Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/48029
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Cadê o dinheiro que estava aqui? Reflexões sobre as imputações constantes da peça acusatória do impeachment

Cadê o dinheiro que estava aqui? Reflexões sobre as imputações constantes da peça acusatória do impeachment

Publicado em . Elaborado em .

Após diversas manifestações contrárias e favoráveis aos argumentos que dão sustentação ao pedido de impedimento da Presidente, formamos uma convicção sobre o tema e decidimos fazer um confrontamento das ideias centrais que são expostas por ambas as partes

Em atenção ao quanto deduzido na peça vestibular do processo de impeachment subscrita pelos juristas Janaína Paschoal, Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr., o Presidente da Mesa da Câmara dos Deputados tomou a decisão de determinar a abertura do processo de impeachment acolhendo os seguintes argumentos:

a) realização pela União de operações de créditos com bancos públicos - as chamadas pedaladas fiscais;

b) edição de seis decretos não numerados que teriam aberto créditos suplementares sem autorização legislativa.


DAS PEDALADAS FISCAIS

Especificamente quanto às famigeradas pedaladas, paira controvérsia quanto à análise de atos que teriam sido praticados no mandato passado da Presidente da República (2011-2014), que, de acordo com a decisão do Presidente da Mesa da Câmara, não deveriam ser, nos termos do artigo 86, §4º da Constituição Federal[1], objeto de análise pela Câmara dos Deputados. Os requerentes sustentam, com supedâneo em judiciosa corrente doutrinária, que a reeleição da Presidente permitiria a conclusão de que toda a gestão pudesse ser compreendida como um mandato único. Firme nesta percepção, abriu-se uma preliminar na peça acusatória pontualmente voltada ao cabimento do pedido de impeachment baseado em atos ocorridos durante o mandato anterior. O pleito busca amparo nas precisas lições de Paulo Brossard:

“Embora não haja faltado quem alegasse que eleição popular tem a virtude de apagar as faltas pretéritas, a verdade é que infrações cometidas antes da investidura no cargo, estranhas ao seu exercício ou relacionadas com anterior desempenho, têm motivado o impeachment, desde que a autoridade seja reinvestida em função suscetível de acusação parlamentar. Estas dimensões, atribuídas ao impeachment, pela doutrina e experiência americanas, condizentes, aliás, com as características do instituto, não as ignora a literatura brasileira. Maximiliano, a propósito, doutrinou: ‘só se processa perante o Senado quem ainda é funcionário, embora as faltas tenham sido cometidas no exercício de mandato anterior’... Enfim, se infrações recentes ou antigas podem motivar a apuração da responsabilidade, a pena não vai além da destituição do cargo, com inabilitação para o exercício de outro...” (Paulo Brossard. O Impeachment. São Paulo: Saraiva, 3ª. ed. 1992. p. 137).

Verifica-se, entretanto, que a superação da preliminar sustentada pela acusação fez com que ficasse de fora os fatos apontados pelo Parecer Prévio do Tribunal de Contas da União no Processo TC nº 005.335/2015-9, que recomendou a rejeição das contas de 2014 da Presidência da República e acabou sendo confirmado pela decisão tomada na sessão de 7 de outubro de 2015 (acórdão 2461/2015 — Plenário).

 A despeito de já ter havido definição quanto à obscura tese de que a reeleição constituiria verdadeira anistia aos crimes perpetrados no primeiro mandato, o fato é que o libelo acusatório resguarda sua higidez ao ser enfático quanto à ocorrência das pedaladas fiscais no exercício de 2015. Tal fato foi corroborado pelo oferecimento de Representação específica quanto ao exercício orçamentário do referido ano no Tribunal de Contas da União. O governo permanece se valendo do expediente de tomar crédito de forma escamoteada, poupando a realização de gastos que são artificialmente contabilizados no resultado primário, esquivando-se de registrar o passivo a descoberto gerado pela maquiagem contábil.

