Resumo:O presente artigo científico expõe e revisa o instituto jurídico do erro de proibição direto e seu reflexo que relativiza a ficção legal do conhecimento obrigatório da lei por todos, com foco na aplicação do princípio da culpabilidade, consubstanciando-se na avaliação dos pressupostos da potencial consciência da ilicitude na estrutura da teoria do delito. Por outro lado, será demonstrado que a figura do erro de proibição direto, segundo alguns doutrinadores, representa a exceção para o ordenamento jurídico, onde a presunção do conhecimento da lei é a regra. Por fim, explora-se também o reflexo de tal conflito no processo, com a explanação da Síndrome de Dom Casmurro no contexto do julgamento do erro de proibição, e a necessidade da efetiva absolvição do réu que não possuía ao tempo do fato o conhecimento profano da norma diante da relativização do conhecimento obrigatório dela.
Palavras-chave: Teoria do Delito – Erro de Proibição Direto – Relativização do conhecimento obrigatório – Não-culpabilidade – Justiça Penal.
1 INTRODUÇÃO
O tema encontra-se relacionado com a necessidade de analisar-se os conceitos do conhecimento da lei em sentido estrito e o conhecimento da ilicitude. Conforme será exposto, o conhecimento obrigatório da lei é mera ficção jurídica que não pode ser alçada como intangível ante a necessidade de se inocentar determinado indivíduo totalmente ignorante quanto ao conteúdo de determinada norma. Tal ignorância é comum em regiões mais afastadas dos centros urbanos, onde ainda impera a força dos costumes e tradições hereditárias, sobretudo, para indivíduos de idade mais avançada, podendo ser constatada também nos atos de alguns estrangeiros e até mesmo pessoas com maior conhecimento cultural que, diante da cada vez maior inflação normativa do Direito Penal não possuem o conhecimento do caráter ilícito de certos tipos incriminadores.
O estudo da presente temática é indissociável de uma análise da teoria do crime, que em sua visão analítica se desdobra em três substratos, concentrando-se aqui no substrato da culpabilidade, no seu elemento da potencial consciência da ilicitude, e mais precisamente em uma subdivisão dela, que é o erro de proibição direto.
No que se concerne a aplicabilidade do erro de proibição direito no caso concreto, cabe ressaltar a necessidade do uso de elementos de interpretação processuais que extrapolem a mera consideração literal da lei, a fim de que o julgador consiga captar com perspicácia e sensibilidade o verdadeiro nível de conhecimento da norma que possuía determinado autor de delito no momento do fato.
A metodologia utilizada referenciou-se especialmente em estudos bibliográficos e pesquisa em sítios jurídicos de informação via rede mundial de computadores.
2 O ERRO DE PROIBIÇÃO DIRETO NA TEORIA DO DELITO
2.1 Conceito analítico do crime
A doutrina pátria na atualidade preleciona três conceitos principais de delito, quais sejam, conceito formal, material e analítico, sendo que, segundo Luiz Flávio Gomes (2007, pg. 164) “delito, do ponto de vista puramente formal, é o que o Estado descreve literalmente na lei como tal”, e conclui o autor que tal colocação é insuficiente, e não atinge toda a extensão de análise do delito. O conceito material se caracteriza como um filtro para o legislador selecionar os bens jurídicos mais relevantes, sendo também definido por GOMES (2007, pg. 166) como “fato ofensivo desvalioso a bens jurídicos muito relevantes”, apresentando-se, tal qual o conceito formal, insuficiente para uma análise mais completa acerca do estudo da estrutura do delito. O conceito analítico apresenta-se como sendo o mais apropriado para o desdobramento de análises mais empíricas acerca do delito.
Embora se reconheça que o crime é um todo unitário, o sistema analítico atualmente o decompõe em partes que são analisadas isolada e subsequentemente. À luz destes elementos, no que tange à conceituação analítica de crime, admite-se alguns principais entendimentos doutrinários a respeito, sendo o posicionamento que aponta para a Teoria Tripartida finalista o que fora aqui adotado. Os substratos da fragmentação analítica que embasam o presente estudo são: Fato Típico ou Tipicidade; Fato Antijurídico, Antijuridicidade ou Ilicitude; e Fato Culpável ou Culpabilidade, sendo este último o ponto de partida para a análise do erro de proibição direto ora explorado.
