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Liberdade de expressão: a linha tênue entre autoafirmação e intolerância religiosa

Liberdade de expressão: a linha tênue entre autoafirmação e intolerância religiosa

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Este artigo visa o estudo da liberdade de expressão e liberdade religiosa no código de normas brasileiro, bem como sua defesa na jurisprudência.

Palavras-chave: Liberdade de Expressão. Liberdade religiosa. Charlie Hebdo. Intolerância. Jurisprudência.


INTRODUÇÃO

Dividido em três partes, o trabalho procura promover um estudo sobre os limites da Liberdade de Expressão e da Liberdade Religiosa, como forma de combate à intolerância e ao hate speech, entretanto, não ofendendo as devidas normas Constitucionais. Ademais, demonstra como a jurisprudência se impõe aos casos de intolerância, de modo que fica claro como a falta de informação sobre a delimitação do discurso de ódio e dos direitos de liberdade, afeta o sistema judiciário em promover a igualdade e o respeito aos direitos alheios.

A primeira parte apresenta uma análise história da formação dos direitos de Liberdade de Expressão e de Liberdade Religiosa ante sua presença entre os direitos da dignidade humana, formados sobre um mundo caótico, revolucionário e envoltos em feridas abertas. Diante ao caos e a exigência do minuto, os direitos não foram estudados de forma correta e apresentaram lacunas que ao mais tardar seriam alvo de críticas e respaldo de grandes conservadores.

Do mesmo modo, analisa a legislação brasileira e seus artigos sobre o tema, enquanto exemplo de combate à intolerância, mas seletor sobre quais religiões dará suporte em sua prática. Uma legislação que se desenvolveu a passos lentos e restrições, e embora usada como justificativa à intolerância por não apresentar limitações em seu texto constitucional, é bem clara ao impor limites penais aos direitos dos cidadãos.

De outra parte, por meio de um atentado terrorista à revista Charlie Hebdo, a delimitação entre tolerância e intolerância se mostra complexa e polêmica ao colocar frente a frente os valores da democracia como sistema e a moral e ética da sociedade. Descontrói a noção de liberdade como “ilimitado” e recupera noções de que para que a vida em sociedade, diante ao sistema democrático e à liberdade, restrições são necessárias para que se mantenha a paz e o próprio sistema. Democracia é sobre os direitos de todos se expressarem sem que ofendam o próximo, pois ofendendo estão censurando a pessoa e suas opiniões, portanto, ferindo a democracia e a liberdade de expressão individual.

Discute-se ainda como o sistema judiciário atua em casos de intolerância religiosa e discriminação, por meio de dois casos concretos famosos. O primeiro envolvendo discriminação contra a comunidade judaica e o segundo envolve intolerância religiosa e discriminação de um sacerdote de uma religião, contra outras religiões. O estudo detalhado dos dois casos e dos votos de cada ministro em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal viabiliza o entendimento de como o argumento da liberdade expressão ilimitada como defesa da Constituição e da Democracia ainda assombram a luta contra a intolerância religiosa.


1. A LIBERDADE RELIGIOSA E DE EXPRESSÃO: DIREITOS E LIMITES

O conceito de liberdade religiosa se estruturou como uma consequência aos abusos e atrocidades decorridas ante à sua ausência. Na Grécia Antiga, a religião politeísta e a sociedade, exigiam completo compromisso com a fé, julgando os que atentavam contra a sua fé como crime de impiedade e sentenciando-os à morte. Como foi o caso mais famoso do período, a morte do grande filósofo Sócrates por um cálice de cicuta, acusado de negar os deuses da cidade, de introduzir novos deuses e de corromper a juventude por meio de seu discurso filosófico. Posteriormente a sua morte foi narrada por seu aprendiz e gênio da filosofia Platão nos livros Eutífron, Apologia, Clíton e Fédon, de acordo com Rezende (2018) e Pombo (s.d.).

Avançando para o grande Império Romano, o cristianismo como religião monoteísta, era completamente repudiada pelos romanos que eram politeístas. Assim começam perseguições em massa e execuções nos grandes anfiteatros romanos, que somente se perderam força quando o Imperador Constantino instituiu o cristianismo como religião oficial, em consonância às assertivas de Cauti (2020).

As cruzadas na Idade Média, advieram do interesse dos nobres e burgueses pela conquista de novos mercados consumidores, juntamente ao interesse sobre novos fiéis da Igreja Católica. A grande monopolizadora de capital e fiéis, perdia cada vez mais para o protestantismo e muçulmanos e viu as Cruzadas como forma efetiva de revanche. Milhares de vidas foram perdidas tanto dos “inimigos”, ou seja, aqueles que não professavam da fé católica e eram dizimados, tanto dos bons, como na famosa Cruzada das Crianças. Composta por 50 mil crianças, a cruzada que tinha como finalidade a chegada em Jerusalém, resultou em milhares de vidas perdidas e outros milhares escravizadas e vendidas nos mercados orientais, comentam Anderson (2016) e Júnior (s.d.).

