Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/9624
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Concubinato adulterino

uma entidade familiar a ser reconhecida pelo Estado brasileiro

Concubinato adulterino: uma entidade familiar a ser reconhecida pelo Estado brasileiro

Publicado em . Elaborado em .

O chamado concubinato adulterino, que compreende também os casos em que ao menos um dos participantes mantém união estável, não raro produz injustiças em face de uma das partes — invariavelmente, a concubina.

"O distanciamento dos parâmetros comportamentais majoritários ou socialmente aceitáveis não pode ser fonte geradora de favorecimentos. Não ver fatos que estão diante dos olhos é manter a imagem da Justiça cega. Condenar à invisibilidade situações existentes é produzir irresponsabilidades: é olvidar que a Ética condiciona todo o Direito e, principalmente, o Direito de Família" (Maria Berenice DIAS, 2004:32).


RESUMO

A verificação, no meio social, de formações familiares simultâneas, em que geralmente o homem casado, ao tempo em que mantém convivência conjugal com sua esposa, enlaça também uma outra mulher, a concubina, requer do direito uma atenção e um melhor estudo de suas relações. O chamado concubinato adulterino, que compreende também os casos em que ao menos um dos participantes mantém união estável, não raro produz injustiças em face de uma das partes — invariavelmente, a concubina. Esta, ao fim do relacionamento amoroso, quando muito, recebe parte do patrimônio adquirido em comum esforço, isso se contribuiu efetivamente para sua aquisição. De outra forma, percebe uma indenização pelos serviços prestados ao homem. Essas são as tradicionais respostas dos tribunais brasileiros para evitar-se uma situação odiosa de enriquecimento ilícito, já que, segundo eles, a relação amorosa aí verificada não é de cunho familiar, mas social — uma sociedade de fato. Tudo isso em virtude do esquecimento jurídico a que o concubinato adulterino sempre foi relegado ou mesmo pelo falso moralismo arraigado na sociedade que impede a apreensão pelo direito desse fenômeno. A despeito disso, partindo da compreensão de família como formação humana em que reinam a afetividade, a publicidade e a estabilidade; e tendo em vista que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, caput, não repetiu, como fizeram suas precedentes, a norma geral de exclusão de outras tramas familiares que não a decorrente do casamento, instaurando um novo horizonte para o direito de família com o princípio da pluralidade familiar; este trabalho vem demonstrar que o concubinato adulterino é uma entidade familiar passível de proteção estatal. Ora, não cabe ao Estado determinar qual espécie familiar merece seu selo de legitimidade. Cabe-lhe, de outra maneira, proteger o berço em que se cria o ser humano, seja qual for o escolhido por ele, sob pena de desobediência ao macroprincípio da dignidade da pessoa humana, que impede o tratamento preconceituoso e desigual do membro da família de concubinos. Nessa esteira, o princípio da monogamia sofreu uma relativização com o intuito de expurgar do direito o tratamento excludente dado ao concubinato adulterino, devendo o Estado brasileiro também dispensar-lhe uma proteção especial. Atualmente, algumas vozes já têm se manifestado de forma positiva quanto ao problema, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, mormente, no direito previdenciário. No entanto, mais discussões são necessárias para que sejam esclarecidos os exatos limites da proteção estatal ao concubinato adulterino — olhos postos nos princípios constitucionais da família. Longe de emitir idéias herméticas sobre o tema, é nessa direção que caminha este trabalho.

Palavras-chave: Família. Afetividade. Pluralidade. Dignidade. Concubinato. Adulterino. Proteção. Estado.


1 INTRODUÇÃO

A família sempre foi vista como base da sociedade. Por isso, o Estado a manteve continuamente sob seu controle, amoldando-a de acordo com seus próprios interesses. A posição estatal reinante até pouco tempo atrás era de reconhecer como única forma de constituição familiar o casamento, mais especificamente, o casamento indissolúvel, em que o homem gozava de posição hierárquica privilegiada em face da esposa e dos filhos. A transpessoalidade era o prisma de proteção da família, cujo objetivo era a preservação e transmissão do patrimônio à descendência.

A despeito disso, as tramas familiares que não o casamento sempre existiram. Geralmente, aconteciam na surdina, pois a situação revelava um estado de perversão moral. A sanção para aqueles que tinham suas relações expostas à sociedade era o estigma e a exclusão.

O Código Civil de 1916 demonstra bem a situação acima descrita. Tudo aquilo que não se enquadrasse no modelo da família patriarcal fruto do casamento indissolúvel era excluído da proteção legal, pois representava uma negação à própria família.

Contudo, as mudanças desencadeadas pelas revoluções feminina e sexual, que no Brasil remontam à década de 60, mudaram profundamente as relações familiares. A descoberta pela mulher da independência em relação ao homem levou a sociedade a questionar a indissolubilidade do casamento. Por outro lado, o advento do divórcio fez com que o objetivo familiar passasse da manutenção do patrimônio para o afeto.

Nesse ínterim, várias formações familiares se verificaram. Além do casamento, já podíamos encontrar o concubinato, que dividia-se em puro e impuro. O puro era aquele em que os participantes não tinham impedimento para casar, enquanto que o impuro era o contrário.

A proteção estatal de então direcionava-se principalmente ao concubinato puro, com a aplicação da súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual "Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos é cabível a sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum". Com os anos, essa proteção ao concubinato puro se ampliou, o que lhe conferiu um status de casamento informal ou de fato.

Por sua vez, o concubinato impuro, também chamado de adulterino, era a relação afetiva, duradoura e pública entre homem e mulher, na qual uma das partes estava casada, configurando-se a existência de famílias simultâneas. Nesses casos, a proteção do Estado era mínima, fazendo-se com que surgissem muitos episódios injustos de enriquecimento ilícito. Não raro, a concubina saía da relação em situação de penúria, tendo em vista que o concubino casado arrebanhava todo o patrimônio aí construído.

A Constituição Federal de 1988, rompendo esse período de clausura conceitual de família, trouxe o princípio da pluralidade familiar, reconhecendo expressamente, além do casamento, as famílias decorrentes da união estável (conhecida antes por concubinato puro) e as famílias monoparentais, formada por um dos pais e os filhos. Em verdade, a carta política vigente fez menção geral à família, mostrando, ao contrário de suas antecessoras, não ter qualquer preconceito com relação ao formato das entidades familiares. Além disso, o foco da proteção estatal à família passou a ser o ser humano que nela vive — é por sua dignidade que o Estado deve proteger à família.

Ocorre que os doutrinadores, jurisprudentes e legisladores, mesmo após a mudança paradigmática das relações familiares falada, mantiveram-se travados em nome de um tradicionalismo, demorando muito por reconhecer a união estável.

Se assim foi com uma entidade expressamente reconhecida, imaginemos como foi com as famílias não expressas na Lei Maior, como é o caso do concubinato adulterino.

A apreensão jurídica do fenômeno do concubinato adulterino, hodiernamente, não condiz com a realidade. O que nos leva a concluir que o Estado resiste em conceder efeitos jurídicos a entidades familiares que não o casamento. Indevidamente, pois a sociedade é que deve dar o tom da ordem jurídica e não o contrário.

Assim é que nesse estudo, demonstraremos que o concubinato adulterino, tão logo preencha os requisitos da publicidade, da afetividade e da durabilidade, comuns a todas as famílias, deve ser reconhecido como entidade familiar. Como conseqüência, o Estado brasileiro deve cominar-lhe direitos, conquanto limitados.

Pelos capítulos que se seguem traçaremos a origem, a evolução, as formas históricas e o conceito de família, bem como sua natureza jurídica. Partindo daí, localizaremos a família dentro da interpretação constitucional correta, qual seja, a da família plural, sem modelos pré-definidos. O passo seguinte é apresentar a ambiência atual que rodeia o concubinato adulterino e seu conceito. Por fim, demonstraremos que o concubinato se encaixa no conceito de família, merecendo proteção especial do Estado. Nesse ponto, apresentaremos alguns precedentes jurisprudenciais que denunciam uma mudança lenta no quadro.

Longe de querermos esgotar o assunto ou impormos solução para o caso, o que pretendemos é trazer o tema para discussão com vistas à evolução. É uma realidade sociológica a que o direito poderá atribuir eficácia. Sem dúvidas. Comporta, no mínimo, debate no âmbito acadêmico. É isso que queremos.


2 DA INSTITUIÇÃO FAMÍLIA

Assumindo qualquer nome, entidade natural, pessoa moral, organismo social, organismo familiar etc., o certo é que a família é a base sólida e fundamental de qualquer sociedade e, por extensão, Estado — já que este é a sociedade politicamente organizada — que se prezem. A partir dela é que o indivíduo adquire as principais lições e se insere no tecido social. Natural, então, que devamos protegê-la, sob pena de se instaurar o império da desordem e da anarquia. Cícero, citado por Washington de Barros MONTEIRO (2004:1), escreveu que, "... onde e quando a família se mostrou forte, aí floresceu o Estado; onde e quando se revelou frágil, aí começou a decadência geral".

A importância da família foi constatada há muito tempo. E pelos anos, ela passou por várias mutações/fases para se adequar melhor aos anseios de cada período histórico, ora sendo ressaltado certo fator — tronco ancestral comum, religião, moral, costume, patrimonial-econômico etc. —, ora outro. Particularmente, o pensamento moderno acena para uma família movida principalmente pelo vínculo sócio-afetivo e pela melhor proteção de seus membros. É a inserção, como alguns dizem, do amor como elemento fundante do organismo familiar de nossos tempos, que passa a ser visto pelo prisma dos direitos humanos e do respeito à dignidade da pessoa humana. Por via de conseqüência, como veremos no decorrer deste trabalho, vários são os arranjos atuais de família (capítulo 3).

Discute-se, nos dias de hoje, a crise da família. E com grande preocupação! Porém, o que está acontecendo, diferente do reducionismo de perda dos valores morais, é que novas formações familiares estão surgindo e pedindo sua assimilação pela sociedade civil e pelo Estado. Ocorre que essa assimilação não está acompanhando a velocidade das mudanças. O que é uma pena, pois esse desajuste contribui para a dita "crise". Nas palavras de Rodrigo da Cunha PEREIRA (2000:26),

É certo que a família hoje está muito diferente daquela do início do século passado. Estamos vivendo um processo histórico importante de transformação, em que a quebra da ideologia patriarcal impulsionada pela revolução feminista são os elementos determinantes. Mas não se pode falar em desagregação. É irrefutável a premissa de que a família é, foi e será sempre a célula básica da sociedade. É a partir daí que se torna possível estabelecer todas as outras relações sociais, inclusive os ordenamentos jurídicos.

Nos itens que seguem abaixo, tentaremos demonstrar de forma bem simples e objetiva, o que é família, abordando desde sua origem até sua natureza jurídica.

2.1 ORIGEM

O problema da origem da família foi enfrentado por diversos estudiosos. Em suas pesquisas, eles formularam teorias contraditórias de tal forma que alçaram a questão à condição semelhante aos da origem do mundo, da civilização e do próprio homem. Isso se explica, talvez, porque

Quem rastreia a família em investigação sociológica encontra referências várias a estágios primitivos em que mais atua a força da imaginação do que a comprovação fática; mais prevalece a generalização de ocorrências particulares do que a indução de fenômenos sociais e políticos de franca aceitabilidade (Caio Mário da Silva PEREIRA, 2005:24).

Com efeito, três teorias principais procuram explicar a origem da família: da monogamia originária, da promiscuidade primitiva e das uniões transitórias.

A teoria da monogamia originária, doutrina desenvolvida principalmente por etnólogos e zoólogos como H. E. Ziegler, prega a existência de "dados psicológicos irresistíveis" como elementos instintivos inerentes à espécie humana, que empurram a união entre homem e mulher ou entre pais e filhos. Contudo, esquecem esses teóricos que faz parte da psicologia humana o desejo também irresistível de variar, de novidade. Segundo Pontes de MIRANDA (2001:63),

Nem mesmo se pode saber, ao certo, em que data apareceram tais fatos mentais, que H. E. Ziegler considera, ab initio, consubstanciais à natureza humana. Esse método é falsíssimo. "... Ziegler, partindo do amor filial, desgarrou de sua posição de naturalista e cometeu o erro de concluir do amor paterno encontrado na História a existência primitiva da monogamia, em vez de admitir, como fora mais lógico, que com a monogamia nasceram o amor filial e a afeição conjugal que dura toda a vida". [...] Se algum dado psicológico haveria de ser estudado para se investigar o elemento dinâmico, interior, das formas monogâmicas, seria o sexual, e não o parental.

A segunda teoria, a da promiscuidade primitiva, musa entre os sociólogos Spencer e Durkheim, fala que o estado elementar correspondia a um período em que homens se relacionavam com as mulheres, independentemente da forma, surgindo daí os primeiros traços da poligamia. Encontra guarida na correlação com o surgimento do matriarcado, pois, na fala de Sílvio de Salvo VENOSA (2003:17), da promiscuidade (estado de anomia ou ausência de regras) "... decorria que sempre a mãe era conhecida, mas se desconhecia o pai, o que permite afirmar que a família teve de início um caráter matriarcal, porque a criança ficava sempre junta à mãe, que a alimentava e a educava". Mas como assim pensar se "... é dado sociológico que a mulher, na história, quando dela depende a fixação das formas, prefere a monogamia... (Pontes de MIRANDA, 2001:65). Além do mais, "... aceitar como certa a existência de um tipo de família preenchendo todo um período evolutivo, no qual à mulher estaria reservada a direção do lar, parece pouco provável" (Caio Mário da Silva PEREIRA, 2005:25).

A teoria das uniões transitórias sugere que as relações originais entre homem e mulher se devem à procriação. Após o nascimento do filho, eles permaneciam juntos por algum tempo, a exemplo de certas espécies de animais. Em verdade, essa teoria parece ser um misto das outras. Por via de conseqüência, as críticas feitas anteriormente servem para esta corrente que, ainda, encontra oposição na existência também de certos grupos de animais em que o casal continua unido mesmo após a procriação e o afastamento da prole.

Podemos dizer que a teoria da promiscuidade primitiva encontrou mais defensores entre os cientistas sociais, entre eles, Friedrich Engels em seu livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, e Robert Lowe, que escreveu sobre a família nas culturas pré-letradas na obra Tratado da sociedade primitiva. Porém, não nos filiaremos a uma ou outra teoria, sob pena de incorrermos em grave erro. Ora, se é verdade que as famílias primitivas se formaram a partir de uma atração natural entre os sexos, essa afirmação não nos autoriza concluir que se deu através de uniões transitórias, promiscuidade ou monogamia.

2.2 EVOLUÇÃO

O assentamento da família na história humana e sua evolução pressupõem a adaptação do homem aos meios sociais. E segundo Pontes de MIRANDA (2001:47), sete são os principais processos adaptativos: o religioso, o moral, o estético, o gnoseológico (conhecimento), o jurídico, o político e o econômico. Continua o mestre afirmando que, de acordo com o processo, a sociedade será mais ou menos estável. A relação é a seguinte: proeminente a religião, mais estável; o econômico, mais instável; o gnoseológico, aproxima-se do equilíbrio. Giselda Hironaka, citada por Tiago de Almeida QUADROS (2004), acrescenta o processo instintivo, representado pela energia sexual do ser humano.

Uma vez adaptado ao meio, o ser humano tende à interação, que acontece dentro de círculos sociais. Dependendo do período histórico-cultural, esses círculos sociais tinham uma conformação diferente, representando estágios evolucionários da família.

Inicialmente, tínhamos o círculo dos clãs, formado em torno de um mesmo totem, o que conduzia à relação de parentesco entre os indivíduos. Pinto FERREIRA (1995:341), citando Durkheim, "... define o totem como o ser animado ou inanimado, via de regra um animal ou vegetal, que serve de emblema a um grupo, reputado como um ancestral comum desses grupos e mesmo adorado como um deus". O clã era a sociedade sem um espaço territorial definido, característica que não determinava a perda de sua individualidade.

