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O Ministério Público na persecução criminal e as teorias justificadoras da pena

O Ministério Público na persecução criminal e as teorias justificadoras da pena

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O presente artigo descreve a atuação do Ministério Público na fase pré-processual e nas modalidades de ação penal de iniciativa pública e privada, bem como os requisitos necessários para que se iniciem. Frente a todo devido processo legal e a possibilidade de uma condenação, apresenta ainda uma análise filosófica a respeito das teorias justificadoras da pena.

Resumo: O presente artigo descreve a atuação do Ministério Público na fase pré-processual e nas modalidades de ação penal de iniciativa pública e privada, bem como os requisitos necessários para que se iniciem. Frente a todo devido processo legal e a possibilidade de uma condenação, apresenta ainda uma análise filosófica a respeito das teorias justificadoras da pena.

Palavras-chave: Ministério Público; Inquérito Policial; Ação Penal; Pena.

Sumário: Notas introdutórias; 1 – A fase pré-processual; 2 – O Ministério Público e a ação penal; 2.1 – As condições da ação; 2.2 – Ação penal de iniciativa pública; 2.3 – Ação penal de iniciativa privada; 3 – Lei Maria da Penha e suas particularidades; 4 – Por que punir? Uma análise das teorias justificadoras das penas; Considerações finais.


Notas introdutórias

De acordo com as teses contratualistas, a sociedade é uma criação humana que possui uma base firmada num contrato e que surgiu com a principal tarefa de garantir a igualdade inclinando-se aos interesses da coletividade. Hobbes afirmava que antes do seu surgimento, os homens viviam numa espécie de guerra de todos contra todos sob a lei de sobrevivência do mais forte, assim, em meio à vingança privada, a insegurança era um contraposto da total liberdade. Com isso, firmaram um pacto onde entregavam a total liberdade em detrimento de maior segurança e a possibilidade da garantia de direitos e responsabilidades advindas da conduta de cada indivíduo. Criaram o leviatã, o qual ficara encarregado de punir todos àqueles que não respeitassem as regras contidas no “contrato social”. A partir da organização da coletividade, o sistema de composição surgiu possibilitando o pagamento de determinado valor a comunidade que, inicialmente, eram os parentes da vítima que a aplicavam e recebiam-na, e que depois o Estado assumiu tal função. Como resultado, a vingança privada passou a ser controlada pelo Estado diante de uma sistemática processualística que solucionava os litígios aplicando o direito de cada um no caso concreto.

A antiguidade não via a privação de liberdade com uma espécie de sanção. A finalidade principal era a contenção do acusado até a sentença e execução da pena que, na maioria das vezes, se dava com a morte ou atingiam o corpo do indivíduo de forma bárbara como a amputação de dedos, braços, língua, e outras tantas e horrendas mutilações. Não obstante, a pena capital passou a ser questionada pela sua ineficácia na tentativa de diminuir a criminalidade, surgindo assim à ideia da privação de liberdade do ofensor. O Direito Penal nasce então como uma negação da vingança, pois esta e a pena são totalmente distintas, logo, a última necessita da existência de um poder organizado. Assim, a chamada “pena pública” era uma resposta do ente estatal diante da vontade individual contrária a sua que deveria ser pronunciada por um juiz que visasse os critérios de justiça. Para que isso ocorresse, necessitava-se de um meio que garantisse a correta aplicação da pena, e assim fora que nasceu o processo penal.

Diante de toda uma árdua evolução histórica, hodiernamente necessita-se de ao menos três sujeitos processuais para que seja garantido o devido processo legal: partes parciais (demandante e demandado) e parte imparcial (juiz). Passaremos a um estudo da função do Ministério Público na fase pré-processual e nas modalidades de ação penal de acordo com o previsto no artigo 129 da Constituição Federal. Além do mais, diante da persecução criminal, importa relatar suas consequências em caso de condenação, apresentando, para isso, uma análise a teoria das penas que procuram explicar sua finalidade.