Somente com a Revolução Francesa surge um esboço sobre a liberdade religiosa por meio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) que em seu artigo 10º enunciava que “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”. Embora, a referida declaração não tivesse cunho internacional.

Aborda-se então a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha Nazista e o Holocausto, 4º maior genocídio da história (entre 17 e 20 milhões de mortes) por razões de cunho sobrepujantemente religioso, aponta Cordeiro (2020). E como uma resposta do mundo às tais atrocidades, a recém criada Organização das Nações Unidas, também em função da guerra, aprovou em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o maior marco para o direito moderno. Ao elencar valores já estabelecidos e tendo em vista todos os acontecimentos históricos, a DUDH estabeleceu os direitos humanos essenciais e frisou em seu preâmbulo a batalha contra a discriminação e a opressão:

Preâmbulo: (...) Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem;

Considerando que é essencial a proteção dos direitos do Homem através de um regime de direito, para que o Homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão;

E ainda:

(...) Artigo 18°: Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

(DUDH, 1948, pág. 2 e 10)

Voltando para o âmbito nacional, a liberdade religiosa esteve presente desde a Carta Imperial de 1824, onde é proibida a perseguição por motivos religiosos se não há ofensa ao Estado ou a Moral Pública, Brasil (1824). Ainda é possível constatar, mediante à Constituição de 1891, a proteção à liberdade de culto e a disposição ao não subvenção oficial para igrejas ou cultos, portanto indiretamente promovia o Estado Laico, Brasil (1891).

A liberdade de consciência por sua vez, não mencionada em momento algum, foi por tempos desconsiderada como direito fundamental ligado diretamente à liberdade religiosa. Foi mencionada primeiramente na Constituição de 1934, se eximiu nos textos de lei da Constituição de 1937 e voltou a ser contemplada na Constituição de 1967, ainda que atualmente sofra novamente exclusão do direito fundamental, na concepção de Brega Filho e Alves (2009, p.82):

Alguns tribunais têm operado verdadeira redução do direito à liberdade religiosa, restringindo a proteção constitucional apenas ao culto objetivo, ou aos lugares de culto, que devem organizar-se de acordo com as normas legais aplicáveis à espécie, sem se darem conta que existem práticas de culto que transcendem materialmente os templos, principalmente as normas de conduta e a moral fundamental, que são ínsitas a todas as organizações religiosas.

A Constituição Federal Brasileira de 1988, atual vigente, consagra a liberdade religiosa em seu artigo 5º, incisos VI, VII e VIII. Nos termos do documento:

(...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

(CF, 1988, art 5º, VI, VII, VIII)

Feita uma rápida análise do sentido deôntico dos incisos, os direitos resguardados são o direito à crença, de consciência e de culto. Diante ao inciso VII e sua redação, nota-se o resguardo o culto de qualquer religião em espaços diferenciados, como hospitais e quartéis militares. Portanto, um indivíduo internado tem a garantia de assistência caso queira professar sua fé no local em que se encontra, mesmo que o hospital não seja um edifício destinado ao culto de qualquer religião. Em matéria competente ao inciso VIII, muitos são os casos de conflitos entre a norma e a necessidade social. Um militar que decide não ir ao campo de batalha em uma guerra em dia santo de sua religião, pode ser eximido de suas atividades, tendo em vista o salvaguardo da constituição sobre a liberdade de crença e culto apenas se não houver interferência à atividades obrigatórias pela norma jurídica. Assenta-se então a primeira limitação à liberdade religiosa da constituição, tendo em vista as palavras de Jorge Miranda (1998, p.359):

A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, por um lado, em que o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela recorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis.

Ao inciso VI cabe o exercício da diferenciação entre liberdade de crença e de consciência, complementares, mas distintos. A liberdade de consciência assume uma postura mais ampla ao abordar tanto a crença e o culto, quanto a autodeterminação, objeto central de análise no presente artigo. A autodeterminação é a possibilidade da liberdade de se expressar sobre a própria crença, usando-a como instrumento de atuação da própria liberdade de expressão e do proselitismo. Vale ressaltar, entretanto, que o uso da prerrogativa do direito fundamental à liberdade de expressão não pode ser usado como justificativa para a discriminação religiosa, comtemplada no artigo 3º da constituição e artigo 5º, inciso IV, prevendo medidas repressivas ao ato.

Sobre a problemática, enuncia Feldens e Tonet (2013, p.130):

Todavia, tal questão seria mais simples se a liberdade de expressão fosse tão necessária para a realização da liberdade religiosa. Muitas religiões necessitam do proselitismo para se desenvolverem, ou seja, do direito de tentar atrair outros crentes a seguirem a sua religião, convencendo-os de que os seus fundamentos são unicamente verdadeiros e conduzem às respostas ansiadas sobre o transcendental. Para tanto, a liberdade de expressão deve estar garantida, mas com o limite de que não agrida a liberdade religiosa de outras confissões.