"Com o começo de inclusão do fator geográfico espacial, dá-se a evolução interna do clã, com a aparição do fato social de transmissão masculina do tóteme" (Pontes de MIRANDA, 2001:53). O clã principal passou a segmentar-se em clãs secundários formando algo maior, mas com mesma origem, a fratria. Os membros da mesma fratria não poderiam relacionar-se entre si, pois pertenciam a um mesmo culto religioso que lhes conferia o parentesco familiar.

As tribos se formaram num passo à frente com o desenvolvimento da agropecuária. Elas eram exatamente a união das fratrias, que aos poucos foram se estabelecendo definitivamente em determinado território. Com essa sedentarização, o território ganhou grande importância, tendo a soberania passado de conceito místico para territorial. Dessa sedentarização, ainda, veio também a necessidade de criarem-se mecanismos de garantia da passagem da propriedade territorial para as gerações seguintes, dando-se azo ao aparecimento das relações de parentescos conforme a linhagem materna ou paterna.

Nesse particular, impende falarmos das teorias sobre a evolução da família. De um lado, temos a escola evolucionista, que se resume na passagem de quatro fases: a promiscuidade inicial (poligamia), o matriarcado, o patriarcado e a monogamia. Segundo essa escola, a família, inicialmente, foi fruto de um estado de ausência de regras (anomia) próprio da promiscuidade, surgindo daí o matriarcado, em face da criação materna exclusiva dos filhos — pois nesse período, como disse Sílvio de Salvo VENOSA (2003:17), em regra desconhecia-se a figura do pai. A seguir, veio o patriarcado. Caio Mário da Silva PEREIRA (2005:24-25), analisando essa corrente, como já citamos, aponta como pouco provável a existência anterior de um matriarcado como estágio obrigatório da família. O que é certo, no sentir do autor, é a existência do patriarcado, que conta com a presença de registros históricos, entre os quais, o monumento histórico A cidade antiga, de Fustel de Coulanges, em que consta que na Roma Antiga a família se formava em torno do culto religioso aos antepassados do homem. Por fim, como representação de maior evolução familiar, chega-se à monogamia, que traz como benesses a melhor criação da prole e o fator econômico de produção.

Do outro lado está a escola ciclo-cultural, com as seguintes fases: monogamia, com direitos e deveres relativamente iguais entre homem e mulher; o matriarcado, a partir do aparecimento das primeiras civilizações, onde a família assumiu a forma clânica, passando-se ao patriarcado, por causa dos pastores nômades; numa terceira etapa surgem os povos mistos: os criadores-agricultores, que variavam entre o matriarcado e o patriarcado; e os criadores-caçadores, inclinados à poligamia. Por último, com o surgimento das "civilizações terciárias", estabeleceu-se a monogamia baseada no casamento indissolúvel, partindo-se daí para o estágio mais moderno do divórcio.

Em que pese tal embate entre as escolas, o que podemos inferir é que a estabilidade familiar se fez a partir da noção de monogamia como fruto de um casamento indissolúvel, inicialmente, de cunho religioso, que perdurou até o século do XVIII sob a inspiração do direito canônico. ("A vontade do pai é lei.") Pinto FERREIRA (2001:349) nos conta que os dogmas da Igreja Católica foram bastante influentes na família da Idade Média. Senão, vejamos:

A influência do cristianismo foi benéfica e persuasiva na reestruturação da família européia medieval, sobretudo porque considerava o matrimônio como uma instituição sagrada, vendo com simpatia a posição da mulher na sociedade conjugal, eliminando a velha caracterização do mundo antigo, o status feminino conseguindo de feito uma posição de relevo. [...] Naturalmente a família medieval ainda possuía um vivo sentido patriarcalista, porém se evitando a poligamia própria dos hebreus, gregos e romanos, e se vendando outrossim o divórcio como uma instituição tão característica da sociedade antiga.

Com a Revolução Industrial e o capitalismo, a família se transforma no seio onde se desenvolvem os valores do indivíduo, ressaltando-se a procriação como principal finalidade do casamento. A partir daí, mais exatamente no século XIX, o Estado passou a regulamentar o casamento, que deixou de ter somente um cunho religioso.

Modernamente, a família adquiriu novos contornos, mormente, após a revolução feminista e sexual do século passado que trouxe como conseqüências o reconhecimento pelo Estado da igualdade entre o homem e a mulher, bem como a possibilidade de dissolução do vínculo conjugal, dando ensejo ao nascimento de novas formações familiares. Assim é que, atualmente, presente está o sentido plural de família, que veremos mais à frente no capítulo 3.

2.3 FORMAS

O que podemos entender como forma de família? A resposta, válida ainda hoje, quem nos traz é o grande jurista Pontes de MIRANDA (2001:61), em seu livro Tratado de Direito de Família:

Chama-se forma de família o critério pelo qual se estabelecem as relações entre os cônjuges e entre esses e os filhos. A estruturação familial ou concerne a laços sexuais denominados pelos lógicos "um-um", "um-dois (ou mais)", "dois (ou mais) – um", "dois (ou mais) – dois (ou mais)", ou a laços de relação parentais "pai-filhos", "mãe-filhos", "pai e mãe-filhos".

Tal qual seu conceito, as formas de família variaram durante sua evolução através da história.

Verificamos, com base na escola evolucionista acima citada, que parte do pressuposto de um estado de promiscuidade absoluta na evolução humana, a poligamia. Esta pode ser entendida como sendo a união conjugal entre uma mulher e dois ou mais homens (poliginia, monandria ou polignecia) ou um homem e duas ou mais mulheres (poliandria). Aquela mais rara de acontecer do que esta, a exemplo dos povos muçulmanos. A poligamia se deu principalmente em lugares em que havia escassez dos homens ou das mulheres. Contudo, nos dias de hoje, não é comum esta forma de família em face da disseminação da monogamia.

A monogamia é a união conjugal entre um homem e uma mulher. Tida por sociólogos e biólogos como a mais vantajosa, tendo em vista que representa a culminância da evolução amorosa e sentimental, permitindo uma melhor criação da prole e uma estabilidade do grupo social, além de estar respaldada pelo Cristianismo. Há quem acredite, como Westermack, citado por Pinto FERREIRA (1995:344), num instinto monogâmico do homem.

Pontes de MIRANDA (2001:61) afirma que "A poliginia. .. é tida pelos antropologistas e sociólogos como anterior à monogamia, ao passo que a poliandria existitu por determinadas e excepcionais circunstâncias depois da monogamia...". Porém, segundo ele, "Tudo isso é, em verdade, assaz inseguro, porquanto não se provou que haja período poliândrico na sucessão das formas de família...".

Autores como Cunow, Ogburn e Ninkoff defendem que, onde houve abundância econômica, preferiu-se a poligamia; senão, a monogamia. Vale ressaltar que a família monogâmica se firmou, principalmente, por questões econômicas, pois esse formato permitiu uma maior segurança na administração e transmissão do patrimônio familiar aos descendentes. Nesse particular, Pontes de MIRANDA (2001:61-62) escreve que há uma discrepância extraordinária da repercussão psicológica do poder econômico para o homem e para a mulher:

... onde quer que se encontre o atélier familial entregue à mulher (preponderância feminina na produção dos meios de vida), vemos que a mulher impõe a monogamia, em vez de querer a poliandria, ou a promiscuidade; ao passo que, nos momentos de poder econômico ou capitalismo nas mãos do varão, aparece a prostituição ou a poligamia.

Um dos pilares que firmaram a monogamia na cena ocidental foi o casamento, sendo comum em passado não tão distante apresentá-lo como sinônimo da família. Caracteriza-se como a união social de pessoas de sexo oposto reconhecida, a priori, pela religião, da qual é herança, e, após, pelo direito civil. Com o casamento monogâmico, houve largo período de proibição das relações marginais, ou seja, dos relacionamentos extraconjugais — que, a despeito disso, sempre existiram. A evolução das relações familiares, no entanto, fez com que muitos países do mundo ocidental passassem a reconhecer também a união estável e informal entre pessoas de sexos diferentes, desde que respeitados os parâmetros do sistema monogâmico.

Dentro dessa idéia de casamento, podemos localizar as famílias endogâmicas e as exogâmicas. Aquelas nascem de um casamento em que seus membros fazem parte do mesmo meio social, da mesma classe ou casta. É o caso da vedação do casamento dos monarcas com plebeus. As exogâmicas, que na fala de Sílvio de Salvo VENOSA (2003:17) aconteceram após a endogamia em virtude das guerras, carência de mulheres e inclinação natural, dizem respeito aos casamentos feitos fora do meio social doméstico. Por exemplo, os relacionamentos entre os participantes de clãs diferentes nas sociedades primitivas.

E quando falamos em relações de dependência, parentesco e autoridade, damos azo a outras formas históricas: as decorrentes do patriarcado, em que a família centrava-se na figura do pai; as do matriarcado, de acordo com a linhagem materna; e da mista, que é o que acontece hoje no Brasil, em que homem e mulher têm direitos e deveres iguais.

Por último, não esqueçamos de falar de fenômeno relativamente recente em nossa ordem jurídica, consolidado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no início da década de 90: a família substituta. Para o Estado, é importante que os menores desenvolvam plenamente sua personalidade dentro do seio familiar, de preferência o natural ou biológico. Ocorre que nem sempre isso é possível, por uma série de motivos, entre os quais, a morte dos pais biológicos e a inidoneidade moral, econômica e/ou afetiva dos mesmos para criação da prole. Assim é que, para remediar essa situação, as crianças e os adolescentes são colocados em famílias substitutas mediante os institutos da guarda, da tutela e da adoção. Na verdade, não estamos exatamente diante de uma nova forma familiar, pois, como veremos a seguir, a família atual não se constitui pelo vínculo sangüíneo, mas pelo sócio-afetivo.

2.4 CONCEITO

A família teve conceitos diversos pela história da humanidade. "Entre os organismos sociais e jurídicos, o conceito, a compreensão e a extensão de família são os que mais se alteraram no curso dos tempos" (Sílvio de Salvo VENOSA, 2003:17). No direito romano, por exemplo, poderia compreender o pai, a mãe e os filhos, ou todos os parentes. Algumas vezes, poderia significar a reunião de pessoas sob a batuta do pátrio poder ou mesmo o conjunto do patrimônio ou escravos pertencentes ao senhor.

Pinto FERREIRA (2001:339), citando Cooley, diz que "... a família é um grupo social primário, onde se travam relações face-to-face, exercendo uma grande influência sobre a modelação da personalidade". Sombart, também citado por Pinto FERREIRA (2001:339), diz que "A família é a pluralidade de gerações integradas em uma só comunidade doméstica e à qual eventualmente se associam pessoas estranhas".

Influenciada pela Igreja Católica durante a Idade Média, a família ficou conhecida eminentemente como sendo a unidade social decorrente dos laços do casamento legítimo e indissolúvel conjuntamente com sua filiação. Sílvio de Salvo VENOSA (2003:19), a propósito do assunto, fala que a família sempre foi a célula básica da Igreja Católica, tal qual fosse uma miniatura sua, com local para culto e hierarquia.

O célebre jurista Clóvis Beviláqua, citado por Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004a:5), conceituou a família como sendo

... o conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade, cuja eficácia se estende ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras vezes, porém, designam-se por família somente os cônjuges e a respectiva progênie.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. XVI, 3, reza que "A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado". Comungando de quase idêntica prescrição, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, no seu art. 17, traça que "A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado".

Atualmente, a família é vista principalmente sob o ponto de vista restrito, compreendendo, em regra, o pai, a mãe e os filhos. Contudo, estamos evoluindo para uma conceituação mais simples e receptiva, de modo a instituir o respeito à dignidade da pessoa humana e a abarcar um maior número de formações familiares.

Em nosso ordenamento jurídico, por exemplo, já se fala há algum tempo em família sócio-afetiva em oposição à visão da família como conseqüência de uma relação de consangüinidade, como definia Beviláqua. Queremos dizer que, hodiernamente, a afetividade, mais do que a biologia, rege o vínculo familiar. E a afetividade é uma das três características comuns a todos os tipos de família conhecidos, perceptíveis nos vários estágios da história. Paulo Luiz Netto LÔBO (2002) as enumera:

a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do móvel econômico; b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida; c) ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresenta assim publicamente.

Podemos dizer que a família atual deixou de ter no elemento sexual — consistente na função de procriação — e/ou no econômico a fundamentação principal para sua constituição. Não que tenha perdido essas funções. Em verdade, elas deixaram de ser causas para se transformarem em conseqüências, ou não, da afetividade. As outras funções — de transmissão cultural e formação da personalidade — continuam plenamente presentes. Maria Berenice Dias, citada por Tiago de Almeida QUADROS (2004), diz que

A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir o status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal, no inc. III do art. 1º, consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana.

Em mesmo sentido, Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), ao concluir que "... onde houver uma relação ou comunidade unidas por laços de afetividade, sendo estes suas causas originária e final, haverá família".

Não podemos olvidar da manifestação de Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004a), em seu livro Concubinato e união estável, merecedora de destaque. Segundo o autor, a família decorre de uma estruturação psíquica, onde cada membro ocupa um lugar: do pai, da mãe, do filho etc., sem necessariamente serem ligados por laços biológicos. Assim sendo, compreensível o caso da adoção, pois o adotando passará a ocupar o lugar de filho na estrutura familiar, tornando-se sem dúvidas um descendente dos adotantes, seus pais. A família, pois, seria conseqüência não da natureza mais de um elemento cultural estruturante. Na Roma Antiga, foi a religião e o culto aos antepassados; nos clãs, o totem, representando a figurado do pátrio poder. Em suas palavras:

A constituição de famílias, como se vê, não é propriamente um fato natural; é, antes, uma decorrência da cultura, que se estabelece de uma forma ou de outra, mas sempre como uma estruturação do sujeito. É aí que o indivíduo se forma, torna-se sujeito e se sujeita às normas morais. A partir de então, torna-se possível estabelecer relações jurídicas (idem, ibidem, p. 12).

Entendemos, tal qual Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004a), mais do que uma simples decorrência da natureza, que a família representa uma estrutura psíquica em que cada membro ocupa um lugar, ligados que são pela afetividade. Ressaltamos que essa estruturação não é única, podendo se apresentar de diversas formas, por exemplo: pai e filhos; mãe e filhos; pai, mãe e filhos; cônjuges etc.. Não esqueçamos as outras características presentes em qualquer organismo familiar: a ostensibilidade e a estabilidade, que compõe o conceito.

2.5 NATUREZA JURÍDICA

No passado, a idéia de família como pedra fundamental da sociedade levou Savatier a sustentar a existência de uma pessoa moral, que nada mais era do que a família como sujeito de direitos, com personalidade jurídica distinta das de seus membros. Acreditava-se ter ela direitos extrapatrimoniais como o nome e o pátrio poder; e patrimoniais, como é o caso da propriedade do bem de família e dos sepulcros.

A bem da verdade, essa teoria de forma alguma se encaixa em nossa ordem jurídica e nem na cultura ocidental em geral. Somente detém personalidade jurídica aquele que é apto a exercer direitos e a contrair obrigações. O que não é a situação da família, mas de seus membros. São estes que possuem direitos patrimoniais e extrapatrimoniais em virtude de fazerem parte de um ambiente familiar.

Tentou-se falar também em família como organismo jurídico, como se fosse ela um fruto do ordenamento jurídico. Mas, adverte Sílvio de Salvo VENOSA (2003:22), como pode o Estado esquecer que a família é, antes de tudo, um fenômeno natural preexistente ao direito positivo? Sua natureza é decorrente da Sociologia, que a vê como instituição permanente, derivada da união afetiva de pessoas dentro da sociedade.

