4 O QUE FOI A “GUERRILHA DO ARAGUAIA”?
A Ditadura Militar se estabeleceu no Brasil por meio do Golpe Militar de 1964 e durou até o ano de 1985. Por temerem o crescimento do Comunismo que se alastrava pelo mundo, os militares tomaram o poder, derrubando o até então presidente João Goulart. A década de 60 foi marcada por um terror descomunal. Nesse cenário, militantes influenciados por táticas de guerra rural, criadas por Mao Tsé-tung e Che Guevara, concentraram suas forças no campo.
A priori, um grupo de militantes se alojou as margens do Rio Araguaia, que abrange parte dos Estados do Pará, Maranhão e Goiás. No local, com orientação e financiamento de países comunistas, como Cuba, se pretendia criar uma guerrilha de resistência no campo, com o objetivo de facilitar a implantação do comunismo no Brasil. No início da década de 70 surgia a Guerrilha do Araguaia.
Organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), a guerrilha foi uma batalha desigual entre combatentes revolucionários e as forças de repressão do regime ditatorial imposto ao país.
Há relatos de que dos 69 militantes do Partido Comunista do Brasil que estavam na área, 59 morreram no conflito, além dos ribeirinhos também assassinados e das baixas nas Forças Armadas – as estimativas variam de 4 a 200 militares mortos.
A guerrilha contra os militantes se desenvolveu em três frentes, sendo que nas duas primeiras os comunistas foram vencedores. Além de não conhecerem a área, os militares não tinham o apoio da população local. Pelo contrário, eram odiados. Os comunistas se lançavam mata adentro sempre que alguma ameaça era detectada. E sem o apoio da população, o êxito militar era quase impossível.
Quase, porque na terceira frente, os militares entraram no jogo, decididos a ganhar. Meses antes do confronto, infiltraram tropas entre os ribeirinhos e foram colhendo informações sobre a área e os militantes que ali se encontravam. Com crueldade, torturavam locais (ribeirinhos) a fim de descobrir mais sobre os militantes. Tanto é que, em 1973, os comunistas foram cercados, e as organizações revolucionárias derrotadas.
Enquanto as armas utilizadas pelos guerrilheiros eram, na melhor das hipóteses, espingardas, os militares se armaram com fuzis, e se utilizaram de helicópteros e aviões para por fim ao levante. Atearam fogo nas cabanas, destruíram depósitos de mantimentos dos militantes, e, baseados nas informações de ribeirinhos que traíram os revolucionários, enfraqueceram os comunistas e os derrotaram. Enfim, venceram pelo cansaço.
A imprensa só divulgou a Guerrilha após seu fim. Censurada pela ditadura, a imprensa não cobria os acontecimentos e muitos nem sabiam o que estava acontecendo no interior do país. Comunistas capturados eram fuzilados ou decapitados, de modo que não fossem deixados rastros. Os militares transformaram as margens do Araguaia em um verdadeiro cemitério.
4.1 Quem foi Guilherme Gomes Lund?
Militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B), como muitos outros, Guilherme Gomes Lund foi um jovem estudante de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Filho de João Carlos Lund e Julia Gomes Lund, nasceu em 11 de Junho de 1947. Foi militante do movimento estudantil. Preso em 1968, acabou sendo condenado, a revelia, a 6 meses de prisão. Em 1969 mudou-se para Porto Alegre/RS, e em fevereiro de 1970 passou a integrar o grupo de guerrilheiros estabelecido as margens do Araguaia.
Em 25 de dezembro de 1973, por estar doente, vítima da malária, encontrava-se em seu alojamento, quando foi posto em prática um violento ataque das Forças Armadas, ocasião em que ele teria sido fuzilado. O relatório do Ministério da Marinha confirma a sua morte, sem maiores esclarecimentos.
4.2 Do paradeiro desconhecido das vítimas
Que se tem notícia, até os dias atuais, foram encontrados somente dois corpos de guerrilheiros. O de Maria Lúcia Petiti, morta em junho de 1972, numa emboscada. Seus restos mortais foram identificados em 1966. O outro corpo localizado foi o de Bérgson Gurjão, morto em 1972, metralhado num tiroteio acontecido durante uma emboscada, em que foi atingido por militares infiltrados entre os camponeses. São esses os únicos guerrilheiros mortos e identificados.
