através da livre iniciativa e dos valores sociais do trabalho.

Como dito na introdução de nosso estudo, o edifício Wilton Paes de Almeida está abandonado desde 2013, estando a mercê, inclusive, de invasões por desabrigados, ensejando medidas judiciais para a retomada da posse do imóvel[26].

Nesse panorama, vem à baila, com meridiana clareza, o descumprimento da função social da cidade: ao não ser utilizado em função pública alguma, o edifício, além de restar abandonado, obsta o desenvolvimento socioeconômico da região e, também, inviabiliza a integral efetividade da ordem econômica brasileira, na medida em que deixa de ser usado como forma de conquista da existência digna por meio dos valores sociais do trabalho e, também, da livre iniciativa (quando levamos em consideração atividades econômicas paralelas que poderiam ser desenvolvidas a partir da utilização efetiva do próprio federal).

Ainda, e como consequência do exposto acima, o prédio também descumpre a função social da propriedade, eis que, por estar abandonado, não atende qualquer princípio de ordenação urbana contido na legislação de regência e tampouco consegue apresentar índices de utilização.

No mais, relevante mencionar que o fato de o edifício ser tombado não afasta o dever do Poder Público em conferir-lhe utilidade de modo a concretizar sua função social, até porque o tombamento em referência versa apenas sobre a fachada do prédio (características externas), nada obstando a escorreita utilização de seu interior.

O abandono do edifício, acrescida de seu manifesto interesse arquitetônico, trazem à sirga a conclusão de que o local encontra-se inutilizado e, portanto, alheio ao cumprimento de uma finalidade pública e tampouco de sua função social, tornando possível, então, a invocação de medidas jurídicas tendentes à concretização da função social desta propriedade pública.


4. IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DECORRENTES DO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL

Como visto, o fato de o edifício Wilton Paes de Almeida estar inutilizado já o insere na categoria de bem público dominical, porém sua situação atual evidencia completo desrespeito à função social da propriedade urbana. O prédio não atende diretrizes do Plano Diretor do município de São Paulo e a ausência de qualquer uso a ele conferido afasta, ainda, a concretização de princípios estruturantes da ordem econômica.

A Constituição Federal, em seu artigo 182, parágrafo 4º, faculta ao Poder Público municipal a edição de lei visando exigir do proprietário de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, o seu adequado aproveitamento.

Art. 182, CF - A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

(...)

§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

O Município de São Paulo, na Lei Municipal n. 16.050/14, que instituiu o novo Plano Diretor da cidade, exercitou a faculdade constitucional acima transcrita, ao assim prescrever:

Art. 90, Lei Municipal n. 16050/14 - O Executivo, na forma da lei, poderá exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado, ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I – parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;

II – Imposto Predial e Territorial Urbano Progressivo no Tempo;

III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.

A lei mencionada no supratranscrito artigo 90 vem a ser o Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/01), que disciplina as três medidas ali previstas.

Ao volvermos os olhos ao caso ora estudado, cotejando-o com as medidas constitucionais e legais tendentes à realização da função social da propriedade, percebemos que a primeira delas não se mostra aplicável à situação descrita.

O parcelamento e a edificação compulsória da área onde está o edifício não são medidas plausíveis de serem adotadas, uma vez que não estamos diante de gleba ou de terreno inutilizado, mas sim de uma construção com 22 (vinte e dois) pavimentos. Além disso, por estarmos diante de um bem tombado, a tentativa de adaptação destas duas medidas à situação prática ora colocada poderia comprometer o tombamento em si, com o risco de descaracterização da fachada do imóvel.

Com relação à utilização compulsória, também entendemos que o Poder Público Municipal não poderia adotá-la como sanção. Isso porque, em se tratando de imóvel público federal, competiria à própria União, no exercício de suas competências constitucionais e de seu poder discricionário, afetar o imóvel a uma destinação que atendesse o bem comum.