A liberdade de crença e consciência ainda engloba o direito a não aderir a uma religião, a liberdade de descrença, e de expressar o agnosticismo (SILVA, 2000, p.251-256). Portanto, não somente há a preocupação com o proselitismo, mas também com a expressão do ateísmo, que constantemente busca sua autoafirmação pela supressão e ofensa a quaisquer religiões.

A compreensão sobre a importância da liberdade como princípio fundamental da dignidade humana, foi o estopim para a valorização da liberdade de expressão. Compreendida pelos gregos como a simples participação na vida política, a liberdade era demasiadamente restritiva a poucos âmbitos e poucos grupos da sociedade, somente os grupos maioritários. Sofrendo críticas sobre a superficialidade legislativa, o primeiro documento realmente abrangente e adequado é a Declaração Universal dos Direitos Humanos que em seu artigo 19, garante a liberdade de opinião e expressão e de acesso à informação, independente de quem for, o meio ou fronteiras. Outro documento valoroso ao falar-se sobre liberdade de expressão é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica de 1992.

No Brasil, a liberdade de expressão mesmo que contemplada, não era de fato protegida em sua totalidade e permaneceu do mesmo modo por várias constituições. No período monárquico, a constituição assegurava a todos a comunicação de seus pensamentos por meio da fala ou da escrita e a publicação, desde que respondam pelo abuso do direito se assim a lei determinar. A Constituição de 1934, adicionou a censura ao espetáculo e às diversões públicas, a proibição de propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social e o direito de resposta por conta do ofensor. A Constituição de 1937 restringiu o exercício do direito a manifestação as condições e limites prescritos em lei. A Constituição de 1967, já outorgada no Regime Militar, ampliou a liberdade de manifestação de convicção política ou filosófica. A Constituição seguinte, de 1969, tratou de podar essas garantias, incluindo a vedação às publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes. Um desastre em termos de proteção à liberdade ampla de expressão, até a vigente Constituição de 1988.

Destarte, a liberdade de expressão é comtemplada no artigo 5º, incisos IV e IX da Constituição Federal de 1988

“(...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;(...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;” (BRASIL, 1988).

Entretanto, a liberdade de expressão não é ilimitada no ordenamento, fazendo contraponto coma legalidade, onde o direito fundamento não abre espaço para a injúria e diante do crime será solicitada indenização. É errôneo usar o argumento de que a legislação permite o discurso de ódio como expressão da liberdade, pois a própria impõe limitações criminais. Do mesmo modo é importante salientar que a Hierarquia e Subordinação das Normas do direito brasileiro é clara em abordar as leis constitucionais como primárias e insubordinadas a nenhuma outra, bem como entre elas não existe subordinação, do mesmo modo que o princípio da liberdade de expressão e liberdade religiosa são primários e indissolúveis, são o repúdio à discriminação, ofensa e intolerância.


2. CASO CHARLIE HEBDO: TOLERÂNCIA E INTOLERÂNCIA.

Charlie Hebdo é uma revista francesa declaradamente antirreligiosa, que publicou anteriormente charges satirizando outras religiões como o catolicismo e o judaísmo e seu humor ácido também se estende à política. Desta vez, a publicação não somente gerou revolta entre os religiosos, como também provocou um atentado terrorista que matou doze pessoas e feriu cinco gravemente. Os autores foram identificados como dois irmãos muçulmanos que estavam revoltados diante a uma charge satirizando o profeta Maomé:

In 2006, Charlie Hebdo reprinted controversial cartoons of the Prophet Muhammad that originally appeared in a Danish newspaper. In 2011, the magazine’s offices were firebombed the day after it published a special issue guest-edited, it said, by Muhammad called “Charia Hebdo” — a play on the word in French for Shariah law. The cover of Wednesday’s issue poked fun at the French novelist Michel Houellebecq, whose newest book imagines France as an Islamic state in the year 2022. (TIMES, 2020)

O massacre que abalou o mundo foi encarado por dois lados da moeda: a revista somente estava exercendo o seu direito à liberdade de expressão e por outro lado, as charges e críticas publicadas passam dos limites e se tornam então intolerância religiosa.

Delia-Alexandra, Aurora-Alexandra e Anatoli (2017, p.473), assinalam essa dicotomia:

The unfortunate event divided the world into two camps: those who are called “Je suis Charlie” and believe that freedom of expression must be unfettered, and those who believe that the people at Charlie Hebdo abused, however, this right to spread messages with slandering and offending tint. Some considered the absolute importance of freedom of expression in an open society should be supported - no matter how offensive it can be for some and how childish can become, while others shares the ideas of Pope Francis, who said that nobody has the right to provoke or insult other people's faith or to take in mockery, and that freedom of expression has its limits.

A tolerância mostra-se indispensável para o exercício correto da liberdade de expressão, contudo, tolerância não significa a renúncia à própria convicção e sim implica a consciência de que a verdade é maior ao suportar o “erro” alheio (Feldens e Tonet, 2013, p. 134).