As demais vítimas, como já afirmado anteriormente, foram mortas, ainda que assim não admita o Governo brasileiro, sem que até hoje seus restos mortais tenham sido encontrados.
Como se verá, posteriormente, o Governo brasileiro só tornou público alguns dos documentos referentes à Guerrilha, que dão conta do massacre ocorrido às margens do Araguaia, após a condenação da Corte Interamericana no Caso Gomes Lund e outros versus Brasil.
É sabido que nenhum dos dissidentes políticos foi punido pelas graves violações de Direitos Humanos ocorridas na Guerrilha, já que o Governo brasileiro concedeu a eles Anistia, por meio da Lei 6.683/1979.
5 A SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Buscando modificar este cenário de impunidade, assegurado pelo Governo brasileiro, por meio da Lei de Anistia (Lei n.° 6.683/1979), os familiares das vítimas, tendo esgotado a jurisdição interna, buscaram a Corte Interamericana de Direitos Humanos para garantir a punição dos agentes políticos envolvidos na dizimação de mais de 90 insurgentes – entre militantes e ribeirinhos – durante a Guerrilha do Araguaia.
De início, convém destacar, mais uma vez, que serão analisados os aspectos penais da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Posto isso, é importante dizer que o caso brasileiro foi admitido pela Corte Interamericana com vistas à regra de exceção referente à injustificada demora na análise e apreciação do processo no plano interno. Nesse sentido, é público que o processo promovido pelos familiares das vítimas em 1982, manteve-se sem resposta por parte do Estado brasileiro até o ano de 1996, o que justificou a aplicação da exceção.
Em 07 de agosto de 1995, O CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) juntamente com a Human Rights Watch/Americas, em nome de pessoas desaparecidas no contesto da Guerrilha do Araguaia e seus familiares, apresentaram petição, denunciando os fatos ocorridos no Araguaia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Estado brasileiro sempre contestou a demanda, afugentando sua responsabilidade e requerendo o seu arquivamento, com amparo na Lei 6.683/1979 (Lei de Anistia).
Após a admissão do caso, ocorrida em 6 de março de 2001, e a posterior apresentação do relatório pela Comissão em 31 de outubro de 2008, e ante a negativa do Estado brasileiro em prestar informações que lhe foram requeridas, a Comissão submeteu-o à jurisdição da Corte IDH, para o fim de esclarecerem-se os conflitos existentes entre a Lei de Anistia brasileira e o desaparecimento forçado de pessoas, bem como as graves violações de Direitos Humanos, que o caso Gomes Lund e outros versus Estado Brasileiro denunciava.
Em seu relatório, a Comissão solicitou à Corte Interamericana que declarasse o Brasil responsável pela violação dos direitos reconhecidos nos artigos 3, 4, 5, 7, 8, 13 e 25 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, direito à vida, direito à integridade pessoal, direito à liberdade pessoal, garantias judiciais, liberdade de pensamento e expressão e proteção judicial, respectivamente) da Convenção Americana de Direitos Humanos, em conjunto com as obrigações previstas nos artigos 1.1 (obrigação geral de respeito e garantia da observância dos Direitos Humanos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) enumerados na mesma Convenção, bem assim solicitou à Corte que ordenasse ao Estado brasileiro a adoção de medidas de reparação.
Como já dito anteriormente, durante o transcorrer do processo, o Estado brasileiro requereu o arquivamento do feito, alegando a incompetência da Corte para analisar o caso, a falta de esgotamento dos recursos internos – requisito de admissibilidade –, e a falta de interesse processual da Comissão e de seus representantes. De nada adiantou, todos esses argumentos foram denegados pela Corte, à exceção do primeiro, vez que o Brasil somente ratificou a Convenção Americana em 10 de dezembro de 1998, tendo dito expressamente que:
Reconhece, por tempo indeterminado, como obrigatória e de pleno direito a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em todos os casos relacionados com a interpretação ou aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conformidade com o artigo 62, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a esta declaração, (CIDH, 2015).
