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A (des)necessidade da tipificação penal de condutas cometidas em processos licitatórios

A (des)necessidade da tipificação penal de condutas cometidas em processos licitatórios

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Este trabalho tem por desiderato verificar se os tipos penais existentes na Lei nº 8.666/93 são, ou não, adequados como medida necessária e útil para evitar condutas cometidas em processos licitatórios.

Sumário: 1. Introdução – 2. Os crimes licitatórios – 3. A lei de improbidade – 4. A teoria minimalista e as alternativas ao direito penal – 5. Conclusão.


1 Introdução

Nem tudo que reluz é ouro. O discurso de punição máxima, com nítido caráter de infligir um castigo gravoso ao acusado, com aumento da cominação das penas aplicáveis pode parecer tentador, na busca de dar uma maior áurea de efetividade ao direito penal.

No entanto, não se pode perder de vista que as garantias constitucionais esculpidas por um estado democrático de direito, acompanhadas pela busca de uma maior racionalização da sanção ao acusado, devem ser consideradas, inclusive para, até mesmo, afastar as sanções de natureza penal, quando outras medidas são adequadas e suficientes para reprimir o ilícito cometido e, ao mesmo tempo, desestimular outros membros da sociedade a cometerem as mesmas irregularidades.

A esse respeito, Antônio Suxberger (2006, p. 4) alerta que “o direito penal brasileiro tem passado de ultima ratio a prima ratio, efetuando a construção de verdadeiras ignomínias”.

Pondera também o referido autor (SUXBERGER, 2006, p. 5 e 17):

Há outras formas que, inclusive, devem preceder ao direito penal, o qual, pela gravidade de suas consequências, é a última ratio do sistema. Desse modo, são formas de controle extrajurídico que o antecedem: a família, a escola e a religião; ultrapassados esses primeiros filtros, aparecem também os métodos jurídicos de controle, que são os outros ramos do ordenamento jurídico, como direito civil, administrativo ou econômico. (…)

Uma legitimação dotada de um mínimo de pretensão de permanência certamente deverá orientar-se segundo os princípios da necessidade e proporcionalidade. As decisões político-criminais direcionadas à criminalização de uma conduta supõem um mal para alguém, de sorte que tal imposição só cabe de modo subsidiário (isto é, se a finalidade perseguida não puder ser obtida por meio menos danoso) e proporcional (isto é, de maneira que o dano causado seja adequado ao fim pretendido, não causando um dano maior que aquele que visa evitar).

Portanto, nesse espeque, mesmo em condutas ilícitas cometidas contra a Administração Pública que, diante do atual (permanente?) cenário político do Brasil, com diversos casos noticiados na imprensa de corrupção contra as mais diversas entidades públicas, a princípio, merecem punições severas e exemplares, deve se buscar mecanismos racionais, proporcionais e razoáveis de sanção.

Nesse espeque, os tipos penais capitulados na Lei nº 8.666/93, em seus artigos 89 a 98, visam sancionar condutas que atentem contra a licitação. Todos os artigos cominam multa como pena, calculada entre dois a cinco por cento do valor do contrato, além de detenção, que pode variar de seis meses a seis anos.

De outro lado, todas as condutas tipificadas como crime na Lei de Licitações também podem ser enquadradas como atos de improbidade, disciplinados pela Lei nº 8.429/92, que, apesar de sua natureza cível, sanciona, igualmente, o agente que desrespeita os ditames legais.

Por conta disso, sem contar ainda com a possibilidade de sanções na esfera administrativa, surge a problemática do presente artigo: o direito penal, que é visto como a ultima ratio, deveria disciplinar os crimes cometidos em uma licitação que podem ser punidos por meio de uma ação de improbidade? Não é demasiada a reprimenda contra o agente que atenta contra as regras do direito licitatório, mesmo considerando a independência entre as esferas administrativa, cível e penal?

Para responder a tal indagação, faz-se necessário: i) verificar os tipos penais existentes na Lei nº 8.666/93, cotejando com a jurisprudência que trata do tema; ii) analisar como é sancionado o agente através da Lei de Improbidade e a sua correlação com os crimes licitatórios, igualmente verificando a jurisprudência que trata da matéria; iii) expor, ainda que sucintamente, os ensinamentos da teoria minimalista, dando ênfase na busca por medidas alternativas ao direito penal; iv) analisar se a ação de improbidade é suficiente para garantir uma reprimenda adequada ao agente ou se os crimes tipificados na Lei nº 8.666/93 são necessários e indispensáveis no ordenamento jurídico pátrio.

Portanto, neste artigo, não se defenderão punições máximas a políticos e agentes públicos, mas sim penas proporcionais e razoáveis, de acordo com a conduta perpetrada. O presente trabalho tampouco tem a pretensão de esgotar o tema, mas apenas trazer, quem sabe, um novo ponto de vista.


2 OS CRIMES LICITATÓRIOS

Faz-se necessário, para o intento do presente artigo, apresentar uma visão geral sobre os tipos penais existentes na Lei de Licitações. Não se adentrará em detalhes de cada crime, eis que não é o objetivo deste trabalho. Mas é relevante expor que todos os tipos têm por objetivo a busca por coibir práticas que venham a levar ao descumprimento da Lei de Licitações, seja com prejuízo e dano efetivo à fazenda pública ou somente descumprimento dos preceitos legais.

Ressalte-se, inicialmente, que causa certa estranheza a posição no ordenamento jurídico de tais crimes, haja vista que estão previstos num diploma legal que visa regular as contratações públicas.

Por curiosidade, no Projeto de Lei do Senado nº 236/2012, que visa criar outro código penal, os crimes licitatórios são transpostos, com alguns ajustes redacionais e no quantitativo das penas, para o código penal, resolvendo o problema da posição de tais crimes no ordenamento jurídico pátrio.

Ademais, os crimes tipificados na Lei de Licitações poderiam, hipoteticamente, serem enquadrados em outros tipos, tais como a falsificação de documentos. Por exemplo, o art. 326 do Código Penal (violação do sigilo de proposta de concorrência) é similar ao art. 94 da Lei nº 8.666/93, mas com penas distintas.