1 – A fase pré-processual

O inquérito policial é realizado pela polícia judiciária, a qual é exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria (art. 4º do CPP) com limitado valor probatório. Sua natureza jurídica diz respeito a um procedimento administrativo pré-processual. No entanto, a competência para sua realização não é exclusivamente policial (parágrafo único do art. 4º do CPP), logo, há também outras autoridades administrativas que a possuem como, por exemplo, aquelas investigações denominadas como Comissões Parlamentares de Inquérito que é realizada por membros do Poder Legislativo. Sua origem se dá através da notitia criminis ou até mesmo de ofício por parte de órgãos encarregados da segurança pública. A partir dela, a polícia judiciária praticará uma série de atos previstos no artigo 6º e seguintes do CPP. Assim, “a partir da notícia de possível crime, o Estado precisa realizar a apuração preliminar com o fim de levantar elementos mínimos de materialidade e indícios de autoria.”1

No que se refere ao Parquet, importante mencionar que o mesmo está legalmente autorizado a requerer a abertura e/ou acompanhar a atividade policial no curso do inquérito. Desta maneira, entende-se que é exercido um controle externo da atividade policial ao ponto que requer diligências e acompanha o seu desenrolar, mas o órgão encarregado de fato da direção do Inquérito é a polícia judiciária. Toda a investigação visa elucidar o fato e a autoria que estão previstos na notícia-crime ou os resultantes da atuação. Assim, para sua instauração, é necessária apenas a possibilidade de que exista um fato punível, haja vista que a autoria em si não necessita ser conhecida logo no início da investigação, até porque a atividade de identificação e individualização da participação são finalidades que devem ser apuradas. Caso o Ministério Público já disponha de elementos suficientes para a propositura da ação diante da notícia-crime, o Inquérito poderá ser dispensado, não é assim, pois, obrigatório.

O Brasil adota o sistema misto, pois o limita tanto qualitativamente quanto quantitativamente. Este deverá ser concluído o mais breve possível e possui, como regra geral, o prazo de 10 dias, caso o indiciado esteja preso, e 30, no caso de não existir a prisão cautelar (art. 10 do CPP). Estando o indivíduo em liberdade, caso haja motivos e o fato seja de difícil elucidação, o prazo de 30 dias poderá ser prorrogado a critério do juiz. Já no caso de competência da Justiça Federal, conforme o art. 66 da Lei nº 5010/66, o prazo para conclusão estando o sujeito passivo preso será de 15 dias que poderá ser prorrogado por mais 15, mantendo os 30 dias quando estiver em liberdade. Já no tráfico de entorpecentes, Lei nº 11343/2006, o seu artigo 51 prevê a duração de 30 dias se estiver preso e 90 dias caso esteja solto, os quais ainda poderão ser duplicados pelo juiz. Ao nosso ver, acaba por violar o direito fundamental de ser julgado num prazo razoável previsto no art. 5º, inciso LXXVIII da Constituição.

Apesar da posição majoritária na doutrina de que não existe direito de defesa e contraditório no inquérito policial, sendo este totalmente inquisitivo, alguns autores defendem que tal afirmação genérica está errada. Como sustenta Aury,

Basta citar a possibilidade de o indiciado exercer no interrogatório policial sua auto defesa positiva (dando sua versão dos fatos); ou negativa (usando seu direito de silêncio). Também poderá fazer-se acompanhar de advogado (defesa técnica) que poderá agora intervir no final do interrogatório. Poderá, ainda, postular diligências e juntar documentos (art. 14 do CPP). Por fim, poderá exercer a defesa exógena, através do habeas corpus e do mandado de segurança.2

