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A (des)necessidade da tipificação penal de condutas cometidas em processos licitatórios

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01/10/2018 às 15:00
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3 A lei de improbidade

A Constituição Federal, em seu art. 37, § 4º, dispõe: “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

Percebe-se, da redação constitucional supra, que o leque de sanções possíveis ao agente que cometer um ato de improbidade é amplo e gravoso, sem prejuízo, repita-se, da ação penal cabível.

Nessa senda, caso exista um movimento legislativo tendente a afastar a ação penal de atos tidos como ímprobos, faz-se necessário, primeiramente, alterar a Constituição para, posteriormente, promover uma mudança no ordenamento jurídico infraconstitucional.

Não obstante a isso, para um político que dedica a sua carreira exclusivamente para as atividades políticas, por exemplo, cabe questionar: qual a sanção mais gravosa? Será uma detenção de seis meses que certamente, diante da diminuta pena imposta, será substituída por uma pena restritiva de direitos, ou a suspensão dos seus direitos políticos? Ao que parece, esta última sanção, no caso exemplificado, é mais danosa do que a primeira.

Com isso, não se está a dizer que uma pena que restringe a liberdade é menos severa que uma perda de uma função pública, pois seria ilógico, mas o que se constata é que uma pena diminuta de detenção, substituída por uma restritiva de direitos, é mais favorável a um acusado do que a perda de sua função pública.

Nesse cenário, qual a razão de mover contra tal agente uma ação penal? Não seria suficiente e adequado o ingresso apenas da ação de improbidade?

De igual sorte, cabe indagar se a existência dos tipos penais insertos na Lei nº 8.666/93 contribuem para a diminuição dos ilícitos, se são eficazes em evitar novas condutas desviantes. Se a resposta for negativa, ou a contribuição seja diminuta, então a intervenção penal não se justifica, ainda mais se existem outros mecanismos de repressão.

É relevante afirmar que não se está a defender, com tal questionamento, a conduta improba, qualquer que seja, que é deveras reprovável e merece uma justa reprimenda, mas sim busca-se avaliar se é adequada a ação penal, no caso em comento, em condutas cometidas no âmbito de um processo licitatório.

A própria divisão tripartite dos processos contra o agente – administrativo, cível e penal – transforma em uma via crucis o caminho a ser percorrido para se chegar a uma decisão acerca da conduta praticada e, por vezes, as decisões emanadas são divergentes. Deve-se buscar uma racionalização do processo, com o estabelecimento de uma via única para avaliar se o comportamento praticado é, ou não, punível, qualquer que seja a pena a ser aplicada e qualquer que seja a seara (administrativa, cível ou penal).

Destarte, para cada conduta, sob o ponto de vista racional de uma processualística, deveria existir tão somente um processo. Claro que existe, no ordenamento jurídico pátrio, a independência entre as instâncias, mas tal possibilidade acaba, por vezes, a sobrecarregar desnecessariamente o acusado, obrigando-o a se defender em mais de uma “frente de batalha”.

Além dos crimes licitatórios, os atos enquadrados como de improbidade são exemplarmente punidos pela Lei nº 8.429/92, que possui natureza cível. E a possibilidade de que um ato seja enquadrado como improbo é ampla, haja vista que os atos são subdivididos, na citada lei, em três categorias: a) enriquecimento ilícito (art. 9º da Lei de Improbidade); b) prejuízo ao erário (art. 10 da Lei de Improbidade); c) que Atentam Contra os Princípios da Administração Pública (art. 11 da Lei de Improbidade).

Como possui um extenso rol de condutas tidas como ímprobas, sendo tal rol meramente exemplificativo, as condutas descritas como crimes licitatórios são todas, integralmente, englobadas por uma eventual ação de improbidade.

As penas aplicadas, por sua vez, apesar de serem explicitamente independentes das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica (art. 12, caput, da Lei nº 8.429/92), são suficientemente severas, senão vejamos:

I - na hipótese do art. 9°, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;

II - na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;

III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.

Observa-se que as sanções são, inclusive, mais gravosas que as penas do direito penal. As sanções de perda da função pública ou suspensão dos direitos políticos são mais danosas ao infrator do que uma detenção, por exemplo, de seis meses, que pode ser substituída por medidas restritivas de direito, como dito alhures.

Na aplicação da Lei de Improbidade, as sanções acima são aplicadas e fixadas de acordo com a reprovabilidade da conduta, podendo ser aplicadas isoladamente ou cumulativamente. Assim, o juiz, diante do caso concreto, tem maior liberdade para escolher a sanção mais adequada e o seu quantitativo em relação às penas capituladas na Lei nº 8.666/93.