A representação ministerial elaborada pelo Procurador Júlio Marcelo de Oliveira ressalta que o art. 1º, § 6º, da Lei nº 12.096/09 determina que o Conselho Monetário Nacional estabelecerá a distribuição entre o BNDES e o FINEP do limite de financiamentos subvencionados de que trata o § 1º e definirá os grupos de beneficiários e as condições necessárias à contratação dos financiamentos, cabendo ao Ministério da Fazenda a regulamentação das demais condições para a concessão de subvenção econômica de que trata o aludido artigo, destacando entre elas, a definição da metodologia para o pagamento da equalização da taxa de juros. Com fulcro no dispositivo acima mencionado, o Ministério da Fazenda editou, em 2014, a Portaria 29/2014, que estabeleceu, entre outros aspectos, sistemática para pagamento, pela União ao BNDES, das equalizações de taxas de juros, consoante o descrito a seguir:

Art. 7º Os valores de equalização serão apurados em 30 de junho e 31 de dezembro de cada ano, conforme metodologia de cálculo constante do Anexo I, e devidos em 1º de julho e em 1º de janeiro de cada ano, observado que: (...)

II – os valores apurados das equalizações a partir de 16 de abril de 2012, relativos às operações contratadas pelo BNDES, serão devidos nos dias 1º de julho e 1º de janeiro de cada ano, após decorridos 24 meses do término de cada semestre de apuração e atualizados pelo Tesouro Nacional desde a dará de apuração até a data de efetivo pagamento. 

Diante do conteúdo disposto no dispositivo colacionado, a sistemática de pagamento prevê que, ao final de cada semestre, sejam calculadas as equalizações devidas ao BNDES e somente após transcorridos 24 meses do encerramento de referido período de equalização (6 meses), sejam efetuados os respectivos pagamentos à instituição financeira. A Representação delineada pelo Parquet registra que no âmbito do TC 021.643/2014-8, por meio do acórdão 825/TCU-Plenário, de 15 de Abril de 2015, o ato de postergar em 24 meses o pagamento das equalizações devidas à referida instituição financeira deve ser considerado pela Corte de Contas como uma operação de crédito, nos moldes descritos pelo art. 29, inciso III, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Considerando tratar-se de instituição financeira federal, referida operação de crédito é expressamente vedada pelo art. 36 do referido diploma, que proíbe a realização de operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o seu ente controlador.  

Posteriormente, ainda em 2014, a Portaria 29/2014 foi revogada pelo Portaria 193/2014, a qual manteve a mesma sistemática de pagamento trazida pela portaria revogada, ou seja, a importância decorrente da equalização continuaria a ser apurada ao final de cada semestre e somente seriam pagos ao BNDES após 24 meses. A despeito da manifestação lúcida e cristalina pela qual a Egrégia Corte de Contas reprovou essa conduta, o Governo Federal, no ano de 2015, não promoveu qualquer alteração na forma como os valores decorrentes das equalizações são apurados e pagos ao BNDES. O Procurador Júlio Marcelo de Oliveira aponta que o BNDES já teria suportado aproximadamente 25 bilhões de reais por força desta equalização. Entretanto, apenas 5,8 bilhões referentes à aludida operação estariam contabilizados. Diante do exposto, ainda que não tenha sido minudenciado na peça vestibular tal registro, a denúncia ressaltou a ocorrência de atrasos dolosos durante o ano de 2015.

Os recursos do BNDES não foram os únicos a serem utilizados indevidamente durante o exercício de 2015. A União recentemente tomou empréstimo com o Banco do Brasil sob a forma de adiantamentos em relação ao Plano Safra, utilizando capital do banco público para subsidiar o alongamento do crédito rural. A operação registrou valores expressivos, da ordem de R$ 3 bilhões, igualmente devidos por equalização de taxa de juros.

