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O princípio da igualdade e suas modalidades

O princípio da igualdade e suas modalidades

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No conjunto total dos princípios jurídicos, o princípio da igualdade está entre os mais importantes e decisivos. Seu conhecimento exige uma detalhadas de suas categorias e modalidades.

1 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A principiologia é uma área de ocupação dos estudos jurídicos, cujo enfoque, o mais variado, abrangendo o campo das possibilidades de relação entre os princípios e o direito posto, cada vez mais tem chamado a atenção dos juristas. Se algum amante de coletâneas ousasse catalogar todos os princípios reconhecidos, senão integralmente por todos, pelo menos por parcela significante da doutrina, talvez veria aparecer frente aos seus olhos, o enorme rol que coletara preencher folhas. Dentre os arquivados por nosso curioso amigo, com certeza haveria alguns princípios de maior destaque, mas que, espremidos em um catálogo, não revelariam a primazia frente a massa dos outros, por vezes seus subordinados, e nem se deixariam ver naquilo que eles superiormente possuem de relevância na ordem política e jurídica.

 O princípio da igualdade é um desses princípios jurídicos de ordem superior. Isso decorre não por minha opinião, como se eu fosse algum tipo de escritor publicitário a enfatizar aquilo a respeito do qual me pronuncio, mas por razões históricas, a saber, o fato de a igualdade ser constantemente referenciada — quando não reverenciada —, nos momentos mais decisivos da elaboração dos regimes políticos e jurídicos. Entre um vasto conjunto de explicações que rastreia o porquê desse princípio ter alçado o nobre patamar que alcançou, duas grandes razões são as mais decisivas.

A primeira delas remonta à antiguidade, ao pensamento político dos gregos clássicos, para os quais a igualdade era valorada como requisito de uma ordem justa. Conforme Maria Helena da Rocha Pereira (1970, p 138) "Gabavam-se os Atenienses de terem igualdade nos direitos (isonomia), no falar (isegora) e no poder (isocracia). Esta igualdade abrange, evidentemente, os cidadãos". À guisa de exemplificação desse amor a isonomia, há os versos de Eurípedes: 

Naught is more hostile to a city than a despot; where he is, there are first no laws common to all, but one man is tyrant, in whose keeping and in his alone the law resides, and in that case equality is at an end. But when the laws are written down, rich and poor alike have equal justice, and it is open to the weaker to use the same language to the prosperous when he is reviled by him, and the weaker prevails over the stronger if he have justice on his side(EURIPEDIS,THE SUPPLIANTS,429-434)

 A própria célebre máxima geral da igualdade, formulada e reformulada nas mais distintas formas, de que "os iguais devem ser tratados de modo igual, e os diferentes de modo desigual", parece ter seu conteúdo extraído dos ensinamentos dos dois maiores "discípulos" de Sócrates.  O próprio Platão nos diz, na obra As leis:

Ce système d'élection tient le milieu entre le système monarchique et le système démocratique, comme cela doit être dans un véritable gouvernement, parce qu'il ne saurait y avoir d'amitié entre les esclaves et les maîtres, ni entre les gens de rien et les hommes de mérite. Entre gens inégaux, l'égalité devient inégalité, si la proportion n'est pas gardée, et ce sont ces deux extrêmes de l'égalité et de l'inégalité qui remplissent les États de séditions.(Platon, les lois, VI, 757, mais especificamente 757a)

Aristóteles, por sua vez, na obra Ética à Nicomaco, expressa que:

Siendo así, lo justo supone necesariamente cuatro términos por lo menos: las personas para las cuales se da algo juto, que son dos, y las cosas en que se da, que son también dos. Y la igualdad será la msma para las personas que en las cosas, pues como están éstas entre sí, estarán aquéllas también. Si las persoas no son iguales, no tendrán cosas iguales (ARISTOTELES, 1954, p 325, livro V,  parte III, 1131a)

Ainda Aristóteles, dessa vez na obra Política:

For all men cling to justice of some kind, but their conceptions are imperfect and they do not express the whole idea. For example, justice is thought by them to be, and is, equality, not. however, for however, for but only for equals. And inequality is thought to be, and is, justice; neither is this for all, but only for unequals. When the persons are omitted, then men judge erroneously. The reason is that they are passing judgment on themselves, and most people are bad judges in their own case. And whereas justice implies a relation to persons as well as to things, and a just distribution(ARISTOTLE, 1978, p. 477. POLITICS, livro III, parte 9, 1280ª)

 A existência de uma conexão íntima entre igualdade e justiça na teoria platônica da Justiça não é evidente, e, portanto, discutível. Diferente do trecho citado da obra de Aristóteles, o fragmento que se extrai da obra de Platão para constituir a Máxima geral da igualdade não passa de um pequeno momento das especulações encontradas na obra As leis, e nela não se apresenta formulado tão essencialmente quanto nos escritos de Aristóteles.

Em Aristóteles, por sua vez, a relação é mais clara. Se não é possível afirmar que para o estagirita a justiça não se resume à igualdade, não é menos verdade que o "cerne da justiça, é, ensinava ele, a igualdade" (KAUFMANN, 2004 p 231).