Claro que, em decorrência do princípio da especialidade, as condutas realizadas dentro de um contexto licitatório afastaria outros tipos penais gerais.

Observa-se que a detenção e a multa são aplicadas, em todos os crimes tipificados na Lei nº 8.666/93, cumulativamente e não alternativamente. Assim, caso determinada conduta seja enquadrada como crime, não há margem para que o juiz decida por aplicar somente multa ou somente detenção, buscando melhor adequar a reprimenda à reprovação da conduta, haja vista que legislador, no texto legal, utiliza a conjunção “e”. Neste caso, o juiz perde um pouco a flexibilidade necessária para definir a melhor sanção, de acordo com a proporcionalidade e razoabilidade.

Não obstante a tais questões, todos artigos da Lei de Licitações têm, de ponto em comum, a criminalização de condutas que acabem por frustrar, ou fraudar, os objetivos da licitação.

Entretanto, cabe indagar: toda e qualquer conduta desviante dos ditames da Lei de Licitações que maculem seus objetivos cabe a sanção penal?

A título de exemplo, a regra da Lei nº 8.666/93 é a realização do certame para a escolha da proposta mais vantajosa e, em regra, mais econômica para a Administração Pública.

Somente em casos excepcionais, devidamente justificados, é possível a contratação direta de determinado fornecedor sem uma competição. São os casos de licitação dispensada (art. 17 da Lei nº 8.666/93), dispensável (art. 24 da Lei nº 8.666/93) ou inexigibilidade de licitação (art. 25 da Lei nº 8.666/93).

Caso determinado agente venha a se valer de uma dispensa ou inexigibilidade, contratando diretamente um fornecedor fora das hipóteses previstas em lei, incorrerá em crime cuja pena cominada será, além de multa, uma detenção de três a cinco anos (art. 89 da Lei nº 8.666/93).

No entanto, os crimes licitatórios inadmitem a modalidade culposa. Mais que isso, não basta um dolo genérico, ressalvados alguns casos, para a penalização do agente: é necessário um dolo específico, sendo necessário que o agente tenha agido de maneira deliberada para o cometimento dos ilícitos.

Por conta disso, é relevante observar como a jurisprudência tem tratado a questão perante situações fáticas concretas. Uma decisão que vem sendo utilizada reiteradas vezes como fundamento para outras decisões judiciais é a proferida pela corte especial do Superior Tribunal de Justiça, na Ação Penal nº 480 – MG, em acórdão de relatoria do Ministro Cesar Asfor Rocha, que abriu divergência para o entendimento da Ministra Maria Thereza de Assis Moura:

AÇÃO PENAL. EX-PREFEITA. ATUAL CONSELHEIRA DE TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL. FESTA DE CARNAVAL. FRACIONAMENTO ILEGAL DE SERVIÇOS PARA AFASTAR A OBRIGATORIEDADE DE LICITAÇÃO. ARTIGO 89 DA Lei N. 8.666/1993. ORDENAÇÃO E EFETUAÇÃO DE DESPESA EM DESCONFORMIDADE COM A LEI. PAGAMENTO REALIZADO PELA MUNICIPALIDADE ANTES DA ENTREGA DO SERVIÇO PELO PARTICULAR CONTRATADO. ARTIGO 1º, INCISO V, DO DECRETO-LEI N. 201/1967 C/C OS ARTIGOS 62 E 63 DA LEI N. 4.320/1964. AUSÊNCIA DE FATOS TÍPICOS. ELEMENTO SUBJETIVO. INSUFICIÊNCIA DO DOLO GENÉRICO. NECESSIDADE DO DOLO ESPECÍFICO DE CAUSAR DANO AO ERÁRIO E DA CARACTERIZAÇÃO DO EFETIVO PREJUÍZO. – Os crimes previstos nos artigos 89 da Lei n. 8.666/1993 (dispensa de licitação mediante, no caso concreto, fracionamento da contratação) e 1º, inciso V, do Decreto-lei n. 201/1967 (pagamento realizado antes da entrega do respectivo serviço pelo particular) exigem, para que sejam tipificados, a presença do dolo específico de causar dano ao erário e da caracterização do efetivo prejuízo. Precedentes da Corte Especial e do Supremo Tribunal Federal. – Caso em que não estão caracterizados o dolo específico e o dano ao erário. – Ação penal improcedente.

No processo suso, a então prefeita autorizou a contratação direta, por dispensa de licitação, em razão do valor (art. 24, inciso II, da Lei nº 8.666/93). No entanto, houve o fracionamento dos serviços para o enquadramento como dispensa, ficando caracterizada, de fato, a burla ao processo licitatório.

Assim, a princípio, o caso poderia ser enquadrado como crime pelo art. 89 da Lei 8.666/93 que dispõe:

Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

O ministro observou, dentro quadro fático-jurídico posto para apreciação do STJ, que haveria dolo genérico na conduta da agente, qual seja, a vontade de, mediante o artifício de fracionar os serviços, afastar a obrigatoriedade de prévia licitação.

Entretanto, o entendimento exarado pelo Ministro Relator, que fora igualmente replicado em outros julgados da espécie, foi a necessidade, no caso do crime capitulado no art. 89 da Lei nº 8.666/93, de dolo específico, voltado a causar prejuízo ao erário:

Mas compreendo que, para efeito de punir criminalmente o agente com base na norma do art. 89 da Lei n. 8.666/1993, não basta o dolo genérico. Devem estar caracterizados, a meu ver, não só o dolo específico de causar dano ao erário, mas também o próprio dano, pontos inexistentes no caso em debate e sobre os quais diverge a jurisprudência pátria. (...)

