Sumário: 1. Introdução – 2. Os crimes licitatórios – 3. A lei de improbidade – 4. A teoria minimalista e as alternativas ao direito penal – 5. Conclusão.
1 Introdução
Nem tudo que reluz é ouro. O discurso de punição máxima, com nítido caráter de infligir um castigo gravoso ao acusado, com aumento da cominação das penas aplicáveis pode parecer tentador, na busca de dar uma maior áurea de efetividade ao direito penal.
No entanto, não se pode perder de vista que as garantias constitucionais esculpidas por um estado democrático de direito, acompanhadas pela busca de uma maior racionalização da sanção ao acusado, devem ser consideradas, inclusive para, até mesmo, afastar as sanções de natureza penal, quando outras medidas são adequadas e suficientes para reprimir o ilícito cometido e, ao mesmo tempo, desestimular outros membros da sociedade a cometerem as mesmas irregularidades.
A esse respeito, Antônio Suxberger (2006, p. 4) alerta que “o direito penal brasileiro tem passado de ultima ratio a prima ratio, efetuando a construção de verdadeiras ignomínias”.
Pondera também o referido autor (SUXBERGER, 2006, p. 5 e 17):
Há outras formas que, inclusive, devem preceder ao direito penal, o qual, pela gravidade de suas consequências, é a última ratio do sistema. Desse modo, são formas de controle extrajurídico que o antecedem: a família, a escola e a religião; ultrapassados esses primeiros filtros, aparecem também os métodos jurídicos de controle, que são os outros ramos do ordenamento jurídico, como direito civil, administrativo ou econômico. (…)
Uma legitimação dotada de um mínimo de pretensão de permanência certamente deverá orientar-se segundo os princípios da necessidade e proporcionalidade. As decisões político-criminais direcionadas à criminalização de uma conduta supõem um mal para alguém, de sorte que tal imposição só cabe de modo subsidiário (isto é, se a finalidade perseguida não puder ser obtida por meio menos danoso) e proporcional (isto é, de maneira que o dano causado seja adequado ao fim pretendido, não causando um dano maior que aquele que visa evitar).
Portanto, nesse espeque, mesmo em condutas ilícitas cometidas contra a Administração Pública que, diante do atual (permanente?) cenário político do Brasil, com diversos casos noticiados na imprensa de corrupção contra as mais diversas entidades públicas, a princípio, merecem punições severas e exemplares, deve se buscar mecanismos racionais, proporcionais e razoáveis de sanção.
Nesse espeque, os tipos penais capitulados na Lei nº 8.666/93, em seus artigos 89 a 98, visam sancionar condutas que atentem contra a licitação. Todos os artigos cominam multa como pena, calculada entre dois a cinco por cento do valor do contrato, além de detenção, que pode variar de seis meses a seis anos.
De outro lado, todas as condutas tipificadas como crime na Lei de Licitações também podem ser enquadradas como atos de improbidade, disciplinados pela Lei nº 8.429/92, que, apesar de sua natureza cível, sanciona, igualmente, o agente que desrespeita os ditames legais.
Por conta disso, sem contar ainda com a possibilidade de sanções na esfera administrativa, surge a problemática do presente artigo: o direito penal, que é visto como a ultima ratio, deveria disciplinar os crimes cometidos em uma licitação que podem ser punidos por meio de uma ação de improbidade? Não é demasiada a reprimenda contra o agente que atenta contra as regras do direito licitatório, mesmo considerando a independência entre as esferas administrativa, cível e penal?
Para responder a tal indagação, faz-se necessário: i) verificar os tipos penais existentes na Lei nº 8.666/93, cotejando com a jurisprudência que trata do tema; ii) analisar como é sancionado o agente através da Lei de Improbidade e a sua correlação com os crimes licitatórios, igualmente verificando a jurisprudência que trata da matéria; iii) expor, ainda que sucintamente, os ensinamentos da teoria minimalista, dando ênfase na busca por medidas alternativas ao direito penal; iv) analisar se a ação de improbidade é suficiente para garantir uma reprimenda adequada ao agente ou se os crimes tipificados na Lei nº 8.666/93 são necessários e indispensáveis no ordenamento jurídico pátrio.
Portanto, neste artigo, não se defenderão punições máximas a políticos e agentes públicos, mas sim penas proporcionais e razoáveis, de acordo com a conduta perpetrada. O presente trabalho tampouco tem a pretensão de esgotar o tema, mas apenas trazer, quem sabe, um novo ponto de vista.
