SUMÁRIO: RESUMO. Palavras-chave. 1 INTRODUÇÃO. 2 DIREITOS HUMANOS – Conceito. 2.1 Os Direitos Humanos no âmbito Internacional. 3 A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A INSTITUIÇÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. 3.1 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 3.2 A competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH. 4 O QUE FOI A “GUERRILHA DO ARAGUAIA. 4.1 Quem foi Guilherme Gomes Lund?. 4.2 Do paradeiro desconhecido das vítimas. 5 A SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. 6 A POSIÇÃO DO STF SOBRE A LEI DE ANISTIA – ADPF 153. 7 COMO SOLUCIONAR O CHOQUE APARENTE ENTRE A DECISÃO DO STF E A DECISÃO DA CORTE SAN JOSÉ? 8 DAS AÇÕES DESEMPENHADAS PELO ESTADO BRASILEIRO PARA DAR CUMPRIMENTO A SENTENÇA DA CORTE IDH. 8.1 Da obrigação de conduzir a investigação dos crimes cometidos durante a Guerrilha. 8.2 Da tipificação do crime de desaparecimento forçado de pessoas. 8.3 Da instituição da Comissão da Verdade e divulgação dos fatos ocorridos durante a Guerrilha. 9 DA PROVÁVEL REAVALIAÇÃO DA LEI DE ANISTIA (LEI 6.683/79) PELO STF. 10 CONCLUSÃO. 11 REFERÊNCIAS.
RESUMO: O presente trabalho aborda de forma clara e objetiva a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos proferida no Caso Gomes Lund e outros versus Brasil, bem como a teoria do duplo controle, a ser utilizada com vistas a solucionar o aparente choque entre a decisão proferida pela citada Corte e a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no que se refere à Lei de Anistia. Procura-se evidenciar a obrigatoriedade de cumprimento da referida decisão, uma vez que a jurisdição da Corte IDH foi expressamente reconhecida pelo Brasil. Dessa forma, o presente artigo tem por objetivo examinar a decisão proferida no Caso Gomes Lund e outros, em relação aos seus aspectos penais. O referido estudo embasou-se em uma análise descritiva com abordagem qualitativa, por meio de pesquisa bibliográfica em fontes primárias, doutrinas e jurisprudências. Assim, evidencia-se que a sentença proferida possui status de norma constitucional e que por isso o seu cumprimento é obrigatório. A propósito, não cabe alegar coisa julgada ou efeito vinculante para obstruir inquéritos policiais ou ações penais que estejam a aplicar a sentença interamericana, pois estes se ampararam na decisão da Corte IDH, que tem eficácia independentemente da decisão do STF. Por isso, o STF deverá exercer o chamado controle de convencionalidade, para propiciar de forma efetiva o cumprimento da decisão da Corte IDH no Caso Gomes Lund e outros vs. Estado Brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Ditadura; Araguaia; Anistia; Investigação; Punição.
1 INTRODUÇÃO
Após sua redemocratização, o Estado brasileiro reconheceu a jurisdição de vários organismos internacionais, judiciais ou quase-judiciais, em diversas matérias. Como exemplo, cite-se o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, do Tribunal Penal Internacional e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, o que demonstra que o Brasil tem avançado no trato dos direitos internacionais.
Com efeito, após a adesão brasileira a esses mecanismos internacionais de averiguação ao respeito às normas de direitos humanos, mostra-se necessário compatibilizar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre os diferentes direitos protegidos com a posição hermenêutica dos citados órgãos internacionais.
Esse desafio se torna ainda mais evidente no caso da Lei de Anistia, pois, de maneira inédita, uma ação de responsabilidade internacional contra o Brasil promovida perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos tratou de tema sujeito, meses antes, por ocasião da Arguição de descumprimento de Preceito Fundamental 153, a julgamento do STF.
Dessa forma, o presente artigo tem por objetivo examinar a decisão proferida no Caso Gomes Lund e outros, em relação aos seus aspectos penais. Será feito um estudo analítico e descritivo da sentença, enfocando seus fundamentos, o Estado brasileiro e a Lei de Anistia (6.683/79), todos incluídos na decisão ora examinada.
Além disso, serão analisadas as duas decisões (a nacional e a internacional). Em seguida, verificar-se-á se é possível ou não conciliar as duas posições. Defender-se-á, ao final, a aplicação da teoria do duplo controle, com ênfase na necessidade do Estado brasileiro de cumprir a integralidade dos comandos impostos na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para tanto, o presente estudo se embasará em uma análise descritiva com abordagem qualitativa, por meio de pesquisa bibliográfica em fontes primárias, doutrinas e jurisprudências.
2 DIREITOS HUMANOS - CONCEITO
O tema jurídico, Direitos Humanos que toma corpo na atualidade, vem evoluindo há muito – embora a passos lentos –, no curso histórico da humanidade. Matéria de conceituação delicada, a princípio restrita ao direito interno, transcende, contudo, para o âmbito do Direito Internacional Público, onde encontra posições jurídicas conflitantes, com implicações na política externa dos Estados.
