Em atenção ao quanto deduzido na peça vestibular do processo de impeachment subscrita pelos juristas Janaína Paschoal, Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr., o Presidente da Mesa da Câmara dos Deputados tomou a decisão de determinar a abertura do processo de impeachment acolhendo os seguintes argumentos:
a) realização pela União de operações de créditos com bancos públicos - as chamadas pedaladas fiscais;
b) edição de seis decretos não numerados que teriam aberto créditos suplementares sem autorização legislativa.
DAS PEDALADAS FISCAIS
Especificamente quanto às famigeradas pedaladas, paira controvérsia quanto à análise de atos que teriam sido praticados no mandato passado da Presidente da República (2011-2014), que, de acordo com a decisão do Presidente da Mesa da Câmara, não deveriam ser, nos termos do artigo 86, §4º da Constituição Federal[1], objeto de análise pela Câmara dos Deputados. Os requerentes sustentam, com supedâneo em judiciosa corrente doutrinária, que a reeleição da Presidente permitiria a conclusão de que toda a gestão pudesse ser compreendida como um mandato único. Firme nesta percepção, abriu-se uma preliminar na peça acusatória pontualmente voltada ao cabimento do pedido de impeachment baseado em atos ocorridos durante o mandato anterior. O pleito busca amparo nas precisas lições de Paulo Brossard:
“Embora não haja faltado quem alegasse que eleição popular tem a virtude de apagar as faltas pretéritas, a verdade é que infrações cometidas antes da investidura no cargo, estranhas ao seu exercício ou relacionadas com anterior desempenho, têm motivado o impeachment, desde que a autoridade seja reinvestida em função suscetível de acusação parlamentar. Estas dimensões, atribuídas ao impeachment, pela doutrina e experiência americanas, condizentes, aliás, com as características do instituto, não as ignora a literatura brasileira. Maximiliano, a propósito, doutrinou: ‘só se processa perante o Senado quem ainda é funcionário, embora as faltas tenham sido cometidas no exercício de mandato anterior’... Enfim, se infrações recentes ou antigas podem motivar a apuração da responsabilidade, a pena não vai além da destituição do cargo, com inabilitação para o exercício de outro...” (Paulo Brossard. O Impeachment. São Paulo: Saraiva, 3ª. ed. 1992. p. 137).
Verifica-se, entretanto, que a superação da preliminar sustentada pela acusação fez com que ficasse de fora os fatos apontados pelo Parecer Prévio do Tribunal de Contas da União no Processo TC nº 005.335/2015-9, que recomendou a rejeição das contas de 2014 da Presidência da República e acabou sendo confirmado pela decisão tomada na sessão de 7 de outubro de 2015 (acórdão 2461/2015 — Plenário).
A despeito de já ter havido definição quanto à obscura tese de que a reeleição constituiria verdadeira anistia aos crimes perpetrados no primeiro mandato, o fato é que o libelo acusatório resguarda sua higidez ao ser enfático quanto à ocorrência das pedaladas fiscais no exercício de 2015. Tal fato foi corroborado pelo oferecimento de Representação específica quanto ao exercício orçamentário do referido ano no Tribunal de Contas da União. O governo permanece se valendo do expediente de tomar crédito de forma escamoteada, poupando a realização de gastos que são artificialmente contabilizados no resultado primário, esquivando-se de registrar o passivo a descoberto gerado pela maquiagem contábil.
A representação ministerial elaborada pelo Procurador Júlio Marcelo de Oliveira ressalta que o art. 1º, § 6º, da Lei nº 12.096/09 determina que o Conselho Monetário Nacional estabelecerá a distribuição entre o BNDES e o FINEP do limite de financiamentos subvencionados de que trata o § 1º e definirá os grupos de beneficiários e as condições necessárias à contratação dos financiamentos, cabendo ao Ministério da Fazenda a regulamentação das demais condições para a concessão de subvenção econômica de que trata o aludido artigo, destacando entre elas, a definição da metodologia para o pagamento da equalização da taxa de juros. Com fulcro no dispositivo acima mencionado, o Ministério da Fazenda editou, em 2014, a Portaria 29/2014, que estabeleceu, entre outros aspectos, sistemática para pagamento, pela União ao BNDES, das equalizações de taxas de juros, consoante o descrito a seguir:
Art. 7º Os valores de equalização serão apurados em 30 de junho e 31 de dezembro de cada ano, conforme metodologia de cálculo constante do Anexo I, e devidos em 1º de julho e em 1º de janeiro de cada ano, observado que: (...)