Ao receber o relatório, o promotor de justiça poderá: oferecer a denúncia caso venha trazendo satisfatoriamente os elementos necessários; pedir o arquivamento; solicitar diligências ou realizar diligências. Vale lembrar que a autoridade policial não poderá mandar arquivar os autos do inquérito (art. 17 do CPP), pois tal medida somente poderá ser efetivada por decisão do juiz a pedido do Ministério Público. Caso o juiz não concorde com o arquivamento, aplicará o disposto no artigo 28 do CPP, o qual dispõe: “Se o órgão do Ministério Público, em vez de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz no caso de considerar improcedentes as razoes invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual então estará o juiz obrigado a atender. Depois de arquivado, não poderá, por despacho do juiz a requerimento do promotor de justiça, a ação penal ser iniciada sem novas provas (Súmula nº 524 do STF). Há dois tipos de novas provas: a formalmente nova - diz respeito a um depoimento novo; e a substancialmente nova – refere-se a um conteúdo novo - . No entanto, pode o Parquet requisitar diretamente a autoridade policial a prática de outros atos de investigação, ou até meso praticá-los, que tornem suficiente o início da ação penal.


2 – O Ministério Público e a ação penal

Conforme o artigo 129 da Constituição Federal, é função institucional do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública na forma da lei, sendo, portanto, o dominus littis da mesma. Esta se inicia com o oferecimento da denúncia em juízo composta pela narração do fato criminoso, a qualificação do acusado, a classificação do crime e o rol de testemunhas (art. 41 do CPP).

O código Penal e a legislação processual penal preveem duas espécies de ação penal: ação penal pública e ação penal privada. A primeira é promovida Pelo Ministério Público que, em alguns casos em que a lei exige, dependerá de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça. Já a segunda é se dá mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo podendo, em caso de morte do ofendido ou de declaração de ausência por decisão judicial, o direito de queixa ou de prosseguimento ser passado ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, nesta sequência (art. 24, § 1º do CPP). Salvo quando a lei exige a representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça, a ação penal será sempre pública (art. 100 do CP). Entende-se, ainda, que todas as ações são públicas, logo, é uma declaração petitória, o que varia é a possibilidade de iniciativa.

2.1 – As condições da ação

De acordo com Pacelli3, antes do exame de tais questões é preciso a superação de outras de natureza eminentemente processual, a saber: a) a existência de um fato (materialidade); b) ser este fato imputável ao acusado (autoria); c) constituir este fato uma ação típica, ilícita e culpável; e d) não se encontrar extinta a punibilidade.

Alguns doutrinadores preveem como condições necessárias ao regular exercício do direito de ação a legitimidade das partes, o interesse de agir, a possibilidade jurídica do pedido e a justa causa. Esta, antes mera construção doutrinária no cenário processual, a partir da Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, que revogou o artigo 43 do Código de Processo Penal, incluiu também a justa causa como uma questão preliminar (inciso III do artigo 395 do CPP) que, na falta da mesma, a denúncia ou queixa será rejeitada. Em contrapartida, alguns autores mais críticos defendem que esta concepção advinda da teoria geral do processo e do processo civil são inadequados para o processo penal principalmente quando exigem o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido. Segundo Aury Lopes Jr.4, devem buscar as condições da ação dentro do próprio Processo Penal. Desta forma, são condições da ação processual penal: 1 – prática de fato aparentemente criminoso (fumus commissi delicti); 2 – punibilidade concreta; 3 – legitimidade ativa e passiva; 4 – justa causa, que deve compreender a existência de indícios razoáveis de autoria e materialidade e o controle processual do caráter fragmentário do direito penal. Em consonância com essas, ainda podem ser consideradas a necessidade da representação, requisição, procuração com poderes especiais para queixa crime, entre outros, pois se apresentam indispensáveis a propositura.

A denúncia não pode ser o resultado da vontade pessoal por puro arbítrio do acusador, só deve ser feita diante de um lastro probatório mínimo de autoria e materialidade que consiga demonstrar a conduta ilícita do denunciado para que o exercício desse grave poder da persecução penal não seja invocado de forma injusta.

