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A (i)legitimidade da competência municipal para exigir dos profissionais liberais a tributação do ISS sobre o valor da operação

A (i)legitimidade da competência municipal para exigir dos profissionais liberais a tributação do ISS sobre o valor da operação

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Pode o município, mediante lei ordinária, impor aos profissionais liberais a tributação do ISS com base de cálculo sobre o valor da prestação do serviço, em detrimento da base de cálculo sobre o número de profissionais?

RESUMO: O presente artigo examina a forma de tributação do ISS sobre a atividade dos profissionais, no que diz com os limites da competência municipal para exigir o imposto sobre base de cálculo mensurada pelo valor da prestação. O método de referência é o Constructivismo Lógico-Semântico, pelo qual o ordenamento foi idealmente recortado e seus conceitos descritos a partir dos planos sintático, semântico e pragmático. Concluiu-se que, no ordenamento jurídico brasileiro, a tributação do ISS sobre atividades profissionais, desenvolvida em caráter de pessoalidade, sob responsabilidade de sociedade, deve se dar pelo número de profissionais, sócios ou não, habilitados ao exercício da profissão, porquanto, ilegítima a fazenda municipal para exigir o tributo sobre o valor da prestação.

Palavras-chave: Base de cálculo fixa. Regime Especial. DL nº 406/68. Elemento de empresa. D-SUP.


Introdução

O Decreto-Lei nº 406/68, pela importância que representa para a tributação do ICMS e do imposto sobre serviço de qualquer natureza - ISS, sempre esteve nas mesas de debates, aparecendo aqui, uma vez mais, em especial para a análise da tributação do ISS sobre as atividades profissionais.

E a razão disso é porque, mesmo após a decisão do Supremo Tribunal Federal, no RE nº 236.604/PR, fixando que as disposições do artigo 9º, §§1º e 3º, do Decreto-Lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968, não configuram isenção, porquanto, tendo sido recepcionado o comando normativo pela Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, como base de cálculo de tributação do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN) dos profissionais liberais, ainda assim se mostra recorrente[1], em especial por parte da Prefeitura Municipal de São Paulo, a exigência do imposto sobre as atividades das sociedades de profissionais (advogados, contadores, médicos, engenheiros, arquitetos, entre outros), com base não no valor que leva em conta o número de profissionais habilitados ao exercício da atividade, mas sim no valor da prestação do serviço.

E o disparate é verificado ainda não apenas em relação aos fatos jurídicos ocorridos posteriormente à publicação da lei municipal que alterou a regra de tributação no Município, mas também de modo a atingir inclusive os fatos pretéritos, no interstício decadencial, em evidente afronta às regras estabelecidas pelo artigo 146 do Código Tributário Nacional.

No entender da Fazenda Municipal, o fato de o contribuinte ter registrado seus atos constitutivos na Junta Comercial, sob a forma de sociedade por cotas limitadas, é motivo suficiente para configuração da sua atividade empresarial, porquanto, o imposto deve ser tributado pelo valor da prestação de serviço.

Assim, diante da discussão que se estabeleceu em função da cobrança realizada, alcançando inclusive os fatos jurídico-tributários pretéritos, mesmo a despeito de os contribuintes já terem as suas atividades tributadas e o imposto recolhido sobre a base de cálculo que leva em conta o número de profissionais, este trabalho será elaborado considerando as disciplinas que envolvem a Hermenêutica Jurídica, tais como interpretação do sistema nacional, a partir da Constituição, passando pelas noções e princípios que norteiam a tributação do ISS, e demais instrumentos normativos infraconstitucionais, para, ao fim e acabo, analisar a questão da (in)competência da municipalidade para exigir dos profissionais liberais a tributação do ISS sobre o valor da prestação, em detrimento do valor que leva em conta o número de profissionais.

Registramos, desde logo, que nossas especulações dogmáticas e jurisprudenciais se desenvolverão sob a perspectiva do método do Construtivismo Lógico-Semântico, tal como proposto por Paulo de Barros Carvalho. Ou seja, mediante referencial teórico que permite alcançar o sentido e alcance de cada uma das categorias do objeto analisado, a partir da concepção epistemológica da Filosofia da Linguagem, lógica e racionalmente organizada, e que se exterioriza segundo a teoria comunicacional do direito, considerado no contexto semiótico (sígnico) consistente nos planos sintático, semântico e pragmático.[2]

A propósito do presente trabalho, são precisas as lições de Lourival Vilanova, para quem o jurista é a intersecção da teoria com a prática, da ciência com a experiência.[3]

A expressa menção ao mestre pernambucano se mostra oportuna, na medida em que o objeto do presente trabalho tem como pano de fundo a controvérsia a respeito do conteúdo significativo dos termos utilizados pela legislação como suficiente para a caracterização da atividade de empresa, bem como da forma jurídica social, sob cotas de responsabilidade limitada, por vezes adotadas pelos profissionais, mediante a qual se desenvolve o exercício da atividade, positivada pelo direito civil como intelectual, de natureza científica, literária, cultural ou artística, para fins de tributação do imposto sobre serviços de qualquer natureza ISS.

Assim, o presente trabalho visa analisar os critérios que conformam a regra de tributação do ISS, especificamente no que diz com essas atividades organizadas, sujeitas ao regime jurídico de tributação do imposto sobre serviço de qualquer natureza sob a forma de base de cálculo dimensionada pelo número de profissionais, mas especificamente no que diz com as exigências impostas a essas categorias, qual seja, de ter que se sujeitarem à tributação desse imposto mediante base de cálculo mensurada com base no valor da prestação do serviço.

Antes, porém, é de rigor a fixação de noções propedêuticas para a melhor compreensão do tema a ser tratado, especialmente no que diz com os conceitos e critérios da regra padrão do tributo, de competência dos entes federados, para, ao final, expor as características conceituais e limites impostos pela regra geral de tributação dessa categoria.