Particularmente, Sílvio de Salvo VENOSA (2003:22) inclui a família no grupo das entidades com "personificação anômala". Segundo ele,

Ao estudarmos as pessoas jurídicas, ressaltamos que existem entidades com muitas características das pessoas morais, mas que não chegam a receber personalidade. Faltam-lhes os requisitos imprescindíveis à personificação, embora, na maioria das vezes, tenham representantes processuais, isto é, podem agir no processo ativa e passivamente. [...] No entanto, ao contrário de outras situações transitórias patrimoniais, como a massa falida, a herança jacente e o espólio, a família, como instituição, nem mesmo possui representação processual, tendo em vista que essa atividade deve ser exercida por seus membros. Não há interesse em atribuir personalidade à família, tendo em vista que suas atividades jurídicas, de natureza patrimonial ou não, podem ser realizadas sem esse atributo.

A maior parte dos doutrinadores, no entanto, vê a família como uma instituição jurídica, onde pessoas vivem sob autoridade maior, devendo observância às condutas sociais, objetivando a procriação e educação dos filhos. Sobre elas pairam um conjunto de normas regulando os direitos e deveres de cada uma.

Essa visão parece-nos a mais correta, uma vez que ela guarda coerência com a Sociologia, colocando a família como fenômeno social reconhecido pelo Direito. Porém, acreditamos que o objetivo de procriação não seja imprescindível. Do contrário, terminaríamos por desconsiderar os casais que, por questões biológicas, não podem procriar. Além disso, há tipos de casais que simplesmente não desejam ter filhos e nem por isso deixam de formar uma família.


3 DA PLURALIDADE FAMILIAR PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A evolução das constituições brasileiras nos informa que, por muito tempo, o modelo estatal de família tinha o formato de um casamento. Na própria Constituição de 1824, embora implicitamente, o Império, adotando a religião católica apostólica romana, reconhecia o casamento religioso constituinte da família (art. 5.º).

Já nessa época, o patriarcalismo era vigente, havendo concentração exacerbada de poderes nas mãos do cônjuge varão, que detinha controle sobre o cônjuge virago e sobre a prole, que faziam parte de seu patrimônio — era o pater familia romano. Eram tempos em que a mulher era criada para ser submissa ao marido; e o homem, o provedor da família. A finalidade familiar, por excelência, era econômica, embora a família manifestasse uma representatividade religiosa, política e procracional.

À sua vez, a Constituição de 1891 traçou em seu art. 72, § 4.º, que "A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita". Quer dizer, a primeira Carta de Direitos da República brasileira colocou explicitamente o casamento civil como sinônimo de família. E diante dessa visão transpessoal da família como instituição econômica, veio a lume o Código Civil de 1916.

O Texto Civil de 1916 era cheio de normas de exclusão. Outra coisa não podíamos esperar, tendo em vista que o próprio Estado oprimia toda e qualquer relação que não se concebesse pelo casamento válido e indissolúvel. Consentia o Diploma Civil com que a mulher casada fosse considerada relativamente incapaz, sendo seu marido o representante legal; que o poder sobre os filhos só fosse visto pela ótica do pai (pátrio poder); e que os filhos havidos fora do casamento não fossem reconhecidos. Isso só para citar alguns exemplos. Ou seja, o homem desfrutava de uma superioridade incrível com o aval legal.

Contudo, não tardou muito e o homem foi, aos poucos, perdendo sua posição hierárquica de destaque. Mesmo que as Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967-69 repetissem claramente que a família era constituída pelo casamento e que o Estado devia protegê-la, continuando vigente o sistema patriarcal, a mulher foi buscando lentamente uma situação de igualdade dentro da sociedade e do casamento.

Após a Segunda Guerra Mundial e com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que pregava a igualdade entre os homens, o movimento feminista foi ganhando expressividade. As mulheres saíram de suas casas para o mercado de trabalho, tornando-se parte importante para a economia do lar. Por via de conseqüência, o homem teve de reformular seus deveres para adaptar-se ao trato doméstico.

No Brasil, a década de 60 foi o ponto chave das mudanças nas relações familiares. Foi nessa década que as mulheres brasileiras descobriram que podiam ser auto-suficientes, desaparecendo a dependência econômica ao homem dentro do casamento. Em seu lugar, passou a viger a solidariedade mútua entre os cônjuges. Nessa década ainda, o Estatuto da Mulher Casada transmutou a mulher de objeto a sujeito de direitos.

Em corrente paralela, a revolução sexual que assomava trouxe consigo a idéia de que o casamento poderia ser dissolvido. A busca pela felicidade passou a dar o tom das relações conjugais e, conquanto não existisse o respaldo legal para o divórcio, os casais foram se separando de fato e formando novas relações informais. Isto é, aquela resignação feminina de outrora, que era a base de sustentação do casamento, foi se esvaindo.

Quando do advento da Lei do Divórcio, na década de 70, a família já era nuclear e com poucos filhos. Havia ainda grande intervenção estatal em suas relações. Contudo, sua evolução fez com que ela superasse esses impasses, e o ser humano passou a ser o alvo da proteção do Estado à família.

Na década de 80, o afeto transformou-se na principal finalidade da família em substituição ao patrimônio. A Constituição Federal de 1988, então, empunhando o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, e embasada no princípio da afetividade que se descortinava no direito de família, declarou o pluralismo familiar.

Contrariando seus precedentes, o Texto Constitucional de 1988 não mais trouxe a norma de exclusão de outras formações familiares que não o casamento. Diz seu art. 226, caput, que "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Nos parágrafos em que se desdobra esse artigo, além do casamento, a Constituição reconhece expressamente a união estável de pessoas de sexos diversos — que chama de entidade familiar — e as famílias monoparentais — formada pela comunhão do pai ou da mãe e os filhos. (Entidade familiar aí, adverte Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:33), é sinônimo de família.) A partir de então, família passou a ser uma relação humana pública e duradoura fundada no afeto.

Outras mudanças se desvendaram no novel Texto Constitucional, dentre as quais a igualdade dentro da sociedade conjugal; os filhos, sejam havidos dentro ou fora do casamento, sejam adotados, passaram a ter o mesmo tratamento; e a família passou a ser encarada como seio de desenvolvimento da dignidade do homem.

O Estado abandonou sua figura de protetor-repressor, para assumir postura de Estado protetor-provedor-assistencialista, cuja tônica não é de uma total ingerência, mas, em algumas vezes, até mesmo de substituição a eventual lacuna deixada pela própria família como, por exemplo, no que concerne à educação e saúde dos filhos (cf. art. 227 da Constituição Federal) (Rodrigo da Cunha PEREIRA, 2004b:112).

Importa ventilarmos que, mesmo após a Carta de 1988, custou muito aos legisladores e aplicadores da lei aceitar essa pluralidade familiar. Tanto que somente em 1994 foi que se tentou, pela primeira vez, regular a união estável. Por outro lado, o Código Civil de 2002 encontra-se mais adaptado aos preceitos constitucionais, conseqüência do processo de constitucionalização do direito civil que se desencadeou com a Constituição Federal de 1988. Esse processo influenciou decisivamente o direito de família, que passou a ser regido, principalmente, pelo macroprincípio da dignidade da pessoa humana. As conseqüências disso poderemos observar nos pontos seguintes.

3.1 PRINCÍPIOS APLICÁVEIS À FAMÍLIA CONSTITUCIONAL

A complexidade é característica peculiar à família, corolário da busca incessante do ser humano pela felicidade. Assim sendo, o surgimento constante de novos conceitos e conjugações familiares exigem do operário do direito maior cuidado ao interpretar a lei, porque nem sempre se encontrará a regra aplicável ao caso — seja pela imprevisão do fato social, seja pela prescrição incompleta feita pelo legislador. Isso representaria um grave problema se vivêssemos numa ordem jurídica estritamente positivista, segundo a qual o fato não enquadrado nos limites legais não logrará qualquer efeito.

As exigências para criar-se um Estado "... destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos..." (Preâmbulo da Constituição Federal de 1988) não se coadunam com o positivismo tradicional. Mormente quando esse Estado preza pela dignidade da pessoa humana. Não podemos conceber nossa ordem jurídica como estritamente positivista. A própria lei nos diz que, ao ser aplicada, deve o juiz observar seus fins sociais e as determinações do bem comum, sendo que, quando for omissa, deverá o julgador buscar auxílio na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito (art. 4.º e 5.º, Lei 4.657/42, Lei de Introdução ao Código Civil).

Nesse ínterim, os princípios gerais do direito ganham maior relevo, pois são ferramentas de interpretação, sistematização e integração do ordenamento jurídico. Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:24-25), exprimindo sua posição de destaque, escreve que

Com a crescente tendência de constitucionalização do Direito Civil, conseqüência dos movimentos sociais e políticos de cidadania e inclusão, os princípios gerais têm-se reafirmado cada vez mais como uma importante fonte do direito e têm-se mostrado para muito além de uma supletividade. Eles se revestem de força normativa imprescindível para a aproximação do ideal de justiça. [...] É equivocada a idéia e o pensamento de que os princípios vêm por último no ato interpretativo integrativo. Ao contrário, os princípios, como normas que são, vêm em primeiro lugar e são a porta de entrada para qualquer leitura interpretativa do Direito. [...] Pode-se dizer que os princípios gerais significam o alicerce, os pontos básicos e vitais para a sustentação do Direito. São eles que traçam as regras ou preceitos, para toda espécie de operação jurídica e têm um sentido mais relevante que o da própria regra jurídica. [...] Os princípios constituem, então, os fundamentos da ciência jurídica e as noções em que se estrutura o próprio Direito. [...] Eles não necessitam estar escritos por que eles já são inscritos no espírito ético dos ordenamentos jurídicos. ..

Diante disso, não podemos estudar o direito de família e olvidarmos os princípios pertinentes. A despeito das rápidas mudanças das relações familiares que deságuam na falta de regulamentação legal, os princípios gerais surgem para apreender novos fatos afetivo-sociais e distribuir justiça.

Os princípios aplicáveis à família constitucional são:

1) Princípio da dignidade da pessoa humana. A dignidade da natureza humana, assim como foi apresentada por Immanuel Kant em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, é decorrente da idéia de que o homem, como ser racional, não pode fazer de outro homem meio para buscar seus próprios desideratos. Diz o filósofo:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade (apud Paulo Luiz Netto LÔBO, 2002).

Assim sendo, temos que a dignidade do homem lhe dá um caráter de fim e não de meio.

Foi com esse sentido que a dignidade humana apareceu pela primeira vez de forma expressa no campo jurídico, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, espalhando-se daí para as várias Cartas Magnas dos Estados Democráticos de Direito.

E embebida dessa filosofia, a Constituição Federal de 1988 alçou a dignidade da pessoa humana à condição de princípio fundamental da República Federativa do Brasil, colocando-a em posição topográfica de destaque. Constante do art. 1.º, III, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana representa um dos vértices da ordem jurídica brasileira, permeando todas as relações jurídicas. A partir de então, qualquer interpretação de leis constitucionais e infraconstitucionais deve partir desse pressuposto, de forma que não há norma de ordem pública que resista à sua ação.

No campo específico do direito de família, respeitar a dignidade da pessoa humana significa reconhecer o homem como finalidade de proteção da família, o que nos remete à vedação de exclusão de entidades familiares; respeitar a autonomia privada do indivíduo ao escolher o arranjo familiar mais adequado a si mesmo; privilegiar o afeto como elemento embrionário do organismo familiar; tratar igualmente os cônjuges dentro da relação afetiva; não excluir filhos havidos fora do casamento; pregar a política do fim do preconceito e louvar as diferenças.

Ressaltamos que a grandiosidade do princípio da dignidade da pessoa humana deve muito à universalidade de sua significação. Qualquer Estado que se preze deve-lhe observância, de modo que sua falta implica ilegitimidade. Nos dias de hoje, não basta garantir o direito à vida, mas sim à vida digna.

2) Princípio da afetividade. Já dissemos que a família do início do século XX se estruturava em volta de seu patrimônio e que o patriarcalismo dava o tom das relações familiares. As mulheres eram as "donas do lar".

Eis que a evolução social levou a mulher para o mercado de trabalho; a revolução sexual, ao fim do casamento indissolúvel. A auto-suficiência feminina determinou o fim do aspecto patrimonial familiar. Pouco a pouco, o afeto começa a surgir como finalidade da família.

A Constituição Federal de 1988, então, demonstrando assimilar o novo princípio, passa a reconhecer expressamente como entidades familiares relações fundadas no afeto; expurgou de vez o estigma sobre os filhos havidos fora do casamento e adotados; outrossim, entendeu que o fim do afeto determina o fim do laço conjugal. Segundo Paulo Luiz Netto LÔBO (2002),

Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procracionais, econômicas, religiosas e políticas. [...] Pode ser assim traduzido: onde houver uma relação ou comunidade unida por laços de afetividade, sendo estes suas causas originária e final haverá família.

Diante disso, a afetividade ganhou status de princípio implícito no Texto Constitucional. Já é possível encontrar na jurisprudência a chamada paternidade sócio-afetiva, conforme a qual a relação entre pai e filho decorre mais da demonstração social de afetividade do que da genética.

Por fim, impende lembrarmos que não é qualquer afeto que forma a família, mas tão-somente o afeto familiar. Nas palavras de Sérgio Resende de Barros (apud Rodrigo da Cunha PEREIRA, 2004b:128), é

"um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam".

3) Princípio da autonomia e da menor intervenção estatal. A Constituição de 1988, em seu art. 226, estabelece que o Estado deve endereçar proteção especial à família. Mas qual é o limite dessa proteção?

Discute-se bastante sobre se o direito de família faz parte do direito público ou do direito privado. Daquela, por causa do interesse do Estado em preservar sua base que é a família; deste, por causa da autonomia do homem para decidir sobre sua vida privada. Porém, anda melhor aquele que se respalda no princípio da menor intervenção estatal, pois o direito de família é genuinamente um ramo do direito privado.

O princípio da mínima intervenção estatal ressai claro do Texto Constitucional de 1988, no seu art. 226, § 7.º, que diz: "Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal...". Por sua vez, o Código Civil, no art. 1.513, estatui que "É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família".

Luiz Edson Fachin, citado por Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:111), em posicionamento esclarecedor, leciona:

"Não se deve confundir, pois, esta tutela com poder de fiscalização e controle, de forma a restringir a autonomia privada, limitando a vontade e a liberdade dos indivíduos. Muito menos se pode admitir que esta proteção alce o Direito de Família à categoria de Direito Público, apto a ser regulado por seus critérios técnico-jurídicos. Esta delimitação é de fundamental importância, sobretudo para servir de freio à liberdade do Estado para intervir nas relações familiares".

Ora, é certo que a família merece proteção estatal. Porém, não porque é uma instituição alicerce do Estado, mas porque é no seio familiar que o indivíduo encontra as lições iniciais para se desenvolver salutarmente. Quer dizer, o foco da proteção constitucional da família é o ser humano (art. 226, § 8.º, CF/88). Portanto, respeitar a autonomia privada do indivíduo é obrigação do Estado. Doutra maneira, infringir-se-ia o macroprincípio da dignidade da pessoa humana.

4) Princípio da igualdade. Previsto no art. 5.º, caput, da Constituição Federal de 1988, a igualdade perante a lei é uma exigência do Estado Democrático de Direito. Mais do que isso, a igualdade é pressuposto do exercício da cidadania, e para ser cidadão se faz necessário o respeito às diferenças.

Em nosso caso, interessa-nos a igualdade dentro do âmbito familiar como corolário do megaprincípio da dignidade da pessoa humana.

Por muito tempo, o modelo patriarcal de família produziu uma série de odiosas exclusões. Assim é que a mulher ocupava lugar hierarquicamente inferior ao homem dentro do casamento, devendo mesmo obediência a ele. Por sua vez, os filhos havidos fora do casamento eram alvos de preconceito, condenados à invisibilidade legal. Tudo isso num período em que já havia se falado em igualdade como direito do homem nas declarações de direitos humanos.