 Giorgio Del Vecchio (1960), em sua obra histórica-enciclopédica intitulada Justiça, afirma que, se Platão e Aristóteles sãos os mais célebres, sobretudo este último, quando o assunto é o pensamento grego no que toca a justiça- e para a principiologia, no que toca a conexão íntima entre justiça e a noção igualdade- os pitagóricos não ficam devendo, e mereciam mais atenção dos estudiosos:

É glória suprema da Filosofia itálica ou pitagórica o haver formulado, primeiro que qualquer outra, um conceito da justiça, conceito que, apesar de não exprimir a verdade integral, põe, todavia, em relevo um aspecto fundamental e especifico da mesma justiça. Para esta escola, a justiça é, acima de tudo, igualdade, ou correspondência entre termos contrapostos; e propriamente pode assimilar-se ao número quadrado, isto é, ao igual multiplicado pelo igual, porque ela devolve o mesmo pelo mesmo. Coerentemente com este conceito, mas com determinação ainda mais precisa, a mesma escola declara que a justiça consiste essencialmente na reciprocidade. (DEL VECCHIO, 1960, p 40)

  Quando afirmo que uma das razões que indicariam o motivo em função do qual o princípio jurídico da igualdade haveria se tornado um dos mais essenciais no quadro principiológico do Direito estaria enraizado no pensamento grego clássico da justiça, não me resumo somente a remissão de um conteúdo originalmente elaborado, porém deixado de lado no momento mesmo em que se iniciava, mas que podemos sempre recuperá-lo pela leitura direta dos textos produzidos pelos gregos. Ler a obra de Aristóteles será, a qualquer um, bastante vantajoso. Todavia, a influência do pensamento grego não ocorre exclusivamente pela via direta, no sentido de que todos os juristas leem o estagirita e, por conseguinte, como que maravilhados pelos seus ensinamentos, os aplicassem na prática jurídica. É possível assim fazer, e há quem o faça, mas sabe-se que, em termos de amplitude social, não é desse modo que realmente acontece. Também não se pode afirmar, não veridicamente, que Aristóteles e Platão tenham por conta própria feito perdurar suas idéias por toda história, como se fossem os pais do Direito, que a cada geração fossem revividos por meio de algum juramento, semelhante aos que fazem os médicos com relação a Hipócrates. Na verdade, a mais essencial influência de Aristóteles e Platão, e da cultura grega em geral, pelo menos no tocante ao Direito, decorre do modo como os posteriores os introduziram num corpus de conhecimento jurídico, transmitido de geração à geração, passando de época em época, por um processo constante de atualização:

Nada merece mais atenção do que esta convergência, historicamente verificada, entre a especulação grega e a experiência romana, em matéria de direito. Os romanos aceitaram a mesma noção fundamental de justiça que lhes fora oferecida pelas escolas filosóficas gregas: aceitaram e, ao mesmo tempo, valorizaram-na, mercê da maior determinação resultado de suas elaborações técnicas dos institutos particulares, ou seja, a visão analítica da ratio juris. Deste modo, as duas tradições, grega e romana, se fundiram numa só, que dominou e continua dominando incontrolavelmente pensamento jurídico de todo o mundo civil (DEL VECCHIO, 1960, p 52-53)

 Michel Villey confirma a influência da filosofia grega, sobretudo aristotélica, no Direito Moderno

 Em suma, se compararmos, em suas grandes linhas, o direito romano com outros grandes sistemas jurídicos, ele parece surgir na história como aplicação da doutrina aristotélica. É por isso que a própria sorte do direito romano viu-se em jogo quando novas filosofias suplantaram a de Aristóteles - neoplatonismo ou novas visões de mundo judaico- cristão a que iria aderir Santo Agostinho. Quanto á renascença do direito romano na Europa moderna, a partir do século XIII, ela estará ligada á renascença de Aristóteles. (VILLEY, 2009, p 73-74)

 O segundo fator que explicaria o estrelato do princípio jurídico da igualdade é de ordem política, pois "en el debate político la igualdad constituye un valor, mejor, uno de los valores fundamentales em los que las filosofías y las ideologías políticas de todos los tiempos se ha inspirado" (Bobbio, 1993, p 67).

 Que a igualdade haja sido um dos lemas levantados há quatro séculos, quando da formação do Estado moderno em conjunto do seu regime jurídico constitucionalista de matriz liberal-burguês, fatos e documentos históricos não faltam para comprovar essa simultaneidade de fenômenos. Nesse ponto histórico, o observador jurídico que se resumir a estudar o fenômeno do Direito independente de sua indissociável dimensão política e histórica, deixará de lado informações tão essenciais, que não seria exagero afirmar que ele nada compreendeu.