Assim, ao final deste trabalho, pretende-se responder à questão sobre quais são os limites jurídicos, aos quais se submete a municipalidade, para, mediante lei ordinária, impor aos contribuintes, classificados logicamente e, por isso, chamados de profissionais liberais, forma de tributação do ISS pelo valor da prestação do serviço em detrimento da base de cálculo sobre o número de profissionais.


2. Conceito de normas no sistema jurídico

Tomamos como premissa o fato de o direito, enquanto objeto da cultura humana, pela linguagem constituído, mediante processo por ele mesmo prescrito, apresentar unidades e princípios que conformam o denominado sistema normativo (ou ordenamento jurídico, consistente no direito posto). Esse conjunto de unidades se relacionam, tanto no sentido horizontal de coordenação, como no da vertical, conferindo assim harmonia e fundamento de validade às suas normas, no propósito específico de regulação das condutas interpessoais.

Todo esse plexo normativo se apresenta, com efeito, sob a forma de textos (premissa ontológica) que se originam de atos de fala prescritivos de conduta (premissa ôntica), cuja apreensão cognoscitiva imprescinde de atividade interpretativa (premissa epistemológica).

A norma, nesse contexto, se apresenta como juízo hipotético de significação, pelo cientista conformada intelectualmente, a partir do texto base do direito, consistindo em vetores que apontam para princípios, os quais, ora como limites objetivos, ora como valores implícitos a serem atingidos, são pelo sistema constitucional consagrados, para realização dos desígnios estatais, em atenção aos anseios sociais.[4]

Os princípios e as regras constitucionais têm, assim, a virtude normativa de fundamentar a edição das normas inferiores, em plena compatibilização vertical, e iluminar a compreensão do direito, como assevera José Eduardo Soares de Melo.[5]

É, portanto, a partir da Constituição, a par de outras regras do sistema possíveis de serem objeto de incidência tributária, que se encontram os requisitos e restrições a serem observados pelo legislador ordinário, ao exercer o seu mister de instituir, em concreto, a regra de incidência tributária, bem como aquelas de natureza sancionatória.

Não obstante, é também no plano constitucional que se alojam limites objetivos, segundo os quais a instituição do tributo deve observância incondicional ao princípio da estrita legalidade em matéria tributária, consoante princípio consagrado nos artigos 5º, II, e 150, I, da Constituição Federal de 1988, a despeito de, em seu artigo 146, prescrever expressamente que compete à lei complementar a tarefa de dispor sobre os conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (i); regular as limitações constitucionais ao poder de tributar (ii); e estabelecer normas gerais em matéria tributária (iii).


3. Normas Gerais e os Limites da Competência do ISS

O estudo da competência é momento que antecede à existência mesma do tributo, já que situado no plano constitucional, como assevera Paulo de Barros Carvalho.[6] Daí, a razão de pôr em evidência a compostura do ordenamento jurídico, a partir do seu plano maior de positivação, para o fim de compreensão desse arquétipo jurídico, bem como dos limites que dele decorrem.

No contexto geral, a ordem jurídica no Brasil (Constituição do Estado Federal) é composta por quatro sistemas normativos, sendo eles: (i) o federal, que compreende parte da ordem total, enquanto União; (ii) o nacional, compreendido por parte da ordem total, enquanto Estado Federal; (iii) o das regras estaduais; e (iv) o das regras municipais. O Estado Federal sujeita-se às regras do sistema nacional, aplicável, inclusive, ao ICMS e ao ISS, uma vez que valem em todo território brasileiro, naquilo que diz com as normas gerais de direito tributário. À União, aplicam-se as regras do sistema federal.[7]

A despeito de constarem no artigo 1º da Constituição, mas não participarem com representação no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, isso dá entender que os Municípios não integram a estrutura federativa. Todavia, a análise sistemática revela que os Municípios são pessoas dotadas de personalidade política, recebem competências constitucionais e mantêm relações de isonomia com a União, Estados e o Distrito Federal.[8]

A densa e rigorosa distribuição de competências impositivas em relação ao ISS, que não é criação da atual Constituição, mas, que vem desde a Constituição de 1967, como assevera o autor, se dá a partir do Texto Maior, bem como pela ação de normas gerais, que, juntas, conferem o feixe de proposições aos entes políticos internos.[9]

Nessa esteira, diante da existência de normas tanto de estrutura como de comportamento, mediante procedimento pelo próprio direito estabelecido, se faz possível a criação de outras normas, classificadas como geral e abstrata, geral e concreta, individual e abstrata e, ainda, individual e concreta, que, inseridas no ordenamento, concretizam a positivação das condutas interpessoais.

Desse modo, na linha do que leciona Paulo de Barros Carvalho, recortada no plexo das atribuições de que dispõem os entes públicos, competência legislativa é aptidão de que são dotadas as pessoas políticas para expedir regras jurídicas, inovando o ordenamento positivo.[10]

A competência, nesse contexto, encontra limitações impostas pela própria estrutura constituída pelo ordenamento jurídico. Dentre os limites impostos pela Constituição para o exercício da competência tributária, de observância obrigatória, estão os princípios, destacando-se, dentre eles, o da legalidade, cujas características demonstram os exatos limites de atuação do outorgado.

Com efeito, em relação ao ISS, verifica-se que desde a Constituição de 1967 artigo 25, II , é competência dos Municípios a instituição desse imposto, mas desde que definido mediante lei complementar[11], sendo tal regra mantida pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969, em seu artigo 24, II, e pelo atual texto Constitucional.[12]

Nesse contexto, o artigo 146, da Constituição vigente, exerce o papel de norma de estrutura, interferindo nos limites conceituais delimitadores dos critérios da norma de outorga de competência, conferida ao legislador complementar, para que normas gerais em matéria tributária sejam produzidas, de modo a dispor sobre conflitos de competência entre as entidades tributantes, União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (I), regular as limitações constitucionais ao poder de tributar (II), bem como estabelecer os tributos e suas espécies, fatos geradores, base de cálculo, obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência.[13]

Ademais, a norma decorrente do artigo 156, III, da CF, combinada com aquelas do seu § 3º, que dispõe caber ainda à lei complementar fixar as alíquotas máximas e mínimas (I), excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior (II), regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados (III), têm eficácia limitada, pois, a apesar de surtir seus efeitos desde a sua entrada em vigor, necessitam de norma colocada a cargo do legislador infraconstitucional, para dar-lhe plena eficácia.