Ouso divergir da orientação das Turmas componentes da Terceira Seção, por entender que as infindáveis e naturais dúvidas que gravitam em torno da legalidade dos atos praticados em todos os momentos pelas administrações em geral, ensejando erros e acertos por parte dos agentes públicos, inclusive pelos mais habilitados juridicamente, impõem uma interpretação mais cuidadosa e restrita das normas punitivas, sobretudo as do âmbito criminal. Ademais o engessamento da atividade administrativa mediante ameaças de condenações criminais é tão pernicioso quanto a sua liberação total, descontrolada, sendo necessário encontrar um ponto de equilíbrio na interpretação das normas jurídicas destinadas a punir os agentes públicos, os quais têm a obrigação de impedir uma desastrosa estagnação da atividade estatal. (...)

Assim, confiro às normas de natureza penal inseridas na Lei n. 8.666/1993, dentre elas a do art. 89, o objetivo de apenar, na verdade, os administradores efetivamente desonestos, mal intencionados e criminosos, cabendo ao órgão acusador comprovar o dolo específico do acusado de causar danos aos bens públicos. Apenas sob esse enfoque é que, em crimes semelhantes ao destes autos, poderá a alegação de inexperiência do administrador e de seus assistentes auxiliar na descaracterização do tipo.

Assim, se o agente deixou de observar as formalidades legais por mera culpa em sentido estrito, ou, ainda, exista apenas um dolo genérico, não responderá penalmente com fulcro no art. 89 da Lei nº 8.666/93, ainda que possa ser responsabilizado por outra esfera, seja administrativa ou cível.

Idem, o Supremo Tribunal Federal, na primeira turma, decidiu, na Ação Penal 559 – PE, em Acórdão de relatoria do Ministro Dias Toffoli:

Ação Penal. Ex-prefeito municipal que, atualmente, é deputado federal. Dispensa irregular de licitação (art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93). Dolo. Ausência. Atipicidade. Ação penal improcedente.

1. A questão submetida ao presente julgamento diz respeito à existência de substrato probatório mínimo que autorizasse a condenação do réu na condição de prefeito municipal, por haver dispensado indevidamente o procedimento licitatório para a contratação de serviços de consultoria em favor da Prefeitura Municipal do Recife/PE.

2. Não restou demonstrada a vontade livre e conscientemente dirigida por parte do réu de superar a necessidade de realização da licitação. Pressupõe o tipo, além do necessário dolo simples (vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimento licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação.

3. A incidência da norma que se extrai do art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93 depende da presença de um claro elemento subjetivo do agente político: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, pois é assim que se garante a necessária distinção entre atos próprios do cotidiano político-administrativo e atos que revelam o cometimento de ilícitos penais. No caso, o órgão ministerial público não se desincumbiu do seu dever processual de demonstrar, minimamente, que tenha havido vontade livre e consciente do agente de lesar o Erário.

Assim, segundo o ministro Dias Toffoli, deve-se restar demonstrado, para a existência de crime licitatório com base no art. 89 da Lei nº 8.666/93, a vontade livre e consciente do agente de burlar a licitação e gerar prejuízo ao erário.

Nessa senda, o entendimento jurisprudencial predominante é conferir uma interpretação restritiva ao tipo penal do art. 89 da Lei nº 8.666/93, exigindo dolo qualificado, voltado a apenar apenas o administrador desonesto e que cause prejuízo ao erário.

Assim, se o administrador não adota cautelas ou age em desacordo com lei, mas sem intuito de causar dano ao erário, a sua conduta não é penalmente atingida.

A corroborar com tal entendimento, Marçal Justen Filho (2014, p. 1172-1173) leciona:

2.2.2) A existência de dano

Não se aperfeiçoa o crime do art. 89 sem dano aos cofres públicos. Ou seja, o crime consiste não apenas na indevida contratação indireta, mas na produção de um resultado final danoso. Se a contratação direta, ainda que indevidamente adotada, gerou um contrato vantajoso para a Administração, não existirá crime. Não se pune a mera conduta, ainda que reprovável, de deixar de adotar a licitação. O que se pune é a instrumentalização da contratação direta para gerar lesão patrimonial à Administração. (...)

2.3) O tipo subjetivo

O elemento subjetivo consiste não apenas na intenção maliciosa de deixar de praticar a licitação cabível. Se a vontade consciente livre de praticar a conduta descrita no tipo fosse suficiente para concretizar o crime, então teria de admitir-se modalidade culposa. Ou seja, quando a conduta descrita no dispositivo fosse concretizada em virtude de negligência, teria de haver a punição. Isso seria banalizar o Direito Penal e produzir criminalização de condutas que não se revestem de reprovabilidade. É imperioso, para a caracterização do crime, que o agente atue voltado a obter um outro resultado, efetivamente reprovável e grave, além da mera contratação direta.

Ocorre, assim, a conduta ilícita quando o agente possui a vontade livre e consciente de produzir o resultado danoso ao erário. É necessário um elemento subjetivo consistente em produzir prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação. Portanto, não basta a mera intenção de não realizar licitação em um caso em que tal seria necessário.

É indubitável que as condutas descritas nos crimes licitatórios são de extrema reprovabilidade, eis que acabam por gerar prejuízos, diretos ou indiretos, para a Administração Pública e, por consequência, para a sociedade como um todo, o que fundamenta a imposição de uma sanção.

Entretanto, a interpretação restritiva adotada pelo STF e pelo STJ em casos da espécie é salutar, pois evita que qualquer conduta que descumpra os preceitos licitatórios possa ser enquadrada como crime, com a aplicação, cumulada, de detenção e multa.

Nessa senda, as decisões exaradas pelos ministros, acima mencionadas, ao exigir um dolo qualificado da conduta do agente evita que meras irregularidades, sem grande gravidade ou prejuízo ao erário, venham a ser punidas como crimes, com detenções para pessoas que não tiveram uma vontade deliberada de se locupletar ilicitamente, às custas da Administração, ou causar prejuízos aos cofres públicos.

Não obstante, é necessário verificar também em que medida a ação de improbidade sanciona o agente e, por conseguinte, se faz necessário a tipificação penal.


3 A lei de improbidade

A Constituição Federal, em seu art. 37, § 4º, dispõe: “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

Percebe-se, da redação constitucional supra, que o leque de sanções possíveis ao agente que cometer um ato de improbidade é amplo e gravoso, sem prejuízo, repita-se, da ação penal cabível.

