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O erro de proibição direto como fator de relativização do conhecimento obrigatório da lei penal

O erro de proibição direto como fator de relativização do conhecimento obrigatório da lei penal

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Expõe o instituto jurídico do erro de proibição direto e seu reflexo que relativiza a ficção legal do conhecimento obrigatório da lei por todos, com foco na aplicação do princípio da culpabilidade, consubstanciando-se na avaliação dos pressupostos da potencial consciência da ilicitude na estrutura da teoria do delito.

Resumo:O presente artigo científico expõe e revisa o instituto jurídico do erro de proibição direto e seu reflexo que relativiza a ficção legal do conhecimento obrigatório da lei por todos, com foco na aplicação do princípio da culpabilidade, consubstanciando-se na avaliação dos pressupostos da potencial consciência da ilicitude na estrutura da teoria do delito. Por outro lado, será demonstrado que a figura do erro de proibição direto, segundo alguns doutrinadores, representa a exceção para o ordenamento jurídico, onde a presunção do conhecimento da lei é a regra. Por fim, explora-se também o reflexo de tal conflito no processo, com a explanação da Síndrome de Dom Casmurro no contexto do julgamento do erro de proibição, e a necessidade da efetiva absolvição do réu que não possuía ao tempo do fato o conhecimento profano da norma diante da relativização do conhecimento obrigatório dela.

Palavras-chave: Teoria do Delito – Erro de Proibição Direto – Relativização do conhecimento obrigatório – Não-culpabilidade – Justiça Penal.


1 INTRODUÇÃO

O tema encontra-se relacionado com a necessidade de analisar-se os conceitos do conhecimento da lei em sentido estrito e o conhecimento da ilicitude. Conforme será exposto, o conhecimento obrigatório da lei é mera ficção jurídica que não pode ser alçada como intangível ante a necessidade de se inocentar determinado indivíduo totalmente ignorante quanto ao conteúdo de determinada norma. Tal ignorância é comum em regiões mais afastadas dos centros urbanos, onde ainda impera a força dos costumes e tradições hereditárias, sobretudo, para indivíduos de idade mais avançada, podendo ser constatada também nos atos de alguns estrangeiros e até mesmo pessoas com maior conhecimento cultural que, diante da cada vez maior inflação normativa do Direito Penal não possuem o conhecimento do caráter ilícito de certos tipos incriminadores.

O estudo da presente temática é indissociável de uma análise da teoria do crime, que em sua visão analítica se desdobra em três substratos, concentrando-se aqui no substrato da culpabilidade, no seu elemento da potencial consciência da ilicitude, e mais precisamente em uma subdivisão dela, que é o erro de proibição direto.

No que se concerne a aplicabilidade do erro de proibição direito no caso concreto, cabe ressaltar a necessidade do uso de elementos de interpretação processuais que extrapolem a mera consideração literal da lei, a fim de que o julgador consiga captar com perspicácia e sensibilidade o verdadeiro nível de conhecimento da norma que possuía determinado autor de delito no momento do fato.

A metodologia utilizada referenciou-se especialmente em estudos bibliográficos e pesquisa em sítios jurídicos de informação via rede mundial de computadores.


2 O ERRO DE PROIBIÇÃO DIRETO NA TEORIA DO DELITO

2.1 Conceito analítico do crime

A doutrina pátria na atualidade preleciona três conceitos principais de delito, quais sejam, conceito formal, material e analítico, sendo que, segundo Luiz Flávio Gomes (2007, pg. 164) “delito, do ponto de vista puramente formal, é o que o Estado descreve literalmente na lei como tal”, e conclui o autor que tal colocação é insuficiente, e não atinge toda a extensão de análise do delito. O conceito material se caracteriza como um filtro para o legislador selecionar os bens jurídicos mais relevantes, sendo também definido por GOMES (2007, pg. 166) como “fato ofensivo desvalioso a bens jurídicos muito relevantes”, apresentando-se, tal qual o conceito formal, insuficiente para uma análise mais completa acerca do estudo da estrutura do delito. O conceito analítico apresenta-se como sendo o mais apropriado para o desdobramento de análises mais empíricas acerca do delito.

Embora se reconheça que o crime é um todo unitário, o sistema analítico atualmente o decompõe em partes que são analisadas isolada e subsequentemente. À luz destes elementos, no que tange à conceituação analítica de crime, admite-se alguns principais entendimentos doutrinários a respeito, sendo o posicionamento que aponta para a Teoria Tripartida finalista o que fora aqui adotado. Os substratos da fragmentação analítica que embasam o presente estudo são: Fato Típico ou Tipicidade; Fato Antijurídico, Antijuridicidade ou Ilicitude; e Fato Culpável ou Culpabilidade, sendo este último o ponto de partida para a análise do erro de proibição direto ora explorado.

2.2 Culpabilidade

Conforme supracitado, o conceito analítico tripartido do delito leva em consideração a análise dos substratos da tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade. A tipicidade apresenta-se como o primeiro substrato do crime, e trata-se da adequação de um determinado comportamento a um modelo que descreve as condutas proibidas. Após verificar-se a subsunção do fato a algum tipo penal, é preciso avaliar-se a sua ilicitude, pois em casos excepcionais, a lei autoriza ao agente a prática da conduta típica, por exemplo, em legítima defesa. A antijuridicidade ou ilicitude é, desse modo, o segundo substrato do delito, e apresenta-se na relação de contradição entre a conduta típica e a ordem jurídica. Sua relevância consiste em dar concretude ao injusto penal, indiciado pela tipicidade.

Após a análise subsequente dos dois substratos anteriores, chega-se então ao substrato da culpabilidade, que é o terceiro substrato na estrutura analítica da teoria do crime. Segundo Rogério Greco (2016, pg.481), ela é o juízo de reprovação pessoal que se realiza sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente. Ele cita Von Liszt, o qual arrematou que pelo aperfeiçoamento da doutrina da culpa que se mede o progresso do direito penal.

Cabe ressaltar também a culpabilidade como princípio basilar do Direito Penal, que remonta ao brocardo “nullum crimen sine culpa”, ou seja, a ninguém será imputado crime ou pena sem que a conduta criminosa seja reprovada em um juízo de culpa.