2.2 – Ação penal de iniciativa pública

A ação penal de iniciativa pública está ligada as seguintes regras/princípios: oficialidade ou investidura; obrigatoriedade; indisponibilidade; e intranscendência, sendo que há divergências sobre a incidência aqui da indivisibilidade. Subdivide-se em duas espécies: ação penal de iniciativa pública incondicionada e a condicionada.

Na ação penal de iniciativa pública incondicionada ficam dispensados quaisquer requisitos de representação para sua promoção, sendo irrelevante até mesmo a vontade contrária do ofendido ou de qualquer outro. Em regra geral, é exercida por meio de denúncia que é oferecida pelo Ministério Público no prazo de 5 dias em caso de acusado preso, e 15 dias estando solto, contados da data em que o Parquet receber os autos do inquérito policial (art. 46 do CPP). Nela deve haver clara exposição do fato criminoso além da clara definição de condutas e agentes no caso de concurso de pessoas e/ou crimes, não sendo admissível a denominada denúncia genérica. Da mesma forma, caso a autoridade policial tenha o conhecimento da ocorrência de um crime de tal ação, deverá, de ofício, determinar a instauração de inquérito policial para sua apuração, conforme o disposto no art. 5º, I, do CPP. Importante mencionar que o Ministério Público poderá oferecer a denúncia até a prescrição da pretensão punitiva pela pena em abstrato, esta que é calculada pela maior pena prevista no tipo penal em conformidade com a análise dos prazos prescricionais expostos no artigo 109 do CP.

Já na ação penal de iniciativa pública condicionada, exige-se, como condição de procedibilidade, a representação da vítima ou do seu representante legal, isto é, uma autorização para que o Estado possa proceder o seu ius puniendi contra alguém, pois, torna-se impossível a abertura de inquérito policial ou o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público sem a mesma. Tal representação é facultativa e pode ser feita pessoalmente ou por procurador com poderes especiais mediante declaração, de forma oral ou por escrito, na polícia, no Ministério Público ou para o juiz (art. 39, § 4º do CPP). Há prazo decadencial de 6 meses (arts. 38 do CPP e 103 CP). Se não for feita dentro desse período, não será mais possível em virtude do decurso do lapso temporal que é improrrogável, operando-se a extinção da punibilidade do acusado (inciso IV do art. 107 do CP). Já a retratação poderá ocorrer até o oferecimento da denúncia (art. 25 do CPP e 102 do CP) tornando-se irretratável posteriormente mesmo que o juiz ainda não a tenha recebido. Há ainda a ação pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça. É o que ocorre, por exemplo, em um crime cometido contra a honra do Presidente da República (art. 145, parágrafo único do CP), onde somente poderá haver denúncia se estiver presente à requisição. Não obstante, mesmo a presença da requisição ou a representação do ofendido (ou do seu representante legal), não vincula o Ministério Público que pode requerer o arquivamento do feito, logo, o artigo 127, § 1ª da Constituição Federal, garante a sua independência funcional e livre convencimento para formação da opinio delicti.