Assim, os titulares da competência tributária, se encontram inexoravelmente vinculados aos ditames das normas de estrutura e, por isso mesmo, não podem se afastar dos limites a eles impostos pelo sistema, sob pena de incorrer em ilegalidade e inconstitucionalidade. De igual modo, também unidos por essa mesma imposição relacional normativa, encontram-se os municípios que, ao expedirem suas regras regulamentares, assim como de aplicação das normas gerais, não podem se afastar dos ditames legais, sob pena de cometerem ilegalidades e inconstitucionalidades.

Nesse sentido, Aires F. Barreto:

Isso significa que os contornos traçados pela Constituição, na outorga de competências tributárias, não podem ser ultrapassados por nenhuma norma infraconstitucional, seja ela lei complementar ou lei ordinária. Por muito maior razão, não podem excedê-los decretos, portarias ou resoluções. Ato legislativo ou administrativo que o faça será inconstitucional ou, respectivamente, ilegal.

Assim, se a competência outorgada for para descrever A, não pode a pessoa política descrever B, nem A1, nem A2, nem A3, mas apenas A. Qualquer exorbitância da competência importa inconstitucionalidade. A edição de normas (legais ou infralegais) que disciplinem a matéria tributária desde as que descrevam a hipótese de incidência e bem assim os sujeitos da obrigação, base de cálculo e a alíquota, até aqueloutras que versam os demais aspectos, periféricos à regra-matriz devem limitar-se aos precisos, rigorosos e estritos termos da outorga constitucional de competência.[14]

Assim, a atuação do ente público, dotado de competência para inovar a ordem jurídica, seja no exercício da atividade legiferante, seja na regulação ou aplicação das normas gerais ao caso concreto, encontra limites bem definidos pelo próprio ordenamento jurídico, que, para além dos limites objetivos, como o da legalidade, irretroatividade das leis, devido processo legal e ampla defesa, etc., impõe-lhes também o respeito a valores maiores que a sociedade espera sejam realizados, tais como o da segurança jurídica, certeza do direito, além daqueles que exigem do ente público atuação segundo o princípio da moralidade pública, eficiência, dentre outros (art.37, CF/88).


4. Decreto-Lei nº 406/68, e Atos Posteriores, que Definiram a Lista de Serviços

Como visto acima, no art. 25, II da Constituição de 1967, mantido pelo art. 24, II da EC 1/1969, da proposição que compreende o feixe de regras de competência conferidas ao ente municipal para instituição e arrecadação do imposto sobre serviços de qualquer natureza, é parte também aquela regra para, mediante lei complementar, definir os serviços tributáveis.

Desse modo, a lista de serviços surgiu por conta da edição do Decreto-Lei nº 406/68, contando com 29 itens, sendo, posteriormente, alterado pelo Decreto-Lei nº 834/69, que, suprindo uns e inserindo outros itens, deu nova redação à lista anexa ao Decreto-Lei nº 406/68, ocasião em que novos serviços passaram a ser tributados.

Sob a égide da EC nº 1/69, a lei nº 7.912/84 inseriu na lista o item 67, para abranger os serviços de profissionais de relações públicas. Mais tarde, a Lei Complementar nº 56/87 promoveu alterações na lista de serviços, incluindo, por exemplo, os itens 5 e 6 relativos à assistência médica e congêneres" e "planos de saúde".

Nessa esteira, institucional-definitória e suas formas evolutivas, com fundamento já no artigo 146 da CF/88, a Lei Complementar nº 116/2003, além das regras gerais de tributação do imposto, instituiu novo rol de serviços sujeitos à incidência do ISS, sendo também, por sua vez, alterada, nesse ponto, pelas Leis Complementares nº 157/2016, 175/2020 e 183/2021.

Nesse contexto, nota-se que por ocasião da edição da LC nº 116/2003, ante o disposto no seu art. 10, foram revogados o inciso V, do Decreto-Lei nº 834/69, e a LC nº 56/87, que deram nova redação ao artigo 9º do Decreto-Lei nº 406/68.

Diante das revogações, suscitou a discussão no sentido de saber se, uma vez revogada a lei posterior, ocorreria a repristinação da norma por ela alterada, que, no caso, consistia na antiga redação do art. 9º, e §§, do DL 406/68.

Todavia, a controvérsia foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, quando da edição da Súmula nº 663, veiculando a seguinte redação: Os §§ 1º e 3º do art. 9º do DL 406/68 foram recebidos pela Constituição.

Desse modo, uma vez recepcionado pela Constituição, o Decreto-Lei nº 406/68 cumpre a função de lei complementar de que dispõe o art. 146, III, a, da CF/88.


5. Critério Material de Tributação da Atividade Profissional

Visto pelo prisma do direito civil, a teoria da empresa não conseguiu superar a bipartição do direito privado, enquanto legado Napoleônico, clássica nos países de tradição romana. A despeito da mudança dos critérios de delimitação do objeto do Direito Comercial que deixou de ser atos de comércio para exercer atos de empresarialidade , isso não foi, todavia, suficiente para suprimir a dicotomia entre o regime jurídico civil e o comercial. Portanto, de acordo com o Código Civil, continuam devidamente segregadas, ocupando dois polos distintos, algumas atividades econômicas. Nesse diapasão, são atividades civis, por exemplo, a aquelas impedidas de incorrer em recuperação judicial.[15]

Segundo Fábio Ulhoa Coelho:

São quatro hipóteses de atividades econômicas civis. A primeira diz respeito às exploradas por quem não se enquadra no conceito legal de empresário. Se alguém presta serviços diretamente, mas não organiza uma empresa (não tem empregados, por exemplo), mesmo que o faça profissionalmente (com intuito lucrativo e habitualidade), ele não é empresário e o seu regime será o civil. ()

As demais atividades civis são as dos profissionais intelectuais, dos empresários rurais não registrados na Junta Comercial e a das Cooperativas.[16]

Assim, diante do que dispõe o art. 966, caput, do Código Civil brasileiro: considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para produção ou circulação de bens ou de serviços.