Embora o Município não possa adentrar à essa seara de conveniência e oportunidade da União no que tange à destinação do imóvel, é certo e inegável que o abandono do local é inaceitável e demanda urgente atuação federal.

A segunda medida prevista tanto no artigo 182, parágrafo 4º, da Constituição Federal, como no artigo 90, da Lei Municipal 16.050/14, já vem sendo adotada pela Prefeitura de São Paulo em diversos casos de imóveis ociosos, sobretudo localizados na região central da cidade (tal qual o edifício em questão). Porém, trata-se de medida que também não se mostra aplicável ao caso.

Com efeito, e à luz do disposto no artigo 150, inciso VI, alínea ‘a’, da Constituição da República, é vedado aos entes federados instituir impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços, uns dos outros. Logo, se a cobrança de IPTU já é vedada constitucionalmente, a utilização do IPTU progressivo no tempo também não se mostra possível.

Por fim, a última sanção àqueles que não conferirem adequado uso do solo urbano é a desapropriação, com pagamento mediante títulos da dívida pública. Sobre essa modalidade de sanção iremos nos dedicar doravante.

O Decreto-lei 3365/41 traz o seguinte preceito acerca da desapropriação entre entes federativos:

Art. 2o, DL 3365/41 -  Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.

(...)

§ 2o Os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa.

É dizer: a desapropriação entre entes federativos, de acordo com a legislação de regência, deve obedecer a uma determinada ordem, estando vedada, assim, a desapropriação de bens federais pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, sendo que estes últimos também não poderiam desapropriar bens estaduais ou distritais.

Esta “escala expropriatória” prevista na norma acima transcrita, era compatível com o regime adotado na Carta de 1937, em meio ao qual tal Decreto-lei foi editado. Neste regime, foi praticamente abolido o Estado Federal no Brasil. Com efeito, o Decreto-lei 1202/39, ao dispor sobre a administração dos Estados e dos Municípios, determinou que os Estados seriam administrados por interventores federais até a realização de um plebiscito nacional, que jamais chegou a ser convocado.[27]

Naquele regime, a previsão contida no artigo 2º, parágrafo 2º, do Decreto-lei 3365/41, mostrava-se compatível com a centralização de poderes e prerrogativas na União, o que criava uma aparente hierarquia de entes federativos, reproduzida, portanto, na aludida norma expropriatória.

A partir do momento em que o Estado Federado é restabelecido com a Constituição de 1946, não há falar mais em hierarquia entre entes federados e, portanto, não há falar em regra hierárquica para desapropriação. De mais a mais, a inaplicabilidade desta regra foi consolidada em nosso atual regime, instituído pela Constituição Federal de 1988, que prevê, em seu artigo 18, a autonomia da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios.

Não havendo hierarquia federativa e tampouco superioridade da União no que tange às desapropriações, é forçoso reconhecer a inaplicabilidade do disposto no artigo 2º, parágrafo 2º, do Decreto-lei 3365/41.[28]

A única possibilidade de continuarmos a conferir eficácia à citada norma seria se a analisássemos sob o aspecto dos interesses federativos envolvidos, fazendo a ressalva de que tratamos, aqui, de interesse público primário. E, nesse ponto, temos que reconhecer a existência de hierarquia entre os interesses nacionais, regionais e locais, o que, por óbvio, não implica no reconhecimento de hierarquia entre os entes federativos.

É por isso que, desse modo, a escala expropriatória do art. 2º, §2º, do Decreto-lei n.3.365/41, só deve ser aplicada quando as pessoas nela referidas estiverem agindo em nome de interesses públicos primários, pois, para nós, a única razão capaz de justificar a prevalência de interesses postos a cargos de pessoas políticas juridicamente iguais é a maior abrangência desse interesse sobre o qual prevalecerá, devendo-se tomar a expressão abrangência do interesse no sentido do número de beneficiários que a satisfação desse interesse pode alcançar.[29]

Dessa maneira, e adotando em nosso estudo as lições de Letícia Queiroz de Andrade, a aplicabilidade do artigo 2º, parágrafo 2º, do Decreto-lei 3365/41, apenas teria sua razão de ser quando estiverem em choque dois interesses públicos primários. Nesse caso, deverá prevalecer o interesse público primário de maior abrangência, ou seja, aquele capaz de atingir um número maior de beneficiários.