2.2 Culpabilidade
Conforme supracitado, o conceito analítico tripartido do delito leva em consideração a análise dos substratos da tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade. A tipicidade apresenta-se como o primeiro substrato do crime, e trata-se da adequação de um determinado comportamento a um modelo que descreve as condutas proibidas. Após verificar-se a subsunção do fato a algum tipo penal, é preciso avaliar-se a sua ilicitude, pois em casos excepcionais, a lei autoriza ao agente a prática da conduta típica, por exemplo, em legítima defesa. A antijuridicidade ou ilicitude é, desse modo, o segundo substrato do delito, e apresenta-se na relação de contradição entre a conduta típica e a ordem jurídica. Sua relevância consiste em dar concretude ao injusto penal, indiciado pela tipicidade.
Após a análise subsequente dos dois substratos anteriores, chega-se então ao substrato da culpabilidade, que é o terceiro substrato na estrutura analítica da teoria do crime. Segundo Rogério Greco (2016, pg.481), ela é o juízo de reprovação pessoal que se realiza sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente. Ele cita Von Liszt, o qual arrematou que pelo aperfeiçoamento da doutrina da culpa que se mede o progresso do direito penal.
Cabe ressaltar também a culpabilidade como princípio basilar do Direito Penal, que remonta ao brocardo “nullum crimen sine culpa”, ou seja, a ninguém será imputado crime ou pena sem que a conduta criminosa seja reprovada em um juízo de culpa.
A elaboração da teoria do delito por Ernest Von Beling, difundida através da obra Die Lehre Vom Verbrechn (A teoria do delito), em 1906, impulsionou algumas teorias da culpabilidade que desenvolveram-se com o tempo. Seguem descritas a seguir, seguindo-se as premissas de GRECO (2016, pg. 484 e ss.), três das principais e que mais se relacionam com o assunto tratado no presente estudo, cabendo mencionar além delas, a teoria social da ação e o funcionalismo, que apesar de ostentarem certo destaque histórico, afastam-se da temática aqui revisada:
“Teoria Psicológica: Dolo e culpa eram espécies de culpabilidade, perfazendo a análise subjetiva do delito. Culpabilidade era o vínculo psicológico que ligava o agente ao fato ilícito por ele cometido/ Teoria normativa: introduziu a ideia de valor na teoria do delito. A culpabilidade deixou de ser eminentemente psicológica e passou a ser também normativa. A base do sistema passa a ser a reprovabilidade como juízo de desaprovação jurídica do ato que recai sobre o autor, materializada na exigibilidade da conduta conforme o direito/ Teoria normativa pura: para essa teoria, a ação humana é essencialmente final. O homem pode prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis de sua atividade, estabelecendo fins diversos e dirigir sua atividade, conforme o seu plano, a consecução desses fins. Partindo do pressuposto de que toda conduta humana – lícita ou ilícita – pressupõe uma finalidade, o dolo e a culpa não poderiam continuar a ser estudados em sede de culpabilidade. O dolo deixou de ser normativo e passou a ser natural. Culpabilidade passa a ser composta por: imputabilidade; potencial consciência da ilicitude do fato; e exigibilidade de conduta diversa. Assim, a culpabilidade compõe-se somente por elementos de ordem normativa, por isso, a teoria final é reconhecida como uma teoria normativa pura.”