 O constitucionalismo moderno adotou a igualdade quase como o coração das primeiras constituições e das declarações de direito, quando da formação do Estados de matriz liberal. A Declaração dos Direitos da Virginia, em 1776, em seu primeiro artigo, afirmava que todos os homens nascem igualmente livres e independentes. Do mesmo modo, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, preceitua em seu art. 1° que "os homens nascem e sãos livres e iguais em direitos". Ainda dessa Declaração, o art. 6º enunciava: " a lei é a expressão da vontade geral (...). Ela deve ser mesma para todos, seja para proteger, seja para punir". Desde então, o princípio se desenvolveu e  

ganhou tamanha difusão que " a partir de então, a igualdade perante a lei ( embora nem sempre a dicção dos textos constitucionais tenha sido idêntica) e a noção de que 'em princípio, direitos e vantagens devem beneficiar a todos, passou a constar gradativamente nos textos constitucionais, presença que alcançou a máxima expansão. Em termos quantitativos e qualitativos, no constitucionalismo do Segundo Pós-Guerra e com isenção do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade no sistema internacional de proteção dos direitos humanos, a começar pela própria Declaração da ONU, de 1948 (SARLET, 2012, p.524)

 No estudo dos princípios jurídicos como um todo, e não somente ao que é pertinente a igualdade, os juristas, doutrinadores e teóricos desenvolvem um conjunto de conceitos, noções e definições, com a finalidade de visualizarem, com a abrangência devida, a realidade multifacetada daquilo que estudam. Quando o assunto é o princípio da igualdade, não é diferente, e uma vez forjados seus instrumentos analíticos, os especialistas empenham em equacioná-los de modo que descrevam o fenômeno sobre o qual se debruçam. Seus conceitos se caracterizam por abranger as múltiplas dimensões do princípio da igualdade, ora se atendo a sua configuração corrente, isto é, no direito posto e nas jurisprudências dominantes, ora indagando sobre seus significados e práticas possíveis. 


2  dA noção geral dos princípios

 O termo princípio, apesar de possuir um núcleo básico de significados uniformemente simples de compreensão, é rico no que toca às repercussões provocada nas reflexões jurídicas.

"princípio derivado do latim principium (origem, começo) em sentido vulgar quer exprimir o começo da vida ou o primeiro instante em que as pessoas ou as coisas começaram a existir. É, amplamente, indicativo do começo ou origem de qualquer coisa. No sentido jurídico, notadamente no plural, quer significar as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E, assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixaram para servir de norma a toda ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em axiomas". (SILVA, De Plácido e. 1989. p.433.)

 Princípio é o ponto de partida, alicerce fundamental, atuando como guia de direcionamento imprescindível. É um a lei ou verdade fundamental, primária ou geral, da qual todas as outras derivam. Um princípio, por força de ser um axioma fundador, designa a estruturação de um sistema de ideias, pensamentos ou normas. Atua como um vetor para consecução de um ideal; é a fonte que determina a rota e os mecanismos a serem usados para alcançá-lo em passos firmes.

A nosso ver, princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática. Alguns deles se revestem de tamanha importância que o legislador lhes confere força de lei, com a estrutura de modelos jurídicos, inclusive no plano constitucional, consoante dispõe a nossa Constituição sobre os princípios de isonomia (igualdade de todos perante a lei), de irretroatividade da lei para a proteção dos direitos adquiridos, etc. (REALE, 2002, p. 305)

  Celso Antonio Bandeira de Mello corrobora:

princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, dispositivo fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônica" (MELLO, 2000, p 747-748)

 A especificação do conceito de princípios, na seara jurídica, possui interesses próprios. De acordo com Plácido e Silva(1989, p. 477)

"os princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Indicam o alicerce do Direito. E, nesta acepção, não se compreendem somente os fundamentos jurídicos, legalmente instituídos, mas todo axioma jurídico derivado da cultura, jurídica universal. Compreendem, pois, os fundamentos da Ciência Jurídica, onde se firmaram as normas originárias ou as leis científicas do Direito, que traçam as noções em que se estrutura o próprio Direito. Assim nem sempre os princípios se inscrevem nas leis. Mas, porque servem de base ao Direito, são tidos como preceitos fundamentais para a prática do Direito e proteção aos direitos". 

 Para Guilherme de Souza Nucci, (2009, p. 30) principio " significa uma ordenação que se irradia e imanta o sistema normativo, proporcionando fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e eficiente aplicação do direito positivo"

 Na perspectiva de Paulo Bonavides (2001, p. 229) "Princípios são verdades objetivas, nem sempre pertencentes ao mundo do ser, senão do dever-ser, na qualidade de normas jurídicas, dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade"

 Não seria possível deixar de mencionar ainda, que segundo Leo van Holthe, os princípios jurídicos são "o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce do arcabouço legal de um Estado. Os princípios são a base das normas jurídicas, influenciando sua formação, interpretação e integração e dando coerência ao sistema normativo" (2009, p. 77)  Ainda conforme o mesmo doutrinador, os princípios:

1) Possuem alto grau de generalidade, abstração e indeterminação - e, por isso, requerem um esforço hermenêutico maior para serem aplicados aos casos concretos (o que não diminui sua força normativa; 2) exercem uma posição elevada na hierarquia das fontes de Direito- pois influenciam a formação, interpretação e aplicação de outras normas jurídicas mais especificas ( sub- princípios ou regras), indicando-lhes os fins e valores a serem seguidos; 3) possuem força normativa- atualmente entende-se que as normas jurídicas dividem-se em regras e princípios, sendo que ambos impõe obrigações legais; 4) os princípios são mandamentos de otimização - os princípios não se submetem à lógica do "tudo ou nada", característico das regras (HOLTHE, 2009, p. 77-78)

 Carlos Augusto Alcântara Machado fornece uma precisa analogia, pois segundo o autor, os princípios (2005, p 65), “Como tais, fornecem o DNA do ordenamento jurídico, pois, através deles, deve o sistema jurídico-normativo ser compreendido: Democracia, República, Federação, Estado de Direito, Dignidade da Pessoa Humana etc"

 Conforme Luiz Guilherme Marinoni (2008), os princípios foram inicialmente vistos com grande ressalva na ciência Jurídica.