Nesse particular, a revolução feminista acabou por contribuir para o fim da desigualdade. A auto-suficiência feminina pôs em xeque o poder de controle que o homem tinha dentro da família. Paralelamente, a afetividade, que continuamente se firmou como finalidade da família, promoveu a igualdade dos filhos "legítimos" e "ilegítimos".

Do ponto de vista constitucional, o § 5.º, do art. 226 já garante que "Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher". A essência desse preceito inspirou os art. 1.511, 1.567, 1.630 e 1.631, do Código Civil, sendo que, pelo menos abstratamente, podemos falar em igualdade conjugal.

5) Princípio da pluralidade familiar. Norberto Bobbio, apud Rodrigo da Cunha Pereira (2004b:25), disse que "’Muitas normas, tanto dos códigos como da Constituição, são normas generalíssimas e, portanto, são verdadeiros e autênticos princípios gerais expressos’". Esse é o caso do princípio da pluralidade familiar, previsto na norma geral constante do art. 226, da Constituição Federal de 1988, conquanto possamos concluí-lo de outros preceitos constitucionais.

E como veremos no ponto seguinte, a interpretação constitucional nos levará à ilação de que o pluralismo familiar compreende não somente as famílias explicitamente reconhecidas pela Carta Magna — casamento, união estável e família monoparental —, mas também as implícitas, que são todos os arranjos em que se visualiza a afetividade, a estabilidade e a publicidade, como bem aponta Paulo Luiz Netto LÔBO (2002).

Por último, é importante que coloquemos que vários civilistas resistem ao entendimento de que a Constituição vigente reconheceu entidades familiares implícitas. Segundo Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:119), "Uma das dificuldades e resistências de se reconhecer a pluralidade e as várias possibilidades dos vínculos parentais e conjugais reside no medo de que estas novas famílias signifiquem a destruição da ‘verdadeira’ família". Ocorre que a proteção constitucional à família, como já falamos, dirige-se à pessoa humana, independentemente da formação familiar escolhida. E conforme Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), "A exclusão não está na Constituição, mas na interpretação".

Poderíamos ainda enumerar o princípio da monogamia, mas não o faremos. Este ainda não é o momento certo para tratarmos do assunto, vez que, como ponto nevrálgico do próprio trabalho, guardamos para o capítulo 5 — quando falaremos do concubinato adulterino em face do sistema monogâmico.

3.2 A INTERPRETAÇÃO DOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS CONCERNENTES À FAMÍLIA

A Constituição Federal, como norma fundamental de nossa ordem jurídica, deve ser interpretada de modo que haja harmonia entre seus princípios e sua finalidade. Aplicar o Texto Constitucional significa adaptá-lo à realidade social, de forma que suas prescrições ganhem maior relevo com a viabilização dos direitos e garantias fundamentais. Assim é que até seu preâmbulo, a despeito da falta de poder normativo, deve ser utilizado como ferramenta de direção do hermeneuta em momentos de obscuridade ou integração, eis que conforma um conjunto de princípios orientadores das normas constitucionais.

Alexandre de MORAES (2002:44-45), citando a doutrina do grande constitucionalista Canotilho, elenca, entre regras e princípios interpretativos, os seguintes:

da unidade da constituição: a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normais; [...]; da máxima efetividade ou da eficiência: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda; [...]; da concordância prática ou da harmonização: exige-se a coordenação e combinação de bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relações aos outros; da força normativa da constituição: entre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.

São essas as balizas que o intérprete deverá obedecer ao analisar os preceitos maiores que regem a família. Aliás, a Carta Magna de 1988 rompeu com a técnica de hermenêutica equivocada que imperava até então, quando se interpretava o direito de família da codificação para a constituição. Esse fenômeno foi chamado pelos estudiosos como a constitucionalização do direito de família.

Das ponderações acima, temos que o aplicador do direito deve ter em mente, ao estudar os preceitos maiores da família, a interpretação sistemática e teleológica, de modo que suas especificações devem cercar-se de maior efetividade e eficácia. Destarte, continuando a idéia de pluralidade familiar, concluímos que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, caput, ao estatuir que "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado", instituiu um conceito familiar amplo.

Utilizando-se a lição de Carlos MAXIMILIANO (1993:204) sobre critérios de interpretação ampla, concluímos, ainda, que o preceito em tela deve abranger todos os casos possíveis (implícitos ou explícitos) que derivem lógica e necessariamente dele, vez que a família, da forma em que foi promulgada no artigo transcrito, tem ares de princípio ou origem.

Isso nos faz chegar a uma primeira constatação: que a regra citada é uma norma geral de inclusão. Importa dizer que, se o legislador, diferentemente das constituições anteriores que traçaram explicitamente que a família é uma instituição constituída pelo casamento, a exemplo da de 1967 e 1969, não discriminou no caput qualquer arranjo familiar, quis ele incluir na proteção especial do Estado todas as outras formações constituídas sob o pálio da afetividade. Por via de conseqüência, o pluralismo familiar compreende não somente as tramas familiares contidas expressamente nos parágrafos do art. 226, mas também todas as uniões ostensivas e estáveis que se formaram a partir de um elo afetivo — que, por isso, estão protegidas implicitamente. Não teve o legislador originário de 1988 o objetivo único de proteger a família proveniente do casamento, como fizeram seus antecessores. Quis ele, em verdade, resguardar o a pessoa humana, que deve encontrar na convivência familiar condições para desenvolver-se plenamente (art. 226, § 8.º, CF/88).

Complementando o raciocínio, Paulo Luiz Netto LÔBO (2002) afirma que o § 4.º, do art. 226, da Constituição Federal de 1988 integra a cláusula de geral de inclusão. Segundo o professor, a palavra "também" contida aí

... tem o significado de igualmente, da mesma forma, outrossim, de inclusão de fato sem exclusão de outros. Se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto.

O Superior Tribunal de Justiça, comungando de mesma interpretação, prolatou a seguinte decisão no Recurso Especial n.º 205.170-SP, publicado no DJ de 07/02/2000:

1. O conceito de entidade familiar, deduzido dos arts. 1º da Lei 8.009/90 e 226, § 4º da CF/88, agasalha, segundo a aplicação da interpretação teleológica, a pessoa que, como na hipótese, é separada e vive sozinha, devendo o manto da impenhorabilidade, dessarte, proteger os bens móveis guarnecedores de sua residência. 2. Recurso especial conhecido e provido.

Nesse ínterim cabe nova lição de Carlos MAXIMILIANO (1993:204), o qual nos ensina que a interpretação de normas que tenham por finalidade desconstituir males ou injustiças, como é caso do art. 226, caput, da Constituição Federal de 1988, deve ser ampla. Portanto, não há falar-se em dúvidas quanto à proteção constitucional de entidades familiares não explícitas em seu texto.

A segunda e última constatação a que chegamos nos fala que, se houver discriminação, essa discriminação deve vir expressa. Ora, como já anotado, a Carta Magna vigente não repetiu a mesma dicção das anteriores, que instituíram norma geral de exclusão. Se assim não quis o legislador originário, não cabe ao derivado e muito menos ao hermeneuta assim determinarem-se.

3.3 AS ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

A família plural, como vimos, compreende tanto as entidades familiares expressamente citadas na Constituição Federal como também as implícitas, abarcadas que são pela norma geral de inclusão prevista no art. 226, caput, e, mormente, pelo macroprincípio da dignidade da pessoa humana.

Em verdade, não podia ser diferente com o Direito, já que outros ramos do conhecimento de há muito vêm constatando uma ampliação das formações familiares. Paulo Luiz Netto LÔBO (2002) nos diz que a perspectiva da Sociologia, da Psicologia, da Psicanálise e da Antropologia, dentre outros segmentos, mesmo antes da Lei Maior de 1988, já reconhecia outras tramas familiares que não a decorrente do casamento.

Como sabemos, o fato social precede a norma legal. E o que vemos na sociedade brasileira é uma diversidade de formações familiares, fruto do maior exercício das liberdades públicas pelo cidadão. Não pode o ordenamento jurídico passar incólume por essa realidade, tabulada pelo IBGE no Censo Demográfico de 2000:

TABELA 1: Distribuição das famílias por tipo e a situação do domicílio, segundo as classes de tamanho da população dos municípios do Brasil – 2000

Classes de tamanho da população dos municípios

Unipessoal

2 ou + pessoas sem parentesco

Casal sem filhos

Casal com filhos (1)

Mulher sem cônjuge com filhos

Casal com filhos (2)

Outras modalidades

Total

8,3

0,2

15,6

52,4

12,6

3,0

7,9

Até 20.000

8,0

0,1

15,3

57,4

10,1

1,5

7,5

De 20.001 até 100.000

7,6

0,1

15,1

55,3

11,8

2,3

7,7

De 100.000 até 500.000

8,1

0,2

15,6

52,2

13,2

3,3

7,4

Mais de 500.000

9,5

0,4

16,1

46,4

14,4

4,2

9,0

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000

Nota: (1) Casal com filhos sendo o responsável do sexo masculino.

(2) Casal com filhos sendo o responsável do sexo feminino.

Abolida, então, qualquer forma de exclusão de composições humanas em que se vislumbram a afetividade, a durabilidade e a publicidade por inconstitucionalidade, e estribados nos dados demográficos anteriores, reconhecemos as seguintes entidades familiares constitucionalizadas:

1) Casamento. Previsto no § 1.º, do art. 226, da Constituição Federal de 1988, o casamento é, nas palavras do saudoso civilista Silvio RODRIGUES (2004:19), "... o contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência".

Pilar forte do sistema monogâmico reinante nos países ocidentais, como o nosso, o casamento foi, por muito tempo, considerado a única forma de constituição de família. Sem dúvidas, por influência da Igreja Católica e do Cristianismo, que o vê como reflexo da família sagrada.

Ainda hoje, mesmo após o advento do pluralismo familiar pela Carta Magna de 1988, percebemos um apego dos legisladores e jurisprudentes à essa tradição, demandando-se grande esforço para o reconhecimento de outras composições familiares. Isso se deve, quiçá, pela falsa conclusão do Estado de que o casamento representa a família perfeita para seus interesses, o que o faz regulá-lo em minúcias.

2) União estável. Conforme traçado no Código Civil de 2002, em incremento a Constituição Federal de 1988, "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família" (art. 1.723).

A união estável se reporta à década de 60, quando, no Brasil, veio à tona o movimento feminista. A mulher que, em face de sua resignação, sustentou por muito tempo a indissolubilidade do casamento, buscava igualdade perante o Estado, a sociedade civil e a relação conjugal. Junto com isso, veio o grito de liberdade e autonomia pelos cidadãos brasileiros que, buscando a felicidade, nem sempre a encontraram no berço conjugal.

Demorou muito até que o Estado reconhecesse a união estável como entidade familiar, tudo por culpa de um duvidoso moralismo. E mesmo após a Lei Maior de 1988, que a declarou como tal, o Poder Judiciário foi renitente, concebendo-a sociedade de fato e lhe conferindo efeitos exclusivamente obrigacionais — na medida do esforço efetivo de cada parte para a aquisição dos bens comuns (súmula 380 do STF). Doutra forma, determinavam os tribunais o pagamento pelo varão de indenização pelos "serviços prestados" pelo virago, tudo para repelir situação injusta de enriquecimento ilícito.

Não foi diferente com o Poder Legislativo, que só em 1994 promulgou a Lei n.º 8.971, a qual disciplinava os direitos sucessórios e alimentares dos conviventes. Reconhecia a lei de antemão como entidade familiar a união estável por mais de cinco anos ou com filho formada por homem e mulher desimpedidos de casar. Em seguida, veio a lume a Lei n.º 9.278/96, que trouxe, entre outras mudanças, a exclusão de impedimento para casar do conceito (aludindo à proteção do concubinato adulterino), a regulamentação da partilha e a determinação da competência absoluta das varas de família para apreciar o assunto.

Mais recentemente, o Código Civil regulamentou a matéria trazendo o conceito inicialmente transcrito e regulando com poucas minúcias a entidade familiar em questão — situação que suscita ainda dúvidas aos aplicadores da lei.

3) Famílias monoparentais. Também conhecida como unilineares, são aquelas formadas pela convivência afetiva entre um dos pais e os filhos (§ 2.º, art. 226, CF/88). Ela se verifica especialmente com a mãe assumindo o posto de "chefe da família", representando, de acordo com o IBGE, no ano de 2000, 12,6 % dois lares brasileiros.

Vários motivos podem explicar a formação das famílias monoparentais. Maria Celina BRAVO e Mário Jorge Uchoa SOUZA (2002) esclarecem que vai

... desde a pobreza, a liberdade sexual, o controle da natalidade, a independência econômica das mulheres, a instabilidade das uniões afetivas, a possibilidade de adoção por maior de 21 anos seja qual for o seu estado civil, e até mesmo o desejo da maternidade independente, estimulado pelo desenvolvimento da ciência no campo da inseminação artificial.

A despeito disso, a proteção constitucional está garantida.

4) Concubinato adulterino. Tecnicamente, chama-se concubinato. Na dicção do art. 1.727, do Código Civil, são "As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato".

Deixamos aqui de tecer maiores comentários, já que, sendo o cerne de nosso trabalho, dedicamos-lhe atenção especial nos capítulos 4, 5 e 6 que seguem.

5) Uniões homoafetivas. Podemos verificar a união homoafetiva sempre que a convivência entre duas pessoas de mesmo sexo estejam seladas pela afetividade, a estabilidade e a ostensibilidade. O fundamento que sustenta essas entidades familiares estão entre os direitos fundamentais enumerados no art. 5.º, da Constituição Federal de 1988, quais sejam, a liberdade, a igualdade e a inviolabilidade da intimidade. O preâmbulo constitucional também a fundamenta ao argumento de criação de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

As uniões homoafetivas são um exemplo de como os fatos sociais precedem o direito. Ora, já há algum tempo, o Brasil vem batendo recordes em vista do contingente de homossexuais nas paradas do orgulho gay da cidade de São Paulo. Tão logo, não tardou o aparecimento de questões diante dos tribunais, que, sob o rótulo inadequado de sociedades de fato, têm demonstrado considerável receptividade, notadamente, no campo previdenciário.

No Poder Legislativo Federal já tramita há alguns anos um projeto de lei com o objetivo de regulamentar a união civil de pessoas do mesmo sexo, valendo ressaltarmos que alguns países de cultura ocidental já aceitam o casamento de "iguais".

Em comentário brilhante, só para arrematarmos, trazemos a doutrina de Paulo Luiz Netto LÔBO (2002):

A ausência de lei que regulamente essas uniões não é impedimento para sua existência, porque as normas do art. 226 são auto-aplicáveis, independentemente de regulamentação. Por outro lado, não vejo necessidade de equipará-las à união estável, que é entidade familiar completamente distinta, somente admissível quando constituída por homem e mulher (§ 3º do art. 226). Os argumentos que têm sido utilizados no sentido da equiparação são dispensáveis, uma vez que as uniões homossexuais são constitucionalmente protegidas enquanto tais, com sua natureza própria.

6) Entidades familiares desprovidas de poder familiar. Chamamo-las dessa forma porque em sua configuração não existem a figura do pai e da mãe. São de dois tipos: duas ou mais pessoas sem parentesco cujo elo é o afeto, sem finalidade sexual ou econômica, que correspondiam no Censo de 2000 a 0,2% dos lares familiares; e duas ou mais pessoas com parentesco unidas pela afetividade. O Superior Tribunal de Justiça, acatando a tese decantada, já decidiu:

EXECUÇÃO. Embargos de terceiro. Lei n.º 8.009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família. Irmãos solteiros. Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei nº 8.009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles (REsp 159.851-SP, DJ de 22.06.98).