O Código Civil, no parágrafo único, do mesmo artigo, foi incisivo ao excluir daquele âmbito de circunscrição do conceito classificatório de empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

Nessa esteira de positivações, parece não ter o legislador civil deixado dúvida a respeito da dicotomia existente entre as categorias econômicas institucionalizadas pelo direito sob formas distintas que têm, de um lado, a atividade profissional, organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, e, de outro, as atividades econômicas civis, que não se encontram sujeitas ao direito comercial, composta pelos chamados profissionais liberais (advogado, médico, dentista, contador, arquiteto, engenheiro, etc.), os escritores e artistas de qualquer expressão (plásticos, músicos, atores etc.).

Todavia, a particularidade do conceito, nesse caso, que ainda desafia a doutrina e movimenta os tribunais, diz exatamente com a amplitude da regra prescrita na parte final do parágrafo único, do mesmo dispositivo legal, mediante a qual o profissional se enquadra no conceito de empresário, pelo fato de o exercício da profissão, ainda que intelectual, constituir o denominado elemento de empresa.

A despeito da pluralidade semântica que o enunciado normativo provoca, parece precisa a definição linguística constituída por Fábio Ulhoa Coelho, quando exemplifica:

Imagine o médico pediatra recém-formado, atendendo seus primeiros clientes no consultório. Já contrata pelo menos uma secretária, mas se encontra na condição geral dos profissionais intelectuais: não é empresário, mesmo que conte com o auxílio de colaboradores. Nesta fase, os pais buscam seus serviços em razão, basicamente, de sua competência como médico. Imagine, porém, que, passando o tempo, este profissional amplie seu consultório, contratando, além de mais pessoal de apoio (secretária, atendente, copeira etc.), também enfermeiros e outros médicos. Não chama mais o local de atendimento de consultório, mas de clínica. Nesta fase de transição, os clientes ainda procuram aqueles serviços de medicina pediátrica, em razão da confiança que depositam no trabalho daquele médico, titular da clínica. Mas a clientela se amplia e já há, entre os pacientes, quem nunca foi atendido diretamente pelo titular, nem o conhece. Numa fase seguinte, cresce mais ainda aquela unidade de serviços. Não se chama mais clínica, e sim hospital pediátrico. Entre os muitos funcionários, além dos médicos, enfermeiros e atendentes, há contador, advogado, nutricionista, administrador hospitalar, seguranças, motoristas e outros. Ninguém mais procura os serviços ali oferecidos em razão do trabalho pessoal do médico que os organiza. Sua individualidade se perdeu na organização empresarial. Neste momento, aquele profissional intelectual tornou-se elemento de empresa. Mesmo que continue clinicando, sua maior contribuição para a prestação dos serviços naquele hospital pediátrico é a de organizador dos fatores de produção. Foge, então, da condição geral dos profissionais intelectuais e deve ser considerado, juridicamente, empresário.[17] (Os sublinhados não constam no original.)

Transportando as lições oferecidas para os domínios do direito tributário, sobreleva-se a compreensão do termo no sentido de que, para tributação das atividades profissionais (intelectual, de natureza científica, literária ou artística), se mostra relevante o caráter da pessoalidade na prestação do serviço. Assim, não se mostrando exclusivamente pessoal a atividade exercida, ou não estando presente na prestação o caráter personalíssimo do prestador, e sim fatores que pela lei fogem a essa característica, a atividade é considerada como empresa, por conta do elemento de conexão jurídica que vincula esse fator excludente da pessoalidade àquele critério de materialidade da norma definidora de empresa. E, assim sendo, inexistente o caráter exclusivamente perseguido, não se configura o critério material da norma para fins de tributação na forma de profissionais, mas sim como sendo de caráter empresarial.

Nesse sentido, ao examinar a questão da base de cálculo diversa do preço, Aires F. Barreto foi categórico ao afirmar que:

() consoante o disposto no art. 7º da Lei Complementar n. 116/2003, a base de cálculo do ISS é o preço do serviço. Esta é a regra geral. Todavia, como persistem válidos e eficazes os §§ 1º e 3º do Decreto-lei n. 406/68, segue-se que prevalece a existência de base de cálculo diversa do preço, para os casos de trabalho pessoal do próprio contribuinte e de sociedades de profissionais.[18] (Os destaques não constam no original.)

E, mais adiante, enfatiza o autor a característica da natureza jurídica do serviço, quando prestado sob a forma de sociedade conformada por profissionais:

É certo que as razões que levam os profissionais que realizam trabalhos científicos e técnicos a se reunir em sociedade são bem distintas dos motivos que pressupõem a constituição de uma empresa.

Enquanto advogados, médicos, costureiras, cabeleireiros etc. reúnem-se em sociedade em busca de oferecer maior presteza e qualidade de serviços com a soma do conhecimento do grupo, bem como dividir despesas e economizar custos, as empresas caracterizam-se essencialmente pela busca do lucro. As sociedades de profissionais, embora possam vir a ter lucro, encontram motivação diversa. Deveras, distintos são os motivos que justificam a constituição de uma sociedade de profissionais e uma sociedade de capitais. Em uma sociedade de profissionais a característica marcante é a reunião de pessoas que possuem profissões afins. Esses profissionais juntos prestarão serviços que poderiam fazer individualmente. ()

O trabalho pessoal e a individualidade do serviço são os timbres marcantes da sociedade de profissionais. Embora reunidos em sociedade, os sócios realizam trabalhos que poderiam ser prestados isoladamente por cada profissional ou sócio. São justamente estes pontos diferenciais que autorizam a tributação minorada para as sociedades de profissionais. Tal tratamento surge como exigência dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva.[19]

Diante disso, nota-se que a característica marcante da atividade profissional é justamente o fato de os serviços serem prestados em caráter de pessoalidade, característica essa denotada como propriedade fundamental para constituir o critério material da norma de tributação.