O Direito Financeiro positivo define o conceito de operação de crédito, nos casos em que é devedora a pessoa jurídica de direito público, no artigo 29, III da LRF, em definição consentânea com a diretriz do artigo 3º da Resolução nº 43/2001 do Senado Federal, a quem compete dispor e limitar as operações de crédito contraídas pelos entes federativos, de acordo com o artigo 52 da Constituição Federal. Dispõe o artigo 29, inciso III, da Lei de Responsabilidade Fiscal: 

“Art. 29. Para os efeitos desta Lei Complementar, são adotadas as seguintes definições:

III - operação de crédito: compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termos de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.”

Por sua vez, dispõe o artigo 3º da Resolução do Senado nº 43/01:

“Art. 3º Constitui operação de crédito, para os efeitos desta Resolução, os compromissos assumidos com credores situados no País ou no exterior, em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.

§ 1º Equiparam-se a operações de crédito: (Renumerado do parágrafo único pela Resolução n.º 19, de 2003)

I - recebimento antecipado de valores de empresa em que o Poder Público detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto, salvo lucros e dividendos, na forma da legislação;

II - assunção direta de compromisso, confissão de dívida ou operação assemelhada, com fornecedor de bens, mercadorias ou serviços, mediante emissão, aceite ou aval de títulos de crédito;

III - assunção de obrigação, sem autorização orçamentária, com fornecedores para pagamento a posteriori de bens e serviços.

§ 2º Não se equiparam a operações de crédito: (Incluído pela Resolução n.º 19, de 2003)

I - assunção de obrigação entre pessoas jurídicas integrantes do mesmo Estado, Distrito Federal ou Município, nos termos da definição constante do inciso I do art. 2º desta Resolução; (Incluído pela Resolução n.º 19, de 2003)

II - parcelamento de débitos preexistentes junto a instituições não-financeiras, desde que não impliquem elevação do montante da dívida consolidada líquida. (Incluído pela Resolução n.º 19, de 2003)

Cumpre observar que o conceito legal comporta cláusula genérica para compreender como operação de crédito outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros. O mesmo dispositivo equipara outros negócios às operações de crédito, o que alcança, sem dúvida alguma, o que foi realizado pelo governo. É exatamente o que ocorreu com o Programa Minha Casa, Minha Vida.  

Sem transferir o que competia à Caixa Econômica Federal, a União obrigou a instituição a cumprir obrigação financeira que não lhe cabia. Ora, o pagamento de obrigações sociais que incumbiam ao governo sem o repasse de recursos caracteriza operação de crédito ao arrepio da legislação financeira. E um empréstimo altamente lesivo, visto que não possui contrapartida no déficit público, deturpando o resultado primário apurado. A União deixou de executar rubricas destinadas ao Programa, contabilizou o valor como se fosse uma “economia” para a formação de um superávit fantasioso e, assim, beneficiou-se dos recursos tomados junto à instituição financeira.

O governo alega que não se pode confundir operação de crédito com o surgimento de um crédito em decorrência de um inadimplemento contratual. A União, como qualquer outro contratante, deve responder pelo inadimplemento das obrigações por ela assumidas com as instituições financeiras que contrata, ainda que seja controladora dessas entidades. Assim, o mero adiantamento de valores por meio do fluxo de caixa para suprimento de fundos no âmbito na relação contratual entre a União e os bancos públicos, sem que tenha sido contratada qualquer operação financeira, não poderia se submeter ao regramento jurídico das operações de crédito, inclusive no que se refere à vedação do art. 36 da LRF. Não podemos concordar com este raciocínio.

É fato que não há um mútuo na sua concepção mais tradicional. Entretanto, o argumento de que haveria “ mero adiantamento” cai por terra quando se verifica que o recurso é contabilizado em favor do resultado primário.  A União locupleta-se efetivamente do referido “saldo” do fluxo de caixa. Se nenhum proveito contábil houvesse com relação ao aludido evento, o argumento de que há efetivamente a apuração de mero saldo na conta de um determinado programa seria, ao menos em tese, aceitável. Entretanto, não é o que ocorre. O Governo assume passivos a descoberto ao tempo em que contabiliza recursos supostamente “economizados” como se não houvesse nenhum ônus a suportar a posteriori. Se há um efetivo proveito por parte de quem de alguma forma se torna beneficiário do recurso, configurada está a operação financeira. Segundo o professor Régis Fernandes de Oliveira, proíbe, também, a lei que haja operação de crédito entre uma instituição, financeira estatal e o ente da federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo (Regis Fernandes de Oliveira. Curso de Direito Financeira. RT, 7ª. ed., pág. 800).  