7) Entidade familiar por equiparação ou unipessoal. É formada por uma única pessoa, inclusive, solteira. Os "solitários", em 2000, correspondiam a 8,2% dos domicílios brasileiros. São considerados equiparados porque sua verificação como entidade familiar se dá somente para proteção dos direitos pessoais decorrentes de relações familiares. Em verdade, não percebemos neles a característica da afetividade que se faz presente nas entidades familiares genuínas, já que afeto subentende a existência de no mínimo duas pessoas.

Assim se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. MÓVEIS GUARNECEDORES DA RESIDÊNCIA. IMPENHORABILIDADE. LOCATÁRIA/EXECUTADA QUE MORA SOZINHA. ENTIDADE FAMILIAR. CARACTERIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. LEI 8.009/90, ART. 1º E CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 226, § 4º. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO (REsp 205.170-SP, DJ de 07.02.2000).

Por último, bem lembra Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), verificamos a "... comunidade afetiva formada com ‘filhos de criação’, segundo generosa e solidária tradição brasileira, sem laços de filiação natural ou adotiva regular". A jurisprudência pátria já se posicionou da seguinte forma:

Negatória de paternidade. "Adoção à brasileira". Confronto entre a verdade biológica e a socioafetiva. Tutela da dignidade da pessoa humana. Procedência. Decisão reformada. A paternidade socioafetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular ´adoção à brasileira´, não tutelaria a dignidade da pessoa humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-ia as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado (TJPR, Ac. 108.417-9, rel. Des. Accácio Cambi, j. 12/12/2001, DJPR 4/2/2002).

Somente as três primeiras estão explícitas na Carta de 1988. Isso se explica pela maior incidência dessas formas familiares na sociedade brasileira. Aproximadamente 84% de nossa população, em 2000, se encaixavam entre as entidades familiares explícitas, contra aproximadamente 16% das implícitas.

3.4 EXISTE HIERARQUIA AXIOLÓGICA ENTRE AS ENTIDADES FAMILIARES?

Disse o legislador originário, ao incluir explicitamente a união estável entre as entidades familiares: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento" [grifo nosso] (art. 226, § 3.º, CF/88).

Entre os doutrinadores que acreditam que a Constituição Federal de 1988 declinou rol exaustivo de entidades familiares, essa escrita deu ensejo a interpretações de duas ordens: 1) o casamento ocupa posição hierarquicamente superior às outras entidades, que deverão ter efeitos jurídicos limitados pelo ordenamento jurídico; e 2) as entidades familiares ocupam patamar de igualdade, pois o megaprincípio da dignidade da pessoa humana garante a liberdade de escolha das relações afetivas.

Não é correto extrair da norma transcrita a primeira interpretação, pois o legislado originário, ao colocar o trecho que grifamos, não pretendeu fazer distinção entre as entidades familiares. Nem assim poderia, sob pena de ferir a harmonia e sistematicidade da Carta Magna. Ora, de que adianta garantir como direito fundamental do indivíduo a liberdade para escolher o melhor arranjo familiar para si, se mais a frente diz que a família do casamento é o melhor caminho para seus interesses (ou para os do Estado)?

Em verdade, quis o legislador originário dizer que o legislador derivado deverá, ao promulgar leis infraconstitucionais cujo conteúdo é a união estável, incluir uma forma simples para que os conviventes venham a contrair, se assim quiserem, um casamento civil.

Paulo Luiz Netto LÔBO (2002) leciona que

A tese II, da igualdade dos tipos de entidades, consulta melhor o conjunto das disposições constitucionais. Além do princípio da igualdade das entidades, como decorrência natural do pluralismo reconhecido pela Constituição, há de se ter presente o princípio da liberdade de escolha, como concretização do macroprincípio da dignidade da pessoa humana. Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial.

Portanto, pensamos que o legislador não foi feliz ao incluir o trecho causador da dúvida. Conquanto não tenha querido propor uma hierarquia de entidades familiares, o certo é que deixou entrever uma predileção do Estado pelo casamento, com certeza pelo ranço de longo período em que a singularidade familiar reinou na ordem jurídica pátria.

Ninguém é mais indicado do que a própria pessoa para dizer do melhor para sua dignidade e sua afetividade. E como veremos adiante, o objetivo do Estado ao determinar proteção especial à família, não é outro senão o de assistir aos seus integrantes (§ 8.º, art. 226, CF/88). Então, sua influência na família se restringe tão-somente à proteção do ambiente familiar, seja qual for ele.

3.5 A PROTEÇÃO ESTATAL ÀS ENTIDADES FAMILIARES E A SEUS MEMBROS

Já dissemos que a família é a base da sociedade e que, por isso, o Estado deve conferir-lhe uma proteção. Esse discurso permeou-se de forma clara pelas constituições brasileiras desde 1934 (art. 144, CF/34; art. 124, CF/37; art. 163, CF/46; art. 167, CF/67-69).

A Carta Magna vigente, em seu art. 226, caput, assevera que "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Vai além no § 8.º, do mesmo artigo, quando diz que "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações". Nesse particular, cabe-nos questionar a quem se dirige a proteção estatal: à família ou à pessoa que a integra?

As constituições anteriores faziam menção expressa à família como sendo conseqüência de um casamento indissolúvel. A tutela estatal aí significava proteger em primeiro lugar a família e não a seus membros. Em outros termos, a proteção estatal reduzia-se a afastar toda sorte de "uniões ilícitas", objetivando consagrar o casamento como instituição essencial para assegurar os interesses do próprio Estado. Tanto era assim que, por muitos anos, falou-se em filhos "legítimos" e "ilegítimos" — os provenientes de relações fora do manto civil, que tinham tratamento discriminatório pela sociedade e pela lei.

Em tese adversa, a Constituição de 1988, desviando o foco para a pessoa humana e sua dignidade, repensou a família e a declarou objeto de proteção mediata do Estado. Para tanto, passou a amparar cada pessoa que integra o núcleo familiar sob o argumento de lhe despender proteção especial (§ 8.º, art. 226). Ratificando nossa visão, temos os art. 227 e 230, os quais determinam que é dever da família, da sociedade e do Estado garantir o desenvolvimento saudável e digno da criança, do adolescente e das pessoas idosas.

Com efeito, como nos ensina Gustavo Tepedino,

"... é a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo social" (apud Maria Celina BRAVO e Mário Jorge Uchoa SOUZA, 2002).

Além do mais, complementa Paulo Luiz Netto LÔBO (2002),

Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim sendo, mais um motivo para vedar-se a interpretação que expõe que a Constituição declinou rol exaustivo de entidades familiares, sob pena de infringência ao princípio da dignidade da pessoa humana.


4 DO CONCUBINATO

O concubinato, em seu sentido etimológico, vem, conforme lição de Álvaro Villaça AZEVEDO (2002:186),

... do vocábulo latino concubinatus, us, que, então, já significava mancebia, amasiamento, abarregamento, do verbo concumbo, is, ubui, ubitum, ere ou concubo, as, bui, itum, are (derivado do grego), cujo sentido é o de dormir com outra pessoa, copular, deitar-se com, repousar, descansar, ter relação carnal, estar na cama.

Pode ser entendido sob duas formas: 1) ampla: conhecida por alguns pelo nome de concubinagem, compreende toda e qualquer união afetiva e sexual entre homem e mulher fora do casamento, indo da posse de estado de casado à união adulterina; e 2) estrita: relação duradoura que pressupõe o ânimo societário e a lealdade.

Na Roma Antiga, o concubinatus era uma relação estável permitida entre homem e mulher livres e solteiros que, conquanto vivessem como se casados fossem, não detinham, para o direito da época, o affectio maritalis e a honor matrimonii. Inicialmente, não tinha qualquer efeito jurídico, embora não fosse proibido ou moralmente reprovável. As relações passageiras e instáveis recebiam o nome de stuprum ou adulterium.

Após sua inclusão no direito romano como prática lícita e usual pelas leis Iulia e Papia Poppaea, ele alcançou pior momento durante as administrações dos imperadores cristãos, que o consideraram imoral, chegando, inclusive, a ser abolido pelo Imperador Leão (886 a 912 d. C.).

A religião cristã, representada pela Igreja Católica teve papel primordial na visão reservada que detinha o concubinato dentro da sociedade e do próprio Estado. Contudo, como nos conta Álvaro Villaça AZEVEDO (2002:155), citando Gustavo A. Bossert,

... desde o início de sua elaboração, o Direito Canônico captou o sentido da realidade social do concubinato, tratando de regula-lo e de conceder-lhe efeitos, com critério realista, procurando, com isso, assegurar a monogamia e a estabilidade do relacionamento do casal, mas sem ratificá-lo.

Em verdade, a Igreja Católica se voltou mesmo contra o concubinato no momento em que ele começou a ser praticado pelos clérigos, pondo em xeque sua própria estrutura. Foi nesse tempo que os padres foram proibidos de conviverem com mulheres que não as suas parentes e, mesmo assim, contanto que não se despertasse qualquer suspeita.

Santo Agostinho foi um dos grandes combatentes do concubinato, tendo essa reprovação aumentado com a expedição de vários concílios pela Igreja. Por exemplo,

Com o Concílio de Trento, em 1563, restou proibido o casamento presumido, determinando-se a obrigatoriedade de celebração formal do matrimônio, na presença do pároco, de duas testemunhas, em cerimônia pública. Essas celebrações passaram, então, a ser assentadas em registros paroquiais. Desse modo, condenou-se o concubinato. Foram estabelecidas penalidades severas contra os concubinos que, sendo três vezes advertidos, não terminassem seu relacionamento, podendo ser excomungados e, até, qualificados de hereges (Álvaro Villaça AZEVEDO, 2002:157).

A despeito disso, o concubinato sempre resistiu, encontrando seu lugar no mundo jurídico a partir do século XVI, quando então se sentiu a necessidade de legislar-se sobre o tema. Já para a metade do século XIX, os tribunais franceses começaram a verificar na relação concubinária uma sociedade econômica, resultando daí alguns efeitos jurídicos, inclusive, com a aplicação do princípio do enriquecimento sem causa (Rodrigo da Cunha PEREIRA, 2004a:15).

No Brasil, o concubinato nunca teve uma posição de prestígio, vez que representava a negação do casamento indissolúvel que era prezado pelo Estado. Os concubinos eram vítimas de preconceito, como se fossem desertores da moral e dos bons costumes.

O Código Civil de 1916 não permitia expressamente o concubinato, porém, não o proibia. O Diploma Civil dedicava-se, no máximo, a negar alguns possíveis direitos ao concubino, sob o propósito de proteger a família legítima. Nem mesmo a prole advinda do relacionamento extramatrimonial detinha um reconhecimento da ordem jurídica.

Com efeito, os casos de concubinato foram aparecendo nos tribunais com o objetivo de resolução quanto à partilha do patrimônio adquirido. Então, antevendo em certos casos que o parceiro casado saia enriquecido de forma injusta, os tribunais brasileiros, tais quais os franceses, passaram a aplicar a teoria da sociedade de fato e do enriquecimento ilícito. Foi quando se editaram as súmulas 380 e 382, cujos conteúdos dizem, respectivamente, que "Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos é cabível a sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum" e que "A vida em comum sob o mesmo teto more uxorio não é indispensável à caracterização do concubinato".

O esforço comum dito na súmula 380 não significava presunção de que os concubinos arcaram cada qual com metade dos gastos. Cada um ganhava exatamente aquilo que dispensou para construção do patrimônio. No caso daquelas concubinas que não contribuíram com dinheiro em espécie, os tribunais impuseram a seguinte solução: devem os serviços domésticos prestados por elas serem indenizados. Mais a frente, passou-se a entender que esses serviços domésticos poderiam funcionar como maneira indireta de contribuição para a formação do patrimônio comum, dando ensejo à partilha dos bens.

Anteriormente à expedição das súmulas 380 e 382, o Supremo Tribunal Federal já havia produzido a súmula 35, segundo a qual "Em caso de acidente de trabalho ou de transporte, a concubina tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio". Nesse ínterim, cabe-nos atentar para a divisão que era feita pela doutrina e pela jurisprudência, que dividiam o concubinato em puro e impuro. Aquele dizia respeito à relação concubinária em que as partes não tinham impedimento para casar; esta, por via de conseqüência, quando tinha algum impedimento.

A evolução da jurisprudência brasileira sempre se situou no concubinato puro. E, ao passo que a sociedade se modernizava, a modalidade pura ganhava mais espaço na ordem jurídica, eminentemente no campo do direito obrigacional. Com o passar dos anos, inclusive os concubinatos em que ao menos um dos participantes era casado, mas separado de fato, começaram a ganhar respaldo dentro dos pretórios.

O certo é que a Constituição Federal de 1988, reconhecendo a viabilidade do concubinato puro e o peso negativo que carregava o termo concubino(a), incluiu dentro do quadro jurídico pátrio a união estável, sendo tal uma entidade familiar entre homem e mulher não impedidos de casar. Daí em diante, as relações entre homens e mulheres livres tinham o selo de legitimidade reconhecido pelo Estado brasileiro.

Entretanto, demorou-se bastante até que o legislador produzisse uma regulamentação do dispositivo constitucional que tratava da união estável. E os tribunais ainda teimavam em aplicar inadequadamente a velha súmula 380, desta feita não só para as uniões estáveis, mas também para os concubinatos impuros, que até então, em regra, eram negados pelos julgadores.

Mesmo com a assimilação da união estável feita pelo Código Civil de 2002, o que notamos atualmente é que o legislador ainda guarda um tradicionalismo quando o assunto foge às raias do casamento civil. É que a regulamentação legal da união estável ainda é falha e inexpressiva, isso se considerarmos que o Texto Civil entrou em vigor em janeiro de 2003, quase quinze anos após a Constituição vigente.

Por derradeiro, importa destacarmos que não há mais razão atualmente para dividir o concubinato em puro ou impuro, embora não seja difícil encontrarmos essa classificação na doutrina e na jurisprudência. Daqui pra frente, o puro será reconhecido como união estável e o impuro, como concubinato, só isso. Como veremos abaixo, concubinato é gênero — e a espécie que nos interessa é a adulterina.

4.1 CLASSIFICAÇÃO

Depois da Constituição Federal de 1988, não há mais falarmos em concubinato puro e impuro, como já dissemos. Mesmo assim, não é difícil encontrarmos na doutrina e até na jurisprudência referência a essa divisão que guarda uma carga pesada de preconceito.

A classificação das relações afetivas à margem do casamento, da forma como é tratada atualmente pelo Código Civil, resume-se à união estável e ao concubinato. Com base, então, nos estudos de Vitor KÜMPEL (2001), propomos a seguinte articulação:

1. UNIÃO ESTÁVEL

1.1. Solteiros

1.2. Separados judicialmente

1.3. Separados de fato

1.4. Divorciados

1.5. Viúvos

2. CONCUBINATO

2.1. Adulterino

2.2. Incestuoso

2.3. "Sancionador"

QUADRO 1: Classificação das relações afetivas à margem do casamento

Podemos dizer que todos aqueles não impedidos de casar, salvo os separados de fato e judicialmente — incluídos aqui os separados de corpos —, por determinação legal expressa no § 1.º, do art. 1.723, do Código Civil, podem contrair uma união estável.

Por conseguinte, todos os impedidos de casar, ao se relacionarem, formarão um concubinato. Dependendo da trama escolhida, o concubinato será: adulterino, incestuoso ou "sancionador".

Ele será adulterino sempre que pelo menos uma das partes for casada efetivamente (art. 1.521, VI, CC), em face do dever de fidelidade que existe no casamento. Encaixamos nesse conceito também o concubinato que existe concomitantemente com uma união estável, pois, como decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça, "Não há como configurar união estável concomitante a outra" (REsp 789.293-RJ, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 16/2/2006). É o chamado concubinato desleal, uma vez que, na união estável, conforme lição de Álvaro Villaça AZEVEDO (2002), verificamos o dever de lealdade, cuja quebra implica adultério (art. 1.724, CC). Diz o mestre civilista:

... em vez de falarmos em "fidelidade da mulher", devemos mencionar o dever de lealdade recíproca, pois a lealdade é figura de caráter moral e jurídico independentemente de cogitar-se da fidelidade, cuja inobservância leva ao adultério, que é figura estranha ao concubinato [entendamos "à união estável"] (idem, p. 189).