Contudo, felizmente, olvidou-se o Governo brasileiro de que fatos envolvendo o desaparecimento forçado de pessoas constituem-se em espécie de sequestro, e como tal sua consumação se prolonga no tempo, por se tratar de crime permanente.
O caráter permanente do crime de desaparecimento forçado de pessoas é enfatizado tanto nos tratados, quanto na jurisprudência internacional e comparada. A qualificação dos fatos como permanentes serve tanto para firmar a competência da Corte IDH (como se verifica dos parágrafos 16 e 17 da sentença), como para corroborar o argumento de que estes não estão prescritos. Com base nesses argumentos, a alegação de incompetência foi superada.
Dos objetivos dos requerentes, o de afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia brasileira (Lei n.° 6.683/79), com o disposto na Convenção Americana, certamente era o principal.
Instruído o processo, produzidas as provas – á luz do devido processo legal, com observância dos institutos da ampla defesa e do contraditório –, foi prolatada a decisão. Em 24 de novembro de 2010, a Corte IDH tendo analisado o Caso Gomes Lund e outros versus Estado Brasileiro proferiu sentença (CORTE IDH, 2010, p.113-114) que, em síntese, em termos penais, fundou-se nos seguintes aspectos:
I. A demanda se referia à responsabilidade do Estado Brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de cerca de 90 (noventa) pessoas, entre militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e camponeses, durante a Guerrilha do Araguaia, resultado de operações militares, patrocinadas e desempenhadas pelo Governo brasileiro, entre os anos de 1972 e 1975, a fim de aniquilar àqueles que resistiam ao regime ditatorial imposto à época;
II. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de Direitos Humanos são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de Direitos Humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil;
III. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 daquela;
IV. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de Direitos Humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma;
V. O Estado é responsável pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão consagrado no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com os artigos 1.1, 8.1 e 25 desse instrumento, pela afetação do direito de buscar e receber informação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais estabelecidos no artigo 8.1 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 13.1 do mesmo instrumento, por exceder o prazo razoável da Ação Ordinária, todo o anterior em prejuízo dos familiares indicados nos parágrafos 212, 213 e 225 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 196 a 225 desta mesma decisão; e finalmente;
VI. O Estado é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, consagrado no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo instrumento, em prejuízo dos familiares indicados nos parágrafos 243 e 244 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 235 a 244 desta mesma decisão.
Em vista do reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CORTE IDH, 2010, p. 115-116) ordenou que esse cumprisse, em relação à perspectiva penal, as seguintes determinações:
I. O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença;
II. O Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 261 a 263 da presente Sentença;
III. O Estado deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o caso, pagar o montante estabelecido, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 267 a 269 da presente Sentença;
IV. O Estado deve realizar as publicações ordenadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 273 da presente Sentença;
V. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 277 da presente Sentença;
VI. O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre Direitos Humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 283 da presente Sentença;
VII. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente Sentença. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno; e
VIII. O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa às violações de Direitos Humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso a esta nos termos do parágrafo 292 da Sentença.
Por último, foi consignado em sentença, conforme o parágrafo 21 dos pontos resolutivos, que:
A Corte supervisará o cumprimento integral desta Sentença, no exercício de suas atribuições e em cumprimento de seus deveres, em conformidade ao estabelecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto na mesma. Dentro do prazo de um ano, a partir de sua notificação, o Estado deverá apresentar ao Tribunal um informe sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento (CORTE IDH, 2010, p. 115).
Tem-se, então, que o Estado brasileiro é reconhecidamente responsável pelas atrocidades cometidas durante a Guerrilha do Araguaia, além de ter sido declarada a sua incapacidade para reprimir adequadamente as pessoas que praticaram esses delitos. Destarte, apesar de a citada sentença ter sido proferida por uma Corte Internacional, a qual teve a jurisdição reconhecida pelo Brasil, desde a sua prolação pouco foi feito por parte do Estado brasileiro, para dar efetivo cumprimento a decisão, como será demonstrado no tópico sete deste artigo.