Além disso, diante de uma conduta reprovável, o rol de sanções acima parece suficiente para a resposta estatal, mesmo nos casos de crimes licitatórios.

Diferentemente dos crimes capitulados na Lei nº 8.666/93, para que uma conduta seja taxada como improba, independe de dolo específico, bastando que haja ofensa aos princípios da Administração Pública. No entanto, as sanções por improbidade incidem apenas, em regra, quando houver, ao menos, dolo, caracterizado pela desonestidade ou má-fé do agente público.

Assim, uma conduta culposa que acabe por infringir, por exemplo, princípios da Administração Pública não dá ensejo a penalização pela Lei de Improbidade, exceto em casos excepcionais explicitamente apontados na Lei nº 8.429/92.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, no Resp 604151 – RS, de relatoria do Ministro José Delgado, assim decidiu:

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE. LEI 8.429/92, ART. 11. DESNECESSIDADE DE OCORRÊNCIA DE PREJUÍZO AO ERÁRIO. EXIGÊNCIA DE CONDUTA DOLOSA. 1. A classificação dos atos de improbidade administrativa em atos que importam enriquecimento ilícito (art. 9º), atos que causam prejuízo ao erário (art. 10) e atos que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11) evidencia não ser o dano aos cofres públicos elemento essencial das condutas ímprobas descritas nos incisos dos arts. 9º e 11 da Lei 9.429/92. Reforçam a assertiva as normas constantes dos arts. 7º, 12, I e III, e 21, I, da citada Lei. 2. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência do STJ associam a improbidade administrativa à noção de desonestidade, de má-fé do agente público. Somente em hipóteses excepcionais, por força de inequívoca disposição legal, é que se admite a configuração de improbidade por ato culposo (Lei 8.429/92, art. 10). O enquadramento nas previsões dos arts. 9º e 11 da Lei de Improbidade, portanto, não pode prescindir do reconhecimento de conduta dolosa. 3. Recurso especial provido.

Extrai-se, da decisão retro mencionada, que a existência de dano aos cofres públicos não é elemento obrigatório para apenar o agente, no caso do art. 11 da Lei 8.429/92. De igual forma, a conduta deve ser, em regra, dolosa, sendo a conduta culposa, salvo em casos excepcionais, enquadráveis como improba.

Percebe-se que, tanto no crime da Lei de Licitações como na Lei de Improbidade, a jurisprudência tende a aplicar tais diplomas legais apenas aos agentes desonestos, que agem com dolo. Aquele que age com culpa, sem intenção de causar dano ao erário, acaba sendo apenado, se o caso comportar, apenas na seara administrativa.

De outra senda, apesar da natureza e da metodologia serem diferentes, é observável que, caso o agente venha a responder a uma ação de improbidade e, também, a uma ação penal por crime capitulado na Lei nº 8.666/93, ele pode ser multado duas vezes pelo mesmo fato, o que pode ser interpretado como um bis in idem.

Assim, caso ambas as ações sejam acolhidas e julgadas procedentes, é possível que o agente venha a ser condenado a uma pena de detenção e multa, na seara penal, e, também, a uma multa, além de outras sanções, na seara cível.

Pergunta-se: se as sanções elencadas na Lei de improbidade já sancionam o agente faltoso, severa e exemplarmente diga-se de passagem, sendo o direito penal a ultima ratio, devendo ser aplicado apenas quando todas as demais medidas possíveis restaram-se infrutíferas, então qual o fundamento para a existência do rol de crimes licitatórios?

Para analisar tal indagação, faz-se necessário adentrar nas doutrinas que discorrem sobre as penas, com viés minimalista do direito penal, voltado para medidas alternativas ao direito penal.


4 A TEORIA MINIMALISTA E AS ALTERNATIVAS AO DIREITO PENAL

A legitimação do direito penal, segundo Hassemer (1993, p. 258), deve ser pautada no bem jurídico tutelado, mais voltado para garantir a liberdade e a proteção do acusado. Ele (HASSEMER, 1993, p. 259) expõe o princípio da ultima ratio, na medida em que a tutela penal somente deve atuar quando necessária, adequada e proporcional, eis que é um maquinário que fere intensamente o acusado.