2.3 – Ação penal de iniciativa privada

A ação penal de iniciativa privada é aquela em que o Estado transfere a vítima ou ao seu representante legal a legitimidade para propositura da ação, será ela a competente quando o Código Penal trouxer que o crime “somente se procede mediante queixa”. São titulares para a representação: o ofendido ou seu representante legal (art. 100, § 2º do CP e 30 do CPP); e o curador especial nomeado para o ato nos termos do artigo 33 do Código de Processo Penal. É intrínseca a mesma algumas regras/princípios, a saber: oportunidade e conveniência; disponibilidade; indivisibilidade; e intranscendência. Importante aqui ressaltar os institutos que dão materialidade ao princípio da oportunidade mencionado, são eles: a decadência (arts. 103 do CP e 38 do CPP) – quando ocorre a perda do direito de representação ou de oferecer queixa-crime na ação privada frente ao transcurso do tempo improrrogável de 6 meses exigido em lei - ; a renúncia – ato unilateral do ofendido, expresso (art. 50 do CPP) ou tácito (art. 104, parágrafo único do CP), que independe de aceitação do imputado com incidência antes do direito de queixa ou de representação - ; a perempção (art. 60 do CPP) – ato unilateral resultante da inércia do querelante no curso da ação penal privada - ; e o perdão – ato bilateral que depende da aceitação do réu e acontece no curso do processo. Há o chamado perdão expresso processual (quando o juiz participa) e o extraprocessual (quando elabora-se termo de oferta e aceite reconhecido firma e levam até o juiz para homologação).

É subdividida em: propriamente dita ou exclusiva; personalíssima; e subsidiária da pública. A primeira é aquela sem qualquer especificidade que pode ser ajuizada pelo ofendido ou representante legal mediante queixa no prazo decadencial de 6 meses. A segunda diz respeito a algo intrínseco e restrito a iniciativa pessoal da própria vítima. Depois da revogação do delito de adultério em 2005, restou apenas o crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (art. 236 do CP) com tal característica em nosso ordenamento. Importante mencionar que a sucessão já mencionada aqui que prevê o artigo 31 do CPP não ocorre na morte do ofendido, pois, por ser personalíssima, extinguirá a punibilidade. Além do mais, até mesmo se o cônjuge enganado for menor, a queixa só poderá ocorrer depois dos seus efetivos 18 anos, haja vista que a emancipação (cível) pelo casamento não tem efeito no processo penal. Já a subsidiária da pública, prevista constitucionalmente no art. 5º, inciso LIX da Constituição, refere-se a legitimação extraordinária em que o ofendido poderá exercer a ação penal diante de um crime que é de iniciativa pública (arts. 29 do CPP e 100, § 3º do CP). Esta poderá ser invocada quando configurada a inércia do Parquet deixando de oferecer a denúncia, requerer arquivamento do inquérito ou solicitar diligências dentro do prazo imposto pelo artigo 46 do Código de Processo Penal.


3 – Lei Maria da Penha e suas particularidades

Em análise a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), importa ressaltar que a mesma possui algumas especificidades que merecem atenção. Conforme o previsto no seu artigo 41, nota-se que ficou afastada a incidência do previsto na 9.099/95 para os delitos que envolvam qualquer violência contra as mulheres. Desta maneira, mesmo que o crime cometido seja o denominado como infração de menor potencial ofensivo, isto é, tenha pena máxima igual ou inferior a 2 anos, deverá ser apurado mediante inquérito policial e não apenas pela lavratura do termo circunstanciado.

No seu artigo 16 está previsto que “nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”. No entanto, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.424) proposta pelo Procurador-Geral da República julgada procedente pelo STF, a maioria dos seus membros entendeu que essa circunstância diminui a proteção constitucional assegurada ao gênero feminino. Assim, a vítima só poderá se retratar na audiência em caso de ameaça, pois, em face de qualquer lesão corporal, ainda que leve ou culposa, praticado contra a mulher, no âmbito das relações domésticas, deve ser processado mediante ação penal pública incondicionada, determinando, em contrapartida, a permanência da necessidade de representação para os crimes como ameaça e os cometidos contra a dignidade sexual.