Logo, a validade da citada norma depende de que a ela se atribua a interpretação acima, isto é, de que ela contemple um critério para a resolução de conflitos relacionados à desapropriação de bens públicos quando estejam se contrapondo dois interesses públicos primários, prevalecendo o interesse nacional sobre o regional e o local, e o regional sobre o local.[30]

Caso não estejamos diante de conflito de interesses, há a possibilidade de desapropriação “inversa”.

Feitas estas ponderações, passamos a analisa-las em conjunto com nosso estudo.

Verificamos com o edifício Wilton Paes de Almeida, bem público federal dominical situado em área urbana, não cumpre sua função social. A Constituição Federal, o Estatuto da Cidade e a Lei Municipal 16050/14 estatuem que, nesses casos, o adequado uso do bem será promovido, sob pena de parcelamento, edificação ou utilização compulsórias; IPTU progressivo no tempo; ou desapropriação mediante pagamento em títulos da dívida pública.

As duas primeiras medidas seriam inaplicáveis ao caso, nos termos das razões expostas alhures. E, diante das conclusões alcançadas sobre a possibilidade de desapropriação “inversa”, temos que a desapropriação seria instrumento adequado na situação ora tratada.

Não estamos diante de conflito de interesses públicos primários que autorize seja invocada a escala hierárquica prevista no artigo 2º, parágrafo 2º, do Decreto-lei 3365/41. O edifício não está afetado a qualquer destinação pública e o uso que poderia ser feito dele destinar-se-ia ao atendimento de interesses locais, ainda que de forma a concretizar princípios de maior jaez (como o direito à segurança pública e o direito à educação, considerando-se aqui a instalação da Polícia Federal no prédio e a frustrada criação do instituto de ciências jurídicas da UNIFESP).

Dessa maneira, adotando o raciocínio que admite a desapropriação “inversa” e tratando do caso concreto dentro dos limites de uma discussão eminentemente jurídica (sem levar em consideração questões políticas que envolvam o assunto), temos que é possível a imposição de sanção, pelo Município de São Paulo, ao Poder Público federal pela inutilização do edifício Wilton Paes de Almeida, fazendo-o por meio da desapropriação.

E, nesse caso, o Município teria que conferir aproveitamento ao imóvel no prazo de cinco anos, a contar da incorporação, aproveitamento este que pode se dar por meio de atuação direta municipal ou através da alienação ou concessão do imóvel a terceiros, via processo licitatório.


5. CONCLUSÃO

Marco na arquitetura de São Paulo e tombado pelo Conpresp, o edifício Wilton Paes de Almeida trouxe à cidade o conceito da courtain wall, trabalhado por Le Corbusier no exterior. Um prédio com tamanha relevância para a história da arquitetura deveria estar sendo empregado de modo a prestigiar não apenas sua própria estrutura, mas também a promover o desenvolvimento socioeconômico, sobretudo na região central da cidade, onde está situado. Em outras palavras, esse conceituado imóvel deveria estar atendendo à sua função social.

A inutilização do prédio pelo Governo Federal, tornou latente a necessidade de discutir se o próprio federal está ou não cumprindo sua função social. Isso porque os bens públicos também devem cumprir sua função social.

Constatado que o próprio não cumpre a função social da propriedade privada e, indo mais além, não observa também a função social da cidade, tornou-se necessário verificarmos quais das medidas sancionatórias tendentes ao uso adequado do solo urbano são aplicáveis ao caso concreto.