O positivismo clássico, temendo que os princípios pudessem provocar uma profunda imprevisibilidade em reação às decisões judiciais - o que também acarretaria incerteza quanto ao significado do direito-, concluiu que a atividade com os princípios deveria ser reservada a um órgão político, já que não se amoldava com a função que era esperada do juiz, isto é, com a simples aplicação do ditado da regra produzida e acabada pelo legislativo (MARINONI, 2008 , p .51)

 Porém, ainda conforme lições desse doutrinador, os princípios vêm adquirido uma melhor reputação:

A doutrina, especialmente após as obras de Dworkin e Alexy, tem feito a distinção entre princípios e regras. Enquanto as regras se esgotam em si mesmas, na medida em que descrevem o que se deve, não se deve ou se pode fazer em determinadas situações, os princípios são constitutivos da ordem jurídica, revelando os valores ou os critérios que devam orientar a compreensão e aplicação das regras diante das situações concretas (MARINONI, 2008, p. 49)

  Nestor Távora e Rosmar Antonni dão grande contribuição no esclarecimento da relação entre princípios e normas:

Os princípios não estão no sistema em um rol taxativo. Em verdade, diante da atividade do jurista para a construção da norma jurídica, serão possíveis aplicações que evidenciem tantos princípios constitucionais expressos como princípios constitucionais decorrentes do sistema constitucional (TÁVORA; ANTONNI, 2009, p. 44)

            Marcelo Lima Guerra defende o seguinte posicionamento:

Assim, se através de uma norma-princípio, o ordenamento comanda (prescreve) a realização de um fim, ipso facto comanda igualmente, a adoção dos meios aptos para tanto. Consistindo tais meios, como se viu, em um conjunto de ações e omissões, prescrever ou comandar a realização de um fim, através de uma norma-princípio, implica prescrever ou comandar as respectivas ações e omissões que se revele meios para aquele fim (GUERRA, 2003, p. 87)

 Enquanto os princípios, não registrados em rol taxativo, possuem no horizonte a determinação para realização de fins juridicamente decisivos, as regras são normas que estabelecem a previsão de obrigações, permissões e proibições, prescrevendo comportamentos.

 Nos princípios constitucionais são depositados os valores fundamentais de uma ordem jurídica, condensando os valores tidos por fundadores de toda órbita jurídica.

 [...] os princípios constitucionais são, precisamente, a síntese dos calores mais relevantes da ordem jurídica. A Constituição [...] não é um simples agrupamento de regras que se justapõem ou que se superpõem. A idéia de sistema funda-se na de harmonia, de partes que convivem sem atritos. Em toda ordem jurídica existem valores superiores e diretrizes fundamentais que 'costuram' suas diferentes partes. Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridas (BARROSO, 1996, p .142-143)

 Na mesma linha de pensamento, para Suzana Maria da Glória Ferreira:

Os princípios são encontrados em todos os escalões do ordenamento jurídico, porém, os constitucionais sãos os mais importantes. A Constituição é documento jurídico que contem em seu texto princípios que encarnam valores supres e superiores havidos na sociedade (FERREIRA, 2004, p. 30)

 Os princípios afincados no bojo da Magna Carta exercem função de relevo no ordenamento jurídico pátrio, tanto é que são erigidos à categoria de princípios constitucionais. Por isso que: 

Por fim, os princípios constitucionais estabelecidos consistem em determinadas normas que se encontram espalhadas pelo texto da constituição, e, além de organizarem a própria federação, estabelecem preceitos centrais de observância obrigatória aos Estados-membros em sua auto-organização.(MORAES, 2014, p. 272)

  Constituem, sobremaneira, orientações e comandos de natureza basilar, tomados a partir do sistema constitucional vigente, da racionalidade do ordenamento legal e capazes de evidenciar a ordem juridico-constitucional imperante em um dado período. 

Uma vez exposta uma noção geral sobre principios, estamos em base sólida para tratar mais minunciosamente o principio da igualdade.


3  AS CLASSIFICAÇÕES DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

 Na doutrina em geral, os conceitos mais correntes são de duas ordens. A primeira agrupa duas espécies de igualdade, a saber, o par conceitual de igualdade formal e igualdade material[1]. O segundo conjunto de conceitos transita dentro da análise da funcionalidade do princípio em suas respectivas modalidades "perante a lei", "na lei", e "na aplicação da lei"[2]

 Essa classificação, esquema de minha autoria, não deve levar ninguém a crer num sistema compactado em diversos segmentos uniformemente aceito pelos juristas. Os doutrinadores não estão em total acordo no uso dessa série de conceitos.  Um determinado sentido que algum conceito possa adquirir para um autor, para outro poderá ter um diferente. É possível encontrar na literatura especializada, dois, três ou mais significados diferentes concedidos à um mesmo conceito. Se para um autor a igualdade material é sinônimo de igualdade na lei, para outro somente a igualdade de cunho formal é na lei; acrescente-se também não ser nada fácil identificar quais conceitos os autores estão realmente a definir e fazer uso, vez que volta e meia estabelecem relações de equivalências entre as terminologias.