A elaboração da teoria do delito por Ernest Von Beling, difundida através da obra Die Lehre Vom Verbrechn (A teoria do delito), em 1906, impulsionou algumas teorias da culpabilidade que desenvolveram-se com o tempo. Seguem descritas a seguir, seguindo-se as premissas de GRECO (2016, pg. 484 e ss.), três das principais e que mais se relacionam com o assunto tratado no presente estudo, cabendo mencionar além delas, a teoria social da ação e o funcionalismo, que apesar de ostentarem certo destaque histórico, afastam-se da temática aqui revisada:

Teoria Psicológica: Dolo e culpa eram espécies de culpabilidade, perfazendo a análise subjetiva do delito. Culpabilidade era o vínculo psicológico que ligava o agente ao fato ilícito por ele cometido/ Teoria normativa: introduziu a ideia de valor na teoria do delito. A culpabilidade deixou de ser eminentemente psicológica e passou a ser também normativa. A base do sistema passa a ser a reprovabilidade como juízo de desaprovação jurídica do ato que recai sobre o autor, materializada na exigibilidade da conduta conforme o direito/ Teoria normativa pura: para essa teoria, a ação humana é essencialmente final. O homem pode prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis de sua atividade, estabelecendo fins diversos e dirigir sua atividade, conforme o seu plano, a consecução desses fins. Partindo do pressuposto de que toda conduta humana – lícita ou ilícita – pressupõe uma finalidade, o dolo e a culpa não poderiam continuar a ser estudados em sede de culpabilidade. O dolo deixou de ser normativo e passou a ser natural. Culpabilidade passa a ser composta por: imputabilidade; potencial consciência da ilicitude do fato; e exigibilidade de conduta diversa. Assim, a culpabilidade compõe-se somente por elementos de ordem normativa, por isso, a teoria final é reconhecida como uma teoria normativa pura.”

2.2.1 O erro na teoria psicológica

O erro na teoria psicológica era subdividido em erro de fato e erro de direito. O erro de fato seria o erro do agente que recaísse sobre os requisitos fáticos ou descritivos do tipo. Assim por exemplo, o agente que mata o companheiro de caçada, pensando ser este um animal, atuaria sob erro de fato, porque o erro recai sobre um elemento descritivo do tipo, a saber, “alguém”, visto que dispensa juízo de valor para ser conhecido pelo autor; por outro lado, o agente que subtrai coisa alheia, pensando ser sua, não agiria sob um erro de fato, porque o erro recai sobre um elemento normativo do tipo, a saber, “coisa alheia”, haja vista ser necessário um juízo de valor (conceito de propriedade) preexistente em outra norma jurídica, constituindo na hipótese, um erro de direito.

2.2.2. O erro na teoria normativa-psicológica

Com a doutrina do dolo normativo ou “dolus malus” surgem as teorias do dolo: a teoria estrita e a teoria limitada, que ora serão analisadas. Conforme visto, a consciência da ilicitude, sob a ótica da teoria psicológico-normativa, é considerada como parte integrante do dolo e não como elemento autônomo da culpabilidade. O fundamento invocado é o de que o agente só pode atuar de forma dolosa se tiver consciência de que sua conduta é contrária ao direito; se ao invés, atuar sem essa consciência, não quer praticar o injusto penal.

A consequência lógica e necessária dessa concepção é dar um tratamento unitário ao erro (causa excludente do dolo), não se fazendo mais mister considerar a antiga dicotomia de erro de fato e erro de direito. Assim, em ambas as teorias do dolo, se o erro for inevitável, não há responsabilidade penal, e se for evitável, admite-se a condenação por culpa. O inconveniente desta teoria unitária do erro é que torna algumas questões bastante complicadas, porque com semelhante teoria, segundo MOTTA (2009, pg. 42) “teríamos que admitir algo tão absurdo ou inexplicável como a tentativa culposa”.

Na concepção da teoria estrita do dolo, se o erro do agente for inevitável, quer o erro incida sobre elementos constitutivos do tipo, quer sobre a proibição, não há dolo com a consequente exclusão da culpabilidade, não havendo responsabilidade penal. Se o erro do agente for culpável, ele responderá por crime culposo, desde que haja previsão legal, se não houver, o autor ficará impune.

A teoria ilimitada se contrapõe à referida impunidade, na medida que introduz o assim chamado “estado de inimizade ao direito”, como fator corretor da impunidade. De acordo com esta teoria, o erro evitável continua a excluir o dolo, deixando subsistente a responsabilidade a título de culpa, exceto se o erro derivar de uma cegueira jurídica ou desprezo pelo direito, admitindo-se nesse caso a responsabilidade a título de dolo, como se fosse um atuar doloso, ou seja, sem consciência de sua ilicitude, mas com culpa na formação do caráter, fato que para alguns autores viola o princípio da culpabilidade, pois não enseja a punição do autor pelo que ele faz, mas sim, pelo que ele é, resultando em um Direito Penal do autor.

Tal concepção, de que o objeto da potencial consciência deve ser definido como a possibilidade de obter determinada informação do caráter ilícito de certos comportamentos, prevalece para alguns até os dias atuais para fundamentar o caráter absoluto da obrigatoriedade do conhecimento da lei, ou seja, não ter o conhecimento potencial da ilicitude sugeriria um total afastamento dos termos conhecimento da lei e desconhecimento da ilicitude, do ponto de vista de que abstratamente, todo e qualquer indivíduo civilizado teria em tese, a possibilidade de obter as informações atinentes a ilicitude de determinados comportamentos sociais.

2.2.3. O erro na teoria normativa pura

As teorias da culpabilidade que surgiram com a teoria finalista da ação removeram a consciência da ilicitude do âmbito do dolo (dolo natural). Em consequência, as teorias da culpabilidade não darão ao erro o tratamento unitário dado pelas teorias do dolo, fazendo distinção entre erro de tipo e erro de proibição, sendo que, o primeiro exclui o dolo e, consequentemente, a tipicidade, enquanto o erro de proibição exclui a consciência da ilicitude, e consequentemente, a culpabilidade.