O governo afirma que o entendimento do TCU impediria a União de contratar qualquer serviço com os bancos públicos, diante do risco sempre existente de inadimplemento de qualquer das obrigações estatais, o que geraria um direito de crédito que não estaria submetido aos ditames normativos das operações de crédito. Nesses moldes, a União só poderia contratar os seus serviços com bancos privados, o que, decerto, seria um absurdo. Neste ponto, o governo quer provocar uma confusão entre um dado direito e o abuso manifesto no momento de exercê-lo. É claro que a União pode contratar bancos públicos para operar programas e que não há qualquer problema na apuração de eventuais saldos. O que se espera é que os saldos não venham a atingir valores exorbitantes, que sejam ajustados a tempo adequado e que não sejam contabilizados em favor do resultado primário.

Não há como deixar de reconhecer que a Caixa Econômica Federal, ao honrar os pagamentos devidos pela União, suportou custo indevido. O processo de julgamento das contas da Presidente deixou claro que os adiantamentos dão ensejo ao cancelamento de rubricas orçamentárias específicas, que deixam subitamente de consubstanciar gastos públicos para serem integralizados ardilosamente ao resultado primário. Vale ressaltar que o Tribunal de Contas da União apontou também irregularidades em relação à Furnas S.A., à Araucária Nitrogenados S. A., à Energética Camaçari Muricy I S.A. 

Uma irregularidade pouco abordada, em que pese tenha sido objeto de apontamentos por parte do TCU, foi a ausência de contingenciamento. A Egrégia Corte de Contas registra que havia um notório cenário de frustração de receitas em confronto com as estimativas, fato que deveria ter dado ensejo ao contingenciamento necessário ao reequilíbrio das contas públicas.

A Corte foi enfática quanto ao alto nível de gastos com base em previsão desconectada com a realidade baseada em informações desatualizadas em detrimento de informações atualizadas que já estavam à disposição do Poder Executivo[2]. Não obstante, a União estaria adiando a transferência de recursos devidos aos Estados, Distrito Federal e Municípios, para, com isso, obter maiores resultados primários em sua própria contabilidade. A Nota de Esclarecimento publicada pelo Bacen em 15/07/2014 revela incorreções no montante de R$ 4 bilhões nos resultados fiscais divulgados por aquela autarquia relativos ao mês de maio de 2014. Nesse sentido, confira-se a consideração do Ministro José Múcio Monteiro:

Perversamente, a conduta de atrasar para o próximo mês a realização de referidas transferências, ao tempo em que aumenta a Receita Corrente Líquida (RCL) da União, parâmetro dos mais importantes das finanças públicas, porquanto relacionado ao cumprimento de metas fiscais impostas pela LRF (LC 101/2000), acaba por diminuir as disponibilidades dos entes federados que teriam o direito de receber os recursos até o último dia do mês. A não ser que estes tomem a iniciativa de registrar a receita em seus resultados, no mês a que teria direito, em contrapartida a crédito junto à União, providência correta do ponto de vista contábil, mas que, de qualquer maneira, diante da situação proporcionada pela estratégia adotada pelo Tesouro Nacional na realização dos repasses, traria inconsistências ao resultado primário agregado do setor público.[...] De fato, ainda não compreendo como é que dezenas de bilhões de reais em passivos da União tornaram-se imperceptíveis ou indiferentes aos olhos do Banco Central, não obstante constarem devidamente registrados nos ativos das instituições credoras e terem sido rapidamente flagrados pelos auditores do TCU. Afinal, se as dívidas que escaparam ao controle do Banco Central tivessem sido detectadas desde o seu surgimento, as irregularidades apontadas neste processo provavelmente não ganhariam grandes proporções nem se estenderiam por tanto tempo.