Ferrajoli (1992, p. 1), igualmente, discorre sobre a expansão desenfreada do direito penal, na sua realidade (Itália, 1992), mas é um discurso atual, aplicável plenamente à realidade brasileira:

Por otra parte las políticas del Derecho Penal parecen orientarse hoy en sentido diametralmente opuesto. En efecto, prosigue la expansión incontrolada de la intervención penal que parece haber llegado a ser, al menos en Italia, el principal instrumento de regulación jurídica y de control social, aunque sólo sea por la total ineficiencia de los otros tipos de sanciones: civiles, administrativas, disciplinarias, políticas. Desde las pequeñas infracciones contravencionales hasta las variadas formas de ilícitos en materia monetaria y comercial, desde la tutela del ambiente y de otros intereses colectivos hasta la represión de las desviaciones políticas y administrativas de los poderes públicos, cada vez más la sanción penal aparece como la única forma de sanción y la única técnica de responsabilización dotada de eficacia y de efectividad. De ahí ha resultado tal inflación de los intereses penalmente protegidos, que se ha perdido toda consistencia conceptual de la figura del bien jurídico.

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Explica Ferrajoli (2002, p. 315) que “a pena – segundo a já aludida tese que une Montesquieu, Beccaria, Romagnosi, Bentham e Carmignani – deve ser necessária e a mínima dentre as possíveis em relação ao objetivo da prevenção de novos delitos”.

Nesse espeque, se o bem jurídico tutelado, a moralidade e a lisura nos processos licitatórios, é protegido por meios menos gravosos ao acusado, mormente sem atingir a sua liberdade, então a utilização dos tipos penais da Lei nº 8.666/93, que possuem a detenção como pena, não está em conformidade com o princípio da ultima ratio acima mencionado, sendo a utilização de tais penas uma retribuição e um castigo desarrazoado e desproporcional.

Nessa senda, explica Ferrajoli (2002, p. 384) que:

Se o direito penal é um remédio extremo, devem ficar privados de toda a relevância jurídica os delitos de mera desobediência, degradados à categoria de dano civil com prejuízos reparáveis e à ilícitos administrativos todas as violações de normas administrativas.

Bianchini (2016, p.1) explica também que o direito penal apenas é justificável quando a ofensa irrogada é grave e o bem jurídico tutelado possui elevado grau de importância:

Há consenso de que apenas bens de elevada valia devam ser tutelados pelo Direito penal. Isto porque a utilização de recurso tão danoso à liberdade individual somente se justifica em face do grau de importância que o bem tutelado assume. Aqui surge a preocupação com a dignidade do bem jurídico, dado que o Direito penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens. Além da verificação a respeito do grau de importância do bem — sua dignidade —, deve ser analisado se a ofensa irrogada causou um abalo social e se foi de tal proporção que justifique a intervenção penal. Assim, somente podem ser erigidas à categoria de crime, condutas que, efetivamente, obstruam o satisfatório conviver em sociedade. Portanto, incomodações de pequena monta, ou que causem diminutos dissabores, são consideradas como desprovidas de relevância penal, ficando, em razão disto, a sua resolução relegada a outros mecanismos formais ou informais de controle social.

Explica a mencionada doutrinadora, outrossim, o caráter subsidiário do direito penal, fragmentário, demonstrando que, somente quando não há outros meios eficazes de controle social é que abre-se a possibilidade da intervenção penal no ilícito:

Além disto, a utilização do Direito penal deve ficar circunscrita às situações que não possam ser resolvidas por outros meios ao dispor do Estado. Desta forma, a intervenção penal só é admitida quando não há outro mal menor passível de substituí-la. Este seu caráter subsidiário pode se dar de duas formas: uma externa outra interna. Na primeira, lança-se mão, para solucionar algum problema, de meios de controle social derivados de outros ramos do Direito, ou, mesmo, de outras alternativas de controle não formais. A segunda, pelo contrário, não permite que a solução se dê fora do sistema repressivo, embora trate de amenizar a intervenção penal, mitigando o “mal” que causa a pena. Opera-se, aqui, o movimento político-criminal conhecido por despenalização, no qual, apesar de se manter a natureza ilícita da conduta, são criadas medidas tendentes a restringir, ou, mesmo, evitar a aplicação ou a execução de pena privativa de liberdade.

Ferrajoli (2002, p. 199-201), por sua vez, explica a distinção entre as teorias justificacionistas e abolicionistas. A primeira corrente procura justificar a pena, enquanto que a segunda procura extinguir qualquer espécie de punição.