Nesse sentido, foram também as orientações firmadas no âmbito da primeira seção do Egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ)[20].


6. Critério Quantitativo da Regra Matriz do ISS Sobre Atividades Profissionais

O critério quantitativo exerce papel relevante na configuração estrutural da regra-matriz de incidência tributária, pois, inserto no consequente da norma padrão de tributação (da categoria geral e abstrata), além de, juntamente com a alíquota (função objetiva), dar a dimensão do quantum devido a título de tributo (função mensuradora), possibilita ainda afirmar, confirmar ou infirmar o núcleo da materialidade descrita na hipótese de incidência do antecedente normativo (função comparativa).[21]

A base de cálculo contribui, ademais, para o fiel cumprimento ao primado Constitucional da capacidade contributiva, conforme assevera Paulo de Barros Carvalho:

(...) é mister que o editor na norma jurídica geral e abstrata respeite a diretriz suprema, porque constitucional, da capacidade contributiva relativa, que pode ser expressa na exigência do tributo nos estritos termos em que a hipótese estipular e a base de cálculo dimensionar.[22]

Portanto, ao instituir o imposto, o legislador ordinário não pode se afastar desses pressupostos que o ordenamento lhe impõe como limites axiologicamente consagrados pelo Texto Supremo.

Nessa esteira, no que toca à tributação do imposto sobre serviços de qualquer natureza, relativamente aos profissionais liberais, diz o Decreto-Lei nº 406/68:

Art. 9º. A base de cálculo do impôsto é o preço do serviço.

§ 1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o impôsto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.

(...)

§ 3° Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1°, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.

À luz desses enunciados, como dito alhures, recepcionados pela CF/88, sistematicamente interpretados, parece transparente o entendimento no sentido de que, em se tratando de serviço profissional, prestado sob a forma de trabalho pessoal (§1º), relacionados nos itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa[23] (§3º), estabelecida pela Lei Complementar nº 56/87, mediante a forma jurídica de sociedades, a tributação do imposto deverá levar em conta, para fins de dimensão da base de cálculo, à qual se agregará a alíquota fixa ou variável (§1º), o número de profissionais habilitados ao exercício da profissão, independentemente da participação, ou não, destes, na condição de sócios, nos atos constitutivos da sociedade (§3º).

Significa isso dizer que, ainda que o serviço seja prestado por funcionários habilitados ao exercício da profissão, e a prestação se dê sob responsabilidade da sociedade, na mensuração da base de cálculo, todos, sócios ou não, deverão ser levados em conta para fins de composição do critério quantitativo.

Diferentemente do que já foi defendido -- por exemplo, por parte do Município de Curitiba/PR --, a previsão contida no dispositivo supramencionado trata de regra ampla de composição de base de cálculo, especificamente instituída para tributar, pelo ISS, a atividade dos profissionais liberais.

Na oportunidade, o município paranaense, nos autos do RE 236.604/PR, entendendo no sentido da não recepção, pela Constituição de 1988, dos §§ 1º e 3º, do art. 9º, do DL nº 406/68, sustentava que a forma de tributação que reduzia a base de cálculo do ISS dos profissionais configurava uma isenção parcial, por isso, vedada pelo art. 151, III, da CF/88.

Todavia, por ocasião do julgamento, o Relator, Ministro Carlos Veloso, deixou claro que tais dispositivos foram devidamente recepcionados pela Constituição[24], por força da incidência da regra do § 5º do art. 34, do ADCT, porquanto, não se tratando de isenção, mas sim de base de cálculo.[25]

Mais tarde, nos autos do RE 940.769/RS, julgado em sede de repercussão geral, cadastrado sob o tema 918, o Egrégio Supremo Tribunal Federal voltou a enfrentar a questão, ocasião em que fixou a seguinte tese:

É inconstitucional lei municipal que estabelece impeditivos à submissão de sociedades profissionais de advogados ao regime de tributação fixa em bases anuais na forma estabelecida por lei nacional.

Assim, observadas as definições expedidas em sede de normas gerais, o critério que compõe a regra matriz de incidência tributária do imposto sobre o serviço dos profissionais liberais é requisito que se impõe ao legislador ordinário, quando da instituição e cobrança do tributo, sob pena de incorrer em ilegalidade e inconstitucionalidade.

Não obstante, o dever de observância da regra se impõe também a todos os operadores do direito, seja na condição de aplicadores, em razão do exercício da função de lançamento, seja em função do exercício de adjudicação do direito, pois, ante a força pujante que emana do julgamento do RE 940.769, a tese firmada naqueles autos tem efeitos que, por sua própria natureza, são transubjetivos, porquanto a todos vinculando juridicamente.


7. Forma de Tributação no Âmbito Municipal

No âmbito da legislação municipal, dos municípios que se tem notícia, até mesmo pela expressão e representatividade econômica[26], em boa parte deles, o ISS foi instituído e, em certa medida, obedecendo aos critérios estabelecidos pelo sistema jurídico. Ou seja, pelo menos naquilo que consiste em garantia constitucional do contribuinte, de poder tributar o imposto sobre serviços segundo a perspectiva da regra matriz de incidência tributária instituída, cuja base de cálculo se compõe, ou pelo valor da operação, ou pela soma do número de profissionais liberais, sem amplificação dos critérios da norma de tributação.