Como explica MOTTA apud Diego Manuel Lúzon Peña (2009, pg. 48):

“Esta teoria sustenta que o erro de proibição não exclui o dolo, pois este não requer consciência da antijuridicidade, senão que só afeta a culpabilidade, excluindo-a quando o erro é invencível, e atenuando-a quando o erro de proibição é vencível para o sujeito. Por isto neste erro vencível, não se responde por infração culposa, senão por delito doloso, porém com uma importante atenuação devido à diminuição da culpabilidade”.

Sendo assim, a teoria estrita da culpabilidade afirma que todo erro sobre a ilicitude do fato, inclusive o erro sobre a existência, os limites e os pressupostos fáticos de uma causa de justificação, consiste em erro de proibição, atingindo a culpabilidade.

Já a teoria limitada da culpabilidade devia-se da anterior quanto ao tratamento dado ao erro nas discriminantes putativas (ou erro de tipo permissivo), relegando a tal circunstância ao erro de tipo. O item dezessete da exposição de motivos da nova parte geral do Código Penal aponta a teoria limitada como sendo a adotada no Brasil.

2.3. Potencial Consciência da Ilicitude

Na teoria normativa pura a culpabilidade possui como elementos normativos a imputabilidade, a potencial consciência sobre a ilicitude do fato e a exigibilidade da conduta diversa. No entanto, a didática do estudo em questão exige um aprofundamento no elemento da potencial consciência da ilicitude, que se desdobra no erro de proibição direto, no indireto e no mandamental, os quais serão elucidados em capítulo próprio para tal finalidade.

A potencial consciência da ilicitude encontra-se descrita no Art. 21 do Código Penal Brasileiro com a seguinte rubrica:

“O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.”

Ela possui natureza normativa, e não psicológica, pois não se avalia se o indivíduo de fato possuía a consciência da ilicitude de seu ato no momento de sua execução, mas sim, vislumbra-se a possibilidade que ele teria de ter acessado a informação já adquirida que o afastaria de determinado comportamento socialmente indesejado.

Quanto a isto, GRECO apud Cesar Roberto Bitencourt (2016, pg. 509) aduz que:

“O erro sobre a ilicitude do fato ocorre quando o agente, por ignorância ou por uma representação falsa ou imperfeita da realidade supõe ser lícito o seu comportamento. Não se trata de uma consciência técnico-jurídica, formal, mas da chamada consciência profana do injusto, constituída do conhecimento da antissocialidade, da imoralidade ou da lesividade de sua conduta, e esse conhecimento provém das normas de cultura, dos princípios morais, éticos, dos conhecimentos adquiridos na vida em sociedade.

Desmembrar o objeto da potencial consciência da ilicitude é tarefa árdua, e não é das mais exploradas pela doutrina brasileira no que se concerne a teoria do delito. Porém, digno de menção é o posicionamento de CIRINO DOS SANTOS (2008, pg. 310), o qual preleciona a existência de ao menos três grupos de teorias para delimitar o objeto da potencial consciência, quais sejam: tradicional, moderna e intermediaria, sendo que, dentro de cada uma existem algumas posições diversas. Num primeiro grupo se encontram os autores que defendem ser necessário para configurar o conhecimento do injusto apenas a consciência de que a conduta está em contradição com a ordem moral ou com os valores sociais, não sendo necessária a consciência de contrariedade ao ordenamento jurídico e nem da punibilidade da conduta. Em posição oposta estão os autores que defendem ser necessário o conhecimento da punibilidade da conduta. Alguns defendem que é necessário o conhecimento da punibilidade penal específica, ao passo que outros sustentam ser necessária a consciência de que a ação infringe uma norma sujeita genericamente a uma sanção, não necessariamente, portanto, penal. Por fim, num terceiro grupo, em posição intermediária, encontram-se os autores que defendem que conhecer a imoralidade do comportamento seria insuficiente e conhecer a punibilidade da ação seria desnecessário. Assim, o objeto da consciência do injusto seria o conhecimento de contrariedade ao ordenamento jurídico, mais precisamente, da lesão a um bem juridicamente protegido.


3 PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA LEI E A SEGURANÇA JURÍDICA

O princípio da legalidade apresenta-se como um relevante sustentáculo do direito brasileiro, e está previsto no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, que assim dispõe: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Sua existência fundamenta o primado da lei ante a imposição da força, e conduz à segurança jurídica.

O princípio da obrigatoriedade da lei é condição de eficácia do princípio da legalidade, e prevê que há presunção absoluta de que o destinatário da lei a conhece e não pode se escusar de seu cumprimento alegando ignorância ou erro. Assim está disposto no Art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, Decreto-Lei nº 4.657 de 1942.

A doutrinadora Jô de Carvalho (2010, pg. 7), durante pesquisa relacionada a relativização do conhecimento obrigatório da lei, relatou que uma vez em vigor, todas as pessoas, sem distinção, devem cumprir a lei, inclusive os incapazes, ressaltando o supracitado caráter absoluto de tal presunção jurídica. O trabalho em questão traçou também um paralelo entre as teorias relacionadas ao conhecimento obrigatório da lei, sendo de especial interesse para o presente estudo o realce para a teoria da ficção jurídica:

“Para uns, trata-se de uma presunção jure et jure, legalmente estabelecida (teoria da presunção), a qual presume que a lei, uma vez publicada, torna-se conhecida de todos. Outros defendem a teoria da ficção jurídica, ou seja, é uma inverdade de que a lei possa se tornar conhecida por todos, é irreal. Há ainda os adeptos da teoria da necessidade social, segundo a qual a norma do art. 3.º da LINDB é uma regra ditada por uma razão de ordem social e jurídica, sendo, pois, um atributo da própria norma. É a mais aceita. Sustenta que a lei é obrigatória e deve ser cumprida por todos, não por motivo de um conhecimento presumido ou ficto, mas por elevadas razões de interesse público, para que seja possível a convivência social. Aludido princípio encontra exceção no art. 8.º da Lei das Contravenções Penais, que permite ao juiz deixar de aplicar a pena se reconhecer que o acusado não tinha pleno conhecimento do caráter ilícito do fato.” (JÔ DE CARVALHO, 2010, pg. 8).

