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A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a sentença do caso Gomes Lund “Guerrilha do Araguaia”

A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a sentença do caso Gomes Lund “Guerrilha do Araguaia”

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O STF deverá exercer o chamado controle de convencionalidade, para propiciar de forma efetiva o cumprimento da decisão da Corte IDH no Caso Gomes Lund e outros vs. Estado Brasileiro.

SUMÁRIO: RESUMO. Palavras-chave. 1 INTRODUÇÃO. 2 DIREITOS HUMANOS – Conceito. 2.1 Os Direitos Humanos no âmbito Internacional. 3 A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A INSTITUIÇÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. 3.1 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 3.2 A competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH. 4  O QUE FOI A “GUERRILHA DO ARAGUAIA. 4.1 Quem foi Guilherme Gomes Lund?. 4.2 Do paradeiro desconhecido das vítimas. 5 A SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. 6 A POSIÇÃO DO STF SOBRE A LEI DE ANISTIA – ADPF 153. 7 COMO SOLUCIONAR O CHOQUE APARENTE ENTRE A DECISÃO DO STF E A DECISÃO DA CORTE SAN JOSÉ? 8 DAS AÇÕES DESEMPENHADAS PELO ESTADO BRASILEIRO PARA DAR CUMPRIMENTO A SENTENÇA DA CORTE IDH. 8.1 Da obrigação de conduzir a investigação dos crimes cometidos durante a Guerrilha. 8.2 Da tipificação do crime de desaparecimento forçado de pessoas. 8.3 Da instituição da Comissão da Verdade e divulgação dos fatos ocorridos durante a Guerrilha. 9 DA PROVÁVEL REAVALIAÇÃO DA LEI DE ANISTIA (LEI 6.683/79) PELO STF. 10 CONCLUSÃO. 11 REFERÊNCIAS.

RESUMO: O presente trabalho aborda de forma clara e objetiva a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos proferida no Caso Gomes Lund e outros versus Brasil, bem como a teoria do duplo controle, a ser utilizada com vistas a solucionar o aparente choque entre a decisão proferida pela citada Corte e a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no que se refere à Lei de Anistia. Procura-se evidenciar a obrigatoriedade de cumprimento da referida decisão, uma vez que a jurisdição da Corte IDH foi expressamente reconhecida pelo Brasil. Dessa forma, o presente artigo tem por objetivo examinar a decisão proferida no Caso Gomes Lund e outros, em relação aos seus aspectos penais. O referido estudo embasou-se em uma análise descritiva com abordagem qualitativa, por meio de pesquisa bibliográfica em fontes primárias, doutrinas e jurisprudências. Assim, evidencia-se que a sentença proferida possui status de norma constitucional e que por isso o seu cumprimento é obrigatório. A propósito, não cabe alegar coisa julgada ou efeito vinculante para obstruir inquéritos policiais ou ações penais que estejam a aplicar a sentença interamericana, pois estes se ampararam na decisão da Corte IDH, que tem eficácia independentemente da decisão do STF. Por isso, o STF deverá exercer o chamado controle de convencionalidade, para propiciar de forma efetiva o cumprimento da decisão da Corte IDH no Caso Gomes Lund e outros vs. Estado Brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Ditadura; Araguaia; Anistia; Investigação; Punição.


1 INTRODUÇÃO

Após sua redemocratização, o Estado brasileiro reconheceu a jurisdição de vários organismos internacionais, judiciais ou quase-judiciais, em diversas matérias. Como exemplo, cite-se o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, do Tribunal Penal Internacional e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, o que demonstra que o Brasil tem avançado no trato dos direitos internacionais.

Com efeito, após a adesão brasileira a esses mecanismos internacionais de averiguação ao respeito às normas de direitos humanos, mostra-se necessário compatibilizar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre os diferentes direitos protegidos com a posição hermenêutica dos citados órgãos internacionais.

Esse desafio se torna ainda mais evidente no caso da Lei de Anistia, pois, de maneira inédita, uma ação de responsabilidade internacional contra o Brasil promovida perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos tratou de tema sujeito, meses antes, por ocasião da Arguição de descumprimento de Preceito Fundamental 153, a julgamento do STF.

Dessa forma, o presente artigo tem por objetivo examinar a decisão proferida no Caso Gomes Lund e outros, em relação aos seus aspectos penais. Será feito um estudo analítico e descritivo da sentença, enfocando seus fundamentos, o Estado brasileiro e a Lei de Anistia (6.683/79), todos incluídos na decisão ora examinada.

Além disso, serão analisadas as duas decisões (a nacional e a internacional). Em seguida, verificar-se-á se é possível ou não conciliar as duas posições. Defender-se-á, ao final, a aplicação da teoria do duplo controle, com ênfase na necessidade do Estado brasileiro de cumprir a integralidade dos comandos impostos na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para tanto, o presente estudo se embasará em uma análise descritiva com abordagem qualitativa, por meio de pesquisa bibliográfica em fontes primárias, doutrinas e jurisprudências.


2  DIREITOS HUMANOS - CONCEITO

O tema jurídico, Direitos Humanos que toma corpo na atualidade, vem evoluindo há muito – embora a passos lentos –, no curso histórico da humanidade. Matéria de conceituação delicada, a princípio restrita ao direito interno, transcende, contudo, para o âmbito do Direito Internacional Público, onde encontra posições jurídicas conflitantes, com implicações na política externa dos Estados.

Parece oportuno – para fixação doutrinária – adiantar que, os Direitos Humanos possuem fundamento no direito natural, isto é, nos direitos que a pessoa humana possui, em decorrência de sua própria natureza, pelo simples fato de existir; vale dizer, um corpo de direitos inseparáveis da dignidade pessoal, conferidos pela razão transcendental, e não, pois, pela sociedade política, à qual incumbe, precipuamente, reconhecê-los e garanti-los.

 Neste ínterim, importante citar a conceituação emanada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a respeito do que são os Direitos Humanos:

Os Direitos Humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Os Direitos Humanos incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre e muitos outros. (ONU, 2015).

Digna de nota também é a conceituação precisa de Peres Luño, citada por André de Carvalho Ramos (2015, p. 38), que compatibilizando a evolução histórica dos direitos humanos com a necessidade de definição de seu conteúdo, considera “direitos humanos o conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional”.

André de Carvalho Ramos (2015, p. 38) ainda adota a sua própria definição, a de que “direitos humanos são o conjunto mínimo de direitos necessários para assegurar a vida do ser humano, baseada na liberdade, igualdade e na dignidade”.

É certo, portanto, que esses direitos são inalienáveis, irrevogáveis, indisponíveis e irrenunciáveis, isto é, se confundem com o ser humano, de modo que dele não podem ser separados.