Por outro lado, entretanto, tomando-se por exemplo a legislação do Município de São Paulo, outro tanto há que ser dito, já que a situação dos profissionais não tem se mostrado tão tranquila assim.

Isso porque, quando da edição da Lei nº 13.701/03, em seu artigo 15, II e §§ 1º e 2º, foi estabelecido que o recolhimento do ISS, através de base de cálculo fixa, também chamado de regime especial, se daria em relação aos serviços, descritos nos subitens 4.01 -Medicina e biomedicina, 4.02 - Análises clínicas, patologia, eletricidade médica, radioterapia, quimioterapia, ultra-sonografia, ressonância magnética, radiologia, tomografia e congêneres), 4.06 - Enfermagem, inclusive serviços auxiliares, 4.08 - Terapia ocupacional, fisioterapia e fonoaudiologia, 4.11 - Obstetrícia, 4.12 - Odontologia, 4.13 - Ortóptica, 4.14 - Próteses sob encomenda, 4.16 - Psicologia, 5.01 - Medicina veterinária e zootecnia, 7.01 - Engenharia, agronomia, agrimensura, arquitetura, geologia, urbanismo, paisagismo e congêneres (exceto paisagismo), 17.13 - Advocacia, 17.15 - Auditoria, 17.18 - Contabilidade, inclusive serviços técnicos e auxiliares, da lista do caput do art. 1º, bem como aqueles próprios de economistas, prestados por sociedade, cujos profissionais, sócios, empregados ou não, habilitados ao exercício da mesma atividade, os desenvolvesse de forma pessoal, em nome da sociedade, assumindo responsabilidade pessoal.

Por força do originário parágrafo segundo, do mesmo dispositivo legal, entretanto, ficaram excluídos do regime de tributação dos profissionais as sociedades que tivessem como sócio pessoa jurídica (I), fossem sócias de outra sociedade (II), desenvolvessem atividade diversa daquela para a qual estivessem habilitados profissionalmente os sócios (III), tivessem sócio que delas participasse apenas para aportar capital ou administrar (IV), e, por fim, explorassem mais de uma atividade de prestação de serviços (V).

E assim, sob os efeitos decorrentes dessa regra geral de incidência da tributação, os profissionais liberais vinham recolhendo o ISS.

Ocorre que, com o advento da lei nº 15.406, de 08.07.2011, novos critérios foram acrescidos ao §2º, do artigo 15, da Lei nº 13.701/2003, de modo que passaram também a ser expressamente excluídos do regime as sociedades, que: terceirizassem os serviços por ela desempenhados (VI); se caracterizem como empresárias ou cuja atividade constituísse elemento de empresa (VII), fossem filiais, sucursais, agências, escritório de representação ou contato, ou qualquer outro estabelecimento descentralizado ou relacionado a sociedade sediada no exterior (VIII).

A alteração, entretanto, tal como plasmada, em especial no que diz com o famigerado elemento de empresa (inciso VII), é despicienda, pois, como visto acima, de duas, uma, ou a sociedade se conforma por sócios que exercem a atividade de empresa, assim entendida como sendo aquela organizada para fins de produção ou circulação de bens ou serviços e, nesse conceito, já se encontraria o elemento de empresa, por conta do que dispõe a parte final do parágrafo único, do art. 966, do CC, porquanto, de qualquer modo, ficando fora daquelas atividades tributadas pelo regime especial ; ou se constitui sob a forma de sociedade civil, assim configurada pelo exercício de atividade profissional liberal é dizer: formada por sócios habilitados para o exercício de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que se valendo de auxiliares e colaboradores, em caráter de pessoalidade, e sob responsabilidade da sociedade, tal como disposto pelo parágrafo único do art. 966, do CC, combinado com o art. 9º, §§ 1º e 3º, do DL 406/68, como pacificado pela jurisprudência do STJ (EREsp 866.286/ES).

Além disso, a Lei nº 16.240, editada em 22.07.2015, ao acrescentar os §§ 10 e 11 ao art. 15, da Lei nº 13.701/03, fez com que o sistema passasse a vigorar com norma segundo a qual as pessoas jurídicas que deixassem de apresentar qualquer declaração relacionada ao regime previsto no artigo 15 seriam consideradas não optantes, porquanto desenquadradas do regime, consoante prazos e condições estabelecidos através de atos de regulamentação administrativos.

A pretensão de instituir obrigação instrumental por meio de ato infralegal, todavia, eiva de vício, tanto a própria lei como o ato administrativo dela decorrente, por não se amoldar às regras estabelecidas pelo ordenamento jurídico.

Isso porque, ao dispor genericamente sobre uma possível declaração, cingindo apenas a utilizar o termo qualquer declaração, sem, contudo, cuidar em minúcias das características elementares da sua instituição, o ato do legislativo incorreu em afronta direta ao princípio da indelegabilidade, portanto, passível de ser declarado inconstitucional, como assevera Celso Antonio Bandeira de Melo.[27]

Por outro lado, diante da regulamentação do fato delegado, ao assim proceder, o ato administrativo será considerado ilegal, porquanto, nulo, como assevera Roque Antonio Carraza[28].

Assim, os vícios perpetrados são, portanto, incontornáveis, pois, segundo nosso sistema jurídico, não se pode conceber que obrigação acessória seja instituída por ato infralegal, com fundamento apenas em disposições genéricas de lei.

Todavia, ressalta-se que, mesmo diante de todas as vicissitudes identificadas, a alteração produzida pela lei nº 16.240/2015 ensejou a edição da Instrução Normativa SF/SUREM nº 13, de 18.09.2015. Por ocasião de sua expedição, foi instituída a Declaração Eletrônica das Sociedades de Profissionais (D-SUP), para fins de verificação da regularidade cadastral, contábeis e fiscais do contribuinte, para serem comparados com os requisitos do artigo 15 da Lei nº 13.701/2003.