Parece oportuno – para fixação doutrinária – adiantar que, os Direitos Humanos possuem fundamento no direito natural, isto é, nos direitos que a pessoa humana possui, em decorrência de sua própria natureza, pelo simples fato de existir; vale dizer, um corpo de direitos inseparáveis da dignidade pessoal, conferidos pela razão transcendental, e não, pois, pela sociedade política, à qual incumbe, precipuamente, reconhecê-los e garanti-los.
Neste ínterim, importante citar a conceituação emanada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a respeito do que são os Direitos Humanos:
Os Direitos Humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Os Direitos Humanos incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre e muitos outros. (ONU, 2015).
Digna de nota também é a conceituação precisa de Peres Luño, citada por André de Carvalho Ramos (2015, p. 38), que compatibilizando a evolução histórica dos direitos humanos com a necessidade de definição de seu conteúdo, considera “direitos humanos o conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional”.
André de Carvalho Ramos (2015, p. 38) ainda adota a sua própria definição, a de que “direitos humanos são o conjunto mínimo de direitos necessários para assegurar a vida do ser humano, baseada na liberdade, igualdade e na dignidade”.
É certo, portanto, que esses direitos são inalienáveis, irrevogáveis, indisponíveis e irrenunciáveis, isto é, se confundem com o ser humano, de modo que dele não podem ser separados.
2.1 Os Direitos Humanos no âmbito Internacional
A internacionalização dos Direitos Humanos teve início no pós-guerra, em resposta às atrocidades cometidas ao longo do Nazismo. Como bem sinaliza Flávia Piovesan (2000, p. 18) “se a 2ª Guerra significou a ruptura do valor dos Direitos Humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução”.
É neste cenário, que toma forma o esforço de reconstrução dos Direitos Humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Neste contexto, a comunidade internacional passou a reconhecer que a proteção dos Direitos Humanos constitui questão de legítimo interesse e preocupação internacional. Os Direitos Humanos, portanto, acabam por transcender e extrapolar o domínio reservado ao Estado ou a competência nacional exclusiva.
Como sabiamente enfatizou Antônio Augusto Cançado Trindade (1991, p. 4) “compreendeu-se, pouco a pouco, que a proteção dos direitos básicos da pessoa humana não se esgota, como não poderia esgotar-se, na atuação do Estado, na pretensa e indemonstrável “nacional exclusiva”.
O marco inicial dessa chamada transição foi a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), que constituiu um ímpeto decisivo no processo de generalização da proteção dos Direitos Humanos. A partir dela começa a ser delineado o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de importantes tratados de defesa destes direitos, de alcance global (emanados da ONU) e regional (emanados dos sistemas europeu, interamericano e africano).
O primeiro, o sistema global, é integrado por instrumentos de alcance geral (como os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966) e por instrumentos de alcance específico, como as Convenções Internacionais que buscam responder a determinadas violações de Direitos Humanos, como a tortura, a discriminação racial, a violação dos direitos das crianças, dentre outras formas de violação. Por outro lado, o sistema normativo regional de proteção busca internacionalizar os Direitos Humanos no plano regional, particularmente na Europa, América e África. Na Europa tem-se a Convenção Europeia de Direitos Humanos, já em 1950. Na América, em 1969 a Convenção Americana era adotada. Consolida-se, dessa maneira, a convivência do sistema global com instrumentos do sistema regional de proteção aos Direitos Humanos.
A convecção que interessa ao presente estudo, em razão do recorte temático principal a ser desenvolvido, é a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica.
3 A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A INSTITUIÇÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
O instrumento de maior importância de proteção dos Direitos Humanos, no chamado sistema interamericano é a Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada em San José, Costa Rica, no ano de 1969, vindo a entrar em vigor, posteriormente, em 1978. Apenas Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) podem aderir à citada Convenção. Segundo dados da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, dos 35 (trinta e cinco) Estados-membros da OEA, 25 (vinte e cinco) Estados são, atualmente, partes da Convenção Americana, dentre eles o Estado brasileiro, um dos que mais tardiamente aderiu a Convenção, fazendo-o apenas em 25 de setembro de 1992.
A Convenção Americana reconhece e assegura uma série de direitos civis e políticos, similar àqueles previstos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Dentre esses, merecem destaque: o direito à vida, o direito à liberdade, o direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e expressão e o direito de igualdade perante a lei.
Como nos ensina Flávia Piovesan (2000, p. 31):
A Convenção não enuncia de forma específica qualquer direito social, cultural ou econômico, limitando-se a determinar aos Estados que alcancem, progressivamente, a plena realização destes direitos, mediante a adoção de medidas legislativas e outras medidas que se mostrem apropriadas.
A Convenção Americana estabelece, portanto, um aparato de monitoramento e implementação dos direitos que ela própria enuncia. Esse aparato é constituído pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Pela Corte Interamericana.