Silvio RODRIGUES (2004:259), no entanto, acredita mesmo é na presunção de fidelidade entre os conviventes. Enfim, de uma forma ou de outra, temos que o concubinato adulterino conforma também a relação em que no mínimo uma das duas partes já vive em união estável.

O concubinato incestuoso diz respeito às relações amorosas entre entes da mesma família, seja o parentesco civil, afim ou adotivo (art. 1.521, I-V, CC). No caso específico dos afins, o impedimento se faz somente em linha reta e não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável (art. 1.595, § 2.º, CC). Quando se tratar de colaterais, ficam impedidos de casar os parentes até o 3.º grau.

Por último, o concubinato "sancionador" é aquele previsto no inciso VII, do art. 1.521, do Código Civil, segundo o qual é impedido de casar o cônjuge sobrevivente com o condenado pelo homicídio ou tentativa de homicídio doloso contra seu consorte. Clóvis Beviláqua, lembrado por Silvio RODRIGUES (2004:46),

... entende que o impedimento se funda na idéia de que o cônjuge sobrevivente deveria normalmente sentir, pelo assassino de seu consorte, invencível aversão. Se não a sente é porque estava conivente com o crime, razão porque é merecedor da punição...

Por essa razão, assim o denominamos.

4.2 CONCUBINATO ADULTERINO

Não é de hoje que o concubinato adulterino sofre com a reprovação social. Pelo que conhecemos, a maioria das sociedades antigas o refutou. Mormente, quando o patrimônio e sua transmissão começaram a pautar as relações entre o homem e a mulher. O adultério era punido severamente, mesmo nas sociedades poligâmicas.

Vitor KÜMPEL (2001) expõe que

À medida que a idéia de propriedade se aperfeiçoa, os homens passam a diferenciar as mulheres em esposas e concubinas para privilegiar alguns filhos em detrimento de outros. Nesse contexto, sua esposa era a mulher principal, garantida em direitos, sua prole era prestigiada, herdando o patrimônio deixado, e as outras mulheres e concubinas eram secundárias, vivendo à margem de direitos. Essa diferenciação acabou se acentuando, pois num primeiro momento as esposas conviviam sob o mesmo teto, sendo que com o desenvolvimento histórico as concubinas continuam existindo concomitantemente às esposas, porém não mais sob o mesmo teto.

Sem dúvida nenhuma o Cristianismo e a Igreja Católica contribuíram para essa situação de marginalização. O formato patriarcal da família sagrada, cujo embrião é o casamento religioso, foi cobrado e vivenciado por demais nas sociedades medievais e modernas.

Com a regulamentação do casamento pelo Estado no século XIX, o direito tomou para si a "obrigação" de afastar toda sorte de relações paralelas. A despeito disso, elas sempre existiram, não sendo equívoco afirmar que o concubinato adulterino representou uma das colunas de sustentação da indissolubilidade do próprio casamento civil.

Em nosso país não foi diferente. Carlos Cavalcanti de ALBUQUERQUE FILHO (2002) afirma que

... é fato que desde a colonização, no contexto de casa grande e senzala, tão bem retratado por Gilberto Freire, passando pelos movimentos de conquista do interior, cujo mais conhecido é o movimento bandeirante, até os dias atuais, a realidade social ao longo da história insistiu em contrariar a determinação legal, de sorte que relações paralelas, duráveis, sempre ocorreram e continuam existindo.

A força do princípio da monogamia insiste em relegar a um plano inferior relações com selo de adultério, apesar da recente descriminação pela Lei n.º 11.106/2005. Antes até da abolitio criminis citada, o Código Civil vigente já não impedia mais o casamento do cônjuge adúltero com o seu co-réu, texto que constava no revogado Diploma Civil de 1916.

Como veremos abaixo, tanto a lei como a doutrina e a jurisprudência, em geral, cominam poucos efeitos ao concubinato adulterino, e quando assim o fazem, têm em vista a relação puramente obrigacional que aqui supostamente existe.

4.2.1 Conceito

Em nosso ordenamento jurídico, o concubinato adulterino sempre foi compreendido a partir da criatividade dos operadores do direito — juízes e doutrinadores —, em face do sinal de exclusão que sempre recebeu da legislação e, porque não dizermos, da sociedade. Partia-se do princípio de que concubinato adulterino era uma relação que não podia ser convertida em casamento, moralmente reprovável e contrária aos bons costumes.

Porém, o Código Civil vigente, demonstrando uma evolução legal tímida, empunhou, em seu art. 1.727, o conceito de concubinato como sendo "As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar...". Tendo em vista que várias são as formas de concubinato, o que o diferencia como adulterino é a existência simultânea de casamento ou união estável ativos.

Preferimos o conceito dado por Carlos Cavalcanti de ALBUQUERQUE FILHO (2002), conforme o qual é "... uma relação estável entre duas pessoas de sexos diferentes, constituída faticamente, com a possibilidade de manifestação do afeto, presumidamente pública e de modo contínuo" (só fazemos reservas quanto à pretendida presunção de publicidade).

São requisitos, pois, do concubinato adulterino: 1) heterossexualidade: pois as partes devem ser de gêneros diferentes; 2) afetividade: vez que, dentro dele, os parceiros podem destinar amor recíproco; 3) não eventualidade: porque a eventualidade lhe conferiria um aspecto singular de encontros furtivos, sem qualquer possibilidade de manifestação estável e durável do afeto; 4) publicidade: já que a relação deve cercar-se de um mínimo de conhecimento público, pelo menos no meio social em que vive o casal de concubinos; 5) adultério: tendo em vista que pelo menos uma das partes vive dentro de um casamento efetivo ou uma união estável preexistente. Assim sendo, sempre que nos depararmos com um relacionamento amoroso onde estejam presentes as características referidas, estaremos diante de um legítimo concubinato adulterino.

Ressaltamos que o concubinato adulterino perdurará enquanto verificar-se sua existência simultânea com um casamento ou união estável em que haja convivência efetiva entre o concubino e seu cônjuge ou companheiro. Assim sendo, com a separação de fato ou de direito do concubino casado ou companheiro, o concubinato adulterino transforma-se automaticamente em legítima união estável.

4.2.2 Tratamento doutrinário, jurisprudencial e legal da matéria

A doutrina, a jurisprudência e as leis infraconstitucionais atuais, geralmente, pautam o concubinato adulterino como instituição fora do campo do direito de família. Seus efeitos, segunda elas, pertencem ao direito obrigacional.

Maria Berenice DIAS (2004), com sua visão esclarecedora, expõe de forma excepcional como são tratados pela lei fatos sociais como o concubinato adulterino. Diz a eminente desembargadora gaúcha:

O legislador se arvora o papel de guardião dos bons costumes e busca a preservação de uma moral conservadora e, muitas vezes, preconceituosa. A técnica legislativa sempre aspirou a estabelecer paradigmas comportamentais estritos por meio de normas cogentes e imperativas. Elege um modelo de família e a consagra como única forma aceitável de convívio. A postura é intimidadora e punitiva, na esperança de gerar comportamentos alinhados com os comandos legais. Na tentativa de desestimular atitudes que se afastem do parâmetro comportamental reconhecido como aceitável, nega juridicidade ao que se afasta do normatizado. Os exemplos são vários. Basta lembrar a vedação de reconhecimento dos filhos "espúrios", a indissolubilidade do casamento, a rejeição às uniões extramatrimoniais (idem, p. 31).

Assim é que, no Código Civil, o art. 1.727 diz o que é concubinato; o art. 550 veda doações do adúltero ao seu cúmplice, cujo prazo para anulação é de dois anos; art. 1.642, V autoriza o cônjuge a reivindicar os bens doados ou transferidos pelo consorte ao concubino, independentemente de sua autorização; e o art. 1.801, III proíbe a nomeação de concubino de testador casado como herdeiro ou legatário. Pelo menos, no campo penal, o adultério já foi descriminado pela Lei n.º 11.106/2005, não sendo mais um delito contra a família.

Do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial, podemos precisar duas situações distintas: 1) quando o concubino detém boa-fé, ou seja, não tem ciência de que o parceiro é casado e mantém o vínculo conjugal ou é companheiro de outra pessoa; e 2) quando o concubino está de má-fé, isto é, tem conhecimento da situação paralela ao casamento ou à união estável, o que afasta o objetivo de constituição de família de sua relação.

A primeira situação trata-se da união estável putativa. Diz Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004:76), respaldado na lição de Francisco José Cahali:

... se no casamento putativo são concedidos os efeitos para o contraente de boa-fé, aqui também pode ser invocado este princípio, ou seja, a(o) companheira, sendo pessoa de boa-fé na relação concubinária, e, pelo menos por parte dela(e), sendo uma relação monogâmica, não há razões para negar a concessão de todos os efeitos da União Estável.

Comungando de mesmo pensamento, Álvaro Villaça AZEVEDO (2002:190), segundo o qual o concubinato adulterino não deverá ter efeitos jurídicos senão em hipóteses de putatividade ou para evitar enriquecimento ilícito.

Por sua vez, em casos desse jaez, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proferiu o seguinte aresto:

UNIÃO ESTÁVEL – SITUAÇÃO PUTATIVA – COMPROVAÇÃO. O fato de o de cujus não ter rompido definitivamente o relacionamento com a companheira com quem viveu longo tempo, mas com quem já não convivia diariamente, mantendo as ocultas essa sua vida afetiva dupla, não afasta a possibilidade de se reconhecer em favor da segunda companheira uma união estável putativa desde que esta ignore o fato e fique comprovada a affectio maritalis e o fato ânimo do varão de constituir família com ela, sendo o relacionamento público e notório e havendo prova consistente nesse sentido. Embargos infringentes desacolhidos (TJRS, EI 599469202, 4.º Grupo Câmara Cível. Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. 12-11-1999).

A segunda situação, a que o concubino tem plena ciência de que o parceiro mantém um vínculo conjugal ou vive em união estável com outrem, implica resposta completamente diferente da doutrina e da jurisprudência. É o que podemos decantar do seguinte julgado paulista:

CONCUBINATO – CONCOMITÂNCIA COM O CASAMENTO. A lei não contempla o concubinato adulterino, isto é, aquele mantido concomitantemente com o casamento. A tal relação não se aplica o art. 5.º da LICC que determina que, na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ele se dirige e às exigências do bem comum. O dispositivo só deve ser aplicado quando a situação de fato assim o reclamar, isto é, desde que existente uma separação de fato entre os cônjuges, a tornar o concubinato honesto, como o reconhece a nova Constituição (3.ª CCTJ-SP, Ap. n. 116.225-1, m. v. em 17.10.1989, Rel. Dês. Mattos Faria, RT 649/52).

No campo específico dos doutrinadores, quando não é ignorado pelos manuais, o concubinato adulterino é visto com bastantes reservas. Quase que invariavelmente os estudiosos vêem nele uma relação puramente obrigacional com vistas a evitar uma situação de enriquecimento ilícito. Além de Álvaro Villaça AZEVEDO (2002) supracitado, Silvio RODRIGUES (2004:261) acredita que o concubinato adulterino é "... desprovido [...] de efeitos positivos na esfera jurídica de seus partícipes".

De seu modo, Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004:66) acredita que conferir efeitos jurídicos ao concubinato adulterino significa quebrar o sistema jurídico pátrio fundado no princípio da monogamia. Escreve ele:

A amante, amásia — ou qualquer nomeação que se dê à pessoa que, paralelamente ao vínculo do casamento, mantém uma outra relação, um segunda ou terceira... —, será sempre a outra, ou o outro, que não tem lugar oficial em uma sociedade monogâmica. [...] É um paradoxo para o Direito proteger as duas situações concomitantemente. Isto poderia destruir toda a lógica do nosso ordenamento jurídico, que gira em torno da monogamia.

Paralelamente, os tribunais tendem a reconhecer o concubinato adulterino como sociedade de fato, aplicando-se-lhe a inteligência da súmula 380 do Supremo Tribunal Federal — conquanto possamos encontrar decisões que demonstrem o lado familiar do concubinato adulterino. Como exemplo, transcrevemos as palavras do Des. Orlando Carvalho, nos autos da Apelação Cível n.º 133.065/3, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, publicado em 30-3-99: "O que a lei e a Constituição não contemplam é o concubinato adulterino concomitante ao casamento mantido, resultando bigamia defesa".

Com efeito, a maior parte das decisões espelha-se no seguinte entendimento, esposado pelo Min. Antônio Néder:

Deve distinguir-se no concubinato a situação da mulher que contribui, com o seu esforço ou trabalho pessoal, para formar o patrimônio comum, de que o companheiro se diz único senhor, e a situação da mulher que, a despeito de não haver contribuído para formar o patrimônio do companheiro, prestou a ele serviço doméstico, ou de outra natureza, para o fim de ajudá-lo a manter-se no lar comum. Na primeira hipótese, a mulher tem o direito de partilhar com o companheiro o patrimônio que ambos formaram [...]. Na segunda hipótese, a mulher tem o direito de receber do companheiro a retribuição devida pelo serviço doméstico a ele prestado, como se fosse um contrato civil de prestação de serviços, [...] como se não estivesse ligada, pelo concubinato, ao companheiro (STF – RE. n.º 79.079/77).

Seguindo essa esteira, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que os trabalhos domésticos também servem como forma de contribuição indireta para o patrimônio comum hábil a conduzir a uma partilha:

CIVIL – SOCIEDADE DE FATO – CONTRIBUIÇÃO INDIRETA DA COMPANHEIRA PARA A FORMAÇÃO DO PATRIMÔNIO. I – A jurisprudência do STJ acolhe entendimento no sentido de que, se a concubina, direta ou indiretamente, contribuiu para a formação do patrimônio, a este faz jus. II – Recurso conhecido e provido (REsp. n.º 120.335-RJ – 24-8-98 – Min. Waldemar Zveiter).

CIVIL. FAMÍLIA. CONCUBINATO. SOCIEDADE DE FATO. PARTILHA DE BENS. SERVIÇOS DOMÉSTICOS. CONTRIBUIÇÃO INDIRETA. A contribuição da concubina, para se ter por configurada a sociedade de fato, quando reconhecida a convivência more uxorio e a existência de bens adquiridos nesse período, pode decorrer das próprias atividades exercidas no recesso do lar e não apenas pela entrega de dinheiro ou bens ao companheiro. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido (REsp. n.º 60.073-DF – 15-5-00 – Min. César Rocha).

A competência para ações afetas ao concubinato adulterino é, no sentir jurisprudencial, das varas cíveis, sem qualquer intervenção do parquet. Como deixou bem claro a 4.ª Câmara Civil do Tribunal de São Paulo:

As partes são sui juris e disputam direitos patrimoniais em razão da sociedade de fato ou, alternativamente, indenização por serviços prestados. Não se cuida, à evidência, de direito de família. Basta verificar que ações dessa natureza não se processam no foro especial, mas nas Varas Cíveis (RJTJSP 119/188).

Sob a alcunha de relação obrigacional, os tribunais negam inúmeros direitos próprios de membros de entidade familiar aos concubinos, desde a aposição do nome do parceiro, passando pelos alimentos até os direitos sucessórios. Como vimos, garantiram-se principalmente os efeitos patrimoniais, que pressupunham uma sociedade de fato.