Um indivíduo pode acreditar que sua convicção sobre determinado assunto é a verdadeira, mas deve ser tolerante às convicções do próximo, as respeitando mesmo que considerando de mal gosto, pois o direito à convicção de um também é o direito à convicção do outro. Não obstante, o caráter liberal da modernidade não abre espaço à intolerância, promovendo debates sobre variadas questões e convicções e promovendo a evolução da sociedade.

Neste ponto, aprender a ser tolerante é vital para o indivíduo que deseja se relacionar com outros indivíduos e fazer parte de uma sociedade. Não obstante, a intolerância está efetivamente ligada ao hate speech, conceito intrinsecamente de difícil definição. A dificuldade se deve à classificação do que é hate speech e do que é liberdade de expressão.

De modo geral, o discurso de ódio é caracterizado pela ofensa à direitos de minorias quanto ao combate à discriminação, ou a não incitação à violência, ou seja, ainda que a proteção à liberdade expressão seja de cunho fundamental a um Estado Democrático, ela não se sobrepõe a defesas constitucionais. Alguns argumentos quanto à defesa do hate speech versão sobre a defesa do livre debate e assim a busca pela verdade. Um dos defensores mais conhecidos dessa ideologia é o filósofo liberalista, John Stuart Mill em sua obra On Liberty e defende a ampla defesa a expressão de modo a possibilitar o debate e a evolução da sociedade, não limitando opiniões de cunho discriminatório. Argumenta que uma opinião somente pode ser repudiada ou considerada falsa, se o autor possuir a oportunidade de expressá-la e defende-la:

But those who thus satisfy themselves, do not perceive that the assumption of infallibility is merely shifted from one point to another. The usefulness of an opinion is itself matter of opinion: as disputable, as open to discussion, and requiring discussion as much as the opinion itself. There is the same need of an infallible judge of opinions to decide an opinion to be noxious, as to decide it to be false, unless the opinion condemned has full opportunity of defending itself (MILL, 1859, pág. 23 e 24)

Mill não considera que em primeira instância, nem todos os indivíduos estão suscetíveis a um debate e a livre compreensão de uma opinião que agrida a moral e a ética. Do mesmo modo, não considera os sujeitos que somente absorvem a opinião do outro como verdadeira, sem qualquer discussão ou reflexão e passam a reproduzi-la e usá-la como justificativa para atos de violência e discriminação contra outros grupos. Nenhum dos dois contribui para um debate saudável em busca da verdade. Novamente fica evidente que o foco do hate speech não são opiniões consideradas “erradas” diante à moral, mas opiniões que geram preconceito.

Outro argumento é o da liberdade de expressão como principal instrumento da Democracia. De fato é, mas a Democracia prega a igualdade entre todos os grupos, o direito de todos os grupos participarem do debate, o hate speech provoca o oposto, a exclusão de grupos minoritários e a negação à Democracia. Incita o predomínio de opiniões da maioria e dos grupos privilegiados e o afastamento das minorias da esfera pública, com medo de retaliações. É evidente a preocupação com o risco a volta de governos autoritários que restringem a liberdade individual, entretanto, a proibição ao discurso de ódio não apresenta uma ameaça ao estado democrático, apenas contribui para a defesa do mesmo.

Importante também salientar as consequências que o discurso de ódio provoca sobre as minorias. Uma opinião negativa sobre um livro não é inofensiva, com toda certeza vai influenciar outras pessoas a não considerarem o livro bom. Uma reportagem apontando crimes de corrupção cometidos por um candidato ao cargo da Presidência, vai manchar sua reputação e pode provocar a sua não eleição.

Com efeito, as manifestações de ódio provocam em suas vítimas o sentimento de medo, angústia e vergonha. Os indivíduos sentem a exclusão e diferenciação em relação ao resto da sociedade, que de fato se perpetuam pela falta de oportunidades, o distanciamento de outras pessoas e o julgamento por meio dos estereótipos. A defesa de concepções como a de que “judeus somente ligam para dinheiro”, levam os indivíduos a crerem que todos os judeus são avarentos e mesquinhos da mesma forma, que não merecem o mesmo respeito dos demais e que podem ser alvos potências de roubo e extorsão.

Ainda que a revista francesa Charlie Hebdo, possua o direito de se autoafirmar como antirreligiosa, ela não possui o direito de ofender quaisquer religiões para tal, de incitar a discriminação religiosa contra religiosos e a edição possui aptidão para ser classificada como intolerância religiosa. Importante salientar que o objetivo não é justificar ou “autorizar” o atentado terrorista, em verdade, é somente apontar a discriminação e intolerância cometidas pela revista e o uso de mau gosto da crítica e ironia em suas charges. Mas como então impor um limite à liberdade de expressão, para que não se repitam casos como esse ou qualquer outros discriminatórios?