Os significados que os conceitos possam adquirir dependerão, em última instância, do modo pelos quais serão definidos no conjunto da projeção da ordem interna da análise na realidade estudada. Eis a razão do porquê as noções utilizadas pelos estudiosos não serem sempre compreendidas do mesmo modo. Não obstante os diferentes aparatos conceituais que cada estudioso adote, sua fabricação e usos não podem ser deixadas ao bel prazer de cada um, como se o arbítrio do próprio investigador fosse critério metodológico. Se não podemos reivindicar a unanimidade entre os autores, resta, ainda, a cada um carregar consigo a responsabilidade de se ater a coerência interna de suas exposições, por menor que esta coerência seja; também não se pode abdicar do sentido das palavras imbricada nas terminologias. Quando, para prenunciar por meio de exemplo, é feito uso da definição igualdade material, exige-se que por material se entenda material em algum determinado sentido, em distinção de formal em um outro. 

 Por último, existe a problemática que ocorre quando a terminologia conceitual se encontrar positivada ou difundida nas decisões jurídicas. Não que seja vedado essa interpenetração, pois se fosse, os estudos jurídicos perderiam boa parte de sua razão de ser. Contudo, o problema nasce a partir do momento em que a expressão jurídica positivada passa, na prática jurídica, por uma mudança de interpretação de modo que adquire um novo significado dificilmente compatível com sentidos lato ou estrito das palavras que compõem a terminologia. A consequência disso é tanto uma confusão quanto uma imprecisão do aparato analítico e descritivo das ciências jurídicas.

 Pedro Lenza (2014) compreende que o sentido de igualdade inscrito no caput do artigo 5º da Constituição Federal (Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza) é aquele modalmente formal, o qual ainda é qualificado de aparente. Como a expressão "perante a lei" está registrada no dispositivo constitucional, deduz-se que ela é equivalente ao sentido formal da igualdade. Ora, que o autor conceba o sentido da norma legal a equivalendo a um conceito, isto é, a terminologia formal de “perante a lei”, na situação em que a própria norma faz uso deste próprio conceito, à medida que se equivalem, ambas ficam indefinidas.  Mas isso não parece ser um grande problema; para quê exaurirmos nossas energias na procura de descobrir qual seja o sentido de uma igualdade formal, ou perante a lei -tanto faz-, se ela nem sequer é tão importante? Melhor é que se procure, "principalmente, a igualdade material uma vez que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades" (LENZA, 2014, p. 1072). 

 Conforme o exposto, parece já ser possível esboçar a rede de definições de Lenza. A igualdade formal identifica, somente e nada mais, que a igualdade independente de quaisquer desigualdades que possam existir; enquanto que a igualdade material reconheceria as diferenças realmente presente entre os indivíduos. Ao primeiro tipo não se prevê a possibilidade de conceder tratamentos distintos, porém no caso do segundo tipo já se dispõe sobre tratamentos diferenciados. Por que não equacionar esta igualdade de cunho material como um princípio da desigualdade, é algo que escapa minha razão.

 Prossegue, todavia, o autor: "Isso porque, no Estado Social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei"(LENZA, 2014, p. 1072,)

   A palavra "aparente" é rica de significados. Porém, quando vem acompanhada da palavra "real", formando entre os termos um elo de oposição, aparente é aquilo que parece ser algo, mas não o é. A igualdade formal aparenta ser uma igualdade, mas esta só existe realmente em seu sentido material. As palavras do autor aparentam indicar que não defende tal extremismo, que concede a igualdade material somente maior importância e realidade. Mas, mesmo assim, não deixam de ser aparência; não precisando bem os seus conceitos, crendo-se tão evidente que tratamentos desiguais não podem corresponder à outra coisa senão igualdade, não sobrou ao autor, ao chamar uma igualdade de real e a outra de aparente, que o caminho de amenizar o abismo que implantou.

 Pergunta-se: se a igualdade formal é aparente, e a material real, porque na Constituição está registrado a primeira? Incompetência do constituinte? Ou será gozação sua em preferir terminologias que enganam e executam pegadinhas? Talvez o vacilo esteja no leigo, incapaz de ler a entrelinhas. Seja qual for a razão, o sentido material- entenda-se real- será sempre um mistério a se descobrir. Pedro Lenza, para não ser acusado de sectarismo, compartilha um pouco do segredo. Elenca uma lista de dispositivos constitucionais que, como ele diz, encarregam-se em aprofundar a regra da isonomia material[3]. Lemos, no rol elencado, a presença do artigo 5º, I, da Constituição Federal: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Mas a igualdade material não é a que reconhece as diferenças, prescrevendo tratamentos proporcionais a estas? Homens e mulheres não são seres distintos? Logo, não deveríamos tratá-los diferente? Nunca o caminho para iluminação foi tão abusadamente contraditório.