A obrigatoriedade do conhecimento da lei fundamenta a segurança jurídica do Estado Democrático de Direito, ao lado de outros fundamentos constitucionais, sendo que, tal conceito de segurança jurídica, que se diga de passagem sofreu diversas alterações ao longo do tempo, é condição basilar de existência da sociedade civilizada nos moldes atuais, haja vista que sem a presunção de que todos conhecem a lei, qualquer um poderia alegar o desconhecimento dela para se eximir de seu cumprimento, resultando em anarquia; e aí encontra-se o cerne do presente artigo: diferenciar-se o real desconhecimento profano da lei da mera alegação de desconhecimento.

A lei penal arrematou a obrigatoriedade do conhecimento da norma no art. 21 do Decreto-Lei nº 2848/40, Código Penal, com a seguinte rubrica: “Erro sobre a ilicitude do fato- O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena” (...). Vislumbra-se em um primeiro momento que a leitura fria do artigo de lei sugere que o conhecimento da lei e da ilicitude são conceitos totalmente diferentes um do outro, e que o conhecimento da lei é sempre inescusável no âmbito penal, no entanto, há posições doutrinárias antagônicas quanto a tal interpretação, as quais serão expostas nos capítulos subsequentes.


4 TIPOS DE ERRO DE PROIBIÇÃO E O ERRO DE PROIBIÇÃO DIRETO COMO FATOR DE RELATIVIZAÇÃO DA OBRIGATORIEDADE DA LEI

Antes de explanar-se os assuntos que se relacionam com o erro de proibição direto em comento, serão descritos a seguir de forma sucinta as outras modalidades de erro de proibição, quais sejam o erro de proibição indireto e o mandamental.

I - Erro de proibição indireto:

O erro de proibição indireto (discriminante putativa por erro de proibição) trata-se de uma inferência enganosa de uma causa de justificação, ou seja, o autor se engana quanto a existência ou os limites da proposição permissiva. Exemplo clássico oferecido pela doutrina é o do caso do marido traído em algumas regiões do país onde ainda se acredita haver a legítima defesa da honra, quando ele vem a matá-la com esse intuito, ou seja, age acreditando estar amparado por uma excludente de ilicitude. Outra situação que exemplifica o erro de proibição indireto é a legítima defesa putativa, onde o indivíduo imagina estar em legítima defesa, reagindo contra uma agressão inexistente.

Caso o indivíduo se engane quanto uma situação fática que, se existisse, tornaria a conduta legítima, o erro seria de tipo, ou seja, não se trataria de desconhecimento da lei, mas sim, no desconhecimento de que se pratica um tipo penal. Como exemplo tem-se o caso de alguém que, conhecendo a ilicitude do crime de furto, apanha um objeto de outrem pensando ser seu, portanto, confunde-se de modo que não sabe estar transgredindo a lei.

II - Erro de proibição mandamental

O erro de proibição mandamental se desdobra sobre a imposição legal contida nos crimes omissivos, sejam eles próprios ou impróprios. É preciso diferenciar-se o erro que recai sobre os elementos objetivos dos tipos omissivos, que atinge o tipo penal, daquele que recai sobre o mandamento, que atinge a culpabilidade. Caso ele recaia sobre ação objetiva de garantidor, o desconhecimento leva a ocorrência do erro de tipo. Caso o erro recaia sobre o dever de cuidado oriundo dessa posição, o erro será de proibição.

GRECO (2016, pg. 512) expõe dois exemplos para ilustrar mais claramente tal distinção no erro de proibição mandamental:

“Exemplo de erro de tipo: o banhista vê criança se afogar em uma lagoa e não presta socorro porque não sabia nadar, mas na verdade, a profundidade da lagoa permitia o socorro se ele permanecesse em pé. Exemplo de erro de proibição: o banhista que, podendo prestar socorro àquele que se afogava, não o faz porque, em virtude da ausência de qualquer vínculo pessoal com ele, acreditava não estar obrigado a isto.”

III - O erro de proibição direto e a relativização do conhecimento obrigatório da norma

O erro de proibição direto recai sobre o conteúdo proibitivo de uma norma penal. O erro é a visão equivocada dos fatos, ou seja, a pessoa vê a coisa de maneira diversa de como ela é. Para alguns autores ele difere da ignorância, quando ocorre a falta de conhecimento do fato. Essa diferenciação não tem prosperado mais na ciência jurídica, onde tem crescido a aceitação da tese unificadora, conforme preleciona GOMES (2007, pg. 590), “no nosso Código Penal, erro e ignorância quase sempre se equivalem; assim, quando ele faz referência ao erro, está também referindo-se a ignorância”. No erro de proibição direto, o agente realiza uma conduta proibida, por desconhecer a norma proibitiva, ou por conhecê-la mal, ou por não compreender o seu verdadeiro âmbito de incidência, ou seja, ignora o conteúdo da lei. Para ilustrar tal representação, GRECO (2016, pg. 510) cita como exemplo:

“Um hipotético turista holandês que, ao comprar um pacote turístico para o Brasil, após assistir a uma fita promocional, na qual percebeu que um grupo de pessoas fumava um cigarro enrolado numa palha, dando a entender que se tratava de maconha, quando na verdade não era, acredita que no Brasil fosse permitido seu uso, tal como ocorre em algumas partes da Holanda. Ao descer do avião, ele acende um cigarro de maconha e é preso em flagrante. O sujeito simplesmente não sabia que sua conduta era ilícita, o que no caso em questão redunda no mesmo que não conhecer a lei em seu sentido estrito, fato que colide frontalmente com o caráter absoluto da presunção da obrigatoriedade da lei.”

Ademais, a leitura literal do já mencionado artigo 21 pode induzir que o Código Penal almejou distinguir o desconhecimento da lei da falta de consciência sobre a ilicitude do fato, ao asseverar que o primeiro é inescusável e o segundo, se inevitável, isenta de pena. Enquanto a lei revestir-se-ia de um aspecto técnico-jurídico, ilicitude seria a relação de contrariedade que se estabelece entre a conduta humana voluntária do agente e sua consciência de que age erradamente. Porém, parte da doutrina pátria já aponta que não há motivo para afastar os referidos conceitos em sentidos diametralmente opostos, conforme elucida GRECO (2016, pg.509):

“Em que pese conhecermos a distinção entre lei e ilicitude, muitas vezes aquilo que chamamos erro de proibição direto, nas hipóteses em que o agente erra sobre o conteúdo proibitivo da norma, acabará, como consequência última, desembocando no desconhecimento da própria lei, por mais que nos esforcemos tecnicamente para tentar entender o contrário.”