Inicialmente, a própria sociedade se encarrega disso por meio da sua moral e ética. A moral e a ética são conjuntos de “normas” não escritas, mas que possuem espaço no seio de qualquer sociedade. São impostas e obedecidas por todos os indivíduos, mesmo que inconscientemente e possuem um caráter punitivo, que diferentemente das normas do direito, atuam tanto no interior do sujeito, como nas suas relações em sociedade. O aparato social leva a crer que a forma moral punitiva não é suficiente para impor limites, tendo em vista que muitas vezes a moral e a ética são influenciadas pelas classes dominantes. Para dar visão a todos os grupos, o ideal é a colaboração do Estado e da legislação com a sociedade, portanto de acordo com Freitas e Castro (2013, p. 335):

Verifica-se, pois, que os limites ao direito de escolha somente poderão ser interpostos pela vontade popular, expressa por intermédio de leis, buscando sempre a defesa do interesse da coletividade, na proteção do direito de todos. Decretos regulamentares, portarias e outros dispositivos não teriam legitimidade popular para tanto e seriam tentativas infrutíferas em face da legalidade exigível para o caso em tela.

Em contrapartida, a repressão por meio da legislação também não se apresenta como ideal, tendo em vista que a punição pode dar mais publicidade ao hate speech e por consequência criar expositores da ideologia reprimida. A repressão também pode ser usada por indivíduos mal intencionados contra as próprias minorias, condenando, por exemplo, manifestantes negros por reproduzirem palavras de ódio contra brancos, incitando que brancos possuem preconceito contra negros. A proibição por meio da legislação pode também desencadear manifestações, que erroneamente argumentam, sobre a censura promovida pelo Estado e o desrespeito ao princípio fundamental da liberdade de expressão.

Qualquer atitude é difícil ser tomada, pois deve ser pensada de vários ângulos da sociedade. Um movimento sem a reflexão adequada, pode colocar o grupo maioritário contra o governo e colocar em risco a democracia, como aconteceu com o golpe militar de 1964, onde decisões inadequadas colocaram o setor militar e maioritário contra o governo e desencadearam um golpe não somente contra o governo, mas também contra todos os diretos fundamentais que foram totalmente reprimidos. A omissão do Estado em relação ao discurso de ódio, por sua vez pode afirmar o governo como favorável à discriminação, a violência e ao ódio contra as minorias. Sarmento (2010, pág.44), enfatiza a problemática da omissão do estado:

Na verdade, quando o Estado se omite diante de uma manifestação pública de ódio ou desrespeito contra minorias – ou até age para protegê-las, proporcionando, por exemplo, escolta policial para assegurar o exercício da liberdade de expressão de racistas e neonazistas, como tem ocorrido algumas vezes nos Estados Unidos –, o sinal que se transmite para o público e para as vítimas é o de que ele não vê nada de errado na conduta do ofensor. A dor e a sensação de abandono dos alvos destas manifestações tende a ser amplificada, e o símbolo que fica – e todos sabemos da importância dos símbolos na vida social – é o de um Estado cúmplice da barbárie.

De forma conclusiva, parece mais adequado julgar o hate speech tendo como base a ofensa a outros princípios constitucionais. A justificativa, portanto, seria direcionada a outras matérias constitucionais e afastaria as decisões do princípio à liberdade de expressão, dificultando a associação a sua limitação. Exemplificando, o caso Charlie Hebdo seria julgado tendo como base o desacato à liberdade religiosa protegida constitucionalmente e ao repúdio a qualquer discriminação, também protegido constitucionalmente. Se caso fosse apontada a preservação à liberdade de expressão, seria argumentado a não prevalência de um princípio em relação ao outro e, portanto, a liberdade do jornal se expressar e publicar livremente não justifica de maneira alguma a intolerância religiosa, se colocar contra a “censura” é se colocar a favor à discriminação religiosa.


3. A JURISPRUDÊNCIA ANTE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA: ANÁLISE DE CASOS.

O primeiro caso a ser analisado, possui caráter discriminatório antissemita e em julgamento pelo STF, o réu foi condenado pela prática do crime de racismo. Em 1991, o Ministério público do Rio Grande do Sul, abriu denúncia de racismo contra o autor e proprietário da editora Revisão Editora, Siegfried Ellwanger Castan, por publicar um livro intitulado “Holocausto judeu ou alemão- nos bastidores da mentira do século” de sua autoria e publicar livros de outros editores que possuíam a mesma temática.

Em obra de sua autoria, Ellwanger argumentava que os campos de extermínio judeu na verdade, eram somente campos de trabalho forçado e que nunca houve câmaras de gás, concluindo que o holocausto judeu era uma mentira forjada. A denúncia foi feita com a alegação de que as obras incitam o ódio e a discriminação ao povo judeu com mensagens antissemitas, elencando vários trechos das obras em questão que fundamentam a pretensão punitiva e finalizando com o requerimento da apreensão dos exemplares estantes na sede da Revisão Editora e de todas as livrarias ou locais em que estivessem expostos ao público.