2.1 Os Direitos Humanos no âmbito Internacional

A internacionalização dos Direitos Humanos teve início no pós-guerra, em resposta às atrocidades cometidas ao longo do Nazismo. Como bem sinaliza Flávia Piovesan (2000, p. 18) “se a 2ª Guerra significou a ruptura do valor dos Direitos Humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução”.

É neste cenário, que toma forma o esforço de reconstrução dos Direitos Humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Neste contexto, a comunidade internacional passou a reconhecer que a proteção dos Direitos Humanos constitui questão de legítimo interesse e preocupação internacional. Os Direitos Humanos, portanto, acabam por transcender e extrapolar o domínio reservado ao Estado ou a competência nacional exclusiva.

Como sabiamente enfatizou Antônio Augusto Cançado Trindade (1991, p. 4) “compreendeu-se, pouco a pouco, que a proteção dos direitos básicos da pessoa humana não se esgota, como não poderia esgotar-se, na atuação do Estado, na pretensa e indemonstrável “nacional exclusiva”.

O marco inicial dessa chamada transição foi a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), que constituiu um ímpeto decisivo no processo de generalização da proteção dos Direitos Humanos. A partir dela começa a ser delineado o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de importantes tratados de defesa destes direitos, de alcance global (emanados da ONU) e regional (emanados dos sistemas europeu, interamericano e africano).

O primeiro, o sistema global, é integrado por instrumentos de alcance geral (como os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966) e por instrumentos de alcance específico, como as Convenções Internacionais que buscam responder a determinadas violações de Direitos Humanos, como a tortura, a discriminação racial, a violação dos direitos das crianças, dentre outras formas de violação. Por outro lado, o sistema normativo regional de proteção busca internacionalizar os Direitos Humanos no plano regional, particularmente na Europa, América e África. Na Europa tem-se a Convenção Europeia de Direitos Humanos, já em 1950. Na América, em 1969 a Convenção Americana era adotada. Consolida-se, dessa maneira, a convivência do sistema global com instrumentos do sistema regional de proteção aos Direitos Humanos. 

A convecção que interessa ao presente estudo, em razão do recorte temático principal a ser desenvolvido, é a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. 


3 A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A INSTITUIÇÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

O instrumento de maior importância de proteção dos Direitos Humanos, no chamado sistema interamericano é a Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada em San José, Costa Rica, no ano de 1969, vindo a entrar em vigor, posteriormente, em 1978. Apenas Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) podem aderir à citada Convenção. Segundo dados da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, dos 35 (trinta e cinco) Estados-membros da OEA, 25 (vinte e cinco) Estados são, atualmente, partes da Convenção Americana, dentre eles o Estado brasileiro, um dos que mais tardiamente aderiu a Convenção, fazendo-o apenas em 25 de setembro de 1992.

A Convenção Americana reconhece e assegura uma série de direitos civis e políticos, similar àqueles previstos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Dentre esses, merecem destaque: o direito à vida, o direito à liberdade, o direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e expressão e o direito de igualdade perante a lei.

Como nos ensina Flávia Piovesan (2000, p. 31):

A Convenção não enuncia de forma específica qualquer direito social, cultural ou econômico, limitando-se a determinar aos Estados que alcancem, progressivamente, a plena realização destes direitos, mediante a adoção de medidas legislativas e outras medidas que se mostrem apropriadas.

A Convenção Americana estabelece, portanto, um aparato de monitoramento e implementação dos direitos que ela própria enuncia. Esse aparato é constituído pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Pela Corte Interamericana.

3.1 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Primeiramente, é oportuno ressaltar que a competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alcança todos os Estados-membros da Convenção, em relação aos Direitos Humanos nela proclamados. Quanto a sua composição, a Comissão é integrada por sete membros, os quais são revestidos de alta autoridade moral e reconhecida versação em matéria de Direitos Humanos, que podem ser nacionais de qualquer Estado-parte da OEA. Os citados membros, são eleitos, a título pessoal, pela Assembleia Geral e pelo período de 4 (quatro) anos, podendo ser reeleitos uma única vez. 

A principal função dessa Comissão é promover a observância e a proteção dos Direitos Humanos na América. Para tanto, cabe à Comissão fazer recomendações aos Governos dos Estados-partes, antevendo a adoção de medidas adequadas à proteção dos Direitos Humanos. Além de desenvolver estudos e preparar relatórios que se mostrem necessários, bem como requisitar aos governos informações concernentes às medidas por eles adotadas relativas à efetiva aplicação do disposto na Convenção. Por fim, mas não menos importante, cabe à Comissão submeter à Assembleia Geral da Organização dos Estados-membros, um relatório anual, que visa atualizar a situação dos Direitos Humanos nos diversos Estados, membros da Convenção.

Compete à Comissão, também, o exame das petições encaminhadas por indivíduo ou grupos de indivíduos, ou ainda, entidade não governamental, que contenham denúncia de violação a direitos consagrados pela Convenção por parte de Estado-membro, nos exatos termos dos artigos 41 e 44.

A petição mencionada alhures, deve contemplar determinados requisitos de admissibilidade, como o prévio esgotamento dos recursos internos. Há, contudo, duas exceções à regra: quando houver injustificada demora processual, ou no caso da legislação doméstica do Estado não prover o devido processo legal. Outro requisito de admissibilidade é a inexistência de litispendência internacional, isto é, a mesma questão não pode estar pendente em outro domínio internacional.

  Preenchidos os requisitos de admissibilidade, a Comissão requisita informações ao Governo denunciado. Recebidas as informações ou transcorrido o prazo in albis, a Comissão verifica se existem ou se subsistem os motivos da petição ou comunicação. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses, a Comissão realizará, com o devido conhecimento das partes, uma análise apurada do assunto, e, se necessário, realizará a investigação dos fatos.

Concluído o exame da matéria, a Comissão se empenhará em buscar uma solução amistosa entre as partes. Contudo, se não alcançada, a Comissão, então, redigirá um relatório, apresentando os fatos e as conclusões pertinentes ao caso e, eventualmente, recomendações ao Estado-parte. Este relatório é encaminhado ao Estado-membro que tem o prazo de 3 (três) meses para dar cumprimento as recomendações feitas.

Neste período de três meses, o caso pode ser arquivado, se solucionado o conflito entre as partes, ou ainda, pode ser encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que é o órgão jurisdicional do sistema regional de proteção dos Direitos Humanos.  Todavia, para que o caso possa ser remetido a Corte, é mister que a sua jurisdição, no tocante a interpretação e aplicação da Convenção, tenha sido reconhecida pelo Estado-membro, mediante declaração expressa e específica.