Suxberger (2006, p. 29) explica os múltiplos sentidos do termo abolicionista:

Quando se menciona o abolicionismo, cumpre distinguir uma compreensão desse termo num sentido estrito e num sentido mais amplo. No primeiro, o abolicionismo refere-se à abolição de uma aspecto específico do sistema penal. Por exemplo, enquadram-se como vertentes abolicionistas as que sustentam a abolição da pena de morte. Essa compreensão estrita do abolicionismo refere-se à descriminalização entendida como processo por meio do qual se retira a atribuição do sistema penal para aplicar sanções.

Num sentido mais amplo, entende-se o abolicionismo quando o sistema penal, em seu conjunto, é considerado um problema social em si mesmo e, portanto, a abolição de todo o sistema aparece como única solução adequada para a sociedade.

Neste ponto, é relevante expor que não se está a defender com o presente trabalho a abolição irrestrita de toda e qualquer penalidade, com uma vertente abolicionista em sentido estrito, para um agente público que desvirtua um processo licitatório, por exemplo, de maneira dolosa com o intuito de se locupletar ilicitamente às custas de um prejuízo ao erário.

Ao contrário: deve, sim, um servidor que comete uma irregularidade ser sancionado por sua conduta, mas não com o direito penal e sim com a ação de improbidade, num viés minimalista. Tal solução, aliás, garante uma racionalização do processo contra o acusado, por meio da concentração da apuração do ocorrido dentro de uma ação de improbidade, e, ao mesmo tempo, mantém a possibilidade de sanção, com todos os mecanismos existentes dentro da Lei nº 8.429/92.

Na mesma senda, não se está a desmerecer o bem jurídico tutelado, que é, de fato, relevante, que é a lisura dos processos licitatórios, mas, o que se constata, diante das legislações que procuram apenar o acusado por uma conduta desviante no curso do processo licitatório, in casu, a Lei de Licitações e a Lei de Improbidade, é a desnecessidade de uma ação penal própria quando já existem mecanismos eficazes de sanção para o acusado.

A sanção deve ser proporcional e razoável contra o agente que age em desacordo com os ditames legais, principalmente para evitar ações privadas contra o acusado.

Nesse sentido, Ferrajoli (2002, p. 202) defende a redução das penas, com perspectiva de abolição das penas detentivas, mas ao mesmo tempo defende a pena enquanto técnica para minimizar a reação violenta contra os desvios sociais não tolerados e como garantia do acusado.

Assim, o equívoco da doutrina retributiva, segundo o pensador italiano (FERRAJOLI, 2002, p. 202), é atinente à legitimação do direito penal, confundindo a razão de punir pelo como punir o criminoso. Assim, confunde a legitimação externa (por quê punir?) e a interna (como punir?). O castigo, defendido pelas teorias retributivas, quando sustentam a pena como mal pelo próprio mal, não enfrentam o problema de justificar externamente à pena.

Nessa linha, segundo o aludido autor (FERRAJOLI, 2002, p. 201-208), as doutrinas retributivistas servem para justificar modelos não liberais de direito penal máximo.

Ao tratar da doutrina utilitarista, Ferrajoli (2002, p. 208-209) aponta que, uma vez ultrapassada a questão de que a pena não pode ser vista e justificada pelo seu passado, nem tampouco pode ser um fim em si mesma, abre-se espaço para as doutrinas utilitaristas, voltadas para o futuro, que veem a pena como um meio para o atingimento de uma utilidade, desde a intimidação do ofensor até a intimidação geral.

Ferrajoli (2002, p. 210-211) ressalta, quanto à doutrina utilitarista, que mesmo sendo um pressuposto necessário, tal doutrina não é uma condição suficiente, de maneira isolada, para fundar, no plano teórico, sistemas garantistas de direito penal mínimo. Ele indaga: em que coisa consistem as utilidades trazidas e os danos prevenidos pelo direito penal? Quais são os sujeitos a cuja utilidade nos referimos? É da resposta a estas perguntas que dependem os contornos garantistas das concepções militaristas da pena.

O autor italiano (FERRAJOLI, 2002, p. 220-221) cita, com muita propriedade, Rudolph Von Jhering: "Para cada delinquente executado o Estado se priva de um de seus membros; para cada delinquente encarcerado, o Estado paralisa uma força laborativa. Para o direito penal, o reconhecimento do valor da vida e da força humana reveste uma importância eminentemente prática. Se Beccaria, na célebre obra Dos delitos e das penas (1764), não tivesse levantado sua voz contra o abuso que a pena constitui, deveria tê-lo feito Adam Smith, em seu livro sobre a causa da riqueza das nações (1766)".