4 – Por que punir? Uma análise das teorias justificadoras das penas

Em análise a teoria das penas, numa breve explanação pode-se dizer que a Teoria Absoluta (Retributiva) tem como ponto principal a retribuição, é um castigo pelo mal imposto diante do delito. Numa visão histórica, estabelecem limites ao poder punitivo estatal, permitindo apenas os meios necessários de castigo, não sendo então eficiente a prevenção de delitos futuros, sua imposição estaria justificada então pelo valor de punir o fato passado realizando-se justiça com base no fundamento do livre-arbítrio. Entre seus defensores destacam-se Kant e Hegel. Para o último a justificação da pena é de ordem jurídica, restabelecendo a normal violada através de um mal, já dizia: “a pena é a negação da negação do Direito”. Assim, a irracionalidade do delinquente na prática do delito deve ser negada com o sofrimento diante da pena, restabelecendo então a ordem jurídica violada atribuindo, como Kant, o conteúdo talional à pena. Para Kant é a justificação é de ordem ética, se guiando pelo valor moral diante da ilicitude penal cometida, sustentando o “ius talionis” para a espécie e medida da pena, isto é, “o mal que fazes a teu semelhante, o fazes a ti mesmo”, devendo então ser punido unicamente por haver delinquido.

Já na Teoria Relativa (Preventiva), a pena não se justifica em retribuir o dano, mas para prevenir a sua prática futura pelo agente. Como leciona Bitencourt5, tanto as absolutas quanto as relativas consideram a pena como um mal necessário. No entanto, diferem-se que para as relativas, não se baseia na finalidade propriamente de justiça, mas em inibir, ao máximo, a prática dos novos delitos. Divide-se em Prevenção Geral e Prevenção Especial. Na primeira, sua finalidade diz respeito ao controle da violência, tendo como destinatário a coletividade social e subdividindo-se em prevenção geral negativa, a qual intimida de forma coercitiva ou até “coativa psicológica” através da ameaça de pena, e a prevenção geral positiva que reforça a vigência da norma e a ordem social ao mostrar sua incidência nos casos concretos. Já a Prevenção Especial destina-se diretamente ao condenado com o objetivo que ele não volte a delinquir, procurando impedir a reincidência por meio da ressocialização. Sustenta Ferrajoli6 a classificação em prevenção especial positiva, que se dirigem a reeducação, e a prevenção especial negativa, a neutralização ou eliminação do delinquente perigoso da coletividade social.

Buscando unificá-las diante de uma mediação, surge a chamada Teoria Unitária que busca como finalidade que ao mesmo momento a pena contenha as três antes apresentadas: retribuição, prevenção e ressocialização. Para Roxin, a pena somente pode ser de tipo preventivo, atendendo ao fim de ressocialização e ao mesmo tempo projetando seus efeitos sobre a sociedade diante do seu poder coercitivo mostrando sua eficácia e consequentemente motivando os indivíduos a não infringi-las. Renunciando ainda a ideia de retribuição, Roxin defende que a pena não é unicamente um mal, mas a desaprovação de tal conduta procura evitar sua repetição diante de sua influência ressocializadora. Assim, a pena adequada à culpabilidade do agente nunca poderá ser aumentada, mas apenas reduzida de acordo com os fins preventivos, prevenção especial e geral.

Diante de uma moderna teoria de justificação da pena, Hassemer parte do pressuposto que a reação estatal diante do fato protege também a consciência social da norma, significando então a ressocialização e retribuição instrumentos necessários ao fim de uma prevenção geral positiva. Cezar Roberto Bitencourt sustenta que a visão integradora formulada pela teoria da prevenção geral positiva limitadora é a mais adequada à realidade do ordenamento jurídico brasileiro. Leciona que, apesar de ser uma teoria preventiva de base relativista, assume a ideia da retribuição da culpabilidade como pressuposto lógico da finalidade preventiva de delitos devendo manter-se dentro dos limites do Direito Penal do fato e da proporcionalidade, materializando-se também através dos princípios limitadores do poder punitivo estatal, sem ainda esquecer-se das necessidades de prevenção especial em finalidade a ressocialização. Para que esta tenha eficácia, é sabido o quão necessário é um processo de interação entre o indivíduo e a sociedade. Por esta razão se pode justificar a redução da pena diante dos limites máximos exigidos pela proporcionalidade e a diversificação do tipo de pena aplicável, haja vista que não é característica de um Estado Democrático de Direito o aumento total da repressão e punições, transformando-o de Estado-Providência em Estado-Penitencia, sem o ideal da reabilitação a partir de um discurso ideológico altamente conservador que já fora inserido no mundo em outras décadas, como relatado por Loic Wacquant na sua obra “Prisões da Miséria”.