O Brasil reconheceu a competência jurisdicional da mencionada Corte em 3 de dezembro de 1988.

3.2 A competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH

Quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional do sistema regional de proteção dos Direitos Humanos, esta é igualmente composta por 7 (sete) juízes nacionais de Estados-membros da Organização dos Estados Americanos, eleitos a título pessoal, pelos Estados-partes da Convenção Americana.

A citada Corte possui competência consultiva e contenciosa. A primeira significa que, qualquer membro da OEA, parte ou não da Convenção, pode solicitar parecer da Corte, relativamente à interpretação da Convenção ou de qualquer outro tratado relativo à proteção dos Direitos Humanos em território americano. A Corte ainda pode opinar sobre a compatibilidade de preceitos da legislação doméstica (interna) em face dos instrumentos internacionais. Já no plano contencioso, a competência da Corte esta adstrita ao julgamento de casos, limitada aos Estados-membros da Convenção que a reconheçam expressamente.

A decisão proferida pela Corte, nas palavras de Flávia Piovesan (2000, p. 45) “tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento”. Se a Corte Interamericana, por exemplo, fixar compensação à vítima, a decisão terá força de título executivo, em conformidade com os procedimentos internos relativos à execução desfavorável ao Estado, previstos na Convenção Americana.

Não há, no entanto, previsão de uma forma efetiva de execução dessas sentenças. Ao que se tem conhecimento, o Estado pode ser, no máximo, exposto politicamente perante a comunidade internacional e sofrer algumas retaliações no âmbito político da Assembleia da OEA. 

O Estado brasileiro, como se verá adiante, foi condenado pela Corte Interamericana, no ano de 2010, no conhecido Caso Guerrilha do Araguaia (Caso Gomes Lund e outros versus Brasil).


4  O QUE FOI A “GUERRILHA DO ARAGUAIA”?

A Ditadura Militar se estabeleceu no Brasil por meio do Golpe Militar de 1964 e durou até o ano de 1985. Por temerem o crescimento do Comunismo que se alastrava pelo mundo, os militares tomaram o poder, derrubando o até então presidente João Goulart. A década de 60 foi marcada por um terror descomunal. Nesse cenário, militantes influenciados por táticas de guerra rural, criadas por Mao Tsé-tung e Che Guevara, concentraram suas forças no campo.

A priori, um grupo de militantes se alojou as margens do Rio Araguaia, que abrange parte dos Estados do Pará, Maranhão e Goiás. No local, com orientação e financiamento de países comunistas, como Cuba, se pretendia criar uma guerrilha de resistência no campo, com o objetivo de facilitar a implantação do comunismo no Brasil. No início da década de 70 surgia a Guerrilha do Araguaia.

Organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), a guerrilha foi uma batalha desigual entre combatentes revolucionários e as forças de repressão do regime ditatorial imposto ao país.

Há relatos de que dos 69 militantes do Partido Comunista do Brasil que estavam na área, 59 morreram no conflito, além dos ribeirinhos também assassinados e das baixas nas Forças Armadas – as estimativas variam de 4 a 200 militares mortos.

A guerrilha contra os militantes se desenvolveu em três frentes, sendo que nas duas primeiras os comunistas foram vencedores. Além de não conhecerem a área, os militares não tinham o apoio da população local. Pelo contrário, eram odiados. Os comunistas se lançavam mata adentro sempre que alguma ameaça era detectada. E sem o apoio da população, o êxito militar era quase impossível.

Quase, porque na terceira frente, os militares entraram no jogo, decididos a ganhar. Meses antes do confronto, infiltraram tropas entre os ribeirinhos e foram colhendo informações sobre a área e os militantes que ali se encontravam. Com crueldade, torturavam locais (ribeirinhos) a fim de descobrir mais sobre os militantes. Tanto é que, em 1973, os comunistas foram cercados, e as organizações revolucionárias derrotadas.

Enquanto as armas utilizadas pelos guerrilheiros eram, na melhor das hipóteses, espingardas, os militares se armaram com fuzis, e se utilizaram de helicópteros e aviões para por fim ao levante. Atearam fogo nas cabanas, destruíram depósitos de mantimentos dos militantes, e, baseados nas informações de ribeirinhos que traíram os revolucionários, enfraqueceram os comunistas e os derrotaram. Enfim, venceram pelo cansaço.

A imprensa só divulgou a Guerrilha após seu fim. Censurada pela ditadura, a imprensa não cobria os acontecimentos e muitos nem sabiam o que estava acontecendo no interior do país. Comunistas capturados eram fuzilados ou decapitados, de modo que não fossem deixados rastros. Os militares transformaram as margens do Araguaia em um verdadeiro cemitério.           

4.1 Quem foi Guilherme Gomes Lund?

Militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B), como muitos outros, Guilherme Gomes Lund foi um jovem estudante de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Filho de João Carlos Lund e Julia Gomes Lund, nasceu em 11 de Junho de 1947. Foi militante do movimento estudantil. Preso em 1968, acabou sendo condenado, a revelia, a 6 meses de prisão. Em 1969 mudou-se para Porto Alegre/RS, e em fevereiro de 1970 passou a integrar o grupo de guerrilheiros estabelecido as margens do Araguaia.

Em 25 de dezembro de 1973, por estar doente, vítima da malária, encontrava-se em seu alojamento, quando foi posto em prática um violento ataque das Forças Armadas, ocasião em que ele teria sido fuzilado. O relatório do Ministério da Marinha confirma a sua morte, sem maiores esclarecimentos.

4.2 Do paradeiro desconhecido das vítimas      

  Que se tem notícia, até os dias atuais, foram encontrados somente dois corpos de guerrilheiros. O de Maria Lúcia Petiti, morta em junho de 1972, numa emboscada. Seus restos mortais foram identificados em 1966. O outro corpo localizado foi o de Bérgson Gurjão, morto em 1972, metralhado num tiroteio acontecido durante uma emboscada, em que foi atingido por militares infiltrados entre os camponeses. São esses os únicos guerrilheiros mortos e identificados.

As demais vítimas, como já afirmado anteriormente, foram mortas, ainda que assim não admita o Governo brasileiro, sem que até hoje seus restos mortais tenham sido encontrados.

Como se verá, posteriormente, o Governo brasileiro só tornou público alguns dos documentos referentes à Guerrilha, que dão conta do massacre ocorrido às margens do Araguaia, após a condenação da Corte Interamericana no Caso Gomes Lund e outros versus Brasil.