II – os valores apurados das equalizações a partir de 16 de abril de 2012, relativos às operações contratadas pelo BNDES, serão devidos nos dias 1º de julho e 1º de janeiro de cada ano, após decorridos 24 meses do término de cada semestre de apuração e atualizados pelo Tesouro Nacional desde a dará de apuração até a data de efetivo pagamento.
Diante do conteúdo disposto no dispositivo colacionado, a sistemática de pagamento prevê que, ao final de cada semestre, sejam calculadas as equalizações devidas ao BNDES e somente após transcorridos 24 meses do encerramento de referido período de equalização (6 meses), sejam efetuados os respectivos pagamentos à instituição financeira. A Representação delineada pelo Parquet registra que no âmbito do TC 021.643/2014-8, por meio do acórdão 825/TCU-Plenário, de 15 de Abril de 2015, o ato de postergar em 24 meses o pagamento das equalizações devidas à referida instituição financeira deve ser considerado pela Corte de Contas como uma operação de crédito, nos moldes descritos pelo art. 29, inciso III, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Considerando tratar-se de instituição financeira federal, referida operação de crédito é expressamente vedada pelo art. 36 do referido diploma, que proíbe a realização de operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o seu ente controlador.
Posteriormente, ainda em 2014, a Portaria 29/2014 foi revogada pelo Portaria 193/2014, a qual manteve a mesma sistemática de pagamento trazida pela portaria revogada, ou seja, a importância decorrente da equalização continuaria a ser apurada ao final de cada semestre e somente seriam pagos ao BNDES após 24 meses. A despeito da manifestação lúcida e cristalina pela qual a Egrégia Corte de Contas reprovou essa conduta, o Governo Federal, no ano de 2015, não promoveu qualquer alteração na forma como os valores decorrentes das equalizações são apurados e pagos ao BNDES. O Procurador Júlio Marcelo de Oliveira aponta que o BNDES já teria suportado aproximadamente 25 bilhões de reais por força desta equalização. Entretanto, apenas 5,8 bilhões referentes à aludida operação estariam contabilizados. Diante do exposto, ainda que não tenha sido minudenciado na peça vestibular tal registro, a denúncia ressaltou a ocorrência de atrasos dolosos durante o ano de 2015.
Os recursos do BNDES não foram os únicos a serem utilizados indevidamente durante o exercício de 2015. A União recentemente tomou empréstimo com o Banco do Brasil sob a forma de adiantamentos em relação ao Plano Safra, utilizando capital do banco público para subsidiar o alongamento do crédito rural. A operação registrou valores expressivos, da ordem de R$ 3 bilhões, igualmente devidos por equalização de taxa de juros.
O Direito Financeiro positivo define o conceito de operação de crédito, nos casos em que é devedora a pessoa jurídica de direito público, no artigo 29, III da LRF, em definição consentânea com a diretriz do artigo 3º da Resolução nº 43/2001 do Senado Federal, a quem compete dispor e limitar as operações de crédito contraídas pelos entes federativos, de acordo com o artigo 52 da Constituição Federal. Dispõe o artigo 29, inciso III, da Lei de Responsabilidade Fiscal:
“Art. 29. Para os efeitos desta Lei Complementar, são adotadas as seguintes definições:
III - operação de crédito: compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termos de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.”
Por sua vez, dispõe o artigo 3º da Resolução do Senado nº 43/01:
“Art. 3º Constitui operação de crédito, para os efeitos desta Resolução, os compromissos assumidos com credores situados no País ou no exterior, em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.
§ 1º Equiparam-se a operações de crédito: (Renumerado do parágrafo único pela Resolução n.º 19, de 2003)
I - recebimento antecipado de valores de empresa em que o Poder Público detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto, salvo lucros e dividendos, na forma da legislação;
II - assunção direta de compromisso, confissão de dívida ou operação assemelhada, com fornecedor de bens, mercadorias ou serviços, mediante emissão, aceite ou aval de títulos de crédito;
III - assunção de obrigação, sem autorização orçamentária, com fornecedores para pagamento a posteriori de bens e serviços.