2 OS CRIMES LICITATÓRIOS
Faz-se necessário, para o intento do presente artigo, apresentar uma visão geral sobre os tipos penais existentes na Lei de Licitações. Não se adentrará em detalhes de cada crime, eis que não é o objetivo deste trabalho. Mas é relevante expor que todos os tipos têm por objetivo a busca por coibir práticas que venham a levar ao descumprimento da Lei de Licitações, seja com prejuízo e dano efetivo à fazenda pública ou somente descumprimento dos preceitos legais.
Ressalte-se, inicialmente, que causa certa estranheza a posição no ordenamento jurídico de tais crimes, haja vista que estão previstos num diploma legal que visa regular as contratações públicas.
Por curiosidade, no Projeto de Lei do Senado nº 236/2012, que visa criar outro código penal, os crimes licitatórios são transpostos, com alguns ajustes redacionais e no quantitativo das penas, para o código penal, resolvendo o problema da posição de tais crimes no ordenamento jurídico pátrio.
Ademais, os crimes tipificados na Lei de Licitações poderiam, hipoteticamente, serem enquadrados em outros tipos, tais como a falsificação de documentos. Por exemplo, o art. 326 do Código Penal (violação do sigilo de proposta de concorrência) é similar ao art. 94 da Lei nº 8.666/93, mas com penas distintas.
Claro que, em decorrência do princípio da especialidade, as condutas realizadas dentro de um contexto licitatório afastaria outros tipos penais gerais.
Observa-se que a detenção e a multa são aplicadas, em todos os crimes tipificados na Lei nº 8.666/93, cumulativamente e não alternativamente. Assim, caso determinada conduta seja enquadrada como crime, não há margem para que o juiz decida por aplicar somente multa ou somente detenção, buscando melhor adequar a reprimenda à reprovação da conduta, haja vista que legislador, no texto legal, utiliza a conjunção “e”. Neste caso, o juiz perde um pouco a flexibilidade necessária para definir a melhor sanção, de acordo com a proporcionalidade e razoabilidade.
Não obstante a tais questões, todos artigos da Lei de Licitações têm, de ponto em comum, a criminalização de condutas que acabem por frustrar, ou fraudar, os objetivos da licitação.
Entretanto, cabe indagar: toda e qualquer conduta desviante dos ditames da Lei de Licitações que maculem seus objetivos cabe a sanção penal?
A título de exemplo, a regra da Lei nº 8.666/93 é a realização do certame para a escolha da proposta mais vantajosa e, em regra, mais econômica para a Administração Pública.
Somente em casos excepcionais, devidamente justificados, é possível a contratação direta de determinado fornecedor sem uma competição. São os casos de licitação dispensada (art. 17 da Lei nº 8.666/93), dispensável (art. 24 da Lei nº 8.666/93) ou inexigibilidade de licitação (art. 25 da Lei nº 8.666/93).
Caso determinado agente venha a se valer de uma dispensa ou inexigibilidade, contratando diretamente um fornecedor fora das hipóteses previstas em lei, incorrerá em crime cuja pena cominada será, além de multa, uma detenção de três a cinco anos (art. 89 da Lei nº 8.666/93).
No entanto, os crimes licitatórios inadmitem a modalidade culposa. Mais que isso, não basta um dolo genérico, ressalvados alguns casos, para a penalização do agente: é necessário um dolo específico, sendo necessário que o agente tenha agido de maneira deliberada para o cometimento dos ilícitos.