2.2.1 O erro na teoria psicológica
O erro na teoria psicológica era subdividido em erro de fato e erro de direito. O erro de fato seria o erro do agente que recaísse sobre os requisitos fáticos ou descritivos do tipo. Assim por exemplo, o agente que mata o companheiro de caçada, pensando ser este um animal, atuaria sob erro de fato, porque o erro recai sobre um elemento descritivo do tipo, a saber, “alguém”, visto que dispensa juízo de valor para ser conhecido pelo autor; por outro lado, o agente que subtrai coisa alheia, pensando ser sua, não agiria sob um erro de fato, porque o erro recai sobre um elemento normativo do tipo, a saber, “coisa alheia”, haja vista ser necessário um juízo de valor (conceito de propriedade) preexistente em outra norma jurídica, constituindo na hipótese, um erro de direito.
2.2.2. O erro na teoria normativa-psicológica
Com a doutrina do dolo normativo ou “dolus malus” surgem as teorias do dolo: a teoria estrita e a teoria limitada, que ora serão analisadas. Conforme visto, a consciência da ilicitude, sob a ótica da teoria psicológico-normativa, é considerada como parte integrante do dolo e não como elemento autônomo da culpabilidade. O fundamento invocado é o de que o agente só pode atuar de forma dolosa se tiver consciência de que sua conduta é contrária ao direito; se ao invés, atuar sem essa consciência, não quer praticar o injusto penal.
A consequência lógica e necessária dessa concepção é dar um tratamento unitário ao erro (causa excludente do dolo), não se fazendo mais mister considerar a antiga dicotomia de erro de fato e erro de direito. Assim, em ambas as teorias do dolo, se o erro for inevitável, não há responsabilidade penal, e se for evitável, admite-se a condenação por culpa. O inconveniente desta teoria unitária do erro é que torna algumas questões bastante complicadas, porque com semelhante teoria, segundo MOTTA (2009, pg. 42) “teríamos que admitir algo tão absurdo ou inexplicável como a tentativa culposa”.
Na concepção da teoria estrita do dolo, se o erro do agente for inevitável, quer o erro incida sobre elementos constitutivos do tipo, quer sobre a proibição, não há dolo com a consequente exclusão da culpabilidade, não havendo responsabilidade penal. Se o erro do agente for culpável, ele responderá por crime culposo, desde que haja previsão legal, se não houver, o autor ficará impune.
A teoria ilimitada se contrapõe à referida impunidade, na medida que introduz o assim chamado “estado de inimizade ao direito”, como fator corretor da impunidade. De acordo com esta teoria, o erro evitável continua a excluir o dolo, deixando subsistente a responsabilidade a título de culpa, exceto se o erro derivar de uma cegueira jurídica ou desprezo pelo direito, admitindo-se nesse caso a responsabilidade a título de dolo, como se fosse um atuar doloso, ou seja, sem consciência de sua ilicitude, mas com culpa na formação do caráter, fato que para alguns autores viola o princípio da culpabilidade, pois não enseja a punição do autor pelo que ele faz, mas sim, pelo que ele é, resultando em um Direito Penal do autor.
Tal concepção, de que o objeto da potencial consciência deve ser definido como a possibilidade de obter determinada informação do caráter ilícito de certos comportamentos, prevalece para alguns até os dias atuais para fundamentar o caráter absoluto da obrigatoriedade do conhecimento da lei, ou seja, não ter o conhecimento potencial da ilicitude sugeriria um total afastamento dos termos conhecimento da lei e desconhecimento da ilicitude, do ponto de vista de que abstratamente, todo e qualquer indivíduo civilizado teria em tese, a possibilidade de obter as informações atinentes a ilicitude de determinados comportamentos sociais.
2.2.3. O erro na teoria normativa pura
As teorias da culpabilidade que surgiram com a teoria finalista da ação removeram a consciência da ilicitude do âmbito do dolo (dolo natural). Em consequência, as teorias da culpabilidade não darão ao erro o tratamento unitário dado pelas teorias do dolo, fazendo distinção entre erro de tipo e erro de proibição, sendo que, o primeiro exclui o dolo e, consequentemente, a tipicidade, enquanto o erro de proibição exclui a consciência da ilicitude, e consequentemente, a culpabilidade.