Nessa senda, caso exista um movimento legislativo tendente a afastar a ação penal de atos tidos como ímprobos, faz-se necessário, primeiramente, alterar a Constituição para, posteriormente, promover uma mudança no ordenamento jurídico infraconstitucional.

Não obstante a isso, para um político que dedica a sua carreira exclusivamente para as atividades políticas, por exemplo, cabe questionar: qual a sanção mais gravosa? Será uma detenção de seis meses que certamente, diante da diminuta pena imposta, será substituída por uma pena restritiva de direitos, ou a suspensão dos seus direitos políticos? Ao que parece, esta última sanção, no caso exemplificado, é mais danosa do que a primeira.

Com isso, não se está a dizer que uma pena que restringe a liberdade é menos severa que uma perda de uma função pública, pois seria ilógico, mas o que se constata é que uma pena diminuta de detenção, substituída por uma restritiva de direitos, é mais favorável a um acusado do que a perda de sua função pública.

Nesse cenário, qual a razão de mover contra tal agente uma ação penal? Não seria suficiente e adequado o ingresso apenas da ação de improbidade?

De igual sorte, cabe indagar se a existência dos tipos penais insertos na Lei nº 8.666/93 contribuem para a diminuição dos ilícitos, se são eficazes em evitar novas condutas desviantes. Se a resposta for negativa, ou a contribuição seja diminuta, então a intervenção penal não se justifica, ainda mais se existem outros mecanismos de repressão.

É relevante afirmar que não se está a defender, com tal questionamento, a conduta improba, qualquer que seja, que é deveras reprovável e merece uma justa reprimenda, mas sim busca-se avaliar se é adequada a ação penal, no caso em comento, em condutas cometidas no âmbito de um processo licitatório.

A própria divisão tripartite dos processos contra o agente – administrativo, cível e penal – transforma em uma via crucis o caminho a ser percorrido para se chegar a uma decisão acerca da conduta praticada e, por vezes, as decisões emanadas são divergentes. Deve-se buscar uma racionalização do processo, com o estabelecimento de uma via única para avaliar se o comportamento praticado é, ou não, punível, qualquer que seja a pena a ser aplicada e qualquer que seja a seara (administrativa, cível ou penal).

Destarte, para cada conduta, sob o ponto de vista racional de uma processualística, deveria existir tão somente um processo. Claro que existe, no ordenamento jurídico pátrio, a independência entre as instâncias, mas tal possibilidade acaba, por vezes, a sobrecarregar desnecessariamente o acusado, obrigando-o a se defender em mais de uma “frente de batalha”.

Além dos crimes licitatórios, os atos enquadrados como de improbidade são exemplarmente punidos pela Lei nº 8.429/92, que possui natureza cível. E a possibilidade de que um ato seja enquadrado como improbo é ampla, haja vista que os atos são subdivididos, na citada lei, em três categorias: a) enriquecimento ilícito (art. 9º da Lei de Improbidade); b) prejuízo ao erário (art. 10 da Lei de Improbidade); c) que Atentam Contra os Princípios da Administração Pública (art. 11 da Lei de Improbidade).

Como possui um extenso rol de condutas tidas como ímprobas, sendo tal rol meramente exemplificativo, as condutas descritas como crimes licitatórios são todas, integralmente, englobadas por uma eventual ação de improbidade.

As penas aplicadas, por sua vez, apesar de serem explicitamente independentes das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica (art. 12, caput, da Lei nº 8.429/92), são suficientemente severas, senão vejamos:

I - na hipótese do art. 9°, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;

II - na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;

III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.

Observa-se que as sanções são, inclusive, mais gravosas que as penas do direito penal. As sanções de perda da função pública ou suspensão dos direitos políticos são mais danosas ao infrator do que uma detenção, por exemplo, de seis meses, que pode ser substituída por medidas restritivas de direito, como dito alhures.

Na aplicação da Lei de Improbidade, as sanções acima são aplicadas e fixadas de acordo com a reprovabilidade da conduta, podendo ser aplicadas isoladamente ou cumulativamente. Assim, o juiz, diante do caso concreto, tem maior liberdade para escolher a sanção mais adequada e o seu quantitativo em relação às penas capituladas na Lei nº 8.666/93.

Além disso, diante de uma conduta reprovável, o rol de sanções acima parece suficiente para a resposta estatal, mesmo nos casos de crimes licitatórios.

Diferentemente dos crimes capitulados na Lei nº 8.666/93, para que uma conduta seja taxada como improba, independe de dolo específico, bastando que haja ofensa aos princípios da Administração Pública. No entanto, as sanções por improbidade incidem apenas, em regra, quando houver, ao menos, dolo, caracterizado pela desonestidade ou má-fé do agente público.

Assim, uma conduta culposa que acabe por infringir, por exemplo, princípios da Administração Pública não dá ensejo a penalização pela Lei de Improbidade, exceto em casos excepcionais explicitamente apontados na Lei nº 8.429/92.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, no Resp 604151 – RS, de relatoria do Ministro José Delgado, assim decidiu:

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE. LEI 8.429/92, ART. 11. DESNECESSIDADE DE OCORRÊNCIA DE PREJUÍZO AO ERÁRIO. EXIGÊNCIA DE CONDUTA DOLOSA. 1. A classificação dos atos de improbidade administrativa em atos que importam enriquecimento ilícito (art. 9º), atos que causam prejuízo ao erário (art. 10) e atos que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11) evidencia não ser o dano aos cofres públicos elemento essencial das condutas ímprobas descritas nos incisos dos arts. 9º e 11 da Lei 9.429/92. Reforçam a assertiva as normas constantes dos arts. 7º, 12, I e III, e 21, I, da citada Lei. 2. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência do STJ associam a improbidade administrativa à noção de desonestidade, de má-fé do agente público. Somente em hipóteses excepcionais, por força de inequívoca disposição legal, é que se admite a configuração de improbidade por ato culposo (Lei 8.429/92, art. 10). O enquadramento nas previsões dos arts. 9º e 11 da Lei de Improbidade, portanto, não pode prescindir do reconhecimento de conduta dolosa. 3. Recurso especial provido.