Por conta disso, é relevante observar como a jurisprudência tem tratado a questão perante situações fáticas concretas. Uma decisão que vem sendo utilizada reiteradas vezes como fundamento para outras decisões judiciais é a proferida pela corte especial do Superior Tribunal de Justiça, na Ação Penal nº 480 – MG, em acórdão de relatoria do Ministro Cesar Asfor Rocha, que abriu divergência para o entendimento da Ministra Maria Thereza de Assis Moura:
AÇÃO PENAL. EX-PREFEITA. ATUAL CONSELHEIRA DE TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL. FESTA DE CARNAVAL. FRACIONAMENTO ILEGAL DE SERVIÇOS PARA AFASTAR A OBRIGATORIEDADE DE LICITAÇÃO. ARTIGO 89 DA Lei N. 8.666/1993. ORDENAÇÃO E EFETUAÇÃO DE DESPESA EM DESCONFORMIDADE COM A LEI. PAGAMENTO REALIZADO PELA MUNICIPALIDADE ANTES DA ENTREGA DO SERVIÇO PELO PARTICULAR CONTRATADO. ARTIGO 1º, INCISO V, DO DECRETO-LEI N. 201/1967 C/C OS ARTIGOS 62 E 63 DA LEI N. 4.320/1964. AUSÊNCIA DE FATOS TÍPICOS. ELEMENTO SUBJETIVO. INSUFICIÊNCIA DO DOLO GENÉRICO. NECESSIDADE DO DOLO ESPECÍFICO DE CAUSAR DANO AO ERÁRIO E DA CARACTERIZAÇÃO DO EFETIVO PREJUÍZO. – Os crimes previstos nos artigos 89 da Lei n. 8.666/1993 (dispensa de licitação mediante, no caso concreto, fracionamento da contratação) e 1º, inciso V, do Decreto-lei n. 201/1967 (pagamento realizado antes da entrega do respectivo serviço pelo particular) exigem, para que sejam tipificados, a presença do dolo específico de causar dano ao erário e da caracterização do efetivo prejuízo. Precedentes da Corte Especial e do Supremo Tribunal Federal. – Caso em que não estão caracterizados o dolo específico e o dano ao erário. – Ação penal improcedente.
No processo suso, a então prefeita autorizou a contratação direta, por dispensa de licitação, em razão do valor (art. 24, inciso II, da Lei nº 8.666/93). No entanto, houve o fracionamento dos serviços para o enquadramento como dispensa, ficando caracterizada, de fato, a burla ao processo licitatório.
Assim, a princípio, o caso poderia ser enquadrado como crime pelo art. 89 da Lei 8.666/93 que dispõe:
Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:
Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.
O ministro observou, dentro quadro fático-jurídico posto para apreciação do STJ, que haveria dolo genérico na conduta da agente, qual seja, a vontade de, mediante o artifício de fracionar os serviços, afastar a obrigatoriedade de prévia licitação.
Entretanto, o entendimento exarado pelo Ministro Relator, que fora igualmente replicado em outros julgados da espécie, foi a necessidade, no caso do crime capitulado no art. 89 da Lei nº 8.666/93, de dolo específico, voltado a causar prejuízo ao erário:
Mas compreendo que, para efeito de punir criminalmente o agente com base na norma do art. 89 da Lei n. 8.666/1993, não basta o dolo genérico. Devem estar caracterizados, a meu ver, não só o dolo específico de causar dano ao erário, mas também o próprio dano, pontos inexistentes no caso em debate e sobre os quais diverge a jurisprudência pátria. (...)
Ouso divergir da orientação das Turmas componentes da Terceira Seção, por entender que as infindáveis e naturais dúvidas que gravitam em torno da legalidade dos atos praticados em todos os momentos pelas administrações em geral, ensejando erros e acertos por parte dos agentes públicos, inclusive pelos mais habilitados juridicamente, impõem uma interpretação mais cuidadosa e restrita das normas punitivas, sobretudo as do âmbito criminal. Ademais o engessamento da atividade administrativa mediante ameaças de condenações criminais é tão pernicioso quanto a sua liberação total, descontrolada, sendo necessário encontrar um ponto de equilíbrio na interpretação das normas jurídicas destinadas a punir os agentes públicos, os quais têm a obrigação de impedir uma desastrosa estagnação da atividade estatal. (...)
Assim, confiro às normas de natureza penal inseridas na Lei n. 8.666/1993, dentre elas a do art. 89, o objetivo de apenar, na verdade, os administradores efetivamente desonestos, mal intencionados e criminosos, cabendo ao órgão acusador comprovar o dolo específico do acusado de causar danos aos bens públicos. Apenas sob esse enfoque é que, em crimes semelhantes ao destes autos, poderá a alegação de inexperiência do administrador e de seus assistentes auxiliar na descaracterização do tipo.
Assim, se o agente deixou de observar as formalidades legais por mera culpa em sentido estrito, ou, ainda, exista apenas um dolo genérico, não responderá penalmente com fulcro no art. 89 da Lei nº 8.666/93, ainda que possa ser responsabilizado por outra esfera, seja administrativa ou cível.
Idem, o Supremo Tribunal Federal, na primeira turma, decidiu, na Ação Penal 559 – PE, em Acórdão de relatoria do Ministro Dias Toffoli:
Ação Penal. Ex-prefeito municipal que, atualmente, é deputado federal. Dispensa irregular de licitação (art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93). Dolo. Ausência. Atipicidade. Ação penal improcedente.