Está mais avançado em questões previdenciárias, havendo muitos casos em que se reconhece o direito da concubina à pensão por morte. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça assim se pronunciou:

RECURSO ESPECIAL. PENSÃO PREVIDENCIÁRIA. PARTILHA DE PENSÃO ENTRE A VIÚVA E A CONCUBINA. COEXISTÊNCIA DE VÍNCULO CONJUGAL E A NÃO SEPARAÇÃO DE FATO DA ESPOSA. CONCUBINATO IMPURO DE LONGA DURAÇÃO. Circunstâncias especiais reconhecidas em juízo. Possibilidade de geração de direitos e obrigações, máxime no plano da assistência social. Acórdão recorrido não deliberou à luz dos preceitos legais invocados. Recurso especial não conhecido (STJ – REsp. n.º 742.685-RJ – 5-9-05).

Raramente encontram-se decisões como a seguinte:

HOMEM CASADO. SITUAÇÃO PECULIAR, DE COEXISTÊNCIA DURADOURA DO DE CUJUS COM DUAS FAMÍLIAS E PROLE CONCOMITANTE ADVINDA DE AMBAS AS RELAÇÕES. INDICAÇÃO DA CONCUBINA COMO BENEFICIÁRIA DO BENEFÍCIO. [...] II – Inobstante a regra protetora da família, consubstanciada nos arts. 1.474, 1.177 e 248, IV, da lei substantiva civil, impedindo a concubina de ser instituída como beneficiária de seguro de vida, porque casado o de cujus, a particular situação dos autos, que demonstra espécie de "bigamia", em que o extinto mantinha-se ligado à família legítima e concubinária, tendo prole concomitante com ambas, demanda solução isonômica, atendendo-se à melhor aplicação do direito. III – Recurso conhecido e provido em parte, para determinar o fracionamento, por igual, da indenização securitária (STJ – Resp. n.º 100.888-BA – 12-3-01).

Podemos constatar que o Superior Tribunal de Justiça, nos casos de concubinato adulterino, privilegia as situações em que as relações são duradouras. Nesses casos, sim, sob o prisma da interpretação teleológica, reconhece o tribunal superior uma convivência familiar entre os concubinos.


5 DO CONCUBINATO ADULTERINO COMO ENTIDADE FAMILIAR

O fenômeno das famílias simultâneas, em nosso ordenamento jurídico, tem duas fases bem distintas: a da unicidade do Código Civil de 1916 e a da pluralidade familiar da Constituição Federal de 1988. Dentro do modelo singular de família formada pelo casamento indissolúvel, o Estado via a família em sua faceta transpessoal, onde a afetividade não fazia parte do seu rol de funções. Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:22) resume bem essa fase:

... a estabilidade da instituição familiar é reputada pela codificação de 1916 como mais relevante do que a felicidade dos membros que a compõem. Esse tratamento transpessoal, centrado no signo da desigualdade entre filhos e, sobretudo, entre os cônjuges — haja vista a hierarquização imposta para atender ao sentido de preservação da família — é mitigado ao longo do século XX.

Por outro lado, em que pese o formato positivado de nossa ordem jurídica, a abertura trazida pelo Texto Constitucional vigente com o princípio do pluralismo familiar e o da dignidade da pessoa humana fez com que as famílias simultâneas encontrassem terreno fértil para se desenvolverem juridicamente e encontrassem um portal de entrada para o Direito. Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005), com sua clarividência, fala da mudança do objetivo de formação da família, que passa da estabilidade patrimonial à felicidade dos seus membros. Diz-nos o familiarista:

... se o enfoque do jurídico não mais se dirigir a um ente abstrato, mas à pessoa concreta, que na relação com seus familiares busca, mutuamente, a satisfação de uma felicidade coexistencial, a simultaneidade familiar — muito mais ampla e multifacetada que a bigamia — pode se apresentar como realidade com alguma relevância jurídica, não mais na seara do desvalor, da sanção, mas, sim da proteção das pessoas que se inserem no âmbito dessa pluralidade de relações familiares em núcleos distintos (idem, p. 23-24).

Assim é que a Carta Magna de 1988 não mais repetiu a norma de exclusão familiar de suas precedentes, inaugurando um novo horizonte para as famílias sem casamento. A valorização da dignidade humana, desde então, trouxe para o direito pátrio uma posição amistosa diante das entidades familiares não explicitadas no Texto Constitucional. Nesse particular, cabe a lição do grande doutrinador Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), o qual preconiza que

Para a Constituição (art. 226, § 8º) a proteção à família dá-se "nas pessoas de cada um dos que a integram", tendo estes direitos oponíveis a ela e a todos (erga omnes). Se as pessoas vivem em comunidades afetivas não explicitadas no art. 226, por livre escolha ou em virtude de circunstâncias existenciais, sua dignidade humana apenas estará garantida com o reconhecimento delas como entidades familiares, sem restrições ou discriminações.

Desse modo, a partir da Carta Constitucional de 1988, família não é somente aquele arranjo humano formado pelo casamento, mas aquele que se apresenta como tal.

Partindo desse mote, o concubinato adulterino, verificável na hipótese de famílias simultâneas, encontra condições para fazer-se apreendido pelo Estado como mais uma entidade familiar. Tudo isso por causa da abertura do sistema jurídico-positivado proporcionada pelos princípios da pluralidade familiar e da dignidade da pessoa humana.

Com efeito, se observarmos bem, o conceito que demos de concubinato adulterino no capítulo 4 guarda grande coerência com aquele que trouxemos para família no capítulo 2. Ou melhor, as características apontadas por Paulo Luiz Netto LÔBO (2002) como presentes em toda e qualquer entidade familiar são facilmente encontradas no concubinato adulterino. Senão vejamos: no concubinato adulterino podemos observar uma afetividade, ou seja, nele existe uma troca de afeto entre os concubinos; um mínimo de publicidade, ao menos no meio social do casal; e, por fim, uma durabilidade, pois não verificamos o concubinato adulterino em relações eventuais.

Aliás, cabe aqui uma breve discussão para que saibamos reconhecer no fato social o que é o verdadeiro concubinato adulterino. Em primeiro lugar, as relações esporádicas que acontecem fora do casamento, como aventuras sexuais, não passam de simples adultério, até pelo fato de serem eventuais. Em segundo lugar, as relações que se fazem na completa clandestinidade, mesmo que existam o afeto e a durabilidade, não conformam um concubinato adulterino. Como dissemos, a família pressupõe uma publicidade mínima que não condiz com a situação dos amantes. Por último, não o confundamos com a união estável, como fazem algumas decisões judiciais favoráveis aos concubinos. É o caso do julgado a seguir transcrito:

PREVIDENCIÁRIO. CONCESSÃO DE PENSÃO POR MORTE DE COMPANHEIRO. UNIÃO ESTÁVEL. CONCUBINATO IMPURO. MARCO INICIAL. 1. Demonstrado, mediante início de prova material corroborado por prova testemunhal idônea, a convivência marital entre a requerente e o ‘de cujus’, é de ser concedido o benefício de pensão por morte à autora. 2. A existência de esposa não constitui óbice ao reconhecimento do direito à parte autora, porquanto as novas diretrizes constitucionais erigiram a união estável ao status de casamento, devendo ser reconhecido, para fins de direito previdenciário, os efeitos decorrentes do concubinato, mesmo que impuro [grifo nosso]. 3. [...] (Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, Apelação Cível 483154/RS, rel. Juiz Tadaaqui Hirose, j. 18/32003).

Na realidade, são duas entidades familiares distintas, de modo que a regulamentação legal daquela não é plenamente aplicável a esta — salvo no caso da união estável putativa. Outrossim, não podemos interpretar o art. 1.º, da Lei n.º 9.278/96, que regula a união estável, como sendo complacente com o concubinato adulterino, conquanto sua redação não mencione expressamente que os companheiros devam ser desimpedidos de casar. Não há uma "união estável adulterina" como quis Américo Luís Martins Silva, citado por Carlos Cavalcanti de ALBUQUERQUE FILHO (2002). Além do mais, o Código Civil de 2002 revogou implicitamente esse artigo ao conceituar a união estável em seu art. 1.723.

Postas essas noções, temos que não mais se justifica a não inclusão do concubinato adulterino entre as entidades familiares merecedoras de proteção especial pelo Estado brasileiro. Ora, se é verdade que o princípio do pluralismo familiar impôs a abertura do ordenamento para as famílias não explicitadas no texto maior, afastando a clausura de outrora, então o concubinato adulterino também conta com o selo de legitimidade familiar. A sua vez, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana impede o tratamento desigual entre as entidades familiares, porque dessa forma estaríamos amesquinhando as pessoas dos concubinos — mais exatamente da concubina, geralmente a parte que sai mais prejudicada dessas relações, conquanto não tenha sido ela quem quebrou efetivamente o dever da fidelidade ou lealdade conjugal.

Nem mesmo a presença do princípio da monogamia pode impedir que se faça o reconhecimento estatal do concubinato adulterino. Como veremos no ponto a seguir, o sistema monogâmico está relativizado, de forma que, atualmente, pelo bem da justiça, já é possível assimilar a existência de uma poligamia de núcleos monogâmicos.

O argumento que diz que, reconhecendo o concubinato adulterino, o Estado estaria desprivilegiando um instituto por ele criado, o casamento, não merece prosperar. Em verdade, o casamento nunca perderá sua maior característica que é a formalidade, de modo que as pessoas que querem oficializar sua união se casam. Se forem impedidas, resolvem essa pendenga e se casam. A autonomia das pessoas para estabelecerem o contexto familiar em que se inserem é decorrência lógica de sua dignidade. E no estágio em que nos encontramos, não é mais tarefa do Estado estabelecer políticas objetivando por um lado que os cônjuges se mantenham casados e que os companheiros se mantenham unidos, e por outro, rechaçando as outras relações afetivas. Além do mais, punir o concubino sob o pretexto de que ele foi um "destruidor de lares" não nos convence, já que a culpa do fim do relacionamento amoroso é justamente do fim da afetividade entre os cônjuges ou companheiros.

A complexidade das relações familiares não se compactua com uma visão fechada e preconceituosa em nome de uma moralidade excludente (ver ponto 5.2 abaixo). Desse modo pensa Sílvio de Salvo VENOSA (2003:56), segundo o qual "... qualquer posição apriorística e inflexível é arriscada, principalmente em matéria de família, que possui enorme conteúdo emocional e afetivo". Juntamente a sua voz, podemos localizar as de Maria Berenice DIAS (2004), de Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), de Carlos Cavalcanti de ALBUQUERQUE FILHO (2002), de Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005), de Maria Celina BRAVO e Mário Jorge Uchoa SOUZA (2002) e, em certa medida, Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b).

Nestas alturas, já encaramos o fato social do concubinato adulterino e sua inclusão no ordenamento jurídico através dos princípios. Resta-nos comentar as poucas disposições do Código Civil que trazem como tema o concubinato adulterino.

Primeiro o art. 1.727, conforme o qual "As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato". Complementando o entendimento o § 1.º, do art. 1.723, que exclui do conceito os cônjuges separados de fato ou judicialmente.

Sobre o artigo em comento, extraímos o interessante trecho do julgamento da Apelação Cível n.º 70004306197, da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatado pelo Des. Rui Portanova, datado de 27/02/2003:

Em suma o novo Código: a) diferente do que acontecia no Código Civil antigo, reconheceu a existência de uma realidade que tem aportado nos Tribunais, qual seja, (repetindo os termos da lei) "relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar"; b) deu um nome para essas relações: concubinato; c) não previu efeitos, mas, atendo a uma de suas diretrizes fundamentais, deixou o juiz decidir em cada caso concreto os efeitos que entender de justiça.

Pelo julgado, o concubinato adulterino não é proibido pelo ordenamento jurídico, pois, se assim quisesse, o legislador teria se manifestado explicitamente. Destarte, além de incluir o concubinato adulterino como instituto de direito de família, o Texto Civil permitiu a previsão de efeitos jurídicos conforme o talante do juiz. Sílvio de Salvo VENOSA (2003:61), com outras palavras, diz coisa semelhante ao escrever que o art. 1.727

... por si só, não retira dessa modalidade de união todo o rol de direitos atribuídos à união estável, assim definida em lei. Não é essa a conclusão a que se há de chegar. Impõe-se verificar em cada caso, ainda que a situação seja de concubinato na concepção legal, quais os direitos de união estável que podem ser atribuídos aos concubinos.

Contra a idéia acima transcrita, levantou-se o Des. Luiz Felipe Brasil Santos em seu voto no julgamento da Apelação Cível n.º 70005330196, da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, datado de 07/05/2003:

Divirjo profundamente desta premissa porque, ao contrário, o Novo Código veda expressamente o concubinato adulterino, não apenas em um, mas em três artigos. Veja-se o art. 550 do No Código, que veda doações do adúltero ao seu cúmplice, sendo o prazo de dois anos para a sua anulação; art. 1.642, inc. V, que autoriza que o cônjuge reivindique os bens doados ou transferidos pelo outro ao concubino, sem que para esta reivindicação necessite de autorização do outro, e, terceiro dispositivo, o art. 1.801, inc. III, que proíbe expressamente que o concubino de testador casado seja nomeado herdeiro ou legatário. Ora, se desses dispositivos não se extrai a vedação do concubinato, que no Código só é o concubinato adulterino, não atino o que seja vedação.

Ao nosso ver, o art. 1.727 do Código Civil tem duas funções: primeiro, a de diferenciar o concubinato adulterino das outras modalidades de relacionamento afetivos e, segundo, de reconhecer que o concubinato adulterino é um instituto de direito de família, mesmo que tenhamos em vista a suposta ilicitude ressaltada pelo Des. Luiz Felipe Brasil Santos. E por falarmos nessa ilicitude, temos que os dispositivos 550; 1.642, V e 1.801,III, do Código Civil devem ser repensados ou reinterpretados à luz do princípio da pluralidade familiar e da dignidade da pessoa humana, sob pena de incorrermos em grave inconstitucionalidade. Se as doações ou inclusões dos concubinos em testamento não ferirem plenamente a dignidade do cônjuge ou companheiro do doador/testador, não há razão para impedir tais atitudes. Do contrário, estaríamos a infringir a dignidade do concubino, o que já dissemos inadmissível atualmente. Há casos, por exemplo, em que os cônjuges detêm grande patrimônio, de forma que a doação por um cônjuge de um bem ao concubino não representaria perda considerável para o outro cônjuge, não infringindo a regra proibitiva da doação.

5.1 A RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA MONOGAMIA

O princípio da monogamia não está explicitamente previsto em nossa Constituição Federal, contudo, dizem os estudiosos, sua observação advém da interpretação sistemática das normas constitucionais. Em verdade, o sistema monogâmico é traço marcante na parte ocidental do mundo, como é nosso caso. Em sua visão, Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:76) nos conta que

O princípio da monogamia, embora funcione também como um ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais, não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio jurídico ordenador. Ele é um princípio básico e organizador das relações jurídicas da família do mundo ocidental.

Segundo o preceito monogâmico cada homem ou mulher só pode ter um único parceiro. Nas sociedades antigas, a monogamia foi vista como a forma mais favorável de formação familiar, visto que sua viabilização permitiu a segurança da transmissão da herança e a certeza da paternidade. Com a instalação da monogamia ganhou força a família patriarcal, conforme a qual a mulher era submetida ao homem e dele dependente, sendo certo que a ala feminina e sua resignação representaram o pilar maior de sustentação do casamento monogâmico. Em última análise, podemos dizer que o sistema monogâmico surgiu por questões econômicas, traço que marcou por muito tempo a família.

A história nos mostra que a monogamia detém pesos diferentes para o homem e para a mulher. E isso está ligado à discrepância econômica entre os sexos, de forma que a fidelidade se mostrou mais intensa na parte hipossuficiente da relação conjugal — geralmente a mulher. A tendência, por outro lado, é que a igualdade econômica entre os gêneros dentro da relação faça com que a monogamia se mostre tão influente para o lado masculino quanto para o feminino.