No mesmo ano foi determinada a busca e apreensão dos livros. Em contrapartida, o réu foi absolvido em 1ª instância, seguindo a seguinte linha de raciocínio:

Os textos dos livros publicados não implicam induzimento ou incitação ao preconceito e discriminação étnica ao povo judeu. Constituem-se em manifestação de opinião e relatos sobre fatos históricos contados sob outro ângulo. Lidos, não terão, como não tiveram, porquanto já o foram, e por um grande número de pessoas, o condão de gerar sentimentos discriminatórios ou preconceituosos contra a comunidade judaica. (...) As outras manifestações apresentadas pelas obras, com relação aos judeus, outra coisa não são senão simples opinião, no exercício constitucional da liberdade de expressão. O preconceito e a discriminação religiosa, racial, étnica, etc., são condutas abomináveis, porquanto sempre foram as causas das grandes tragédias da humanidade. Por outro lado, entender que opiniões e manifestações contrárias à dominante, a ela muito desfavoráveis, implicam incitação ou induzimento ao crime de preconceito e discriminação étnica significa, também, uma posição de preconceito, mais quando aquelas vêm demonstradas em obras literárias. (RJTJRS, 2004, pág. 46)

É notório que a juíza em questão priorizou o princípio fundamental da liberdade de expressão, acima da vedação à discriminação tanto racial, quanto religiosa. Decisão essa que não agradou, pois a sentença é equivocada e mau justificada, frente ao uso de somente palavras de sua convicção e nenhum apelo a uma doutrina ou qualquer prova que seja para seu ponto de vista. Ainda pior, é ignorar que palavras em um livro podem impactar a vida dos leitores e possuem potencial para reproduzir a discriminação e a violência contra um grupo. Por esses motivos, apelou-se à instância superior que condenou o acusado, expondo que o processo se trata do abuso do direito à livre manifestação e que em nenhum momento, a livre expressão se sobrepõe ao princípio da igualdade.

Não satisfeito com a condenação, o acusado pediu o Habeas Corpus, sob a alegação de que o caso não se tratava de racismo, pois o termo “judeu” não designa uma raça. É importante analisar os votos em favor ao Habeas Corpus. O Relator Moreira Alves argumenta sobre a não configuração dos judeus como raça, e portanto, não tipifica crime de racismo e também não há punibilidade por prescrição. O que se entende pela posição do referido Ministro, é que seu foco é o racismo prescrito e não a discriminação de fato. Observando o não foco do processo sobre a discussão do termo “raça”, do mesmo modo ainda haveria crime pela discriminação de um povo e de uma religião e controvérsia com os principais princípios do ordenamento jurídico.

Em seguida, o voto do Ministro Marco Aurélio Mello em favor ao HB usa de justificativa de que os livros alvos do processo não reproduziriam a discriminação e a violência por não incitarem as mesmas de forma direta, são apenas uma forma distinta de se interpretar a história e são reflexo do livre exercício da liberdade de expressão. Novamente, observa-se o desprezo pela clara e absoluta influência que a literatura gera sobre o indivíduo, de modo a incitar o leitor a absorver ideias do autor como “verdades absolutas” e reproduzi-las da maneira que preferir, até mesmo de maneira ilícita. Merece destaque, portanto, a função humanizadora da literatura, colocada em foco e exemplificada por Candido (1999, pág. 84):

Dado que a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, enfrentando ainda assim os mais curiosos paradoxos, — pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem freqüentemente o que as convenções desejariam banir. Aliás, essa espécie de inevitável contrabando é um dos meios por que o jovem entra em contacto com realidades que se tenciona escamotear-lhe. Vejamos um exemplo apenas. Todos sabem que a arte e a literatura têm um forte componente sexual, mais ou menos aparente em grande parte dos seus produtos. E que age, portanto, como excitante da imaginação erótica. Sendo assim, é paradoxal que uma sociedade como a cristã, baseada na repressão do sexo, tenha usado as obras literárias nas escolas, como instrumento educativo. Basta lembrar, na venerável tradição clássica, textos como a Ilíada, o Canto IV da Eneida, o Canto IX dos Lusíadas, os idílios de Teócrito, os poemas apaixonados de Catulo, os versos provocantes de Ovídio, — tudo lido, traduzido, comentado ou explicado em aula. Esta situação curiosa chegou até os nossos dias de costumes menos rígidos, e vive gerando brigas entre pais e professores, por causa da leitura de Aluísio Azevedo ou Jorge Amado.

Ademais, o Ministro Ayres de Brito afirmou em favor ao HC, que o crime foi cometido dois anos antes da Lei Caó, que define a punição pelos crimes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Entretanto, após a promulgação da lei os livros ainda estavam em circulação e disponíveis para a venda, ou seja, o crime ainda persistia no momento da denúncia.

Atentando à fala do Ministro Gilmar Mendes em favor à condenação no caso Ellwanger, o princípio da proporcionalidade pode representar um adequado meio de julgar casos em que princípios sofrem colisão, como no deferido processo, entre a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. O princípio abarca subprincípios que permitem a ponderação necessária, são eles a conformidade ou aplicação dos meios, a exigibilidade ou necessidade desses meios e a proporcionalidade em sentido estrito.