E, com isso, verificamos que a única medida plausível de ser aplicada é a desapropriação e, nesse caso, a desapropriação “inversa”, que, como vimos, é totalmente compatível com nossa nova ordem constitucional.

Dessa forma, não haveria como o Município de São Paulo compelir o Poder Público Federal a conferir adequado uso ao prédio, uso este tendente à concretização de sua função social, pois a única sanção cabível diante do descumprimento da função social da propriedade urbana, nesse caso, seria a incorporação do imóvel ao patrimônio público municipal, por meio da desapropriação.

Ao verificarmos as conclusões alcançadas para o caso do edifício Wilton Paes de Almeida, podemos estende-las a qualquer próprio federal ou estadual situado dentro dos limites urbanos de um Município e que não esteja cumprindo sua função social urbana. Em qualquer desses casos, não será possível que o respectivo Município compila o ente federativo a agir como forma de garantir que aquele imóvel atenda as diretrizes do plano diretor e, conseguintemente, cumpra sua função social.

Como vimos, duas das três medidas constitucionalmente previstas para casos como tais não são aplicáveis a imóveis públicos, seja por implicarem em possível desrespeito à autonomia do ente federativo (no caso de edificações, parcelamentos e utilizações compulsórias), seja por acarretarem afronta à imunidade tributária. A única medida plausível, pois, é a desapropriação.

Nesse diapasão, o descumprimento da função social da propriedade pública urbana por parte da União ou dos Estados-membros, acaso queira ser combatida e a desapropriação seja bem sucedida, repassará ao Município o ônus de conferir ao imóvel o adequado aproveitamento, seja diretamente, seja por meio de licitação para alienação a terceiros. É dizer, em se tratando de função social da propriedade pública urbana, caso não haja a observância voluntária por parte dos entes federados desta máxima, o Município é o único que poderá fazê-lo, após a incorporação do imóvel ao seu patrimônio.


6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Letícia Queiroz de. Desapropriação de bens públicos (à luz do princípio federativo). São Paulo : Malheiros, 2006.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26. Ed., São Paulo : Malheiros, 2009.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 27. Ed., São Paulo : Atlas, 2014.

COMPARTATO, Fábio Konder. Pareceres – Princípio Federal – Bens estaduais não podem ser desapropriados – Caso Banespa. RTDP 11/82. São Paulo, 1995.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. Ed., São Paulo : Atlas, 2004.

_____________________________. Função social da propriedade pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador : Instituto de Direito Público da Bahia, n. 6 abr/mai/jun, disponível em www.direitodoestado.com.br, acesso aos 31 de outubro de 2014.

FIALHO, Roberto Novelli. Edifícios de escritórios na cidade de São Paulo. Tese – Doutorado - FAUUSP. São Paulo, 2007.

MURRAY, Scott. Contemporary curtain wall architecture. New York : Princeton Architectural Press, 2009.

ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Função Social da Propriedade Pública.  São Paulo : Malheiros, 2005.

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo : Saraiva, 2009. p. 663-664.

ZMEKHOL, Roger. O vidro plano na arquitetura brasileira. Arquitetura e Construção. Dezembro/1966.


NOTAS

[1] ZMEKHOL, Roger. O vidro plano na arquitetura brasileira. Arquitetura e Construção. Dezembro/1966, p. 11.

[2] Id. Ibid.

[3] Id. Ibid.

[4] MURRAY, Scott. Contemporary curtain wall architecture. New York : Princeton Architectural Press, 2009, P. 31/32.

[5] ZMEKHOL, Roger. O vidro plano na arquitetura brasileira. Arquitetura e Construção. Dezembro/1966, p. 15.

[6] Processo nº 0000551-03.2014.403.6100; 14ª Vara Federal de São Paulo – União Federal x Ocupantes irregulares do Edifício Wilton Paes.

[7] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26. Ed., São Paulo : Malheiros, 2009, p. 902.

[8] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 27. Ed., São Paulo : Atlas, 2014, 1160 e ss.