3.1 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Primeiramente, é oportuno ressaltar que a competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alcança todos os Estados-membros da Convenção, em relação aos Direitos Humanos nela proclamados. Quanto a sua composição, a Comissão é integrada por sete membros, os quais são revestidos de alta autoridade moral e reconhecida versação em matéria de Direitos Humanos, que podem ser nacionais de qualquer Estado-parte da OEA. Os citados membros, são eleitos, a título pessoal, pela Assembleia Geral e pelo período de 4 (quatro) anos, podendo ser reeleitos uma única vez.
A principal função dessa Comissão é promover a observância e a proteção dos Direitos Humanos na América. Para tanto, cabe à Comissão fazer recomendações aos Governos dos Estados-partes, antevendo a adoção de medidas adequadas à proteção dos Direitos Humanos. Além de desenvolver estudos e preparar relatórios que se mostrem necessários, bem como requisitar aos governos informações concernentes às medidas por eles adotadas relativas à efetiva aplicação do disposto na Convenção. Por fim, mas não menos importante, cabe à Comissão submeter à Assembleia Geral da Organização dos Estados-membros, um relatório anual, que visa atualizar a situação dos Direitos Humanos nos diversos Estados, membros da Convenção.
Compete à Comissão, também, o exame das petições encaminhadas por indivíduo ou grupos de indivíduos, ou ainda, entidade não governamental, que contenham denúncia de violação a direitos consagrados pela Convenção por parte de Estado-membro, nos exatos termos dos artigos 41 e 44.
A petição mencionada alhures, deve contemplar determinados requisitos de admissibilidade, como o prévio esgotamento dos recursos internos. Há, contudo, duas exceções à regra: quando houver injustificada demora processual, ou no caso da legislação doméstica do Estado não prover o devido processo legal. Outro requisito de admissibilidade é a inexistência de litispendência internacional, isto é, a mesma questão não pode estar pendente em outro domínio internacional.
Preenchidos os requisitos de admissibilidade, a Comissão requisita informações ao Governo denunciado. Recebidas as informações ou transcorrido o prazo in albis, a Comissão verifica se existem ou se subsistem os motivos da petição ou comunicação. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses, a Comissão realizará, com o devido conhecimento das partes, uma análise apurada do assunto, e, se necessário, realizará a investigação dos fatos.
Concluído o exame da matéria, a Comissão se empenhará em buscar uma solução amistosa entre as partes. Contudo, se não alcançada, a Comissão, então, redigirá um relatório, apresentando os fatos e as conclusões pertinentes ao caso e, eventualmente, recomendações ao Estado-parte. Este relatório é encaminhado ao Estado-membro que tem o prazo de 3 (três) meses para dar cumprimento as recomendações feitas.
Neste período de três meses, o caso pode ser arquivado, se solucionado o conflito entre as partes, ou ainda, pode ser encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que é o órgão jurisdicional do sistema regional de proteção dos Direitos Humanos. Todavia, para que o caso possa ser remetido a Corte, é mister que a sua jurisdição, no tocante a interpretação e aplicação da Convenção, tenha sido reconhecida pelo Estado-membro, mediante declaração expressa e específica.
O Brasil reconheceu a competência jurisdicional da mencionada Corte em 3 de dezembro de 1988.
3.2 A competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH
Quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional do sistema regional de proteção dos Direitos Humanos, esta é igualmente composta por 7 (sete) juízes nacionais de Estados-membros da Organização dos Estados Americanos, eleitos a título pessoal, pelos Estados-partes da Convenção Americana.
A citada Corte possui competência consultiva e contenciosa. A primeira significa que, qualquer membro da OEA, parte ou não da Convenção, pode solicitar parecer da Corte, relativamente à interpretação da Convenção ou de qualquer outro tratado relativo à proteção dos Direitos Humanos em território americano. A Corte ainda pode opinar sobre a compatibilidade de preceitos da legislação doméstica (interna) em face dos instrumentos internacionais. Já no plano contencioso, a competência da Corte esta adstrita ao julgamento de casos, limitada aos Estados-membros da Convenção que a reconheçam expressamente.
A decisão proferida pela Corte, nas palavras de Flávia Piovesan (2000, p. 45) “tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento”. Se a Corte Interamericana, por exemplo, fixar compensação à vítima, a decisão terá força de título executivo, em conformidade com os procedimentos internos relativos à execução desfavorável ao Estado, previstos na Convenção Americana.
Não há, no entanto, previsão de uma forma efetiva de execução dessas sentenças. Ao que se tem conhecimento, o Estado pode ser, no máximo, exposto politicamente perante a comunidade internacional e sofrer algumas retaliações no âmbito político da Assembleia da OEA.
O Estado brasileiro, como se verá adiante, foi condenado pela Corte Interamericana, no ano de 2010, no conhecido Caso Guerrilha do Araguaia (Caso Gomes Lund e outros versus Brasil).