A jurisprudência pátria acertadamente tem aplicado o instituto no caso concreto, apesar de ainda haver certa confusão conceitual relacionado ao assunto conforme pode-se depreender no recurso apresentado no seguinte caso concreto apresentado em artigo virtual apresentado por GOMES:

“Processo nº:0018477-40.2009.4.01.3800/MG Data de julgamento: 19/07/2016 - A 3ª turma negou provimento ao recurso do Ministério Público e manteve a sentença da 4ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais e a absolvição dos réus, que acreditavam agir dentro da legalidade ao explorar máquinas caça-níqueis dentro da Central de Abastecimento – Ceasa/MG. O ato foi por eles assumido, embora tenha ficado provado que desconheciam serem as máquinas estrangeiras e a importação proibida no Brasil. Apesar de os acusados terem assumido o uso das máquinas, para a defesa, eles não cometeram crime, pois aqueles jogos eram autorizados na Central de Abastecimento. Portanto, acreditavam estar agindo dentro da legalidade, conforme relatado no processo: “Contexto probatório indica que os réus agiram sob a falsa consciência da licitude da exploração comercial das máquinas caça-níqueis, sobretudo porque a Loteria do Estado de Minas Gerais, por meio de diversas Resoluções, autorizava a exploração de tal atividade no âmbito da Central de Abastecimento–CEASA/MG”. O juízo da 4ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais inocentou os réus entendendo que “embora comprovadas a materialidade e a autoria delitivas, é razoável considerar que os acusados realmente desconheciam o caráter ilícito de suas ações, sendo inevitável a ignorância, razão pela qual ficam isentos da sanção abstratamente cominada ao crime descrito no art. 334, 1º, c, do Código Penal, a teor do disposto no art. 21 do mesmo diploma legal”. O Ministério Público não concordou com a sentença e recorreu ao Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Nas razões da apelação, o MP argumenta “que os réus tinham plena consciência da ilicitude de seus atos, por possuírem em seus estabelecimentos as máquinas ‘caça-níqueis’, cuja importação e exploração sempre foi vedada no Brasil. Afirma que, ainda que não tivessem ciência do tipo penal incriminador, não se poderia escusar tal desconhecimento, pois tinham possibilidade de alcançar essa informação pela própria atividade que exerciam. Para o relator do processo no TRF1, juiz federal convocado Iran Esmeraldo Leite: “o cenário fático contido nos autos demonstra que não possuíam consciência do caráter ilícito da conduta e não agiram com o dolo do tipo, o que atrai a incidência do instituto de erro de proibição, conforme compreendeu o magistrado de primeiro grau.” A terceira turma negou, por unanimidade, o recurso do MP e manteve a absolvição de réus.

O desenvolvimento do tema em questão envolve também a discussão quanto aos conceitos de ignorância e erro, sendo que, a ignorância é um estado negativo, isto é, a absoluta ausência de conhecimento. O erro é um estado positivo, é dizer, a existência de um conhecimento falso de um fato ou norma jurídica.  Munhoz Netto, citado por MOTTA (2009, pg. 62), aduz que “enquanto a ignorância apresenta-se desacompanhada de qualquer percepção da realidade, o erro é determinado por uma percepção desconforme àquela”.

 Ainda segundo MOTTA (2009, pg. 63):

“Não obstante terem significados distintos, a doutrina é pacífica em aceitar a equivalência desses dois termos com relação aos seus efeitos jurídicos: ambos incidem sobre a representação dos fatos, impedindo uma consciente motivação da vontade, viciando sua formação e conduzindo o agente a praticar conduta diversa da querida se tivesse uma perfeita representação da realidade. No que concerne a consciência da ilicitude, tanto a ignorância quanto o erro, obstam uma livre decisão sobre lícito e ilícito.”

Para alguns autores, a equivalência dos termos ignorância e erro não redunda exatamente na equivalência dos termos ignorância da lei e erro de proibição, pois a ignorância da lei referir-se-ia ao fato do agente desconhecer em abstrato o preceito legal, circunstância que não impede que ele saiba ser o seu comportamento reprovável. O erro de proibição referir-se-ia ao fato do agente desconhecer a reprovação de sua conduta, ou seja, não conhecer que atua contra o direito.

Para estes, existe então uma clara distinção entre o conhecimento da lei e o da ilicitude, ou seja, ser ignorante quanto a lei não impede que o indivíduo possa atuar em desconformidade com o direito, no entanto, o que se pretende demonstrar aqui é que, nas hipóteses em que houver o desconhecimento da atuação em desconformidade com o direito, naturalmente haverá um desconhecimento da lei, posto que via de regra, aquilo que é ilícito, é também ilegal, ou seja, a ocorrência do erro de proibição direto naturalmente representa um desconhecimento também da lei, colidindo frontalmente com a natureza absoluta atribuída por alguns ao conhecimento obrigatório da lei. É fácil supor que muitos dos que possuem a representação da ilicitude de determinado comportamento não venham a conhecer os meandros legais que o envolvem, mas o contrário apresenta-se bastante difícil de ocorrer, ou seja, alguém possuir o conhecimento técnico-jurídico de determinada norma e desconhecer a ilicitude de fato relacionado a ela.

Ao estabelecer que a ignorância da lei é inescusável, o Código Penal Brasileiro apenas expõe um imperativo de ordem prática, pois o ordenamento jurídico não poderia subsistir se as leis não se tornasse obrigatórias com a sua publicação, visto que qualquer pessoa poderia alegar em sua defesa que deixou de cumprir determinado preceito legal porque não o conhecia. Apesar de considerar inescusável o desconhecimento dos preceitos legais, a lei penal brasileira explicitamente reconhece força atenuadora da pena à ignorância da lei (art. 65, II, CP). A Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688/41), por seu turno, autoriza o perdão judicial no caso de escusável ignorância da lei (art. 8º), demonstrando o claro interesse do legislador de que tal premissa não se revista de caráter absoluto.