O subprincípio da conformidade ou aplicação dos meios examina se a medida adotada é adequada para o cumprimento do objetivo central, visando o bem público que o Ministro referiu como a preservação dos valores inerentes a uma sociedade pluralista e em que o valor da dignidade humana compensava o ônus imposto à liberdade de expressão. O subprincípio seguinte, da exigibilidade ou necessidade, reflete sobre se não há disposta outra medida mais adequada, com custos menores, que atingisse do mesmo modo os objetivos e Gilmar Mendes afirma que a condenação é adequada para salvaguardar uma sociedade pluralista, onde reina a tolerância. Por último, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito questiona se o resultado obtido é proporcional à decisão.

Evidente que considerando-se o objetivo do total extinção da discriminação e proteção do povo judeu, a decisão do tribunal em pouco seria eficaz e recompensaria. No entanto, tendo em vista a propagação de um ideário errôneo e discriminatório por meio de um livro e seus danos, o julgamento é adequado e a retenção à liberdade de expressão não se dá sobre a possibilidade do autor se expressar, de forma radical, retirando completamente seu direito. Apenas restringe o determinado livro do processo, que se apresenta como clara ameaça, do mesmo modo que uma propaganda de cunho racista deve ser retirada dos meios de comunicação e entretenimento. Seria até impossível pensar na completa extinção de uma concepção tão presente no seio da humanidade, em virtude à sua história como a discriminação com somente uma condenação, mas é mais um passo para a preservação da igualdade.

Partindo de outro recurso utilizado pelo mesmo tribunal, a ponderação de interesses entre o direito à liberdade de expressão e os direitos de igualdade e dignidade também se configura como um recurso adequado, concluindo, portanto, que a livre manifestação não entra em conflito com a condenação pela prática do racismo pois o direito fundamental não é absoluto e não pode abarcar em seu bojo a prática de atitudes ilícitas e passíveis de punição. Maneira interessante de limitar a liberdade de expressão, o argumento de que não existem direitos absolutos são amplamente utilizados no direito brasileiro, estabelecendo uma “hierarquia” de um suposto sobredireito sobre outros direitos constitucionais (ZILIO, 2017, pág. 186).

O segundo caso a ser analisado, para o fechamento deste artigo, abrange o núcleo da discussão até aqui feita. Onde a intolerância religiosa se faz presente em divergência ao proselitismo, meio pelo qual muitas religiões sobrevivem, e em divergência com o salvaguardo da constituição sobre a discriminação religiosa.

Jonas Abib é um sacerdote da Igreja Católica conhecido por fundar, no interior de São Paulo, uma comunidade no movimento de Renovação Carismática chamada Canção Nova e em 2003 lançou, pela editora de sua comunidade, um livreto intitulado “Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de cura e libertação”. O objetivo central do livro é “libertar o povo brasileiro” de todo o sincretismo entendido como religiões espíritas, tendo como representantes as religiões africanas como a Umbanda e o Candomblé, as “filosofias orientais” e até mesmo o Yoga, referidos na obra como “obras do demônio”, de “espíritos malignos” e “das trevas”.

O Ministério Público da Bahia, ingressou com uma ação penal por prática do racismo. O caso chegou ao STF por meio do pedido de Habeas Corpus, sendo decidido no final de 2016, pelo trancamento da ação penal, justificado pela conclusão dos ministros de que apesar do uso de palavras ofensivas e desrespeitosas, não houve crime de racismo.

Analisando, portanto, a motivação dos ministros. O colegiado ponderou sobre o proselitismo e como muitas religiões precisam dele para sobreviver, o que é visível não ser o caso da religião católica, tendo em mente que 50% dos brasileiros são católicos (G1, 2020), ou seja, retirando-se o mérito sobre o proselitismo não justifica de forma alguma a intolerância religiosa, o catolicismo não precisa do proselitismo para sobreviver e também não sofre com o risco de se extinguir, ainda mais em um dos países mais católicos no mundo como o Brasil. Também, os ministros, citam que a própria religião em questão possui em sua filosofia que os seus fiéis busquem converter outros indivíduos e para o convencimento muitas vezes são necessárias comparações ofensivas entre religiões, desse modo, atacar o proselitismo seria atacar a profissão de fé dessa religião.

Tão somente existe a tentativa de justificar a discriminação e o discurso de ódio, tentando colocá-los em situação de “normalidade”, quanto é incitado de que a religião católica tem como profissão de sua fé esse proselitismo deturpado, diferindo de todos os valores de igualdade, fraternidade, respeito que ela prega.

A corte ainda propõe uma averiguação por três etapas, para que seja evidenciado o crime de discriminação no caso concreto, sendo estas etapas a primeira de juízo cognitivo, em que se reconhecem as diferenças entre os indivíduos e a simples declaração na obra de que católicos são diferentes de espiritas, seja em ritos, crença e práticas religiosas, é disposição desta etapa. A segunda etapa, juízo valorativo direcionado à hierarquização, é bem visualizada ao autor inferiorizar as religiões espiritistas como “demoníacas” em relação a sua como “salvadora” e a corte salienta novamente que a comparação entre religião faz parte da própria natureza dos discursos religiosos.