Nessa linha doutrinária, mais razão ainda possui o argumento da desnecessidade de uma ação penal para as ações ilícitas enquadráveis como crimes licitatórios, notadamente por tais tipos penais cominarem a detenção como uma das penas para o acusado.

Ferrajoli (2002, p. 211-212) explicita que, dentro dessa temática, o princípio de que a lei não deve estabelecer nada além de penas estrita e evidentemente necessárias, as doutrinas utilitaristas mostraram-se incapazes de sugerir critérios de efetiva delimitação e minimização do direito penal.

O autor (FERRAJOLI, 2002, p. 212-213) também detalha as doutrinas utilitaristas por sua finalidade, prevenção geral ou especial, e positivo ou negativa. Em síntese, aponta quatro tipos distintos de finalidade presente nas doutrinas utilitaristas aa) doutrinas da prevenção especial positiva ou da correção, que conferem à pena a função positiva de corrigir o réu; ab) doutrinas da prevenção especial negativa ou da incapacitação, que lhe dão a função negativa de eliminar ou, pelo menos, neutralizar o réu; ba) doutrinas da prevenção geral positiva ou da integração, que lhe atribuem a função positiva de reforçar a fidelidade dos cidadãos à ordem constituída; bb) doutrinas da prevenção geral negativa ou da intimidação, que lhe conferem a função de dissuadir os cidadãos por meio do exemplo ou da ameaça que a mesma constitui.

De tal detalhamento feito pelo doutrinador italiano, extrai-se mais um argumento a reforçar a desnecessidade da ação penal, haja vista que, se uma ação de improbidade pode cumprir a contento todas aquelas finalidades, então fica carente de legitimidade a tipificação penal, na medida que todas as finalidades podem ser atendidas sem acionar o direito penal.

Na tentativa de justificação da pena, segundo Ferrajoli (2002, p. 264), deve ser realizada uma avaliação entre meios e fins penais, devendo os fins e meios serem homogêneos entre si, de maneira que o mal causado pelas penas seja confrontável com o bem perseguido como fim, sendo-lhe justificável não apenas a necessidade, mas também a natureza e a medida como males ou custos menores em relação à falta de satisfação do fim.

Nessa senda, o autor italiano (FERRAJOLI, 2002, p. 265) pondera que um modelo de justificação deve ser idôneo não tanto a justificar aprioristicamente, mas sim indicar as condições em presença das quais o direito penal é justificado e em ausência das quais não se justifica. Assim, uma doutrina de justificação da pena devem consistir em justificações relativas e condicionadas para que, por seu turno, não decaiam à condição de operações de legitimação apriorística e, consequentemente, ideológica. Nessa linha, precisamente, estas serão justificações a posteriori, parciais e contingentes, posto que resultantes da verificação de um satisfatório grau de realização do bem extrajurídico assumido como objetivo.

De outra banda, diz Ferrajoli (2002, p. 265) que uma teoria abolicionista somente é consistente quando os requisitos necessários para um modelo de justificações sejam considerados não apenas insatisfeitos, mas, também, impossíveis de virem a sê-lo.

Ao discorrer sob garantismo e minimalismo penal, o mesmo autor (FERRAJOLI, 2002, p. 268) pondera que a pena não serve apenas para prevenir os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições. A pena serviria para não pecar e, também, para não punir abusivamente.

Explica ainda que o direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como a outra negativas, quais sejam a prevenção geral dos delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite mínimo, a segunda o limite máximo das penas. Assim, Ferrajoli (2002, p. 268-269) entende que somente o segundo objetivo, ou seja, a tutela do inocente e a minimização da reação ao delito, é válido para distinguir o direito penal dos outros sistemas de controle social.

Ferrajoli (1992, p. 10) entende que “penas serían solo restricciones de la libertad, de tipo detentivo o de otros tipos; proceso sería solo el procedimiento dirigido a limitar la libertad personal para tutelar bienes penales fundamentales”.

Ele (FERRAJOLI, 1992, p. 10) ainda entende que se deve efetuar uma redução quantitativa de bens jurídicos tutelados pelo direito penal, inclusive a tutela da administração pública, defendendo o princípio da ofensividade pessoal, voltada para tutelar somente a lesão do indivíduo em carne e osso.

Complementa Ferrajoli (1992, p. 11) dizendo:

En la medida en que no existe ni una persona identificable con el Estado, ni mucho menos un bien o un valor asociable con ella en cuanto tal, estos delitos (frecuentemente configurados en términos vagos y valorativos y por ello también em contraste con el principio de estricta legalidad) están en su mayor parte privados de objeto y por ende de razón de ser.