Em conformidade com o que é apresentado neste presente artigo, MOTTA (2009, pg. 67) assinala que “a regra que considera inescusável o não conhecimento da lei é, no ordenamento jurídico-penal, mitigada pelo reconhecimento do erro sobre a ilicitude do fato”. Ele cita ainda Juarez Cirino dos Santos, que afirma que “a sistematização do erro de proibição na lei penal brasileira se baseia na premissa de que a regra da inescusabilidade do desconhecimento da lei é limitada pelas exceções representadas pelo erro de proibição inevitável”.

Por fim, arremata MOTTA (2009, pg. 67) que:

“A interpretação de que a regra da inescusabilidade do desconhecimento da lei não prevalece sobre as exceções do erro de proibição inevitável pode extinguir a tensão entre política criminal e princípio da culpabilidade, em matéria de erro de proibição direto, sob a modalidade de desconhecimento da norma ou da lei penal, na literatura e jurisprudência brasileiras. Se o Direito Penal do moderno Estado Democrático de Direito assenta no princípio da legalidade, expresso na formula “nullum crimen sine lege”, que fundamenta a incriminação de condutas, e no princípio da culpabilidade, expresso na formula “nullum crimen sine culpa”, que fundamenta a responsabilidade e a criminalização individual, então a lei ordinária não pode, em nenhuma hipótese, contrariar esses princípios e, portanto, o princípio da culpabilidade não pode ser cancelado para garantir a eficácia da lei penal, como pretende um setor da literatura penal brasileira. Não é o princípio da culpabilidade que deve se adequar à lei, mas a lei que deve se adequar ao princípio da culpabilidade, sob quaisquer critérios de interpretação”.

4.1 A INFRAÇÃO NORMATIVA COMO MECANISMO PROPULSOR DO ERRO DE PROIBIÇÃO DIRETO

A presunção absoluta de que todos conhecem a lei colide com a realidade social brasileira, pois há no país um considerável número de pessoas com baixo nível de instrução, as quais deparam-se com textos normativos que apresentam uma linguagem jurídica geralmente complexa.

Carvalho (2010, pg. 15), elucida que:

“Mesmo entre os acadêmicos do direito, não há, nem mesmo entre os doutrinadores mais aperfeiçoados, quem seja capaz de conhecer por inteiro o extenso universo das leis municipais, estaduais, federais ou dos tratados internacionais ou convenções, sem falar nas cotidianas normas infralegais emitidas pela Administração Pública, como portaria, pareceres normativos, resoluções, entre outras.”

Não se pode negar a relevância que a presunção do conhecimento da lei tem para o ordenamento jurídico, ao avaliar-se sua natureza jurídica deve considerar que algumas pessoas muitas das vezes não tem acesso às informações técnicas, seja pessoalmente ou por intermédio de um especialista no Direito.

Encarar a obrigatoriedade em questão como um postulado absoluto viola o princípio da igualdade substancial, intrínseco ao valor da dignidade da pessoa humana, abalando um dos princípios estruturantes da Magna Carta. Pode-se até deduzir que a construção do nosso Estado Democrático de Direito, à luz da Constituição Federal, tem como fundamentos a dignidade humana, a igualdade e a solidariedade social.

Igualdade que deve ser conjugada com o princípio da diversidade, uma vez que as pessoas não detêm idênticas condições sociais, econômicas ou psicológicas, dando lugar a uma igualdade substancial, em respeito às diferenças existentes nos substratos sociais.

4.2 Valoração do paralelo na esfera do profano

Segundo CARVALHO (2010, pg. 10), profano é aquele que “não sabe a extensão do que é legal ou ilegal, lícito ou ilícito, cujas concepções são diretamente influenciadas pela classe social, valores éticos, religiosos, espirituais e culturais”.

Quando tal indivíduo atua em comportamento que, embora seja típico e ilícito, não é culpável em virtude do erro de proibição direto, dá-se a valoração do paralelo na esfera do profano.

O ordenamento jurídico brasileiro adotou a teoria limitada da culpabilidade, assim, a falta de potencial consciência da ilicitude traduz-se no erro de proibição em comento. Ressalta-se então o elemento estruturante do conhecimento do injusto como essencial a culpabilidade, sua própria razão de ser, pela imprescindibilidade de o autor saber realmente que o que faz é contrário à norma. CARVALHO apud Cirino dos Santos (2010, pg. 11), aponta que relevante é a questão acerca do que consiste “o substrato psíquico mínimo de conhecimento do injusto para configurar a consciência da antijuridicidade do fato”. Tal substrato psíquico não pode deixar de ser avaliado pelo julgador em sua sentença, exigindo deste uma sensibilidade para captar o real juízo de reprovação do ato do acusado. Neste diapasão, faz-se necessário fazer menção a “Síndrome de Dom Casmurro”, expondo o contexto do julgamento do erro de proibição, que coloca o julgador em uma linha tênue entre a omissão ao absolver alguém que se fez de desentendido e o excesso na punição de outro que não tinha a menor noção do caráter ilícito de seu comportamento.

4.3 Síndrome de Dom Casmurro e o erro de proibição direto no caso concreto

A síndrome de Dom Casmurro possui esse nome por estar relacionada a uma situação semelhante a experimentada por um dos mais conhecidos personagens da literatura brasileira em obra escrita em 1899 por Machado de Assis.

Dom Casmurro é o apelido dado a Bento Santiago, que aos sessenta anos de idade decide revelar seus reveses em uma biografia, cujo foco se concentra em seu romance com Capitu e suas desconfianças relacionadas a infidelidade conjugal. Na história, ele passa a ter a certeza de que ela o traiu com um amigo dele que falecera, sobretudo diante da semelhança física entre o filho que ela deu a luz e o de cujus. As conclusões obtidas por Casmurro se originaram de sua mente, de seus conceitos pré-estabelecidos, e as dúvidas levantadas levaram sua esposa a divorciar-se dele, levando seu filho consigo.