É sabido que nenhum dos dissidentes políticos foi punido pelas graves violações de Direitos Humanos ocorridas na Guerrilha, já que o Governo brasileiro concedeu a eles Anistia, por meio da Lei 6.683/1979.


5 A SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS   

Buscando modificar este cenário de impunidade, assegurado pelo Governo brasileiro, por meio da Lei de Anistia (Lei n.° 6.683/1979), os familiares das vítimas, tendo esgotado a jurisdição interna, buscaram a Corte Interamericana de Direitos Humanos para garantir a punição dos agentes políticos envolvidos na dizimação de mais de 90 insurgentes – entre militantes e ribeirinhos – durante a Guerrilha do Araguaia.

De início, convém destacar, mais uma vez, que serão analisados os aspectos penais da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Posto isso, é importante dizer que o caso brasileiro foi admitido pela Corte Interamericana com vistas à regra de exceção referente à injustificada demora na análise e apreciação do processo no plano interno. Nesse sentido, é público que o processo promovido pelos familiares das vítimas em 1982, manteve-se sem resposta por parte do Estado brasileiro até o ano de 1996, o que justificou a aplicação da exceção.

Em 07 de agosto de 1995, O CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) juntamente com a Human Rights Watch/Americas, em nome de pessoas desaparecidas no contesto da Guerrilha do Araguaia e seus familiares, apresentaram petição, denunciando os fatos ocorridos no Araguaia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Estado brasileiro sempre contestou a demanda, afugentando sua responsabilidade e requerendo o seu arquivamento, com amparo na Lei 6.683/1979 (Lei de Anistia).

Após a admissão do caso, ocorrida em 6 de março de 2001, e a posterior apresentação do relatório pela Comissão em 31 de outubro de 2008, e ante a negativa do Estado brasileiro em prestar informações que lhe foram requeridas, a Comissão submeteu-o à jurisdição da Corte IDH, para o fim de esclarecerem-se os conflitos existentes entre a Lei de Anistia brasileira e o desaparecimento forçado de pessoas, bem como as graves violações de Direitos Humanos, que o caso Gomes Lund e outros versus Estado Brasileiro denunciava.

Em seu relatório, a Comissão solicitou à Corte Interamericana que declarasse o Brasil responsável pela violação dos direitos reconhecidos nos artigos 3, 4, 5, 7, 8, 13 e 25 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, direito à vida, direito à integridade pessoal, direito à liberdade pessoal, garantias judiciais, liberdade de pensamento e expressão e proteção judicial, respectivamente) da Convenção Americana de Direitos Humanos, em conjunto com as obrigações previstas nos artigos 1.1 (obrigação geral de respeito e garantia da observância dos Direitos Humanos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) enumerados na mesma Convenção, bem assim solicitou à Corte que ordenasse ao Estado brasileiro a adoção de medidas de reparação.

Como já dito anteriormente, durante o transcorrer do processo, o Estado brasileiro requereu o arquivamento do feito, alegando a incompetência da Corte para analisar o caso, a falta de esgotamento dos recursos internos – requisito de admissibilidade –, e a falta de interesse processual da Comissão e de seus representantes. De nada adiantou, todos esses argumentos foram denegados pela Corte, à exceção do primeiro, vez que o Brasil somente ratificou a Convenção Americana em 10 de dezembro de 1998, tendo dito expressamente que:

Reconhece, por tempo indeterminado, como obrigatória e de pleno direito a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em todos os casos relacionados com a interpretação ou aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conformidade com o artigo 62, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a esta declaração, (CIDH, 2015).

Contudo, felizmente, olvidou-se o Governo brasileiro de que fatos envolvendo o desaparecimento forçado de pessoas constituem-se em espécie de sequestro, e como tal sua consumação se prolonga no tempo, por se tratar de crime permanente. 

O caráter permanente do crime de desaparecimento forçado de pessoas é enfatizado tanto nos tratados, quanto na jurisprudência internacional e comparada. A qualificação dos fatos como permanentes serve tanto para firmar a competência da Corte IDH (como se verifica dos parágrafos 16 e 17 da sentença), como para corroborar o argumento de que estes não estão prescritos. Com base nesses argumentos, a alegação de incompetência foi superada.

Dos objetivos dos requerentes, o de afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia brasileira (Lei n.° 6.683/79), com o disposto na Convenção Americana, certamente era o principal.

Instruído o processo, produzidas as provas – á luz do devido processo legal, com observância dos institutos da ampla defesa e do contraditório –, foi prolatada a decisão. Em 24 de novembro de 2010, a Corte IDH tendo analisado o Caso Gomes Lund e outros versus Estado Brasileiro proferiu sentença (CORTE IDH, 2010, p.113-114) que, em síntese, em termos penais, fundou-se nos seguintes aspectos:

I. A demanda se referia à responsabilidade do Estado Brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de cerca de 90 (noventa) pessoas, entre militantes do  Partido Comunista do Brasil (PC do B) e camponeses, durante a Guerrilha do Araguaia, resultado de operações militares, patrocinadas e desempenhadas pelo Governo brasileiro, entre os anos de 1972 e 1975, a fim de aniquilar àqueles que resistiam ao regime ditatorial imposto à época;

II. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de Direitos Humanos são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de Direitos Humanos consagrados na Convenção Americana  ocorridos no Brasil;

III. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 daquela;

IV. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de Direitos Humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma;

V. O Estado é responsável pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão consagrado no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com os artigos 1.1, 8.1 e 25 desse instrumento, pela afetação do direito de buscar e receber informação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais estabelecidos no artigo 8.1 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 13.1 do mesmo instrumento, por exceder o prazo razoável da Ação Ordinária, todo o anterior em prejuízo dos familiares indicados nos parágrafos 212, 213 e 225 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 196 a 225 desta mesma decisão; e finalmente;

VI. O Estado é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, consagrado no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo instrumento, em prejuízo dos familiares indicados nos parágrafos 243 e 244 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 235 a 244 desta mesma decisão.

Em vista do reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CORTE IDH, 2010, p. 115-116) ordenou que esse cumprisse, em relação à perspectiva penal, as seguintes determinações:

I.  O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença;

II. O Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 261 a 263 da presente Sentença;

III. O Estado deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o caso, pagar o montante estabelecido, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 267 a 269 da presente Sentença;

IV. O Estado deve realizar as publicações ordenadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 273 da presente Sentença;

V.  O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 277 da presente Sentença;

VI.  O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre Direitos Humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 283 da presente Sentença;

VII.  O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente Sentença. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno; e

VIII.  O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa às violações de Direitos Humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso a esta nos termos do parágrafo 292 da Sentença.