 Pedro Lenza nos deixa em uma situação de grande dificuldade de compreender o princípio da Igualdade. Todavia, dois pontos problemáticos vêm à tona: um em torno das terminologias usadas e o outro sobre a extensão do princípio.

 Alexandre de Moraes (2014), se não segue o viés de usar a dualidade conceitual de material e formal, adentra no estudo das esferas as quais o princípio da igualdade se direciona: 

"O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao interprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razões de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social (MORAES, 2014 , p. 35)

 As palavras do autor são claras. Aqueles que produzem as normas, o legislador e o próprio executivo- e dou bravo ao autor em elencar o executivo no ato da produção de norma, enquanto que uma parte da literatura não cita senão o poder legislativo- não poderão prescindir da regra da igualdade, só podendo prescrever tratamentos diferenciados em situações específicas, como se fossem casos excepcionais. Mas não só a produção das normas deve orientar-se pelo princípio, mas também o intérprete deverá aplicar os dispositivos normativos de forma isonômica. 

 Alexandre de Moraes expõe explicitamente que tratamentos desiguais não estão vedados, mas que ocorrerão dentro de limites. A discriminação não poderá ser arbitrária, precisa se justificar pela razoabilidade, pela proporcionalidade e pela finalidade que busca, sem escapar das fronteiras da Constituição. 

  Marcelo Novelino (2013) explica claramente seu esquema de relações conceituais, explicitando-a de modo a conquistar coerência lógica interna da qual nenhum estudo jurídico[4] pode se isentar, apesar da falta de unanimidade no entendimento que os doutrinadores e teóricos manifestam em torno dos conceitos em voga. O autor deixa explícito a problemática em torno da fórmula "perante a lei". De início, vigorando até meados do século passado, a célebre expressão implicava naquilo que o sentido literal de suas palavras evidencia, isto é, igualdade na aplicação do Direito, com força vinculante aos órgãos do administrativo e do judiciário.  Foi somente mais recentemente que se passou a interpretar a fórmula como uma igualdade que se deve vigorar efetivamente na produção do Direito, direcionando-se, portanto, ao legislador.

Guilherme Peña de Moraes (2014) tem algo a nos oferecer quanto a uma razoável conceituação divisional entre igualdade formal e igualdade material. Será na primeira modalidade quando a igualdade se destinar a produção e aplicação das regras jurídicas, enquanto que será de cunho material a igualdade que efetiva perante bens da vida.

 Para Peña de Moraes (2014, p.574)  " a igualdade formal, também denominada igualdade civil ou jurídica, expressa a produção, interpretação e aplicação igualitária das normas jurídicas, com vistas a impossibilitar diferenciações de tratamento que se revelem arbitrárias, sob a forma de discriminações (vantagem) ou  privilégios (desvantagens) "   As modalidades "perante a lei" e "Na lei" são atribuídas, pelo autor, como "modus operandi" da igualdade de tipo formal, distinguindo-se de outros autores, que costumam atribuir à primeira modulação (perante lei) a qualidade de tipo material. Logo, a igualdade formal direciona-se tanto para a produção de normas, cuja responsabilidade pertence ao legislador, quanto à ao aplicador do direito, que Peña de Moraes (2014) entende como condizente da terminologia perante a lei

há a divisão entre princípio da igualdade na lei e princípio da igualdade perante a lei, na medida em que aquela define que a produção das regras jurídicas não pode consubstanciar desequiparações não autorizadas pela ordem constitucional, destinada precisamente aos órgãos legislativos, ao passo que esta determina que aplicação das regras jurídicas deve ser realizada em consonância com o estatuído pelas mesmas, ainda que resulte em desigualdades dirigidas principalmente aos órgãos judiciais (MORAES, 2014, p. 102)

   Para o autor, o princípio se efetiva, de um lado, na lei, ou seja, no momento de produção da lei, quando então o legislador deverá atentar-se de preservar a vigência do mandado de igualdade no conteúdo legal, e, do outro lado, "perante a lei" o que significa afirmar que a aplicação da lei por parte dos órgãos judiciais não poderá prescindir da parcimônia da igualdade. 

 Para Peña de Moraes, a igualdade material se substancia na igualdade efetiva perante os bens da vida humana. Três são os modos de implementação dela, todos conforme o regime constitucional ser de natureza liberal, social e democrática.