Na terceira etapa, juízo em que se exterioriza a necessidade ou legitimação de exploração, escravização, ou eliminação do indivíduo ou grupo considerado inferior, entendeu-se que a intenção do padre é “salvar” e não há a intenção de isolar ou inferiorizar as pessoas não professantes de sua fé.

Tendo como base o principal argumento da corte sobre o proselitismo e seus conceitos, se torna necessário evidenciar que existem dois tipos de proselitismo, o primeiro de caráter tolerável, não se dirige à coação dos receptores e não se fundamenta na ofensa à religião alheia. O segundo tipo é passível de punição, pois ultrapassa o estágio anterior e além de se valer da discriminação pode usar da imposição aos não aderentes, como discorre Ciáurriz (2001, pág. 141):

Um proselitismo tendencioso, abusivo e explorador da miséria humana, da pobreza, da ignorância, da drogadição, da enfermidade, das necessidades humanas; às vezes é um proselitismo seletivo e excludente; às vezes um proselitismo que joga com vantagens, encerrando-se na mísera captação que tende somente a incrementar o poder, a influência e o dinheiro. Tudo isso se encontra em aberta contradição em o proselitismo que nasce na desinteressada e salutar comunicação da fé e exercício de caridade.

Incompatível com as noções de tolerância e direito fundamental à liberdade religiosa, a decisão de trancamento da ação penal externa um fator histórico e de difícil discussão, o falso Estado Laico. Protegido pela constituição, a laicidade não se faz presente ante à influência das grandes religiões sobre a sociedade como um todo e em um caso concreto de evidente discriminação e intolerância religiosa com todos os termos e provas necessários, a jurisprudência prefere usar até da ofensa ao credo do réu para que o mesmo seja inocentado e tentando avidamente justificar, por meio do proselitismo, as injúrias e claras discriminações.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante ao estudo, denota-se a Liberdade de Expressão e a Liberdade Religiosa como construções revolucionárias da sociedade e integrantes dos direitos da dignidade da pessoa humanas, criadas em detrimento ao caos social e como uma solução imediata e necessária. Tal conduta, motivou o surgimento de lacunas em seus conceitos, bem como a falta de limitação no arbítrio do indivíduo. Tanto a formação apressada e caótica, quanto a sua categorização como direitos fundamentais, influenciou a concepção de que esses direitos são ilimitados e estão acima de qualquer outro, mesmo que entrem em embate contra o dever de punir a intolerância e a discriminação.

A legislação brasileira trata desses direitos de maneira semelhante ao cenário mundial, entretanto, coloca limitações ao seu exercício em seu próprio texto constitucional e penal, bem como assinala de forma expressa a não subordinação entre suas normas. A liberdade de expressão é defendida em toda e qualquer forma, mas a liberdade religiosa sofre algumas restrições ao que a legislação não garante o apoio a prática das religiões e, portanto, esquece que liberdade religiosa não é somente sobre proteção contra a discriminação, mas também sobre liberdade e apoio para professar qualquer fé.

O caso do atentado terrorista à revista Charlie Hebdo enfatiza que a intolerância e o discurso de ódio (hate speech), não se caracterizam somente pela ameaça e a incitação à violência. Eles são toda e qualquer declaração que discrimine, diminua e inferiorize a crença e as convicções de outro indivíduo, provocam o medo, a raiva e o sentimento de exclusão por parte da vítima. A intolerância não pode ser justificada pelo livre exercício do direito à liberdade de expressão, defesa de um princípio democrático ou proselitismo, pois a intolerância ignora uma das principais características desses conceitos, a reciprocidade. O discurso de ódio inviabiliza que a vítima exerça sua liberdade de liberdade de expressão, que ela defenda um princípio democrático e que ela do mesmo modo, pratique o proselitismo de sua fé.

Tolerância não é tão somente não praticar o hate speech utilizando as opiniões e crenças de outro indivíduo, mas também as ouvir e aceitá-las, mesmo que para a sua convicção, elas representem o “erro”.

A jurisprudência brasileira apresenta dois meios de resolver litigâncias com embates entre dois princípios constitucionais, pelo princípio da proporcionalidade e seus subprincípios e pelas três etapas ou três juízos. Ambas apresentam uma ponderação de forma lógica e justa sobre o caso concreto, defendendo a falta de hierarquia entre os direitos e não se valendo da busca por uma brecha para que se coloque um direito acima de outro.

Ademais de nada se valem os mecanismos judiciais adequados se os juristas não ponderarem sobre as várias formas da intolerância, não somente como incitação à violência não entenderem o proselitismo como direito tanto de um indivíduo como de outro, a conversão de mais fiéis para sua fé não pode ser usada de justificativa para a discriminação religiosa. Novamente o direito brasileiro se enquadra na dinâmica de ideal em sua legislação e sua doutrina teoria, entretanto, peca em não formar adequadamente os aplicadores de direito sobre como utilizar seus instrumentos adequadamente, se forma a suprir as necessidades sociais e se adequar à aquela da qual se deriva o direito, a sociedade.


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