[9] Id. Ibid., p. 1163.

[10] Id. Ibid., p. 1163 e 1164.

[11] Id. Ibid., p. 1164 e 1165.

[12] Id. Ibid., p. 1166 e 1167.

[13] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. Ed., São Paulo : Atlas, 2004, p. 573.

[14] ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Função Social da Propriedade Pública.  São Paulo : Malheiros, 2005, p. 65.

[15] Id. Ibid., p. 65 e 66.

[16] A propriedade urbana é distinguida, legalmente, da propriedade rural no art. 32, §1º, do Código Tributário Nacional: “Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município. § 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II - abastecimento de água; III - sistema de esgotos sanitários; IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado. § 2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior.”

[17] CARVALHO FILHO, José do Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. São Paulo : Atlas, 2014, p. 794.

[18] DUGUIT, Leon. Apud TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo : Saraiva, 2009. p. 663-664.

[19] TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7ª ed. São Paulo : Saraiva, 2009. P. 667.

[20] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função social da propriedade pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador : Instituto de Direito Público da Bahia, n. 6 abr/mai/jun, disponível em www.direitodoestado.com.br, acesso aos 31 de outubro de 2014.

[21] Como exemplo, citamos o acórdão proferido no julgamento dos Embargos de Declaração n. 0120495-55.2009.8.26.0100, da 5ª Câmara de Direito Privado, julgado aos 17 de fevereiro de 2014.

[22] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função social da propriedade pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador : Instituto de Direito Público da Bahia, n. 6 abr/mai/jun, disponível em www.direitodoestado.com.br, acesso aos 31 de outubro de 2014.

[23] Id. Ibid.

[24] E prossegue o autor, justificando a indistinta aplicação da função social às três categorias de bens públicos, denotando-se seu posicionamento sobre a possibilidade de usucapião dos bens públicos dominicais: "O princípio da função social da propriedade incide sobre os bens de uso comum mediante paralisação da pretensão reintegratória do Poder Público, em razão de outros interesses juridicamente relevantes, sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana; incide também sobre bens de uso comum mediante paralisação da pretensão reivindicatória do Poder Público com fundamento no art. 1.228, §4º, do Código Civil. O princípio da função social incide, também, sobre os bens de uso especial mediante submissão dos referidos bens aos preceitos que disciplinam a função social dos bens urbanos, especialmente ao atendimento da função social das cidades. O princípio da função social incide, outrossim, sobre os bens dominicais conformando-os à função social das cidades e do campo e viabilizando a aquisição da propriedade dos referidos bens pela usucapião urbana, rural e coletiva". ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Função Social da Propriedade Pública. São Paulo : Malheiros, 2005. p. 159-160.

[25] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função social da propriedade pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador : Instituto de Direito Público da Bahia, n. 6 abr/mai/jun, disponível em www.direitodoestado.com.br, acesso aos 31 de outubro de 2014

[26] Processo nº 0000551-03.2014.403.6100; 14ª Vara Federal de São Paulo – União Federal x Ocupantes irregulares do Edifício Wilton Paes.

[27] COMPARTATO, Fábio Konder. Pareceres – Princípio Federal – Bens estaduais não podem ser desapropriados – Caso Banespa. RTDP 11/82. São Paulo, 1995, p. 86.

[28] ANDRADE, Letícia Queiroz de. Desapropriação de bens públicos (à luz do princípio federativo). São Paulo : Malheiros, 2006, p. 113.

[29] Id. Ibid., p. 114.

[30] Id. Ibid., p. 116.


Autor

  • Thomas Augusto Ferreira de Almeida

    Procurador Federal. Doutorando em Direito Constitucional pela PUC/SP. Mestre e Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/SP. Professor-assistente da pós graduação lato sensu da PUC/SP.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Thomas Augusto Ferreira de. A função social da propriedade pública e o edifício Wilton Paes de Almeida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4739, 22 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35146. Acesso em: 28 abr. 2024.