É preciso atentar para todos os efeitos deletérios provenientes da nefasta prática do atual governo. No momento em que o Tesouro transfere dinheiro para os bancos estatais, e estes então repassam esse dinheiro para terceiros, tal operação, por si só, não possui influxo inflacionário. Todavia, quando o Tesouro não transfere nada para os bancos, mas os obriga a repassar dinheiro para terceiros, a situação muda completamente. Nesse caso, os bancos repassarão dinheiro (no caso dos gastos sociais) ou emprestarão dinheiro (no caso de financiamentos) para terceiros, e ficarão à espera do Tesouro lhes transferir esse valor.

A pedalada manifestamente aumenta a quantidade de dinheiro na economia. De um lado, os bancos geraram dinheiro contabilmente e repassam essa importância para terceiros. O Tesouro não subtraiu nenhum valor para repassá-lo ao banco. Portanto, no saldo final, a quantidade de dinheiro na economia aumentou. E, segundo o que foi divulgado pelo governo, o total das pedaladas — isto é, a quantidade de dinheiro que foi criada e jogada na economia apenas por essa contabilidade inventiva — foi de R$ 72,4 bilhões.


DA ABERTURA DE CRÉDITOS SUPLEMENTARES

Sobre os decretos ilegais de abertura de créditos suplementares, a denúncia imputa à Presidente da República os crimes de responsabilidade tipificados na Lei 1079/1950, artigo 10, itens 4, 5 e 6, por ter editado decretos não numerados para abrir créditos suplementares sem autorização legal, da ordem de R$ 18 bilhões.

As condutas descritas foram apuradas, constatadas e reconhecidas como ilegais pelo Tribunal de Contas da União, em decisão tomada na sessão de 7 de outubro de 2015 (acórdão 2461/2015 — Plenário), na qual a Egrégia Corte emitiu parecer pela rejeição das contas de governo referentes ao exercício de 2014.

Considerando que os fatos repudiados pelo TCU se repetiram em 2015, conforme descreve a denúncia, os esclarecimentos a seguir são feitos com base neste último ano. A lei orçamentária contém a previsão de receitas e a autorização de gastos, que, em face de alterações nas circunstâncias de fato ocorridas na execução orçamentária, podem ser modificadas, desde que exista autorização legal.

A lei orçamentária federal de 2015 (Lei 13.115, de 20/4/2015), em seu artigo 7º[3], concedeu autorização prévia para que o Poder Executivo editasse decretos abrindo créditos suplementares, mas condicionados à observância dos requisitos fixados, entre os quais está a necessidade de compatibilização com as metas de resultado primário

O artigo 10, item 6, da Lei n. 1079/50[4] prevê que a abertura de crédito suplementar sem autorização da lei orçamentária é crime de responsabilidade passível de gerar o impeachment do Presidente da República. Portanto, se essa acusação for verdadeira, seja por força da Constituição ou pela Lei do Impeachment, haveria motivo jurídico para a aplicação do impeachment. Não nos cabe julgar se a Constituição e a lei devem ou não ser aplicadas. Há um consenso no sentido de que negar a aplicação da Constituição e da lei é que pode configurar um golpe.

A peça acusatória imputa à Presidente a abertura de crédito suplementar sem base na lei orçamentária porque, segundo as leis orçamentárias de 2014 (artigo 4 da Lei n. 12.925/14) e 2015 (artigo 7º Lei n. 13.115/15), não poderia ser aberto crédito suplementar se os valores autorizados fossem incompatíveis com a meta de superávit prevista para tais exercícios.  Dito de outra forma, se o governo queria gastar mais, precisaria tirar esse dinheiro da quantia que economizou a priori. A lei prescreve que a prerrogativa de suprimir a autorização legal só pode ser confirmada mediante a comprovação de que o governo alcançou o resultado primário previsto.