No Direito, conforme artigo virtual publicado por FERREIRA:

“A analogia com a história citada originou uma teoria no processo penal que atribui um desvio da conduta do julgador ao deparar-se com falta de provas suficientes para uma sentença condenatória. O magistrado então, desenvolve quadros mentais paranoicos, como o de Dom Casmurro, e passa a agir de ofício com frequência, solicitando provas em detrimento de outras, encaminhando o processo a um roteiro pré-definido, e acarretando a desvirtuação da presunção de inocência.”

Em relação ao julgamento do erro de proibição direto, o alto grau de análise subjetiva envolvido pode acarretar a Síndrome de Dom Casmurro e à condenação de alguém que não tinha nenhum conhecimento da natureza ilícita do ato cometido, não se podendo olvidar também a possibilidade de que alguém tente se eximir de sofrer determinada sanção legal com a simples alegação de que não possuía o conhecimento do caráter ilícito da norma. Provar-se ou não provar-se que determinado indivíduo tinha ou não tinha a noção de que seu ato cometido era ilícito é tarefa das mais difíceis no processo penal, tão complexa que a doutrina pátria pouco se aventura em discorrer sobre tal circunstância. Todo recurso legal possível deve ser utilizado nesse diapasão, exigindo-se do magistrado e de todo o sistema punitivo do Estado, o máximo de sensibilidade na análise das provas em busca da verdade real, pois trata-se de situação demasiadamente complexa, que representa um dos grandes desafios para o campo acadêmico do Direito contemporâneo.

A análise da Jurisprudência pátria aponta a grande dificuldade contida nos julgamentos envolvendo erro de proibição direto no caso concreto. Segundo MOTTA (2009, pg. 137), em pesquisa atinente aos julgados no país de 1984 a 2004, oitenta por cento dos casos de erro de proibição se dá em acusações por crimes de legislações especiais, pois trata-se de normas menos acessíveis à população, e o mesmo autor expôs nos três julgados a seguir citados, a complexidade, a lógica dedutiva e o nível de subjetivismo utilizados no julgamento em casos de alegação de erro de proibição direto:

Erro de proibição- Estelionato- Fraude contra a Previdência Social- “Para a tipificação do delito de estelionato, é indispensável ação voluntária e consciente determinada à fraudulenta percepção do benefício concedido pela Previdência Social, pois a fraude pressupõe conduta destinada a induzir ou manter em erro o ofendido. A simples omissão da comunicação da morte da outorgante, genitora da ré, pessoa de precária formação cultural, que ignorava a extinção automática e a intransferibilidade do benefício-, não se reveste de conteúdo fraudulento, no caso concreto” ( TRF, AC, Rel. Washington Bolívar, RTFR 105/240) ( MOTTA, 2009,pg. 153)

Estelionato- Seguro-desemprego- Fraude praticada por terceiro- Erro de proibição- “Age por erro quanto à ilicitude de seu comportamento o agente pobre, semi-analfabetizado, que requer, enganado por outrem, o seguro-desemprego, acreditando ter direito, por se achar desempregado. Quem está com fome fica surdo até mesmo à voz de Deus” (TRF- 1ª Reg., AC, Rel. Tourinho Filho, RTJE 141/230) (MOTTA,2009, p. 153)

“Em se tratando de apropriação de coisa achada, se o agente tem condições de saber se a coisa achada é abandonada ou furtada, o erro sobre a ilicitude do fato é evitável, caso em que a sua pena será apenas reduzida, já que a isenção da imposição da reprimenda está reservada para os casos em que o erro é inevitável” (TACrimSP, AP., Rel Luiz Betanho, RJD 24/61) (MOTTA,2009, pg. 153).

Como fora citado anteriormente em outra análise jurisprudência, nota-se na literatura jurisprudencial a ocorrência de uma considerável confusão conceitual no que se concerne ao objeto do julgamento do erro de proibição direto.

Mister se faz aprofundar os estudos acerca da natureza jurídica do erro de proibição e de sua relação com o conhecimento obrigatório da lei, pois tal esclarecimento conceitual pode redundar na absolvição de pessoa cuja a vida não ofereceu oportunidades de reconhecer o caráter ilícito de algum comportamento seu.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto nesse presente trabalho acadêmico, pode-se vislumbrar que, a despeito da presunção de que todos devem conhecer a lei, existe a possibilidade de inocentar-se o indivíduo que não possui o devido conhecimento profano dela. Cabe ressaltar que esse tipo de excludente de culpabilidade encontra-se expresso no Código Penal brasileiro.

Nota-se que o instituto do erro de proibição evoluiu substancialmente até chegar em seu estágio atual, sendo que, recentemente, com a reforma penal de 1984 houve a instituição do erro de proibição direto, ora explorado nesse estudo acadêmico.

Muitos são os argumentos contrários à aplicação do erro de proibição direto, e como um dos mais expoentes, pode ser citado o risco de insegurança jurídica causado por tal aplicação, pois com a relativização da presunção do conhecimento da lei, se beneficia o indivíduo que não buscou conhecê-la, em detrimento daquele que se esforçou para tal. Nesse diapasão, o julgador passa a fazer espécie de análise subjetiva do acusado, correndo-se o risco de que ele não tenha embasamento concreto para suas conclusões.

Foi exposto que tal situação caracteriza a Síndrome de Dom Casmurro no processo penal. Somado a isso se tem o risco de absolvição de indivíduo culpado que se utilize de má-fé para ludibriar o sistema punitivo estatal, pois sabe-se que na dúvida quanto ao acusado possuir ou não possuir o conhecimento profano da norma, deve-se absolvê-lo.

No entanto, não se pode impedir o bom uso do instituto do erro de proibição devido ao risco de seu mau uso.

Para dirimir a possibilidade de ocorrência do erro de proibição direto, diante da imensa gama de normas incriminadoras produzidas, seria de grande valia oferecer-se para o povo brasileiro o conhecimento jurídico básico ainda nos primeiros anos de ensino.


REFERÊNCIAS

BRASIL, 1988. Constituição Federal da República. Planalto da República. 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm (Acesso em 29 de janeiro de 2018, às 18:00 horas).

BRASIL,1942. Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro. Decreto-Lei nº 4657/42. Planalto da República. 04 de Setembro de 1942. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.HYPERLINK "http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.html"html  (Acesso em 29 de janeiro de 2018, às 21:00 horas).