Nessa esteira, depreende-se que Ferrajoli defende um direito penal mínimo com a máxima redução possível da intervenção estatal. Corrobora tal ensinamento, portanto, com a busca de, diante de uma situação em que uma medida não penal é suficiente, descabe se valer dos mecanismos penais de repressão.

Elena Larrauli (2000, p. 5), por sua vez, defende que um comportamento que se quer demonstrar repulsa deve a rejeição ser fundamentalmente restauradora, vetando, por isso, penas desumanas como a prisão e, ao mesmo tempo, buscando uma justiça mais democrática e participativa para a vítima. Ela compartilha da preocupação básica de Ferrajoli em submeter o poder punitivo estatal a controles legais estritos, mas entende que a prisão viola os direitos humanos.

Também é relevante pontuar que, diante de uma profusão de penas encarceradoras, há uma população carcerária crescente. Assim, quanto menos tipos penais que preveem a cadeia como sanção, melhor para a redução de gastos estatais com a manutenção de presídios.

Roger Matthews (2015, p.28) expõe que, de acordo com a Unidade de Exclusão Social (Social Exclusion Unit, 2002), sobre “redução de reincidências por ex-prisioneiros”, expressa o ponto de vista de que, embora a prisão possa ser justificada para infratores graves, violentos e persistentes, para muitos daqueles atualmente presos, o encarceramento serve para compor uma história de exclusão.

Ele (MATTHEWS, 2015, p. 28) também aponta que propostas recentes de limitar o tamanho da população carcerária inclui a excarceração de infratores que cumprem penas de até 12 meses, a expansão dos programas de livramento antecipado e a introdução da detenção intermitente. Há uma ênfase formal contínua em usar a prisão como último recurso, quando todas as outras opções de fixação da pena tiverem sido esgotadas.

Portanto, mais razão ainda há em se afastar o tipo penal quando existem mecanismos, alternativos à prisão, por exemplo, adequados para sancionar o agente infrator.

A própria sociedade, segundo Matthews (2015, p. 39), defende medidas mais brandas para o acusado. Ele constata, assim, é a não confirmação de que há uma maior busca por punitividade. Ao contrário, o que se constata é uma maior tolerância e a busca por medidas sancionatórias proporcionais e adequadas para os delitos.

Destarte, deve-se realizar uma análise e interpretação conjunta dos institutos penalizadores, com vistas a tornar mais racional a persecução e a aplicação de sanções, haja vista que somente diante do respeito às garantias constitucionais do acusado, principalmente a observância da ultima ratio do direito penal, é que se pode conferir a efetivação desses valores, na busca por uma sociedade, de fato, justa e livre.

Relevantes os ensinamentos de Antônio Suxberger (2006, p. 107) acerca da função de um direito penal:

A função de um direito penal moderno consiste na realização de uma síntese entre o Estado de Direito e uma prevenção especial ressocionalizante, por um lado, e as exigências imprescindíveis da prevenção geral, por outro. A política criminal, concebida a partir de uma doutrina dos fins das penas, dirige-se igualmente à determinação também do tratamento da dogmática jurídico-penal.

Como visto, a pena só encontra compatibilidade com a ordem constitucional quando ela deixa de ser apenas uma medida de castigo, de natureza meramente retributiva, e passa a ser, para o acusado e para a sociedade, uma medida de prevenção geral, voltada a evitar que o acusado cometa novos delitos, e especial, voltada para que os membros da sociedade também se sintam repelidos a cometer condutas desviantes da ordem legal.

E a liberdade, na ordem jurídico brasileira, possui status constitucional de direito fundamental. Assim, é necessário robusta legitimação para cerceá-la, sendo o encarceiramento a última medida cabível, quando outros meios não são suficientes.

É nessa linha que, diante de irregularidades menos graves, em comparação a um homicídio ou estupro, por exemplo, em que há uma maior repugnância social, não há razão de ser a aplicação de prisão como sanção, mormente quando há outras alternativas suficientes para apenar o agente faltoso, como é o caso de irregularidades cometidas em uma licitação.

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Sobre o autor
Alexandre Santos Sampaio

Advogado. Mestre em Direito pela Uniceub - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAMPAIO, Alexandre Santos. A (des)necessidade da tipificação penal de condutas cometidas em processos licitatórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5570, 1 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62941. Acesso em: 25 abr. 2024.

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