   Por último, foi consignado em sentença, conforme o parágrafo 21 dos pontos resolutivos, que:

A Corte supervisará o cumprimento integral desta Sentença, no exercício de suas atribuições e em cumprimento de seus deveres, em conformidade ao estabelecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto na mesma. Dentro do prazo de um ano, a partir de sua notificação, o Estado deverá apresentar ao Tribunal um informe sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento (CORTE IDH, 2010, p. 115).

Tem-se, então, que o Estado brasileiro é reconhecidamente responsável pelas atrocidades cometidas durante a Guerrilha do Araguaia, além de ter sido declarada a sua incapacidade para reprimir adequadamente as pessoas que praticaram esses delitos. Destarte, apesar de a citada sentença ter sido proferida por uma Corte Internacional, a qual teve a jurisdição reconhecida pelo Brasil, desde a sua prolação pouco foi feito por parte do Estado brasileiro, para dar efetivo cumprimento a decisão, como será demonstrado no tópico sete deste artigo.


6 A POSIÇÃO DO STF SOBRE A LEI DE ANISTIA – ADPF 153

Destaca-se neste sentido um choque de decisões. De um lado a Suprema Corte brasileira que ao julgar, em 30.04.2010, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 153, arguida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), declarou a validade da Lei de Anistia. E de outro, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ao julgar o Caso Gomes Lund e outros versus Brasil, posteriormente, em 24.11.2010, declarou a invalidade da mesma Lei, em razão da incompatibilidade das disposições nela contidas com o disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é parte.

 Com efeito, em outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, interpôs, perante o STF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pedindo para que fosse interpretado o parágrafo único do art. 1° da Lei de Anistia (Lei 6.683/79) conforme a Constituição Federal de 1988, de modo a declarar, a luz de seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela mencionada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes de Estado (civis ou militares) em nome da ditadura, contra opositores políticos.

No pedido, a OAB, invocou os preceitos fundamentais constitucionais da isonomia (art. 5°, caput), direito à verdade (art. 5°, XXXIII) e os princípios republicano, democrático (art. 1°, §único) e da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III). Em suma, a procedência da ação afastaria um dos principais argumentos, utilizados ao longo dos anos a favor da impunidade dos agentes de repressão durante o regime militar, o de que teriam sido anistiados.  

Após o ajuizamento e distribuição da arguição, para o relator, Ministro Eros Grau, foram prestadas informações, tendo a Advocacia-geral da União requerido o não conhecimento da arguição, em preliminar, e no mérito defendido a sua improcedência. Contrariamente, o Ministério da Justiça, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e a Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil manifestaram-se pela procedência da arguição.

Na sessão de julgamento, ocorrida em 28.04.2010, no mérito, sete ministros declararam improcedente a arguição (Min. Eros Grau – relator, Carmen Lúcia, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Cezar Peluso, Celso de Mello e Gilmar Mendes) e dois votaram pela procedência (Min. Ricardo Lewandowiski e Carlos Britto).

Em seu voto, o ministro relator afirmou que a Lei de Anistia brasileira se deu por solução consensual das partes (em plena ditadura) e que, por isso, não era aplicável a jurisprudência internacional. O ministro sustentou ainda que, a anistia concedida no Brasil não é unilateral, mas, recíproca (bilateral) já que beneficiou tanto os opositores do regime militar quanto os agentes da repressão. Não se consagrou então, segundo ele, a chamada anistia em branco, que busca, unicamente, suprimir a responsabilidade dos agentes de Estado.

Para melhor esclarecer, destacam-se alguns trechos do voto (BRASIL, 2010):

Reconheço que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos julgamentos – como aqueles proferidos, p. ex., nos casos contra o Peru (“Barrios Altos”, em 2001, e “Loayza Tamayo”, em 1998) e contra o Chile (“Almonacid Arellano e outros”, em 2006) -, proclamou a absoluta incompatibilidade, com os princípios consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos, das leis nacionais que concederam anistia, unicamente, a agentes estatais, as denominadas “leis de auto anistia”.

[...]

É preciso ressaltar, no entanto, como já referido, que a lei de anistia brasileira, exatamente por seu caráter bilateral, não pode ser qualificada como uma lei de auto anistia, o que torna inconsistente, para os fins deste julgamento, a invocação dos mencionados precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

[...]

Com efeito, a Lei nº 6.683/79 – que traduz exemplo expressivo de anistia de “mão dupla” (ou de “dupla via”), pois se estendeu tanto aos opositores do regime militar quanto aos agentes da repressão – não consagrou a denominada anistia em branco, que busca, unicamente, suprimir a responsabilidade dos agentes do Estado e que constituiu instrumento utilizado, em seu próprio favor, por ditaduras militares latino-americanas.

[...]

Como anteriormente ressaltado, não se registrou, no caso brasileiro, uma autoconcedida anistia, pois foram completamente diversas as circunstâncias históricas e políticas que presidiram, no Brasil, com o concurso efetivo e a participação ativa da sociedade civil e da Oposição militante, a discussão, a elaboração e a edição da Lei de Anistia, em contexto inteiramente distinto daquele vigente na Argentina, no Chile e no Uruguai, dentre outros regimes ditatoriais.

Contudo, como se poderia conceber um “acordo bilateral” em plena Ditadura? Este tem se mostrado o ponto mais fraco da argumentação do STF em relação à ADPF 153.

 No mesmo voto, o relator afirmou que nos casos das Supremas Cortes do Chile e da Argentina, que declaram a inaplicabilidade das respectivas leis de anistia aos agentes de repressão política, foram os poderes legislativos de ambos os países que combateram a anistia anteriormente concedida, e não o judiciário como se esperava na citada arguição.

Quanto ao costume internacional de punição a crimes de lesa humanidade (e sua imprescritibilidade), houve uma transcrição jurídica da opinião de Nilo Batista, o qual sustenta que não é cabível costume internacional penal.

O julgamento, portanto, em nada inovou em relação à Lei de Anistia que foi declarada válida em seu inteiro teor. Porém, como já citado anteriormente, este julgamento ocorreu em momento anterior à prolação da sentença pela Corte Interamericana, de modo que a decisão da Corte Internacional ainda precisa passar pelo crivo do STF, que deverá realizar o chamado controle de convencionalidade entre o disposto na Lei de Anistia e o disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos (1969).  Analisar-se-á o exercício desse controle no tópico seguinte.