Extrai-se, da decisão retro mencionada, que a existência de dano aos cofres públicos não é elemento obrigatório para apenar o agente, no caso do art. 11 da Lei 8.429/92. De igual forma, a conduta deve ser, em regra, dolosa, sendo a conduta culposa, salvo em casos excepcionais, enquadráveis como improba.

Percebe-se que, tanto no crime da Lei de Licitações como na Lei de Improbidade, a jurisprudência tende a aplicar tais diplomas legais apenas aos agentes desonestos, que agem com dolo. Aquele que age com culpa, sem intenção de causar dano ao erário, acaba sendo apenado, se o caso comportar, apenas na seara administrativa.

De outra senda, apesar da natureza e da metodologia serem diferentes, é observável que, caso o agente venha a responder a uma ação de improbidade e, também, a uma ação penal por crime capitulado na Lei nº 8.666/93, ele pode ser multado duas vezes pelo mesmo fato, o que pode ser interpretado como um bis in idem.

Assim, caso ambas as ações sejam acolhidas e julgadas procedentes, é possível que o agente venha a ser condenado a uma pena de detenção e multa, na seara penal, e, também, a uma multa, além de outras sanções, na seara cível.

Pergunta-se: se as sanções elencadas na Lei de improbidade já sancionam o agente faltoso, severa e exemplarmente diga-se de passagem, sendo o direito penal a ultima ratio, devendo ser aplicado apenas quando todas as demais medidas possíveis restaram-se infrutíferas, então qual o fundamento para a existência do rol de crimes licitatórios?

Para analisar tal indagação, faz-se necessário adentrar nas doutrinas que discorrem sobre as penas, com viés minimalista do direito penal, voltado para medidas alternativas ao direito penal.


4 A TEORIA MINIMALISTA E AS ALTERNATIVAS AO DIREITO PENAL

A legitimação do direito penal, segundo Hassemer (1993, p. 258), deve ser pautada no bem jurídico tutelado, mais voltado para garantir a liberdade e a proteção do acusado. Ele (HASSEMER, 1993, p. 259) expõe o princípio da ultima ratio, na medida em que a tutela penal somente deve atuar quando necessária, adequada e proporcional, eis que é um maquinário que fere intensamente o acusado.

Ferrajoli (1992, p. 1), igualmente, discorre sobre a expansão desenfreada do direito penal, na sua realidade (Itália, 1992), mas é um discurso atual, aplicável plenamente à realidade brasileira:

Por otra parte las políticas del Derecho Penal parecen orientarse hoy en sentido diametralmente opuesto. En efecto, prosigue la expansión incontrolada de la intervención penal que parece haber llegado a ser, al menos en Italia, el principal instrumento de regulación jurídica y de control social, aunque sólo sea por la total ineficiencia de los otros tipos de sanciones: civiles, administrativas, disciplinarias, políticas. Desde las pequeñas infracciones contravencionales hasta las variadas formas de ilícitos en materia monetaria y comercial, desde la tutela del ambiente y de otros intereses colectivos hasta la represión de las desviaciones políticas y administrativas de los poderes públicos, cada vez más la sanción penal aparece como la única forma de sanción y la única técnica de responsabilización dotada de eficacia y de efectividad. De ahí ha resultado tal inflación de los intereses penalmente protegidos, que se ha perdido toda consistencia conceptual de la figura del bien jurídico.

Explica Ferrajoli (2002, p. 315) que “a pena – segundo a já aludida tese que une Montesquieu, Beccaria, Romagnosi, Bentham e Carmignani – deve ser necessária e a mínima dentre as possíveis em relação ao objetivo da prevenção de novos delitos”.

Nesse espeque, se o bem jurídico tutelado, a moralidade e a lisura nos processos licitatórios, é protegido por meios menos gravosos ao acusado, mormente sem atingir a sua liberdade, então a utilização dos tipos penais da Lei nº 8.666/93, que possuem a detenção como pena, não está em conformidade com o princípio da ultima ratio acima mencionado, sendo a utilização de tais penas uma retribuição e um castigo desarrazoado e desproporcional.

Nessa senda, explica Ferrajoli (2002, p. 384) que:

Se o direito penal é um remédio extremo, devem ficar privados de toda a relevância jurídica os delitos de mera desobediência, degradados à categoria de dano civil com prejuízos reparáveis e à ilícitos administrativos todas as violações de normas administrativas.

Bianchini (2016, p.1) explica também que o direito penal apenas é justificável quando a ofensa irrogada é grave e o bem jurídico tutelado possui elevado grau de importância:

Há consenso de que apenas bens de elevada valia devam ser tutelados pelo Direito penal. Isto porque a utilização de recurso tão danoso à liberdade individual somente se justifica em face do grau de importância que o bem tutelado assume. Aqui surge a preocupação com a dignidade do bem jurídico, dado que o Direito penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens. Além da verificação a respeito do grau de importância do bem — sua dignidade —, deve ser analisado se a ofensa irrogada causou um abalo social e se foi de tal proporção que justifique a intervenção penal. Assim, somente podem ser erigidas à categoria de crime, condutas que, efetivamente, obstruam o satisfatório conviver em sociedade. Portanto, incomodações de pequena monta, ou que causem diminutos dissabores, são consideradas como desprovidas de relevância penal, ficando, em razão disto, a sua resolução relegada a outros mecanismos formais ou informais de controle social.