BRASIL,1941. Lei das Contravenções Penais. Decreto-Lei 3688. Planalto da República. 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3688.htm (Acesso em 29 de Janeiro de 2018, às 22:00 horas).

BRASIL,1940, Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei 2848/40. Planalto da República. 07 de Dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm (Acesso em 03 de Fevereiro de 2018 às 14:00 horas).

CARVALHO, Jô de. Et al. Artigo de pesquisa: Relativização do conhecimento obrigatório da lei. Disponível em: http://fadipa.educacao.ws/ojs-2.3.3-3/index.php/cjuridicas/article/viewFile/222/pdf (Acesso em 03 de Fevereiro de 2018, às 13:00 horas).

FERREIRA, Iverson Kech, Artigo virtual sobre: A síndrome de Dom Casmurro no Direito Penal: https://canalcienciascriminais.com.br/sindrome-dom-casmurro/ publicado em 17/04/2017 (Acesso em 25 de Fevereiro de 2018, às 21:00 horas).

GOMES, Luís Flávio. Direito penal: parte geral: volume 2- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

GOMES, Luís Flávio. Artigo virtual- diferença entre erro de proibição direto e indireto: https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121927683/o-que-se-entende-por-erro-de-proibicao, publicado no ano de 2012 (Acesso em 25 de Fevereiro de 2018, às 14:00 horas)

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal 18.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2016.

MOTTA, Ivan Martins Motta, Erro de proibição e bem jurídico-penal- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 3ª ed. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2008.


Autores

  • Jeferson Botelho Pereira

    Jeferson Botelho Pereira. Ex-Secretário Adjunto de Justiça e Segurança Pública de MG, de 03/02/2021 a 23/11/2022. É Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, aposentado. Ex-Superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas Gerais, no período de 19 de setembro de 2011 a 10 de fevereiro de 2015. Ex-Chefe do 2º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, Ex-Delegado Regional de Governador Valadares, Ex-Delegado da Divisão de Tóxicos e Entorpecentes e Repressão a Homicídios em Teófilo Otoni/MG, Graduado em Direito pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro - FENORD - Teófilo Otoni/MG, em 1991995. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Legislação Especial, Direito Penal Avançado, Professor da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais, Professor do Curso de Pós-Graduação de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela FADIVALE em Governador Valadares/MG, Prof. do Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública, Faculdades Unificadas Doctum, Campus Teófilo Otoni, Professor do curso de Pós-Graduação da FADIVALE/MG, Professor da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-Teófilo Otoni. Especialização em Combate à corrupção, crime organizado e Antiterrorismo pela Vniversidad DSalamanca, Espanha, 40ª curso de Especialização em Direito. Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Participação no 1º Estado Social, neoliberalismo e desenvolvimento social e econômico, Vniversidad DSalamanca, 19/01/2017, Espanha, 2017. Participação no 2º Taller Desenvolvimento social numa sociedade de Risco e as novas Ameaças aos Direitos Fundamentais, 24/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Participação no 3º Taller A solução de conflitos no âmbito do Direito Privado, 26/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Jornada Internacional Comjib-VSAL EL espaço jurídico ibero-americano: Oportunidades e Desafios Compartidos. Participação no Seminário A relação entre União Europeia e América Latina, em 23 de janeiro de 2017. Apresentação em Taller Avanco Social numa Sociedade de Risco e a proteção dos direitos fundamentais, celebrado em 24 de janeiro de 2017. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, Buenos Aires – Argentina, autor do Livro Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: Atividade sindical complexa e ameaça transnacional, Editora JHMIZUNO, Participação no Livro: Lei nº 12.403/2011 na Prática - Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia, Participação no Livro Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS nº 236/2012, Editora Impetus, Participação no Livro Atividade Policial, 6ª Edição, Autor Rogério Greco, Coautor do Livro Manual de Processo Penal, 2015, 1ª Edição Editora D´Plácido, Autor do Livro Elementos do Direito Penal, 1ª edição, Editora D´Plácido, Belo Horizonte, 2016. Coautor do Livro RELEITURA DE CASOS CÉLEBRES. Julgamento complexo no Brasil. Editora Conhecimento - Belo Horizonte. Ano 2020. Autor do Livro VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 2022. Editora Mizuno, São Paulo. articulista em Revistas Jurídicas, Professor em Cursos preparatórios para Concurso Público, palestrante em Seminários e Congressos. É advogado criminalista em Minas Gerais. OAB/MG. Condecorações: Medalha da Inconfidência Mineira em Ouro Preto em 2013, Conferida pelo Governo do Estado, Medalha de Mérito Legislativo da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2013, Medalha Santos Drumont, Conferida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, em 2013, Medalha Circuito das Águas, em 2014, Conferida Conselho da Medalha de São Lourenço/MG. Medalha Garimpeiro do ano de 2013, em Teófilo Otoni, Medalha Sesquicentenária em Teófilo Otoni. Medalha Imperador Dom Pedro II, do Corpo de Bombeiros, 29/08/2014, Medalha Gilberto Porto, Grau Ouro, pela Academia de Polícia Civil em Belo Horizonte - 2015, Medalha do Mérito Estudantil da UETO - União Estudantil de Teófilo Otoni, junho/2016, Título de Cidadão Honorário de Governador Valadares/MG, em 2012, Contagem/MG em 2013 e Belo Horizonte/MG, em 2013.

    Autor do livro <em>Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: atividade sindical complexa e ameaça transnacional</em> (JH Mizuno). Participação nos livros: "Lei 12.403/2011 na Prática - Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia", "Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS 236/2012", e "Atividade Policial" (coord. Prof. Rogério Greco), da Impetus. Articulista em Revistas Jurídicas.

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  • Vicenzo Dartanhan Silva Bezerra

    Vicenzo Dartanhan Silva Bezerra

    Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Faculdade Presidente Antônio Carlos, campus Teófilo Otoni, Minas Gerais.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Jeferson Botelho; BEZERRA, Vicenzo Dartanhan Silva. O erro de proibição direto como fator de relativização do conhecimento obrigatório da lei penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5607, 7 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66831. Acesso em: 7 maio 2024.