7 COMO SOLUCIONAR O CHOQUE APARENTE ENTRE A DECISÃO DO STF E A DECISÃO DA CORTE SAN JOSÉ?

Antes de responder ao questionamento supramencionado, é preciso atentar-se a seguinte premissa: não há conflito insolúvel entre as decisões do STF e da Corte de San José, com bem nos ensina André de Carvalho Ramos (2011, p. 216), “uma vez que ambos os tribunais têm a grave incumbência de proteger os direitos humanos. Eventuais conflitos são apenas conflitos aparentes, fruto do pluralismo normativo que assola o mundo de hoje, aptos a serem solucionados pela via hermenêutica”. 

Em resposta ao questionamento: para resolver esses conflitos, há dois instrumentos. O primeiro deles é preventivo e consiste no apelo ao “Diálogo das Cortes” e a fertilização cruzada entre os tribunais. Com essa postura, é possível antever, em um futuro palpável, o uso pela Suprema Corte Brasileira das posições dos diversos órgãos internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil já se sujeitou. Por óbvio, vale lembrar que, não é possível obrigar os juízos nacionais ao “Diálogo das Cortes”, isso porque a independência do Estado Democrático de Direito se esvairia.

Em havendo ineficácia do primeiro, o segundo instrumento a ser utilizado, conforme propõe André de Carvalho Ramos (2011, p. 217) seria a chamada teoria do duplo controle ou crivo de direitos humanos “que reconhece a atuação em separado do controle de constitucionalidade – exercido pelo STF e juízos nacionais –, do controle de convencionalidade – exercido pela Corte San José e outros órgãos de direitos humanos no plano internacional”. Os direitos humanos no Brasil, então, passam a possuir uma dupla garantia: o controle de constitucionalidade, no âmbito nacional, e o controle de convencionalidade, em âmbito internacional.

Esse duplo controle parte da verificação de uma real separação de atuações, na qual inexistira efetivo conflito entre as decisões, porque cada Tribunal age em sua esfera “particular”, isto é, distinta e com fundamentos diversos.

No caso da ADPF 153, houve o controle de constitucionalidade, exercido pelo STF. No Caso Gomes Lund e outros versus Brasil, houve o controle de convencionalidade, exercido pela Corte Interamericana. A anistia aos agentes da guerrilha, para subsistir, deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas só resistiu a um (com votos contrários, frise-se), o controle de constitucionalidade.

Por seu turno, as teses defensivas de prescrição, legalidade penal estrita, entre outras, também deveriam ter obtido anuência de ambos os controles. Como as mencionadas teses defensivas não foram aceitas pelo controle de convencionalidade e dada à aceitação constitucional da internacionalização dos direitos humanos, não podem ser aplicadas internamente. Ou seja, não cabe alegar coisa julgada ou efeito vinculante para obstruir inquéritos policiais ou ações penais que estejam a aplicar a sentença interamericana, pois esses se ampararam na decisão da Corte IDH, que tem eficácia, independentemente, da decisão do STF.

A partir da aplicação dessa teoria será necessário se acostumar a exigir que todo ato interno se conforme não só com o teor da jurisprudência do STF, mas também com o teor da jurisprudência interamericana.


8 DAS AÇÕES DESEMPENHADAS PELO ESTADO BRASILEIRO PARA DAR CUMPRIMENTO A SENTENÇA DA CORTE IDH

Como já assinalado no tópico 5 deste artigo, desde a prolação da sentença, em 24.11.2010, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pouco foi feito por parte do Estado brasileiro para dar cumprimento a decisão.

A OAB, inclusive, já condenou publicamente a recusa do Governo brasileiro em cumprir a decisão da Corte de Direitos Humanos. O representante da Ordem dos Advogados do Brasil, jurista Fábio Konder Comparato, na audiência pública, que debateu na Câmara dos deputados, foi enfático ao dizer que:

A recusa em cumprir sentença de tribunal internacional, cuja jurisdição foi oficialmente aceita de modo geral e tacitamente confirmada no processo pertinente, configura flagrante desrespeito ao princípio do Estado de Direito e coloca o nosso País em estado de aberta ruptura com a ordem jurídica internacional (OAB, 2015).

Ainda, segundo o entendimento da OAB, o Brasil aderiu voluntariamente à Convenção Americana, sendo que a jurisdição dessa Corte para decidir sobre violações aos Direitos Humanos é indiscutível e suas determinações são de cumprimento obrigatório, sem possibilidade de revalidação interna.

Feitas essas considerações, passa-se a análise das determinações feitas pela Corte, que já foram descritas anteriormente, consoante tópico cinco, e que já tiveram o cumprimento iniciado por parte do Estado brasileiro.

8.1 Da obrigação de conduzir a investigação dos crimes cometidos durante a Guerrilha

Como já dito oportunamente, o Brasil fora condenado a “conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja” (CORTE IDH, 2010, p. 114). 

A decisão do “Caso Gomes Lund e outros versus Estado brasileiro”, impacta decisivamente em atribuições privativas do Ministério Público, como a propositura de ações penais contra os agentes da ditadura militar.

Vale dizer, o Ministério Público brasileiro é essencial na missão de implementar internamente as decisões internacionais de responsabilização do Estado por violação a direitos humanos. Tanto é que, em havendo inércia dos outros Poderes, caberá ao MP a tarefa de utilizar seus poderes conferidos constitucionalmente – entre eles o poder de requisição e investigação na área criminal – para obter a efetivação negada.

Buscando dar efetivo cumprimento a decisão da Corte Internacional, o Ministério Público Federal (MPF) tem desenvolvido a investigação dos crimes, em conjunto com a Polícia Federal (PF), de modo que em alguns casos, em que já foi possível identificar os responsáveis pelas violações de direitos humanos, o MPF ofereceu denúncia.

Nesse sentido, o caso do Major Asdrúbal – Lício Augusto Ribeiro Maciel, que é acusado pelos homicídios dos militantes: André Grabois, João Gualberto e Antônio Alfredo de Lima, além da ocultação de cadáveres das vítimas. Nos mesmos autos também fora denunciado, pela ocultação de cadáveres, Sebastião Curió Rodrigues de Moura – conhecido à época como Doutor Luchini.

Os assassinatos ocorreram em 13 de outubro de 1973 em São Domingos do Araguaia, no sudeste do Pará. O grupo de combate, responsável pelas execuções, era comandado por Lício Maciel. De acordo com a ação, os militares emboscaram os militantes enquanto eles estavam “levantando acampamento” em uma área rural. Ante a orientação de Lício Maciel, no dia seguinte aos assassinatos, um grupo de militares acompanhado por uma mateiro enterrou os corpos em valas abertas em outra propriedade rural de São Domingos do Araguaia. A emboscada, as mortes e as ocultações dos cadáveres, que estão descritas pelo MPF na denúncia, estão comprovadas por documentos e inúmeros depoimentos prestados, por várias testemunhas ao MPF e outras instituições.