§ 2º Não se equiparam a operações de crédito: (Incluído pela Resolução n.º 19, de 2003)
I - assunção de obrigação entre pessoas jurídicas integrantes do mesmo Estado, Distrito Federal ou Município, nos termos da definição constante do inciso I do art. 2º desta Resolução; (Incluído pela Resolução n.º 19, de 2003)
II - parcelamento de débitos preexistentes junto a instituições não-financeiras, desde que não impliquem elevação do montante da dívida consolidada líquida. (Incluído pela Resolução n.º 19, de 2003)
Cumpre observar que o conceito legal comporta cláusula genérica para compreender como operação de crédito outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros. O mesmo dispositivo equipara outros negócios às operações de crédito, o que alcança, sem dúvida alguma, o que foi realizado pelo governo. É exatamente o que ocorreu com o Programa Minha Casa, Minha Vida.
Sem transferir o que competia à Caixa Econômica Federal, a União obrigou a instituição a cumprir obrigação financeira que não lhe cabia. Ora, o pagamento de obrigações sociais que incumbiam ao governo sem o repasse de recursos caracteriza operação de crédito ao arrepio da legislação financeira. E um empréstimo altamente lesivo, visto que não possui contrapartida no déficit público, deturpando o resultado primário apurado. A União deixou de executar rubricas destinadas ao Programa, contabilizou o valor como se fosse uma “economia” para a formação de um superávit fantasioso e, assim, beneficiou-se dos recursos tomados junto à instituição financeira.
O governo alega que não se pode confundir operação de crédito com o surgimento de um crédito em decorrência de um inadimplemento contratual. A União, como qualquer outro contratante, deve responder pelo inadimplemento das obrigações por ela assumidas com as instituições financeiras que contrata, ainda que seja controladora dessas entidades. Assim, o mero adiantamento de valores por meio do fluxo de caixa para suprimento de fundos no âmbito na relação contratual entre a União e os bancos públicos, sem que tenha sido contratada qualquer operação financeira, não poderia se submeter ao regramento jurídico das operações de crédito, inclusive no que se refere à vedação do art. 36 da LRF. Não podemos concordar com este raciocínio.
É fato que não há um mútuo na sua concepção mais tradicional. Entretanto, o argumento de que haveria “ mero adiantamento” cai por terra quando se verifica que o recurso é contabilizado em favor do resultado primário. A União locupleta-se efetivamente do referido “saldo” do fluxo de caixa. Se nenhum proveito contábil houvesse com relação ao aludido evento, o argumento de que há efetivamente a apuração de mero saldo na conta de um determinado programa seria, ao menos em tese, aceitável. Entretanto, não é o que ocorre. O Governo assume passivos a descoberto ao tempo em que contabiliza recursos supostamente “economizados” como se não houvesse nenhum ônus a suportar a posteriori. Se há um efetivo proveito por parte de quem de alguma forma se torna beneficiário do recurso, configurada está a operação financeira. Segundo o professor Régis Fernandes de Oliveira, proíbe, também, a lei que haja operação de crédito entre uma instituição, financeira estatal e o ente da federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo (Regis Fernandes de Oliveira. Curso de Direito Financeira. RT, 7ª. ed., pág. 800).
O governo afirma que o entendimento do TCU impediria a União de contratar qualquer serviço com os bancos públicos, diante do risco sempre existente de inadimplemento de qualquer das obrigações estatais, o que geraria um direito de crédito que não estaria submetido aos ditames normativos das operações de crédito. Nesses moldes, a União só poderia contratar os seus serviços com bancos privados, o que, decerto, seria um absurdo. Neste ponto, o governo quer provocar uma confusão entre um dado direito e o abuso manifesto no momento de exercê-lo. É claro que a União pode contratar bancos públicos para operar programas e que não há qualquer problema na apuração de eventuais saldos. O que se espera é que os saldos não venham a atingir valores exorbitantes, que sejam ajustados a tempo adequado e que não sejam contabilizados em favor do resultado primário.