Dentre os efeitos malévolos desse ato administrativo, destaca-se as disposições do artigo 4º, que dispõe sobre a possibilidade de o contribuinte poder ser automaticamente excluído do seu regime especial de tributação, assim que prestadas as informações cadastrais e transmitida a declaração.[29]

Nesse ponto, é curioso notar que, a despeito do desenquadramento automático, não havia previsão para que o contribuinte pudesse sequer impugnar a decisão eletrônica, nem tampouco a data de notificação para tanto, fato esse que veio acontecer somente com a publicação da Instrução Normativa SF/SUREM nº 8, de 24.05.2021, para surtir efeitos a partir de 1º de junho de 2021, pelo que, o ato demonstra ser, além de ilegal, também contrário ao ditames constitucionais relativos ao necessário respeito ao devido processo legal e às garantias dele decorrentes, bem como ao contraditório e a ampla defesa (art.5º, LIV e LV, CF/88).

Além disso, o parágrafo único, do mesmo artigo 4º, dispõe que, sendo o caso de desenquadramento automático, o contribuinte fica obrigado ao preenchimento de todas as informações, para fins de cálculo do ISS, com base no valor das prestações, relativamente aos cinco anos anteriores (prazo decadencial), contados da entrega da declaração[30].

A regulamentação, entretanto, tal como positivada, se choca com as regras dispostas pelo artigo 146 do CTN, na medida em que referido artigo veda que as modificações nos critérios jurídicos atinjam fatos pretéritos.[31]

Nesse sentido, ao tratar do ato de lançamento, enquanto fato jurídico tributário, Paulo de Barros Carvalhos leciona que:

as regras que determinam os atos de aplicação do direito ao caso concreto, chamamos de atos formais, serão as de vigência atual, na data da celebração do ato de lançamento, ou da norma expedida pelo particular, ao passo que as atinentes ao relato do evento, bem como as determinadoras da relação jurídica que se instala por virtude da constituição do fato, estas serão as que estiverem em vigor na data do evento.

Mantenhamos presentes esses dois pontos da sequência temporal, imprescindíveis para a boa compreensão do fato jurídico tributário: i) a data atribuída à realização do evento relatado no enunciado denotativo e ii) a data da constituição jurídica do fato, isto é, o dia em que o sujeito competente, após emitir a regra individual e concreta, deu ciência de seu conteúdo ao sujeito destinatário. Salientemos que os efeitos serão sempre futuros: o recuo ao passado ou a atenção para o presente são opções quanto à seleção das normas aplicáveis.[32] (O destaque não consta no original)

Assim, carece de fundamento de validade o enunciado protocolar consistente no fato jurídico tributário constituído com base em norma geral e abstrata inserida no ordenamento jurídico após a ocorrência do evento. Nesse contexto, por não encontrar fundamento em norma válida no sistema, ao tempo da ocorrência do evento, o fato jurídico que constitui a relação jurídico-obrigacional é ilegal, porquanto, passível de ser anulado.

Outro ponto conflitante, decorrente das alterações acima mencionadas, diz com a forma de empresa, quando constituída mediante cotas de responsabilidade limitada, com registro na Junta Comercial. No entender da Fazenda Municipal, o fato é passível de desenquadramento do contribuinte do seu lídimo regime de tributação.

Ocorre que a interpretação, nesse ponto, também é abusiva, em relação às formas estabelecidas pelo direito, como já sinalizado pelo Superior Tribunal de Justiça, ao entender que o sistema jurídico não veda que os profissionais se organizem em sociedade por cotas limitadas.

Nesse sentido, as decisões, tanto da primeira como da segunda turma, do colendo Superior Tribunal de Justiça, sinalizado no sentido de que, em regra, nas sociedades formadas por profissionais intelectuais para a exploração da profissão não está presente a organização dos fatores de produção, necessária para a configuração do caráter empresarial.[33]

Isso porque, como consignado na ementa, o próprio Código Civil, em seu artigo 983, admite que uma sociedade simples se constitua como uma sociedade limitada. O fato, por si só, de ela utilizar esse tipo societário não a descaracteriza como sociedade simples se o seu objeto não for empresarial.

Nesse contexto, também se mostra relevante o entendimento da Corte Superior no sentido de que o fato de a sociedade ser constituída como simples limitada não implica na sua forma de tributação, por não interferir na responsabilidade pessoal atribuída pela lei que regulamenta a profissão[34].


8. Conclusão

Assim, diante do que foi exposto, respondendo objetivamente à questão inicial colocada, sobre os limites jurídicos a que está sujeita a municipalidade para, mediante lei ordinária, impor aos profissionais liberais a tributação do ISS com base de cálculo sobre o valor da prestação do serviço, em detrimento da base de cálculo sobre o número de profissionais, conclui-se que o sistema jurídico tributário brasileiro é expresso quanto à forma de tributação do imposto sobre serviços de qualquer natureza, incidente sobre a atividade profissional intelectual, de natureza científica, literária ou artística, desenvolvida em caráter de pessoalidade, e sob responsabilidade de sociedade, calculada com base de cálculo mensurada pelo número de profissionais, sócios ou não, habilitados ao exercício da profissão, uma vez que, diante do que positivado pelo ordenamento jurídico brasileiro, tais atividades econômicas são exclusivamente de natureza jurídica civil, e não empresarial organizada para fins de produção e circulação de produtos ou serviços, porquanto, ilegítima a competência da fazenda municipal para exigir o tributo sobre o valor da prestação.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VILANOVA, Lourival. Fundamentos do estado de direito. In Escritos jurídicos e filosóficos, v.I


  1. Processo nº 1039886-92.2021.8.26.0053; Processo nº 1007025-53.2021.8.26.0053

  2. A expressão Constructivismo Lógico-Semântico é empregada em dois sentidos: (i) para se reportar à Escola Epistemológica do Direito da qual somos adeptos, fundada nas lições dos professores PAULO DE BARROS CARVALHO e LOURIVAL VILANOVA e que vem, a cada dia ganhando mais e mais seguidores no âmbito jurídico e (ii) ao método utilizado por esta Escola que pode ser empregado no conhecimento de qualquer objeto. A proposta metodológica da Escola do Constructivismo Lógico-Semântico é estudar o direito dentro de uma concepção epistemológica bem demarcada, a Filosofia da Linguagem (uma das vertentes da filosofia do conhecimento) e a partir deste referencial, amarrar lógica e semanticamente suas proposições para construção de seu objeto (que se constitui em uma das infinitas possibilidades de se enxergar o direito. (CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito: constructivismo lógico-semântico. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2016, p. 100.)