Explica a mencionada doutrinadora, outrossim, o caráter subsidiário do direito penal, fragmentário, demonstrando que, somente quando não há outros meios eficazes de controle social é que abre-se a possibilidade da intervenção penal no ilícito:

Além disto, a utilização do Direito penal deve ficar circunscrita às situações que não possam ser resolvidas por outros meios ao dispor do Estado. Desta forma, a intervenção penal só é admitida quando não há outro mal menor passível de substituí-la. Este seu caráter subsidiário pode se dar de duas formas: uma externa outra interna. Na primeira, lança-se mão, para solucionar algum problema, de meios de controle social derivados de outros ramos do Direito, ou, mesmo, de outras alternativas de controle não formais. A segunda, pelo contrário, não permite que a solução se dê fora do sistema repressivo, embora trate de amenizar a intervenção penal, mitigando o “mal” que causa a pena. Opera-se, aqui, o movimento político-criminal conhecido por despenalização, no qual, apesar de se manter a natureza ilícita da conduta, são criadas medidas tendentes a restringir, ou, mesmo, evitar a aplicação ou a execução de pena privativa de liberdade.

Ferrajoli (2002, p. 199-201), por sua vez, explica a distinção entre as teorias justificacionistas e abolicionistas. A primeira corrente procura justificar a pena, enquanto que a segunda procura extinguir qualquer espécie de punição.

Suxberger (2006, p. 29) explica os múltiplos sentidos do termo abolicionista:

Quando se menciona o abolicionismo, cumpre distinguir uma compreensão desse termo num sentido estrito e num sentido mais amplo. No primeiro, o abolicionismo refere-se à abolição de uma aspecto específico do sistema penal. Por exemplo, enquadram-se como vertentes abolicionistas as que sustentam a abolição da pena de morte. Essa compreensão estrita do abolicionismo refere-se à descriminalização entendida como processo por meio do qual se retira a atribuição do sistema penal para aplicar sanções.

Num sentido mais amplo, entende-se o abolicionismo quando o sistema penal, em seu conjunto, é considerado um problema social em si mesmo e, portanto, a abolição de todo o sistema aparece como única solução adequada para a sociedade.

Neste ponto, é relevante expor que não se está a defender com o presente trabalho a abolição irrestrita de toda e qualquer penalidade, com uma vertente abolicionista em sentido estrito, para um agente público que desvirtua um processo licitatório, por exemplo, de maneira dolosa com o intuito de se locupletar ilicitamente às custas de um prejuízo ao erário.

Ao contrário: deve, sim, um servidor que comete uma irregularidade ser sancionado por sua conduta, mas não com o direito penal e sim com a ação de improbidade, num viés minimalista. Tal solução, aliás, garante uma racionalização do processo contra o acusado, por meio da concentração da apuração do ocorrido dentro de uma ação de improbidade, e, ao mesmo tempo, mantém a possibilidade de sanção, com todos os mecanismos existentes dentro da Lei nº 8.429/92.

Na mesma senda, não se está a desmerecer o bem jurídico tutelado, que é, de fato, relevante, que é a lisura dos processos licitatórios, mas, o que se constata, diante das legislações que procuram apenar o acusado por uma conduta desviante no curso do processo licitatório, in casu, a Lei de Licitações e a Lei de Improbidade, é a desnecessidade de uma ação penal própria quando já existem mecanismos eficazes de sanção para o acusado.

A sanção deve ser proporcional e razoável contra o agente que age em desacordo com os ditames legais, principalmente para evitar ações privadas contra o acusado.

Nesse sentido, Ferrajoli (2002, p. 202) defende a redução das penas, com perspectiva de abolição das penas detentivas, mas ao mesmo tempo defende a pena enquanto técnica para minimizar a reação violenta contra os desvios sociais não tolerados e como garantia do acusado.

Assim, o equívoco da doutrina retributiva, segundo o pensador italiano (FERRAJOLI, 2002, p. 202), é atinente à legitimação do direito penal, confundindo a razão de punir pelo como punir o criminoso. Assim, confunde a legitimação externa (por quê punir?) e a interna (como punir?). O castigo, defendido pelas teorias retributivas, quando sustentam a pena como mal pelo próprio mal, não enfrentam o problema de justificar externamente à pena.

Nessa linha, segundo o aludido autor (FERRAJOLI, 2002, p. 201-208), as doutrinas retributivistas servem para justificar modelos não liberais de direito penal máximo.

Ao tratar da doutrina utilitarista, Ferrajoli (2002, p. 208-209) aponta que, uma vez ultrapassada a questão de que a pena não pode ser vista e justificada pelo seu passado, nem tampouco pode ser um fim em si mesma, abre-se espaço para as doutrinas utilitaristas, voltadas para o futuro, que veem a pena como um meio para o atingimento de uma utilidade, desde a intimidação do ofensor até a intimidação geral.

Ferrajoli (2002, p. 210-211) ressalta, quanto à doutrina utilitarista, que mesmo sendo um pressuposto necessário, tal doutrina não é uma condição suficiente, de maneira isolada, para fundar, no plano teórico, sistemas garantistas de direito penal mínimo. Ele indaga: em que coisa consistem as utilidades trazidas e os danos prevenidos pelo direito penal? Quais são os sujeitos a cuja utilidade nos referimos? É da resposta a estas perguntas que dependem os contornos garantistas das concepções militaristas da pena.

O autor italiano (FERRAJOLI, 2002, p. 220-221) cita, com muita propriedade, Rudolph Von Jhering: "Para cada delinquente executado o Estado se priva de um de seus membros; para cada delinquente encarcerado, o Estado paralisa uma força laborativa. Para o direito penal, o reconhecimento do valor da vida e da força humana reveste uma importância eminentemente prática. Se Beccaria, na célebre obra Dos delitos e das penas (1764), não tivesse levantado sua voz contra o abuso que a pena constitui, deveria tê-lo feito Adam Smith, em seu livro sobre a causa da riqueza das nações (1766)".

Nessa linha doutrinária, mais razão ainda possui o argumento da desnecessidade de uma ação penal para as ações ilícitas enquadráveis como crimes licitatórios, notadamente por tais tipos penais cominarem a detenção como uma das penas para o acusado.

Ferrajoli (2002, p. 211-212) explicita que, dentro dessa temática, o princípio de que a lei não deve estabelecer nada além de penas estrita e evidentemente necessárias, as doutrinas utilitaristas mostraram-se incapazes de sugerir critérios de efetiva delimitação e minimização do direito penal.