Não há como deixar de reconhecer que a Caixa Econômica Federal, ao honrar os pagamentos devidos pela União, suportou custo indevido. O processo de julgamento das contas da Presidente deixou claro que os adiantamentos dão ensejo ao cancelamento de rubricas orçamentárias específicas, que deixam subitamente de consubstanciar gastos públicos para serem integralizados ardilosamente ao resultado primário. Vale ressaltar que o Tribunal de Contas da União apontou também irregularidades em relação à Furnas S.A., à Araucária Nitrogenados S. A., à Energética Camaçari Muricy I S.A.
Uma irregularidade pouco abordada, em que pese tenha sido objeto de apontamentos por parte do TCU, foi a ausência de contingenciamento. A Egrégia Corte de Contas registra que havia um notório cenário de frustração de receitas em confronto com as estimativas, fato que deveria ter dado ensejo ao contingenciamento necessário ao reequilíbrio das contas públicas.
A Corte foi enfática quanto ao alto nível de gastos com base em previsão desconectada com a realidade baseada em informações desatualizadas em detrimento de informações atualizadas que já estavam à disposição do Poder Executivo[2]. Não obstante, a União estaria adiando a transferência de recursos devidos aos Estados, Distrito Federal e Municípios, para, com isso, obter maiores resultados primários em sua própria contabilidade. A Nota de Esclarecimento publicada pelo Bacen em 15/07/2014 revela incorreções no montante de R$ 4 bilhões nos resultados fiscais divulgados por aquela autarquia relativos ao mês de maio de 2014. Nesse sentido, confira-se a consideração do Ministro José Múcio Monteiro:
Perversamente, a conduta de atrasar para o próximo mês a realização de referidas transferências, ao tempo em que aumenta a Receita Corrente Líquida (RCL) da União, parâmetro dos mais importantes das finanças públicas, porquanto relacionado ao cumprimento de metas fiscais impostas pela LRF (LC 101/2000), acaba por diminuir as disponibilidades dos entes federados que teriam o direito de receber os recursos até o último dia do mês. A não ser que estes tomem a iniciativa de registrar a receita em seus resultados, no mês a que teria direito, em contrapartida a crédito junto à União, providência correta do ponto de vista contábil, mas que, de qualquer maneira, diante da situação proporcionada pela estratégia adotada pelo Tesouro Nacional na realização dos repasses, traria inconsistências ao resultado primário agregado do setor público.[...] De fato, ainda não compreendo como é que dezenas de bilhões de reais em passivos da União tornaram-se imperceptíveis ou indiferentes aos olhos do Banco Central, não obstante constarem devidamente registrados nos ativos das instituições credoras e terem sido rapidamente flagrados pelos auditores do TCU. Afinal, se as dívidas que escaparam ao controle do Banco Central tivessem sido detectadas desde o seu surgimento, as irregularidades apontadas neste processo provavelmente não ganhariam grandes proporções nem se estenderiam por tanto tempo.
É preciso atentar para todos os efeitos deletérios provenientes da nefasta prática do atual governo. No momento em que o Tesouro transfere dinheiro para os bancos estatais, e estes então repassam esse dinheiro para terceiros, tal operação, por si só, não possui influxo inflacionário. Todavia, quando o Tesouro não transfere nada para os bancos, mas os obriga a repassar dinheiro para terceiros, a situação muda completamente. Nesse caso, os bancos repassarão dinheiro (no caso dos gastos sociais) ou emprestarão dinheiro (no caso de financiamentos) para terceiros, e ficarão à espera do Tesouro lhes transferir esse valor.
A pedalada manifestamente aumenta a quantidade de dinheiro na economia. De um lado, os bancos geraram dinheiro contabilmente e repassam essa importância para terceiros. O Tesouro não subtraiu nenhum valor para repassá-lo ao banco. Portanto, no saldo final, a quantidade de dinheiro na economia aumentou. E, segundo o que foi divulgado pelo governo, o total das pedaladas — isto é, a quantidade de dinheiro que foi criada e jogada na economia apenas por essa contabilidade inventiva — foi de R$ 72,4 bilhões.