Como explica MOTTA apud Diego Manuel Lúzon Peña (2009, pg. 48):
“Esta teoria sustenta que o erro de proibição não exclui o dolo, pois este não requer consciência da antijuridicidade, senão que só afeta a culpabilidade, excluindo-a quando o erro é invencível, e atenuando-a quando o erro de proibição é vencível para o sujeito. Por isto neste erro vencível, não se responde por infração culposa, senão por delito doloso, porém com uma importante atenuação devido à diminuição da culpabilidade”.
Sendo assim, a teoria estrita da culpabilidade afirma que todo erro sobre a ilicitude do fato, inclusive o erro sobre a existência, os limites e os pressupostos fáticos de uma causa de justificação, consiste em erro de proibição, atingindo a culpabilidade.
Já a teoria limitada da culpabilidade devia-se da anterior quanto ao tratamento dado ao erro nas discriminantes putativas (ou erro de tipo permissivo), relegando a tal circunstância ao erro de tipo. O item dezessete da exposição de motivos da nova parte geral do Código Penal aponta a teoria limitada como sendo a adotada no Brasil.
2.3. Potencial Consciência da Ilicitude
Na teoria normativa pura a culpabilidade possui como elementos normativos a imputabilidade, a potencial consciência sobre a ilicitude do fato e a exigibilidade da conduta diversa. No entanto, a didática do estudo em questão exige um aprofundamento no elemento da potencial consciência da ilicitude, que se desdobra no erro de proibição direto, no indireto e no mandamental, os quais serão elucidados em capítulo próprio para tal finalidade.
A potencial consciência da ilicitude encontra-se descrita no Art. 21 do Código Penal Brasileiro com a seguinte rubrica:
“O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.”
Ela possui natureza normativa, e não psicológica, pois não se avalia se o indivíduo de fato possuía a consciência da ilicitude de seu ato no momento de sua execução, mas sim, vislumbra-se a possibilidade que ele teria de ter acessado a informação já adquirida que o afastaria de determinado comportamento socialmente indesejado.
Quanto a isto, GRECO apud Cesar Roberto Bitencourt (2016, pg. 509) aduz que:
“O erro sobre a ilicitude do fato ocorre quando o agente, por ignorância ou por uma representação falsa ou imperfeita da realidade supõe ser lícito o seu comportamento. Não se trata de uma consciência técnico-jurídica, formal, mas da chamada consciência profana do injusto, constituída do conhecimento da antissocialidade, da imoralidade ou da lesividade de sua conduta, e esse conhecimento provém das normas de cultura, dos princípios morais, éticos, dos conhecimentos adquiridos na vida em sociedade.
Desmembrar o objeto da potencial consciência da ilicitude é tarefa árdua, e não é das mais exploradas pela doutrina brasileira no que se concerne a teoria do delito. Porém, digno de menção é o posicionamento de CIRINO DOS SANTOS (2008, pg. 310), o qual preleciona a existência de ao menos três grupos de teorias para delimitar o objeto da potencial consciência, quais sejam: tradicional, moderna e intermediaria, sendo que, dentro de cada uma existem algumas posições diversas. Num primeiro grupo se encontram os autores que defendem ser necessário para configurar o conhecimento do injusto apenas a consciência de que a conduta está em contradição com a ordem moral ou com os valores sociais, não sendo necessária a consciência de contrariedade ao ordenamento jurídico e nem da punibilidade da conduta. Em posição oposta estão os autores que defendem ser necessário o conhecimento da punibilidade da conduta. Alguns defendem que é necessário o conhecimento da punibilidade penal específica, ao passo que outros sustentam ser necessária a consciência de que a ação infringe uma norma sujeita genericamente a uma sanção, não necessariamente, portanto, penal. Por fim, num terceiro grupo, em posição intermediária, encontram-se os autores que defendem que conhecer a imoralidade do comportamento seria insuficiente e conhecer a punibilidade da ação seria desnecessário. Assim, o objeto da consciência do injusto seria o conhecimento de contrariedade ao ordenamento jurídico, mais precisamente, da lesão a um bem juridicamente protegido.