Para o Parquet Federal, trata-se de homicídios qualificados, por terem sido praticados em razão de emboscada e por motivo torpe. Segundo o MPF, há, ainda, agravantes das penas, já que os crimes foram cometidos com abuso de autoridade e violação a deveres inerentes aos cargos militares.

Além de denunciar os assassinatos, em outra ação, o MPF denunciou Lício Maciel à Justiça, pelo sequestro (desaparecimento forçado) de Divino Ferreira de Sousa, o Nunes, capturado e ilegalmente detido pelo Exército, em 13 de outubro de 1973.

A ação deu amparo à abertura de processo judicial em agosto de 2012 (autos n.° 0006232-77.2012.4.01.3901) na Justiça Federal de Marabá/PA. Em novembro do ano seguinte o acusado entrou com recurso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília/DF, com pedido de cancelamento do processo. O pedido foi aceito, em dezembro de 2014, com base no entendimento do STF externado no julgamento da ADPF 153. O MPF em contra partida, recorreu da decisão. Agora, o MPF busca levar o caso ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal.

É nítido, portanto, que o Ministério Público Federal tem buscado, incessantemente, dar cumprimento à decisão da Corte Interamericana, mesmo que sem o necessário sucesso, haja vista o impasse ainda não solucionado, travado entre a decisão da Suprema Corte Brasileira e a sentença da Corte Internacional. Contudo, já foi dito no tópico sete deste artigo que é perfeitamente possível solucionar este conflito, sendo certo que, o cumprimento da decisão internacional é medida que se impõe.

8.2 Da tipificação do crime de desaparecimento forçado de pessoas

Ao Poder Legislativo incumbe a tipificação do crime de desaparecimento forçado de pessoas, ainda não previsto na legislação penal brasileira.

Em razão disso, o plenário do senado, no dia 27/08/2013, aprovou o substitutivo do senador Pedro Taques (PDT-MT) ao projeto de lei do Senador Vital do Rêgo (PMDB-PB) que tipifica o crime de desaparecimento forçado de pessoas, com penas que podem chegar a 40 anos de reclusão. O projeto se encontra em análise na Câmara dos Deputados.

A redação aprovada pelo plenário do senado acrescenta o art. 149-A ao Código Penal, para tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas. O projeto de Lei define desaparecimento forçado de pessoas como: qualquer ação de apreender, deter, sequestrar, arrebatar, manter em cárcere privado, impedir a livre circulação ou de qualquer outro modo privar alguém de sua liberdade, em nome de organização política, ou de grupo armado ou paramilitar, do Estado, suas instituições e agentes ou com a autorização, apoio ou aquiescência de qualquer destes; ocultando ou negando a privação de liberdade ou deixando de prestar informação sobre a condição, sorte ou paradeiro da pessoa a quem deva ser informado ou tenha o direito de sabê-lo.

Pelo texto da Lei, a pena de reclusão para o crime deverá ser de 6 a 12 anos, mais multa. Se houver emprego de tortura ou de outro meio insidioso ou cruel, ou se do fato resultar aborto ou lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, o crime passa a ser definido como desaparecimento forçado qualificado, com pena de 12 a 24 anos de prisão. Se resultar em morte, a reclusão mínima será de 20 anos, podendo chegar a 40 anos. O tempo de prisão pode ser aumentado de um terço até a metade se o desaparecimento durar mais de 30 dias, se o agente for funcionário público ou a vítima for criança ou adolescente, idosa, portadora de necessidades especiais, gestante ou tiver diminuída, por qualquer causa, sua capacidade de resistência.

O desaparecimento forçado de pessoas também será incluído no rol dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990). Ainda de acordo com o substitutivo de Pedro Taques, o exaurimento dos delitos previstos não ocorre enquanto a pessoa não for libertada ou não for esclarecida sua sorte, condição e paradeiro, ainda que ela já tenha falecido como ocorre no crime de sequestro. Trata-se, então, de crime permanente.

Resta, então, aguardar a aprovação do projeto de Lei por parte da Câmara dos Deputados, e a posterior sanção por parte da presidência da república, para que a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos seja cumprida pelo Governo brasileiro.

8.3 Da instituição da Comissão da Verdade e divulgação dos fatos ocorridos durante a Guerrilha

Dentre os encargos do poder legislativo, em decorrência da sentença encontra-se, também, a aprovação de um projeto de lei que institua a Comissão da Verdade, seguindo os preceitos de transparência, publicidade e efetividade, estabelecidos pela Corte. A Presidente da República Dilma Rousseff, representante maior do poder executivo do Estado brasileiro, em cumprimento ao que determinou a Corte na sentença do “Caso Guerrilha do Araguaia”, em 18 de novembro de 2011 sancionou a Lei 12.528/11 que institui a Comissão Nacional da Verdade (CNV). A Comissão foi oficialmente instalada, posteriormente, em 16 de maio de 2012. Essa comissão foi composta por 7 (sete) membros nomeados pela Presidente da República, auxiliados por assessores, consultores e pesquisadores.

Destarte, é importante esclarecer o que vem a ser a chamada Comissão da Verdade, que nas palavras de Marlon Alberto Weichert (2011, p. 231) “é o mecanismo oficial de apuração de graves violações aos direitos humanos, normalmente aplicados em países emergentes de períodos de exceção ou de guerras civis”.

No caso brasileiro, a CNV concentrou seus esforços na análise e esclarecimento das graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura brasileira (1964-1985). Em apertada síntese, a CNV ouviu vítimas e testemunhas, bem assim convocou agentes da repressão para prestar esclarecimentos. Realizou mais de 100 eventos, na forma de audiências públicas e assembleias de apresentação dos relatórios preliminares de pesquisa. Produziu diligências em unidades militares, ocasião em que estiveram presentes ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos. Formou um núcleo pericial para elucidar as circunstâncias das graves violações de Direitos Humanos, o qual elaborou laudos periciais, relatórios de diligências técnicas e produziu croquis relativos a unidades militares. Colaborou com as várias instâncias do poder público para a apuração de violação de Direitos Humanos, além de ter enviado aos órgãos públicos competentes dados que pudessem auxiliar na identificação de restos mortais de desaparecidos. Também identificou os locais, estruturas, instituições e circunstâncias relacionadas à prática de violações de Direitos Humanos.

A CNV, em 10 de dezembro de 2014, entregou seu relatório final à Presidente Dilma Rousseff, no qual concluiu que: a conduta de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, resultou de uma política estatal, de alcance generalizado contra a população civil, caracterizando crimes contra a humanidade.