A rigor, quando os decretos mencionados na acusação foram editados, já se sabia que a meta do superávit não seria alcançada. E não há como o governo escusar-se do prévio conhecimento desta realidade, na medida em que já havia enviado ao Congresso projetos de leis para a alteração da meta. Em 27 de julho de 2015, o governo determinou a abertura de crédito suplementar de R$ 36.759.382.520,00 para fazer frente a despesas do Tesouro. É importante que se diga que a quantia de R$ 36.048.917.463 foi obtida com a anulação de outras despesas. Até o limite do referido importe, o que se tem é uma descentralização ou mero remanejamento. Entretanto, para que a conta feche, faltam aproximadamente R$ 710.465.057,00. Como o governo conseguiu auferir essa diferença?

Segundo um dos decretos editados pela Presidente Dilma, R$ 703.465.057,00 viriam do superávit primário de 2014. Ora, já se sabe que esse superávit era ao fim e ao cabo uma grande ilusão, tendo em vista que essa pretensa “economia” foi fruto de pedaladas. As contas já estão rejeitadas e quanto a estes fatos não remanescem quaisquer dúvidas. De toda forma, é preciso explicar um desfalque de aproximadamente sete milhões de reais. Pasmem os leitores, essa importância foi retirada do "excesso de arrecadação de doações 2015".

 Ora, se o governo alega "excesso", é porque o Tesouro disporia, na época em que aberto o crédito, de um superávit, ou seja, uma sobra. Em suma, a Presidente Dilma afirmou que teria superávit em julho de 2015, de modo que, aparentemente, o decreto estaria de acordo com a Lei nº 13.115/15. No entanto, ao mesmo tempo em que o normativo falava em "excesso de arrecadação", o mesmo governo mandava um projeto de lei para alterar a meta do superávit (PLN 05/15). Em síntese, o alegado superávit, ao nosso entender, era um dado falso, uma mentira.

Sob a nossa perspectiva, o governo violou intencionalmente o comando constante do artigo 7º da Lei nº 13.115/15. Isso porque teria ocorrido a abertura de um crédito suplementar sem autorização na lei orçamentária. E o pior: a supressão da participação legislativa se deu mediante um dado que o governo tinha certeza de que não era verdadeiro. Não temos dúvidas quanto a configuração de fato jurídico apto a ensejar o impeachment, porquanto consolidada a materialidade prevista no artigo 185, V, da Constituição Federal e o artigo 10, item 6, da Lei 1079/50. Vale ressaltar que a conduta descrita é uma reiteração do quanto já ocorrido durante o exercício de 2014, sendo que já há havia relatório do TCU - ainda que pendente de julgamento final - alertando que essa conduta violaria a lei orçamentária.

Os defensores da Presidente afirmam que os decretos não teriam criado despesa nova. Neste ponto, cumpre rememorar que o decreto a pouco mencionado teria criado crédito suplementar de 36.759.382.520,00 e anulado uma despesa de 36.048.917.463,00. O governo insiste em justificar-se afirmando que uma dotação anula a outra.  Isso é parcialmente verdade. Entretanto, é preciso justificar os setecentos milhões “desaparecidos”.  E isso ninguém explica. Segundo Ricardo Lodi, professor escolhido para defender a Presidente em sessão da Comissão Especial, não haveria necessidade para justificar essa diferença. Isso porque tal importância deixaria de ser formalmente considerada após a revisão da meta. A aprovação do PLN 5 funcionaria como uma redentora convalidação de todas as irregularidades cometidas durante o exercício orçamentário.