O autor (FERRAJOLI, 2002, p. 212-213) também detalha as doutrinas utilitaristas por sua finalidade, prevenção geral ou especial, e positivo ou negativa. Em síntese, aponta quatro tipos distintos de finalidade presente nas doutrinas utilitaristas aa) doutrinas da prevenção especial positiva ou da correção, que conferem à pena a função positiva de corrigir o réu; ab) doutrinas da prevenção especial negativa ou da incapacitação, que lhe dão a função negativa de eliminar ou, pelo menos, neutralizar o réu; ba) doutrinas da prevenção geral positiva ou da integração, que lhe atribuem a função positiva de reforçar a fidelidade dos cidadãos à ordem constituída; bb) doutrinas da prevenção geral negativa ou da intimidação, que lhe conferem a função de dissuadir os cidadãos por meio do exemplo ou da ameaça que a mesma constitui.

De tal detalhamento feito pelo doutrinador italiano, extrai-se mais um argumento a reforçar a desnecessidade da ação penal, haja vista que, se uma ação de improbidade pode cumprir a contento todas aquelas finalidades, então fica carente de legitimidade a tipificação penal, na medida que todas as finalidades podem ser atendidas sem acionar o direito penal.

Na tentativa de justificação da pena, segundo Ferrajoli (2002, p. 264), deve ser realizada uma avaliação entre meios e fins penais, devendo os fins e meios serem homogêneos entre si, de maneira que o mal causado pelas penas seja confrontável com o bem perseguido como fim, sendo-lhe justificável não apenas a necessidade, mas também a natureza e a medida como males ou custos menores em relação à falta de satisfação do fim.

Nessa senda, o autor italiano (FERRAJOLI, 2002, p. 265) pondera que um modelo de justificação deve ser idôneo não tanto a justificar aprioristicamente, mas sim indicar as condições em presença das quais o direito penal é justificado e em ausência das quais não se justifica. Assim, uma doutrina de justificação da pena devem consistir em justificações relativas e condicionadas para que, por seu turno, não decaiam à condição de operações de legitimação apriorística e, consequentemente, ideológica. Nessa linha, precisamente, estas serão justificações a posteriori, parciais e contingentes, posto que resultantes da verificação de um satisfatório grau de realização do bem extrajurídico assumido como objetivo.

De outra banda, diz Ferrajoli (2002, p. 265) que uma teoria abolicionista somente é consistente quando os requisitos necessários para um modelo de justificações sejam considerados não apenas insatisfeitos, mas, também, impossíveis de virem a sê-lo.

Ao discorrer sob garantismo e minimalismo penal, o mesmo autor (FERRAJOLI, 2002, p. 268) pondera que a pena não serve apenas para prevenir os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições. A pena serviria para não pecar e, também, para não punir abusivamente.

Explica ainda que o direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como a outra negativas, quais sejam a prevenção geral dos delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite mínimo, a segunda o limite máximo das penas. Assim, Ferrajoli (2002, p. 268-269) entende que somente o segundo objetivo, ou seja, a tutela do inocente e a minimização da reação ao delito, é válido para distinguir o direito penal dos outros sistemas de controle social.

Ferrajoli (1992, p. 10) entende que “penas serían solo restricciones de la libertad, de tipo detentivo o de otros tipos; proceso sería solo el procedimiento dirigido a limitar la libertad personal para tutelar bienes penales fundamentales”.

Ele (FERRAJOLI, 1992, p. 10) ainda entende que se deve efetuar uma redução quantitativa de bens jurídicos tutelados pelo direito penal, inclusive a tutela da administração pública, defendendo o princípio da ofensividade pessoal, voltada para tutelar somente a lesão do indivíduo em carne e osso.

Complementa Ferrajoli (1992, p. 11) dizendo:

En la medida en que no existe ni una persona identificable con el Estado, ni mucho menos un bien o un valor asociable con ella en cuanto tal, estos delitos (frecuentemente configurados en términos vagos y valorativos y por ello también em contraste con el principio de estricta legalidad) están en su mayor parte privados de objeto y por ende de razón de ser.

Nessa esteira, depreende-se que Ferrajoli defende um direito penal mínimo com a máxima redução possível da intervenção estatal. Corrobora tal ensinamento, portanto, com a busca de, diante de uma situação em que uma medida não penal é suficiente, descabe se valer dos mecanismos penais de repressão.

Elena Larrauli (2000, p. 5), por sua vez, defende que um comportamento que se quer demonstrar repulsa deve a rejeição ser fundamentalmente restauradora, vetando, por isso, penas desumanas como a prisão e, ao mesmo tempo, buscando uma justiça mais democrática e participativa para a vítima. Ela compartilha da preocupação básica de Ferrajoli em submeter o poder punitivo estatal a controles legais estritos, mas entende que a prisão viola os direitos humanos.

Também é relevante pontuar que, diante de uma profusão de penas encarceradoras, há uma população carcerária crescente. Assim, quanto menos tipos penais que preveem a cadeia como sanção, melhor para a redução de gastos estatais com a manutenção de presídios.

Roger Matthews (2015, p.28) expõe que, de acordo com a Unidade de Exclusão Social (Social Exclusion Unit, 2002), sobre “redução de reincidências por ex-prisioneiros”, expressa o ponto de vista de que, embora a prisão possa ser justificada para infratores graves, violentos e persistentes, para muitos daqueles atualmente presos, o encarceramento serve para compor uma história de exclusão.

Ele (MATTHEWS, 2015, p. 28) também aponta que propostas recentes de limitar o tamanho da população carcerária inclui a excarceração de infratores que cumprem penas de até 12 meses, a expansão dos programas de livramento antecipado e a introdução da detenção intermitente. Há uma ênfase formal contínua em usar a prisão como último recurso, quando todas as outras opções de fixação da pena tiverem sido esgotadas.

Portanto, mais razão ainda há em se afastar o tipo penal quando existem mecanismos, alternativos à prisão, por exemplo, adequados para sancionar o agente infrator.