1. A questão submetida ao presente julgamento diz respeito à existência de substrato probatório mínimo que autorizasse a condenação do réu na condição de prefeito municipal, por haver dispensado indevidamente o procedimento licitatório para a contratação de serviços de consultoria em favor da Prefeitura Municipal do Recife/PE.
2. Não restou demonstrada a vontade livre e conscientemente dirigida por parte do réu de superar a necessidade de realização da licitação. Pressupõe o tipo, além do necessário dolo simples (vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimento licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação.
3. A incidência da norma que se extrai do art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93 depende da presença de um claro elemento subjetivo do agente político: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, pois é assim que se garante a necessária distinção entre atos próprios do cotidiano político-administrativo e atos que revelam o cometimento de ilícitos penais. No caso, o órgão ministerial público não se desincumbiu do seu dever processual de demonstrar, minimamente, que tenha havido vontade livre e consciente do agente de lesar o Erário.
Assim, segundo o ministro Dias Toffoli, deve-se restar demonstrado, para a existência de crime licitatório com base no art. 89 da Lei nº 8.666/93, a vontade livre e consciente do agente de burlar a licitação e gerar prejuízo ao erário.
Nessa senda, o entendimento jurisprudencial predominante é conferir uma interpretação restritiva ao tipo penal do art. 89 da Lei nº 8.666/93, exigindo dolo qualificado, voltado a apenar apenas o administrador desonesto e que cause prejuízo ao erário.
Assim, se o administrador não adota cautelas ou age em desacordo com lei, mas sem intuito de causar dano ao erário, a sua conduta não é penalmente atingida.
A corroborar com tal entendimento, Marçal Justen Filho (2014, p. 1172-1173) leciona:
2.2.2) A existência de dano
Não se aperfeiçoa o crime do art. 89 sem dano aos cofres públicos. Ou seja, o crime consiste não apenas na indevida contratação indireta, mas na produção de um resultado final danoso. Se a contratação direta, ainda que indevidamente adotada, gerou um contrato vantajoso para a Administração, não existirá crime. Não se pune a mera conduta, ainda que reprovável, de deixar de adotar a licitação. O que se pune é a instrumentalização da contratação direta para gerar lesão patrimonial à Administração. (...)
2.3) O tipo subjetivo
O elemento subjetivo consiste não apenas na intenção maliciosa de deixar de praticar a licitação cabível. Se a vontade consciente livre de praticar a conduta descrita no tipo fosse suficiente para concretizar o crime, então teria de admitir-se modalidade culposa. Ou seja, quando a conduta descrita no dispositivo fosse concretizada em virtude de negligência, teria de haver a punição. Isso seria banalizar o Direito Penal e produzir criminalização de condutas que não se revestem de reprovabilidade. É imperioso, para a caracterização do crime, que o agente atue voltado a obter um outro resultado, efetivamente reprovável e grave, além da mera contratação direta.
Ocorre, assim, a conduta ilícita quando o agente possui a vontade livre e consciente de produzir o resultado danoso ao erário. É necessário um elemento subjetivo consistente em produzir prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação. Portanto, não basta a mera intenção de não realizar licitação em um caso em que tal seria necessário.
É indubitável que as condutas descritas nos crimes licitatórios são de extrema reprovabilidade, eis que acabam por gerar prejuízos, diretos ou indiretos, para a Administração Pública e, por consequência, para a sociedade como um todo, o que fundamenta a imposição de uma sanção.
Entretanto, a interpretação restritiva adotada pelo STF e pelo STJ em casos da espécie é salutar, pois evita que qualquer conduta que descumpra os preceitos licitatórios possa ser enquadrada como crime, com a aplicação, cumulada, de detenção e multa.
Nessa senda, as decisões exaradas pelos ministros, acima mencionadas, ao exigir um dolo qualificado da conduta do agente evita que meras irregularidades, sem grande gravidade ou prejuízo ao erário, venham a ser punidas como crimes, com detenções para pessoas que não tiveram uma vontade deliberada de se locupletar ilicitamente, às custas da Administração, ou causar prejuízos aos cofres públicos.
Não obstante, é necessário verificar também em que medida a ação de improbidade sanciona o agente e, por conseguinte, se faz necessário a tipificação penal.