A pretensa convalidação é a confirmação de que não é necessário guardar o mínimo de responsabilidade fiscal durante o exercício, dado que todos os equívocos podem ser solenemente ignorados no final do ano. O que importa é a realização da meta tão somente após a sua revisão. Obviamente, não podemos compactuar com essa conclusão. A primeira razão é que o decreto impugnado abriu o crédito quando já estava frustrada a previsão de meta constante da lei orçamentária. O ato surgiu para o ordenamento em manifesta incompatibilidade com a lei que previa a meta de resultado primário. Uma norma infralegal que nasce ilegal não pode ser convalidada por uma lei posterior. O vício congênito causado pela inconformidade com norma superior que configura seu pressuposto de validade não pode ser sanado.  Esse é um princípio básico da hierarquia das normas.

A rigor, não se pode considerar de menor importância o fato de a Presidente valer-se de dados falsos no momento de editar um dado decreto. Ora, se quando o decreto em alusão foi editado não havia superávit, por óbvio não havia excesso de arrecadação. Ora, se tal fato era de amplo conhecimento, considerada a iniciativa voltada a alterar a meta, temos de reconhecer que o governo inseriu, voluntariamente, um dado falso em um ato normativo.  Cumpre-nos reconhecer que a revisão da meta de superávit não tem o condão de reconstruir o passado, já que a  Presidente faltou com a verdade no preciso momento em que o Decreto foi criado.

Mantendo as vênias de estilo, afigura-nos insustentável o argumento do Professor Ricardo Lodi ao proclamar o saneamento das irregularidades pela aprovação do PLN 05.  Segundo o artigo 9º da Lei 101/00, Lei de Responsabilidade Fiscal, se no final do bimestre o governo percebe que não vai cumprir a meta de superávit, fica obrigado a limitar empenho. Limitar empenho significa reduzir despesas, parar de gastar. É justamente a conduta contrária ao que se fez quando da solicitação de abertura de crédito suplementar.

Estamos convencidos de que o cumprimento da meta é algo que deve ser feito ao longo do ano. O exercício orçamentário não se resume ao dia 31 de dezembro. Isso tanto é verdade que o artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal exige um esforço bimestral do governo, esforço, esse, que foi descumprido ao se pedir abertura de crédito suplementar, sem que o resultado primário estivesse alcançado.  

Por fim, é comum deparar-se com o argumento de que o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, embora seja grave, não chega a consubstanciar um crime de responsabilidade. A partir dessa tipologia constitucional estrita, monocular, seria forçoso reconhecer que, não prevendo a Constituição Federal a possibilidade de crime de responsabilidade em face da violação da lei de responsabilidade fiscal, mas tão somente da lei de orçamento, não há que se falar em crime de responsabilidade pela violação ao artigo 35 da Lei Complementar nº 101/00.

Os fluxos de caixa entre a União e os bancos públicos, ainda que não se revistam em operações de crédito, o que, vimos, não é o caso, não violam propriamente a Lei Orçamentária Anual (LOA), que constitui o bem jurídico tutelado em todos os tipos legais do referido dispositivo sancionador dos crimes de responsabilidade, mas, supostamente, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que com ela não se confunde. Cumpre observar que os defensores desta tese simplesmente "esquecem" que o artigo 85 da Constituição Federal não tem apenas o inciso V. Cumpre ressaltar o inciso VI, que trata de "improbidade administrativa", e o inciso VII, que fala do descumprimento das leis em geral. Também é digno de registro que nosso texto trabalhou com o exemplo de apenas um decreto. Nossa breve análise ficou circunscrita a sete milhões. Entretanto, não se pode esquecer que o Professor Miguel Reale Jr. aponta que o total dessa diferença alcança a soma R$ 2,5 bilhões de reais.


Notas

[1] Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade. § 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

[2] Afirmação constante à página 40 do relatório do Ministro Augusto Nardes

[3] “Fica o Poder Executivo autorizado a abrir créditos suplementares, observados os limites e condições estabelecidos neste artigo, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015 (...).”

[4] Art. 10 – item 6 - ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal; (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALES, Pedro Henrique Ramos. Cadê o dinheiro que estava aqui? Reflexões sobre as imputações constantes da peça acusatória do impeachment. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4809, 31 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48029. Acesso em: 27 abr. 2024.