Essa mudança de objetivo e de resultado traduz o abandono do ideal da reabilitação, depois das críticas cruzadas da direita e da esquerda na década de 70 e de sua substituição por uma “nova penalogia”, cujo objetivo não é mais nem prevenir o crime, nem tratar os delinquentes visando o seu eventual retorno à sociedade uma vez sua pena cumprida, mas isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais disruptivos mediante uma série padronizada de comportamentos e uma gestão aleatória dos riscos, que se parecem mais com uma investigação operacional ou reciclagem de “detritos sociais” que com trabalho social.7

Alguns autores, principalmente Zaffaroni8, hoje sustentam uma chamada teoria agnóstica ou negativa da pena, pois partindo de uma reflexão sobre suas funções declaradas, mas não realizadas, opera-se a punição que é inexoravelmente um fazer sofrer precisamente caracterizada por infligir sofrimento ao condenado através da perda ou restrição de direitos a qual já fora concebida também como “medicina da maldade” por Platão9, logo, os problemas sociais nunca foram e nem podem ser resolvidos pela pena de prisão. Deve-se relatar que, apesar das críticas, não se tem a ideia que a finalidade da ressocialização e reintegração devem ser abandonadas, mas sim que sejam revistas, analisadas e estruturadas de outra forma no intuito de se ter eficiência e efetividade dos seus meios. Desta forma, diante da crise do sistema penal, a teoria agnóstica se mostra inversa à atual tendência punitivista das políticas criminais, mostrando tendências ao gradativo desuso da prisão chegando ao abolicionismo da mesma. Há de se relatar que a teoria abolicionista que vem ganhando adeptos e se mostra para alguns como meio, baseia-se também na retirada de determinadas condutas do Código Penal deixando-as sem tipicidade e, sobretudo defendendo o princípio da dignidade humana estritamente violada, meio em que se ameniza o caos penitenciário, ou até mesmo a abolição por completa do sistema.

Analisando as teorias da pena e suas consequências, não se pode deixar de mencionar a respeito do garantismo penal e sua aplicação no Estado Democrático de Direito.

O garantismo penal é um esquema tipológico baseado no máximo grau de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, limitando o poder punitivo e garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública ou privada. Por se tratar de modelo ideal (e ideológico), apresenta inúmeros pressupostos e consequências lógicas e teóricas.10

Salo e Amilton Bueno de Carvalho nos apresenta a teoria desenvolvida por Ferrajoli, na qual o poder punitivo do Estado deve ser diminuído, limitado ao máximo, enquanto que a liberdade do indivíduo deve sem ampliado. O garantismo é, então, um modelo político criminal minimalista que afasta teses radicais a partir de preceitos que fazem prevalecer os direitos e garantias das pessoas frente à redução ao máximo do poder estatal arbitrário e ilimitado exigindo, assim, maior racionalidade na aplicação e execução da pena.

Frente ao demasiado crescimento da criminalização a partir do século XX, num seminário intitulado como “Depois do Grande Encarceramento”11 feito em 2008, especialistas das mais diversas áreas se reuniram para discussão dos métodos de aprisionamento em massa e ao insucesso das políticas de repressão implantadas como forma de conter índices criminais e resposta do Estado a própria sociedade. Diante a total ineficácia da pena privativa de liberdade como meio de ressocialização, defendem a implementação de dispositivos legais desencarceradores em consonância com um modelo criminal minimalista que afaste as teses radicais de constante repressão e tolerância zero. Assim, a ampliação das possibilidades de aplicação de penas alternativas a prisão se apresentaria como melhor forma imediata de diminuir os efeitos estigmatizantes do encarceramento e a superlotação do sistema carcerário, garantindo, desta forma, um menor índice de reincidência que hoje supera os incríveis 70%.