A Comissão identificou 434 casos de mortes e desaparecimentos de responsabilidade do Estado brasileiro durante o período de 1946-1988. No capítulo referente à autoria de graves violações de direitos humanos, enumerou 377 agentes públicos envolvidos em diversos planos de participação: responsabilidade político-institucional; responsabilidade pelo controle e gestão de estrutura e procedimentos; e responsabilidade pela autoria direta de condutas que concretizaram as graves violações.

Dentre as 29 medidas e políticas públicas recomendadas pela CNV para prevenir violações de direitos humanos, assegurar a sua não repetição e promover o aprofundamento do Estado Democrático de Direito no Brasil, merecem destaque: o reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (o que, inclusive, foi determinado na sentença internacional) e a determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica - criminal, civil e administrativa - dos agentes públicos que deram causa às graves violações, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos na Lei n. 6.683/1979.

Vê-se, portanto, que a CNV se filiou ao mesmo posicionamento exteriorizado pela Corte Interamericana no “Caso Gomes Lund”, quando reconheceu a inaplicabilidade da Lei de Anistia aos agentes públicos que foram, reconhecidamente, responsáveis pelas graves violações de direitos humanos ocorridas naquele episódio fatídico.  


9 DA PROVÁVEL REAVALIAÇÃO DA LEI DE ANISTIA (LEI 6.683/79) PELO STF

Em razão dos recursos já impetrados pelo Ministério Público Federal, nas diversas ações penais promovidas com base na condenação do Estado brasileiro no Caso Gomes Lund e outros versus Brasil, é provável que o Supremo Tribunal Federal, muito em breve, tenha que reavaliar concessão de Anistia aos agentes políticos reconhecidamente responsáveis pelas graves violações de direitos humanos, ocorridas no Araguaia.

Isto porque, a citada lei tem sido usada como óbice ao prosseguimento das ações penais oferecidas pelo MPF. Muitas das denúncias oferecidas foram sequer recebidas.

Espera-se que o STF, a exemplo do que fez a Corte IDH, declare a invalidade da Lei de Anistia, ou reconheça a legitimidade do controle exercido pela Corte IDH e, por consequência, a autoaplicabilidade da sentença internacional proferida, removendo, assim, qualquer obstáculo para a punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos ocorridas no Caso Araguaia. Com essa sensata decisão, o STF estará, ainda, adequando à legislação brasileira as disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos.


10 CONCLUSÃO

Durante este estudo, foram tecidas breves considerações sobre a teoria geral dos direitos humanos no plano internacional. Além disso, analisou-se a sentença da Corte IDH, que condenou o Estado brasileiro no Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, em seus aspectos penais, bem como demonstrou-se, de forma clara, a conduta a ser adotada pelo Estado brasileiro para solucionar o aparente choque entre a decisão do STF e a decisão da Corte IDH, em relação à eficácia da Lei de Anistia.

No que se refere à sentença, conclui-se que ela possui status de norma constitucional e que por isso o seu cumprimento é obrigatório. Porém, verifica-se que o cumprimento da referida decisão tem sido obstado pelo julgamento da Suprema Corte Brasileira, relativo à ADPF 153, que julgou a Lei de Anistia válida em seu inteiro teor, decisão essa contrária àquela proferida pela Corte IDH, que considerou a Lei de Anistia incompatível com as disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, e por isso declarou sua invalidade. Evidencia-se, então, um visível choque de decisões. Tanto é que, das medidas determinadas pela Corte IDH – persecução penal dos crimes; criação da comissão da verdade; esforços para determinar o paradeiro das vítimas; e a tipificação do crime de desaparecimento forçado de pessoas – pouco foi efetivamente cumprido. Basta atentar-se, por exemplo, a determinação de promover a persecução penal dos crimes.

O Ministério Público Federal tem procurado dar cumprimento à decisão da Corte IDH, no tocante à persecução penal dos crimes ocorridos durante a Guerrilha do Araguaia. Ocorre que, como se demonstrou durante este estudo, às denúncias oferecidas pelo MPF não tem sido recebidas com base no entendimento externado pelo STF no julgamento da ADPF 153. Contudo, verifica-se que, não cabe alegar coisa julgada ou efeito vinculante para obstruir inquéritos policiais ou ações penais que estejam a aplicar a sentença interamericana, pois estes se ampararam na decisão da Corte IDH, que tem eficácia independentemente da decisão do STF.

Nesse sentido, conclui-se que, para solucionar esse aparente conflito de decisões, bem assim possibilitar que a decisão proferida no Caso Guerrilha do Araguaia seja efetivamente cumprida, deverá ser aplicada a teoria do duplo controle – em que o Supremo Tribunal Federal ficará adstrito a proferir a palavra final sobre o ordenamento nacional, enquanto que, a Corte IDH ficará limitada a proferir a palavra final no que atine a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Por fim, cumpre salientar que, o Brasil sequer pode cogitar a possibilidade de não cumprir a decisão da Corte IDH. O não cumprimento, espontâneo, pelo Governo brasileiro acarreta nova responsabilidade internacional ao país, a ensejar nova ação na mesma Corte Internacional e nova condenação. Embora não queira, o STF terá que se acostumar que não é mais “o dono da última palavra”, em matéria de Direitos Humanos no Brasil, já que em breve terá que reabrir a discussão e rever seu posicionamento anterior sobre a Lei de Anistia. Espera-se que dessa vez, a decisão seja justa.

Morte, tortura, desaparecimento forçado de pessoas, nunca mais! 


11 REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 20 out. 2015.

______. STF. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 Distrito Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf153.pdf>. Acesso em: 20 out. 2015.

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OAB. Ordem dos Advogados do Brasil. OAB condena recusa do governo brasileiro em cumprir decisão da Corte de Direitos Humanos.  Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/22235/oab-condena-recusa-do-governo-em-cumprir-decisao-da-corte-de-direitos-humanos>. Acesso em: 19 out. 2015.

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RAMOS, A, de C. Crimes da Ditadura Militar: a ADPF 153 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In.: GOMES, L. F.; MAZUOLLI, V. O. Crimes da Ditadura Militar: uma análise a luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

RAMOS, A. de C. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

TRINDADE, A. A. C. A proteção Internacional dos Direitos Humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991.

WEICHERT, M. A. A sentença da Corte de Interamericana de Direitos Humanos e a obrigação de instituir uma Comissão da Verdade. In.: GOMES, L. F.; MAZUOLLI, V. O. Crimes da Ditadura Militar: uma análise a luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUCENA, Mário Augusto Drago de; GAIOTE, Thaís Regina Ossucci. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a sentença do caso Gomes Lund “Guerrilha do Araguaia”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4748, 1 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50185. Acesso em: 3 maio 2024.