A própria sociedade, segundo Matthews (2015, p. 39), defende medidas mais brandas para o acusado. Ele constata, assim, é a não confirmação de que há uma maior busca por punitividade. Ao contrário, o que se constata é uma maior tolerância e a busca por medidas sancionatórias proporcionais e adequadas para os delitos.

Destarte, deve-se realizar uma análise e interpretação conjunta dos institutos penalizadores, com vistas a tornar mais racional a persecução e a aplicação de sanções, haja vista que somente diante do respeito às garantias constitucionais do acusado, principalmente a observância da ultima ratio do direito penal, é que se pode conferir a efetivação desses valores, na busca por uma sociedade, de fato, justa e livre.

Relevantes os ensinamentos de Antônio Suxberger (2006, p. 107) acerca da função de um direito penal:

A função de um direito penal moderno consiste na realização de uma síntese entre o Estado de Direito e uma prevenção especial ressocionalizante, por um lado, e as exigências imprescindíveis da prevenção geral, por outro. A política criminal, concebida a partir de uma doutrina dos fins das penas, dirige-se igualmente à determinação também do tratamento da dogmática jurídico-penal.

Como visto, a pena só encontra compatibilidade com a ordem constitucional quando ela deixa de ser apenas uma medida de castigo, de natureza meramente retributiva, e passa a ser, para o acusado e para a sociedade, uma medida de prevenção geral, voltada a evitar que o acusado cometa novos delitos, e especial, voltada para que os membros da sociedade também se sintam repelidos a cometer condutas desviantes da ordem legal.

E a liberdade, na ordem jurídico brasileira, possui status constitucional de direito fundamental. Assim, é necessário robusta legitimação para cerceá-la, sendo o encarceiramento a última medida cabível, quando outros meios não são suficientes.

É nessa linha que, diante de irregularidades menos graves, em comparação a um homicídio ou estupro, por exemplo, em que há uma maior repugnância social, não há razão de ser a aplicação de prisão como sanção, mormente quando há outras alternativas suficientes para apenar o agente faltoso, como é o caso de irregularidades cometidas em uma licitação.


5 CONCLUSÃO

Diante de uma conduta reprovável, mormente quando envolve atos contra a Administração Pública, deve-se buscar medidas corretivas exemplares. No entanto, o excesso, principalmente quando envolve o direito penal, deve ser evitado, pois um estado democrático de direito não acoberta sanções excessivas, no intuito, inclusive, de resguardar a dignidade da pessoa humana. Se os objetivos da prevenção são atingidos, ainda que por meio de sanções de cunho civil ou administrativa, descabe a incidência de tipos penais.

Assim, é necessário melhor dosar a resposta estatal. Se uma ação de improbidade, por exemplo, já é o suficiente para apenar o infrator, descabe adentrar na seara penal.

Deve-se deixar os tipos penais apenas quando estes se mostrarem a única alternativa viável, principalmente quando cominam pena de restrição à liberdade, como é o caso dos crimes licitatórios que preveem, todos, a pena de detenção.

Da exposição acima realizada, percebe-se que os tipos penais da Lei nº 8.666/93 são menos gravosos que as sanções cíveis previstas na Lei nº 8.429/92, além deste possibilitar a melhor dosagem da resposta estatal, ao deixar a cargo do juiz verificar qual a melhor resposta dentre o leque disponível, com base na razoabilidade e na proporcionalidade.

Ainda que haja uma independência entre as esferas cíveis, administrativas e penais, as sanções não devem se sobrepor, gerando uma resposta desproporcional e desarrazoada frente a um determinado delito.

Assim, percebe-se que, diante da suficiência das sanções capituladas na Lei de Improbidade, não há fundamento para as punições capituladas nos crimes licitatórios insertos na Lei de Licitações.

E, como os crimes licitatórios não possuem a necessária legitimação para sua aplicação, igualmente os tipos penais genéricos do Código Penal (falsificação de documentos, violação de propostas da concorrência, e demais crimes conexos), também se mostram desnecessários, caso uma sanção de natureza cível ou administrativa seja suficiente para apenar o agente, devendo o direito penal restar inaplicável ao caso concreto, cabendo ao juiz verificar, na dosimetria, a suficiência das penas impostas, levando-se em conta o binômio conduta x sanção em seu conjunto.

Nesse caso, com a possibilidade de uma única via para a apreciação do ato ilícito, por meio da lei de improbidade, o poder judiciário terá maior liberdade para definir a dosimetria da sanção, levando-se em conta a reprovabilidade da conduta e a proporcionalidade e a razoabilidade da pena a ser aplicada.

É na causalidade do mundo real, portanto, que se pode medir e dosar adequadamente a justa sanção para o infrator em sua totalidade.

O magistrado, assim, imbuído de cautela e bom senso, como sempre deve ser, realiza a dosimetria que melhor se adeque ao fato levado à sua apreciação.

Embora não seja o objeto deste artigo, outros crimes de natureza similar também podem se valer do mesmo raciocínio, evitando que a cumulação desarrazoada de sanções acabem por comprometer a equação da individualização da pena, de cunho, inclusive, constitucional (art. 5º, inciso XLVI, da CF/88), com um conjunto de sanções por demais severas.

O direito penal somente se mostra legitimado para agir contra determinadas condutas quando as outras alternativas existentes não se mostram suficientes ou adequadas para, ao mesmo tempo, retribuir e prevenir atos ilícitos da espécie. A sanção de natureza penal somente pode reluzir quando for extremamente necessária, evitando incidir em toda e qualquer conduta, sob pena de perder o seu brilho. 


Referências

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SUXBERGER, Antônio Henrique Graciano. Legitimidade da Intervenção Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.


Autor

  • Alexandre Santos Sampaio

    Advogado. Mestre em Direito pela Uniceub - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAMPAIO, Alexandre Santos. A (des)necessidade da tipificação penal de condutas cometidas em processos licitatórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5570, 1 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62941. Acesso em: 4 maio 2024.