Considerações finais

A Carta Magna coloca a função do Ministério Público como uma das essenciais à efetivação da justiça com a incumbência da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Cumpre papel de extrema relevância no modelo processual acusatório, pois sua criação se deu com a necessidade de um contraditor natural do imputado para que fosse possível a transformação do sistema inquisitório para o acusatório. Desta maneira, visando uma efetivação deste sistema, a figura do Parquet retirou do juiz as funções investigatórias e assumiu a responsabilidade pela promoção da persecução penal para preservar ao máximo a sua imparcialidade. Conforme o mencionado, é o representante titular da ação penal, representa também o interesse estatal em restabelecer a ordem violada pela prática criminosa buscando a efetiva punição dos transgressores e zelando pelo correto cumprimento da lei. No entanto, não é por estar legitimado a acusação que estará obrigado a sempre condenar o réu, logo, pode requerer o arquivamento da investigação, recorrer a favor do acusado, requerer sua absolvição e impetrar habeas corpus ou até mesmo produzir provas da sua inocência.

No que se refere aos crescentes discursos de legitimação do Direito Penal inclinados a implementação da ideologia “lei e ordem” ou até mesmo da política de tolerância zero, diante de um processo penal totalmente estigmatizante que etiqueta e deteriora a imagem do acusado12 impondo consequências altamente danosas a sua imagem, entendemos que o uso do ius puniendi a partir da própria denúncia ou pedido de condenação por parte do Ministério Público não deve ser invocado de forma injusta, necessitando de ampla racionalidade e bom senso a respeito das consequências que a execução de pena pode representar frente à falência do sistema e a ineficácia da pena conforme sua finalidade já demonstrada.

Para evitar eventuais corrupções bem como assegurar o desempenho em sua plenitude das atribuições conferidas pelo ordenamento jurídico, os membros do Parquet não se subordinam a nenhuma outra autoridade, havendo apenas uma hierarquia administrativa ao Chefia da Instituição, mas sem nenhum caráter imperativo como nota-se com a possibilidade do Promotor discordar do Procurador-Geral de Justiça (art. 28 do CPP). Portanto, acumulam diversas funções essenciais à efetivação do Estado Democrático de Direito como defensor principal das garantias coletivas e individuais dos indivíduos, sendo peça importante inclusive na tentativa de conter a aplicação da pena de forma seletiva, direcionada, irracional e excludente num mau uso do direito penal e do poder punitivo do Estado.


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

CARVALHO, Amilton Bueno. CARVALHO, Salo. Aplicação da pena e garantismo. 4º Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.

Depois do grande encarceramento, seminário. Organizado por Pedro Vieira Abramovay e Vera Malaguti Natista. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Frauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 4º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

GOFFAMAN, Erving. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Mathias Lambert. Publicação original em 1891, digitalizado em 2004.

LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 104.

WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Tradução de André Telles, digitalizado em 2004.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2º ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.


Notas

1 ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 104.

2 LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 337.

3 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

4 LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

5 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

6 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Frauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 4º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

7 WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Tradução de André Telles, digitalizado em 2004. p. 55.

8 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2º ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

9 Depois do grande encarceramento, seminário. Organizado por Pedro Vieira Abramovay e Vera Malaguti Natista. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 145.

10 CARVALHO, Amilton Bueno. CARVALHO, Salo. Aplicação da pena e garantismo. 4º Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 21.

11 Depois do grande encarceramento, seminário. Organizado por Pedro Vieira Abramovay e Vera Malaguti Natista. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

12 GOFFAMAN, Erving. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Mathias Lambert. Publicação original em 1891, digitalizado em 2004.


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