Os primeiros, imanentes aos ordenamentos jurídicos franco-germânicos, são consagrados em normas que proíbem pratica de discriminação baseados em critérios de origem, raça, sexo, cor e idade, como, por exemplo as preceituadas no Preâmbulo da Constituição Francesa e no art. 3º, nº 3, da Constituição alemã

Os segundos, inerentes aos ordenamentos jurídicos nórdico-escandinavos, consignados em normas que obrigam à prestação de benefícios e serviços que ( ) às necessidades básicas da pessoa humana, a fim de protegê-las de determinados riscos que se encontra exposta, como, por exemplo, as prescritas nos Princípios Básicos da Constituição sueca, e norma art. 110 da Constituição norueguesa

Os terceiros, intrínsecos ao ordenamento jurídico norte-americano, são consubstanciados em normas que permitem a realização de ações afirmativas, como, por exemplo, as previstas no Executive Order nº 10925/63

 Apesar de nos fornecer informações dos três grandes modelos da pratica da igualdade material, Peña de Moraes não deixa claro a qual modalidade de igualdade cada uma se direciona. E se cabe aos órgãos do judiciário e do legislativo receber a igualdade formal, o que dizer a respeito da modalidade matéria? O autor também não menciona uma palavra sequer de qualquer interação entre as duas, e, portanto, não se enxerga a perspectiva das possíveis consequências jurídicas provenientes de uma articulação

 Para José Afonso da Silva (2009), tem sido habitual das Constituições a tendência de primar pela igualdade em seu sentido jurídico formal, registrado e consagrado na terminologia "Igualdade perante a lei" ou mesmo "a igualdade em direitos".

A afirmação do art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão cunhou o princípio de que homens nascem e permanecem iguais em direito. Mas aí firmara igualdade jurídico-formal no plano político, de caráter puramente negativo, visando a abolir os privilégios, isenções pessoais e regalias de classe. Esse tipo de igualdade gerou as desigualdades econômicas, porque fundada "numa visão individualista do homem, membro de uma sociedade liberal relativamente homogênea (SILVA, 2009, p.214)

 Como a  igualdade gerou a desigualdade econômica não se explica por esta proposição do autor, que acredita fielmente que a menção a noções de individualismos e sociedades liberais torna mais crível o paradoxo; Só mais adiante o autor explica-se: no momento em que os mandamentos da igualdade foram adotados, mais precisamente no século XVIII, o alvo dos ataques foi as desigualdades provenientes do regime feudal, sem que com o novo regime seguinte ficassem bloqueadas as desigualdades materiais (Econômicas). Como meio de complementar o princípio formal da igualdade e de obter equalização dos desiguais, é que foram proferidos os direitos sociais substancias, adotados na Constituição Federal atual no rol de seu art. 7º. 

 Para Canotilho (1998), ser igual perante a lei pode significar, ou bem a igualdade na aplicação, ou bem a igualdade quanto a criação do Direito. O primeiro dos sentidos possíveis é traduzido "tradicionalmente", como a exigência de igualdade na aplicação do Direito. Trata-se de uma das dimensões básicas do princípio da igualdade constitucional, com relevância na aplicação das leis pelos órgãos da administração e pelos tribunais. Por sua vez, o segundo sentido possível direciona o princípio em questão ao "próprio legislador, vinculando-o à criação de um direito igual para todos os cidadãos"(CANOTILHO, 1998, p.389).

   Entretanto, enquanto que no caso da igual aplicação da lei não há mais nenhuma ulterior indagação, pois, partindo da lei posta nada há de conjecturar sobre a qualidade de igual que está já vigente na lei, o mesmo não se manifesta da discussão da igualdade relativa à criação do Direito, vez que é incontornável que se pergunte o que é criação de direito igual

 Ainda conforme o jurista português, o Direito, para ser igual, não pode prescindir do postulado de racionalidade prática que lhe é imanente: "Para todos os indivíduos com as mesmas características devem prever-se, através da lei, iguais situações ou resultados jurídicos"(CANOTILHO, 1998, 389). Conquanto seja um postulado de universalidade, a igualdade que se tem às mãos é a de cunho formal, geral e vazia, aberto para toda e qualquer determinação quanto ao conteúdo discriminatório. Por sua vez, a igualdade em sentido material preenche exatamente esse interior oco do conceito formal, delimitando os contornos dos critérios a serem adotados diante das situações concretas.

 O artigo 13 da constituição portuguesa, que consagra o princípio da igualdade, não se restringe ao sentido meramente formal. Desse dispositivo "exige-se uma igualdade material, devendo tratar por 'igual o que é igual e desigualmente o que é desigual'" (CANOTILHO, 1998, p 390). A igualdade material pressupõe conteúdo relacional tripolar, pois exige igualdade entre dois indivíduos com relação a determinada característica ou circunstância. Porém, mesmo a fórmula da igualdade material está aleijada de "critério material de um juízo de valor sobre a relação de igualdade (ou desigualdade). A questão pode colocar-se nestes termos: o que é que nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de uma forma igualmente justa? Qual o critério de valoração para a relação de igualdade?"  (CANOTILHO,1998, p 390)

Por mais que para muitos Canotilho seja uma grande referência quando o assunto é Direito Constitucional, porque devo me ater com todo meu foco ao que é relevante, ou seja, objetividade do que é tratado, não posso abster-me de analisar criticamente o que ele escreve:

  • A primeira crítica direciona-se a concepção da igualdade na aplicação da lei. Não excedo em expectativas esperar que um grande estudioso ao escrever sobre algum determinado assunto conheça as discussões em torno, com seus dissensos e consensos. Uma das grandes problemáticas, sobretudo desde Hans Kelsen, quando se trata da terminologia da igualdade na aplicação, é saber se o que se está em discussão é proveniente de um princípio independente ou mera consequência da natureza da norma, questão que o jurista português deixa em suspenso, não a tocando senão de leve, sem que se retire nenhuma consequência proveitosa.
  • Afirmar, a começo de conversa, que a igualdade se identifica, em um primeiro plano, com igualdade na aplicação do Direito, para, em seguida, afirmar que também se direciona ao processo de produção de Direito, ou seja, vale como mandamento ao legislador, exige uma explicação que justifique como se saltou de um plano ao outro, exigência que o autor não cumpre
  • Afirma, ainda, que o princípio da igualdade material implicaria ao 'igual o que é igual e desigualmente o que é desigual". Porém, se é essa a definição de igualdade material, na medida que a igualdade de cunho formal dita a ordem de igual tratamento para iguais, qualquer dualismo entre as duas noções não faria nenhum sentido, dissipada, portanto, qualquer relação que se supusesse. Visualize-se o seguinte: O grupo X possue "A" em comum, enquanto que os indivíduos do grupo Y possuem em comum "B". X é desigual em relação a Y no que toca "A" ser diferente de B. Todavia, entre os membros do grupo X "A" é a marca de sua igualdade. Logo, os ditos "desiguais" da sentença só se desigualam em relação a outros, pois entre si são iguais e, portanto, receptivos da fórmula formal da igualdade. Se a ordem da igualdade na modalidade formal exige que se trate igualmente os iguais, um tratamento Alfa será dado ao grupo X, em razão de "A" e um tratamento Beta ao grupo Y, em função de "B". Tratamentos distintos, é verdade, mas não passaria de dois tratamentos radicados na ideia de igualdade formal. Não é este o postulado indicador de que "para todos os indivíduos com as mesmas características devem prever-se, através da lei, iguais situações ou resultados jurídicos reconhecendo um conjunto de várias porções iguais"? Que não haja um, mas uma quantidade proporcional ao número de variações encontradas, está subtendido de sua definição.

 À guisa de sinterização, é possível lastrear três maneiras distintas de categorizar o princípio jurídico da igualdade de forma bifurca.

 Uma delas concebe a igualdade formal como instituto captado genericamente, que traduz uma igualdade límpida e sem detalhes diferenciadores, enquanto que a igualdade material abrangeria as desigualdades reais que se apresentam na realidade. À essa concepção vale a crítica de Kelsen (1996) de que essa noção de igualdade material equivale a um princípio das diferenças e desigualdades.

 A segunda é a que se encontra bem descrita por Canotilho (1998). Igualdade formal seria o instituto que prescreveria previsões de iguais situações e resultados para indivíduos iguais, isto é, com mesmas características, enquanto que o instituto de igualdade material profere tratar igual o que é igual e desigualmente o que é desigual. Porém, elas não são necessariamente institutos autônomos, sejam complementares, sejam opostos, não sendo uma senão a consequência lógica derivada da outra. Se os indivíduos que possuem as mesmas características serão tratados igualmente, os que não possuírem estas características, e, portanto, diferentes dos primeiros, serão tratados também diferentemente dos que recebem aqueles.

  Dessas duas concepções aleijadas, de uma certa maneira nasce uma terceira. De uma concepção de igualdade formal como um instituto de ordem genérica, abstratamente ampla, abre-se a visão da justiça para igualdade material que se orientaria para os detalhes da vida real e concreta, que se apresentam sempre segundo um conjunto de parciais e fragmentadas igualdades e diferenças entre indivíduos e entre grupos (o elemento da primeira), ao mesmo tempo que se projeta o prospecto de que os tratamentos desiguais à certos grupos e indivíduos não devem ser somente consequência necessária e lógica do fornecimento de tratamento iguais à pessoas detentoras de iguais características, mas que a própria desigualdade deve ser tomada como alavanca de medidas jurídicas e normativas a serem executadas (o elemento da segunda). Todavia, não sendo uma quantidade ínfima de detalhes distintivos, — caminhando mesmo em direção a uma contabilidade infinita-, quais elementos da vida concreta serão relevados? A terceira corrente surge como uma tentativa de responder a essa pergunta. Sua plataforma é dirigida com objetivo de suprimir as chamadas desigualdades injustas de ordens sociais, econômicas e culturais. Os Bens em questão são os bens da "vida humana”


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NOTAS

[1] Na literatura como um todo, encontra-se uma grande quantidade de terminologias, não se resumindo a dualidade material e formal. Porém, como são esses dois os mais frequentes, e para não estender em demasia o trabalho, exclui as demais.

[2] Nem sempre essas três terminologias são compreendidas como institutos distintos e autônomos.

[3] Pedro Lenza Lenza faz uso das expressões igualdade material, igualdade substancial e isonomia material, uma atrás da outra. Por falta de clarividência, suponho que se equivalham. 

[4] E que nem é tanto seu, pois Novelino sintetiza boa parte do capítulo voltado ao princípio da igualdade, que se encontra na obra de Robert Alexy. Porque deste falarei mais adiante, reduzo a participação daquele nesse trabalho monográfico 



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Artur Leite. O princípio da igualdade e suas modalidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4707, 21 maio 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48854. Acesso em: 20 maio 2024.