  3. VILANOVA, Lourival. Fundamentos do estado de direito. In Escritos jurídicos e filosóficos, v. I, p. 414

  4. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 4ª ed. São Paulo: Noeses, 2011. pp.126-153

  5. MELO, José Eduardo Soares de. ICMS. Teoria e prática. São Paulo: Dialética, 1995. p. 46

  6. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 281

  7. CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e Positivação no Direito Tributário. Vol. III. São Paulo: Noeses, 2016. p. 154-157

  8. Idem.

  9. Idem.

  10. CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit. p.217

  11. Art 25 - Compete aos Municípios decretar impostos sobre: () II - serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência tributária da União ou dos Estados, definidos em lei complementar.

  12. CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e Positivação no Direito Tributário. Vol. II. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2017. p. 316

  13. Art. 146. Cabe à lei complementar: I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas. d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

  14. BARRETO, Aires F. Curso de direito tributário municipal. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.28

  15. COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 23ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.34

  16. Idem. p.34

  17. Idem. Op. Cit. p. 35-36

  18. Idem. Op. Cit. p.434

  19. Idem. Op. Cit. p.442-443

  20. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. SOCIEDADE UNIPROFISSIONAL. BASE DE CÁLCULO DO ISS DIFERENCIADA. DECRETO-LEI Nº 406/68. ATIVIDADE NÃO EMPRESARIAL. 1. As sociedades uniprofissionais somente têm direito ao cálculo diferenciado do ISS, previsto no artigo 9º, parágrafo 3º, do Decreto-Lei nº 406/68, quando os serviços são prestados em caráter personalíssimo e, assim, prestados no próprio nome dos profissionais habilitados ou sócios, sob sua total e exclusiva responsabilidade pessoal e sem estrutura ou intuito empresarial. 2. Precedente da Primeira Seção (AgRgEREsp nº 941.870/RS, da minha Relatoria, in DJe 25/11/2009). 3. Embargos de divergência rejeitados. (EREsp 866.286/ES, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 29/09/2010, DJe 20/10/2010)

  21. CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 626-630

  22. Idem. Op. Cit., p. 676

  23. Os itens, aos quais o §3º faz referência, dizem com as seguintes atividades profissionais: 1. Médicos, inclusive análises clínicas, eletricidade médica, radioterapia, ultra-sonografia, radiologia, tomografia e congêneres); 4. Enfermeiros, obstetras, ortópticos, fonoaudiólogos, protéticos (prótese dentária); 8. Médicos veterinários; 25. Contabilidade, auditoria, guarda-livros, técnicos em contabilidade e congêneres; 52. Agentes da propriedade industrial; 88. Advogados; 89. Engenheiros, arquitetos, urbanistas, agrônomos; 90. Dentistas; 91. Economistas; e 92. Psicólogos.

  24. EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISS. SOCIEDADES PRESTADORAS DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS. ADVOCACIA. D.L. 406/68, art. 9º, §§ 1º e 3º. C.F., art. 151, III, art. 150, II, art. 145, § 1º. I. - O art. 9º, §§ 1º e 3º, do DL. 406/68, que cuidam da base de cálculo do ISS, foram recebidos pela CF/88: CF/88, art. 146, III, a. Inocorrência de ofensa ao art. 151, III, art. 34, ADCT/88, art. 150, II e 145, § 1º, CF/88. II. - R.E. não conhecido. (STF, Pleno, Recurso Extraordinário nº 236.604/PR, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 26/05/1999)

  25. Do corpo do referido julgado, destaca-se os seguintes excertos, do voto do relator: Abrindo o debate, deixo expresso o meu entendimento no sentido de que as disposições inscritas nos §§ 1º e 3º do DL 406/68 não configuram isenção. O art. 9º e seus §§ dispõem a respeito da base de cálculo do ISS, certo que, na forma do estabelecido na Constituição Federal, art. 146, III, a, cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.

  26. De acordo com o IBGE, há no Brasil 5.568 municípios, mais o Distrito Federal e Distrito Estadual de Fernando de Noronha. <https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/estrutura-territorial/15761-areas-dos-municipios.html?=&t=o-que-e>. Acesso em: 18.07.2021.

  27. a indelegabilidade, enquanto princípio constitucional, resulta diretamente, ainda que de modo implícito, do art. 2º do Texto Magno, de acordo com o qual: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". MELO, Celso Antonio Bandeira de. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. p.365

  28. Segundo Roque Antonio Carrazza: O regulamento, dentro da "pirâmide jurídica", está abaixo da lei. Logo, não a pode nem ab-rogar, nem modificar. Deve, sim, submeter-se às disposições legais, inspirando-se em suas diretivas, sem as contrariar. Se infringir ou extrapolar a lei, será nulo.

    Podemos, assim, afirmar que o regulamento que contradita ou vai além da lei é inconstitucional. No exercício da faculdade regulamentar, o Executivo não pode invadir a esfera de atribuições do Legislativo. (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p.403)


Autor

  • Valter Gonçalves Carro

    Mestrando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários IBET/SP. Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor Seminarista do Curso de Especialização em Direito Tributário pelo IBET. Advogado.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARRO, Valter Gonçalves. A (i)legitimidade da competência municipal para exigir dos profissionais liberais a tributação do ISS sobre o valor da operação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6714, 18 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94666. Acesso em: 9 maio 2024.