Comungando do mesmo pensamento, Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:98) nos conta que a família ocidental se caracterizou pela observação pela mulher da monogamia endógena e exógena, enquanto que pelo homem somente da monogamia endógena. Monogamia endógena diz respeito à estrutura familiar que só permite a conjugação de um único homem e uma única mulher. Por ela, a poligamia exógena é permitida, ou seja, as relações outras que não a estrutura familiar original. A sua vez, a poligamia endógena é plenamente proibida por significar negação à monogamia endógena. Já a monogamia exógena veda completamente outros relacionamentos fora da conjugalidade. Conclui o estudioso:

De qualquer modo, ainda que o relacionamento sexual extra-conjugal pudesse ser tolerado ou mesmo estimulado em momentos conjunturais do transcurso histórico, verifica-se a monogamia endógena como estruturalmente estável nas sociedades ocidentais. Vale dizer: um elemento de longa duração (idem, p. 101).

Sobre a família brasileira em particular, Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:101), citando Gilberto Freyre, escreve que: "Poder-se-ia objetar, sobretudo, no que tange a formação do Brasil colonial, adentrando o Império até fins do século XIX, que a família escravocrata patriarcal seria, [...], como tipo-ideal, poligâmica". Podemos dizer, então, que a família brasileira foi moldada dentro de uma monogamia endógena, ao menos do ponto de vista do cônjuge varão, "... tolerando-se uma poligamia exógena sob um véu de hipocrisia" (idem, p. 105).

As palavras de Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005) só vêm constatar o fato social de que, apesar da sistemática monogâmica que paira sobre nosso ordenamento jurídico, as relações sexuais fora do enlace conjugal sempre existiram. Nessa linha de pensamento, não nos é errado concluir que as famílias simultâneas também são uma constante na sociedade brasileira. Por conseguinte, a simultaneidade familiar é um fenômeno relevante que pede sua apreensão pelo direito — como já vimos acima, já foi assimilado através da abertura ocasionada pelos princípios da pluralidade familiar e da dignidade da pessoa humana.

Paralelamente, anuncia Carlos Cavalcanti de ALBUQUERQUE FILHO (2002) uma crise no sistema monogâmico brasileiro nos últimos anos. Segundo ele,

A legislação vem acentuando a crise. Medidas legislativas, no âmbito constitucional e infraconstitucional, como o reconhecimento expresso de outras entidades familiares, dentro de uma perspectiva pluralista; a possibilidade da dissolução do vínculo de casamento, com o divórcio e do reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, entre outras, vem-nos mostrando que, paulatinamente, a situação de exclusividade do casamento e do casamento exclusivo, monogâmico e indissolúvel, com filhos havidos na relação de conjugalidade, mesmo no contexto jurídico, vem decrescendo. [...] Além disso, é nítida uma maior preferência pelas uniões livres e surgem no cenário outros arranjos familiares menos usuais.

Essas constatações nos fazem acreditar que o princípio da monogamia e o sistema monogâmico estão relativizados, de forma que já é possível à experiência jurídica pátria a assimilação da existência de uma poligamia de núcleos monogâmicos em que um elemento coexiste em duas famílias (monogamia endógena somada à poligamia exógena). Para tanto, socorremo-nos dos seguintes motivos: a afetividade como elemento fundador da família; o reconhecimento da união estável como entidade familiar; a descriminação do adultério; e a supremacia do princípio da dignidade humana.

A afetividade como elemento fundador da família. Como dissemos no início deste ponto, a família monogâmica surgiu e se consolidou principalmente por questões econômicas, em virtude da melhor administração dos bens pelo cônjuge varão na família patriarcal e sua transmissão aos herdeiros.

Ocorre que, atualmente, não mais persiste a finalidade patrimonial da família. O sentimento de busca pela felicidade do ser humano fez com que o afeto ganhasse o papel de protagonista das relações familiares, de modo que sua falta determina o fim do organismo familiar. Tal transformação, já adotada pela nossa Carta Magna, implicou um novo pensar para o direito de família com o reconhecimento de novas entidades familiares que não o casamento (conforme capítulo 3).

Nessas circunstâncias não nos é equivocado dizer que o princípio da monogamia restou comprometido, pois sua observação encontrará resistência no próprio princípio da afetividade.

O reconhecimento da união estável como entidade familiar. O casamento indissolúvel representava na sociedade brasileira a força do princípio da monogamia dentro da ordem jurídica. Tanto é que toda relação fora do casamento não tinha do Estado o selo de família, refletindo-se na inexistência de direitos no âmbito do direito de família para seus participantes.

O divórcio, assim, representou um baque na estrutura do casamento e, por via de conseqüência, do sistema monogâmico. O aparecimento de novas tramas familiares, mormente dos concubinatos puros, só veio a reforçar isso. E com a Carta Magna de 1988, que previu explicitamente a existência da união estável (antigo concubinato puro), ficou definitivamente superada a supremacia do casamento.

Inclusive, é possível a configuração de uma união estável formada por pessoas que, embora casados, sejam separadas de fato. Portanto, o princípio da monogamia perdeu parte de sua força.

A descriminação do adultério. O Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal, reproduzindo o ambiente social que o rodeava, criou, entre outros, o tipo penal do adultério com o objetivo de proteger a paz familiar, observando-se que família à época era aquela formada pelo casamento monogâmico e indissolúvel. Adultério é a relação sexual fora do casamento levada a efeito pelo cônjuge.

Eis que, demonstrando assimilar a tendência na doutrina e na jurisprudência de descriminação do adultério, a Lei n.º 11.106/2005 aboliu do Código Penal essa figura penal, pois não cabe ao Estado meter-se em esfera íntima dos cônjuges. Esse abolitio criminis assevera, por outro lado, um menor grau de reprovação pela sociedade brasileira à conduta adulterina, o que, a nosso ver, representa mais um fator de fragilização do sistema monogâmico.

A supremacia do princípio da dignidade da pessoa humana. Como já dissemos no capítulo 3, o princípio da dignidade da pessoa humana, por sua localização topográfica na Constituição, é um vetor de interpretação de toda a ordem jurídica. Desse modo, a hermenêutica legal que o desabone sofrerá a pecha da inconstitucionalidade. Sua importância é de tal modo que é conhecida como macroprincípio.

Sabemos que os princípios constitucionais devem conviver em perfeita harmonia, vez que todos eles têm uma função útil dentro do ordenamento jurídico. Porém, do embate entre os princípios da dignidade da pessoa humana e da monogamia, filtramos a preferência daquele. Ora, se é verdade que a proteção estatal à família se faz na pessoa de seus membros, de forma que lhes seja garantida uma vida digna, não podemos conceber que o sistema monogâmico impeça essa proteção. Do contrário, estaremos amesquinhando a dignidade humana.

Sobre o assunto, Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:72) traz-nos importante lição:

Como se vê, o Direito de Família está intrinsecamente ligado aos "Direitos Humanos" e à dignidade. A compreensão dessas noções, que nos remetem ao conceito contemporâneo de cidadania, é que tem impulsionado a evolução do Direito de Família. Cidadania pressupõe não exclusão. Isto deve significar a legitimação e a inclusão no laço social de todas as formas de família, respeito a todos os vínculos afetivos e a todas as diferenças. Portanto, o princípio da dignidade humana significa para o Direito de Família a consideração e o respeito à autonomia dos sujeitos e à sua liberdade. Significa, em primeira e última análise, uma igual dignidade para todas as entidades familiares. Neste sentido, podemos dizer que é indigno dar tratamento diferenciado às várias formas de filiação ou aos vários tipos de constituição de família.

Em corrente oposta, Tiago de Almeida QUADROS (2002) vê no princípio da monogamia uma premissa indiscutível no qual está pautada toda a estrutura o Direito de Família. Desse modo, a quebra desse princípio representaria uma incoerência do ordenamento jurídico.

Conquanto apresente versão semelhante a de Tiago de Almeida QUADROS (2002), como citamos no início desse ponto, Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b) consegue vislumbrar uma relativização do princípio da monogamia, desde que seja para atingir o ideal maior da justiça. Em suas palavras:

Não há dúvida de que o concubinato (adulterino) fere o princípio da monogamia, bem como a lógica do ordenamento jurídico ocidental e em particular o brasileiro. O mais simples e elementar raciocínio nos faz concluir isto. Aliás, é somente por causa desse princípio que foi possível à doutrina e jurisprudência construírem um pensamento para o concubinato não-adulterino e traze-lo para o campo do Direito de Família. Até que isto ficasse definitivamente esclarecido (Lei 8.971/94), fomos obrigados a conviver com os ridículos pedidos de indenização por serviços prestados, que era uma fórmula camuflada de se conceder alimentos, já que a união estável/concubinato não estava no elenco das fontes da obrigação alimentar e uma base principiológica para o Direito de Família não estava suficientemente assentada e forte como está hoje e a cada dia mais. Mas, se o fato de ferir este princípio significar fazer injustiça, devemos recorrer a um valor maior que é o da prevalência da ética sobre a moral para que possamos aproximar do ideal de justiça [...]. Ademais, se considerarmos a interferência da subjetividade na objetividade dos atos e fatos jurídicos, concluiremos que o imperativo ético passa a ser a consideração do sujeito na relação e não mais o objeto da relação. Isto significa colocar em prática o que disse antes, ou seja, que o Direito deve proteger a essência e não a forma, ainda que isto custe "arranhar" o princípio jurídico da monogamia. Se o fim dos princípios jurídicos é ajudar a atingir um bem maior, ou seja, a justiça, este paradoxo do concubinato adulterino deve ser resolvido, então, em cada julgamento, e cada julgador aplicando outros princípios e a subjetividade que cada caso pode conter é quem deverá aplicar a justiça, dentro de seu poder de discricionaridade. Assim, estaremos preservando o princípio jurídico da monogamia, eixo gravitacional sob o qual todo o Direito de Família está estruturado [grifo nosso] (idem, p. 88).

5.2 A ÉTICA QUE SE SOBREPÕEM À MORAL EXCLUDENTE [01]

Toda vez que fazemos uma avaliação pessoal e íntima de nossas ações e das ações dos outros, e aceitamos certa conduta com correta ou incorreta, estaremos nos guiando por nosso juízo moral. Considerando que aquilo que é correto para um nem sempre o é para outro, temos que a moral é um campo onde reina o relativismo.

A história do direito de família brasileiro nos mostra que a moral já produziu inúmeros casos de injustiça. Assim é que, em nome da moral sexual e dos bons costumes, o ordenamento jurídico pátrio por muito tempo somente reconheceu a família patriarcal formada a partir de um casamento indissolúvel. Tudo que se afastava desse modelo, era excluído da proteção legal, como conseqüência da ditadura excludente da moral.

Por sua vez, a Ética tem a ver com a racionalidade própria do ser humano. Isso implica dizermos que estaremos nos utilizamos de nosso juízo ético sempre que analisemos uma situação de acordo com critérios racionais. Assim sendo, o juízo ético detém um sentido universal, pois a razão é o único elemento essencial em todo ser humano.

Em verdade, a Ética, antes de ser ferramenta de estudo das condutas morais existentes, é o estudo racional do agir humano, porque faz parte do homem a necessidade de agir conforme seu julgamento de justiça. Nessa esteira, o conceito de justiça é permeado pela Ética, segundo a qual é justo aquilo que não deteriore ou preserve a natureza de certa coisa.

Segundo Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:66), "O moralista prefere sempre a formalidade e a lei em sua literalidade, enquanto o ético, a essência do Direito, e, por isso, buscará sempre nos princípios a fundamentação para mais justa adequação". Se assim é, concluímos que o estudo do concubinato adulterino pressupõe um sujeito ético, porque só esse sujeito enxergará a família além do estigma moral. Conquanto por vezes conte com o respaldo legal, o sujeito moralista nem sempre tem a solução mais justa para o caso concreto, vez que só pela Ética chegaremos mais próximos do ideal de justiça.

Outrossim, concluímos que os princípios informadores da família, dentre os quais o da dignidade da pessoa humana e o da pluralidade familiar, ganham maior relevo quando postos no caminho do sujeito ético. Talvez, somente nas mãos deste é que eles serão desenvolvidos em toda sua plenitude.

Portanto, é imperioso o reconhecimento pelo Estado da entidade familiar do concubinato adulterino sempre que ele preencha os requisitos da publicidade, afetividade e estabilidade. Ora, a Moral excludente não pode mais dar a cor das relações familiares, porque já se mostrou ineficaz e injusta.

Maria Berenice DIAS (2004:32) diz que, se o ordenamento jurídico tratar com indiferença situações como a do concubinato adulterino, acabará por criar privilégios injustos, visto que "A omissão em extrair conseqüências jurídicas pelo só fato de a situação não corresponder ao vigente modelo de moralidade não pode chancelar o enriquecimento injustificado". Acredita a desembargadora gaúcha que "... é impositivo invocar a ética como elemento estruturante do Direito de Família", pois "Ainda que sejam alvo do preconceito ou se originem de atitudes havidas por reprováveis, o juiz não pode afastar-se do princípio ético que deve nortear todas as decisões".


6 DO CONCUBINATO ADULTERINO: POSSIBILIDADES DE EFICÁCIA JURÍDICA

O concubinato adulterino, como entidade familiar, merece a proteção estatal, uma vez que o princípio da dignidade da pessoa humana impede o tratamento desigual às diversas formas de família pelo Estado.

Cada entidade familiar submete-se a estatuto jurídico próprio, em virtude dos requisitos de constituição e efeitos específicos, não estando uma equiparada ou condicionada aos requisitos da outra. Quando a legislação infraconstitucional não de cuida de determinada entidade familiar, ela é regida pelos princípios e regras constitucionais, pelas regras e princípios gerais do direito de família aplicáveis e pela contemplação de suas especificidades (Paulo Luiz Netto LÔBO, 2002).

Mas quais são os efeitos jurídicos que o Estado pode conceder ao concubinato adulterino? Mais que isso, quais limites podem alcançar esses efeitos?

Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:183) parte do princípio de que um direito que protege a dignidade coexistencial de componentes de entidades familiares não pode classificar como irrelevante a existência das famílias simultâneas. Assim sendo, deve o ordenamento jurídico conceder-lhes efeitos. Quanto ao concubinato adulterino, impõe o autor que se verifique no meio social em que ele se insere uma publicidade, pois, do contrário, não restaria provada a condição de família.

Em seu modo de pensar a concessão de efeitos ao concubinato adulterino, Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:188) cria uma "teoria" de verificação no caso concreto de uma boa-fé objetiva, que nada mais é do que a forma como o concubino procede diante da existência da outra família. Difere da boa-fé subjetiva, que é a consciência do próprio sujeito sobre sua situação dentro das famílias simultâneas.

Por sua teoria, inobstante o concubino se mostre indiferente a qualquer conduta ética perante os componentes da primeira entidade familiar, mesmo assim o ordenamento jurídico deve oferecer sua chancela à relação concubinária, salvo a parte que porventura venha a invadir o espaço jurídico dos membros do outro núcleo familiar.

Em última análise, podemos dizer que o posicionamento do familiarista é que, dependendo da violação dessa boa-fé objetiva, o concubinato adulterino terá maior ou menor efeito jurídico. Em suas palavras:

Das considerações acerca do atendimento dos deveres decorrentes do princípio da boa-fé é possível aferir alguns potenciais limites à plena eficácia concreta, à luz do direito, de uma situação de simultaneidade familiar. Aquele que viola deveres inerentes à boa-fé pode não ser contemplado com efeitos benéficos da simultaneidade se esses efeitos, de algum modo, vierem a intervir na esfera jurídica dos componentes do outro núcleo familiar, que tiveram sua confiança e suas expectativas legítimas violadas (idem, p. 194-195).

Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:193-194) chega a concluir pela inexistência de deslealdade numa situação de famílias simultâneas em que todos têm ciência dessa condição e a aceitam, de forma que as famílias se mantêm íntegras. Segundo ele, não há no caso quebra da confiança um do outro, e o requisito da boa-fé está plenamente atendido.

Outro ponto que chama atenção na doutrina do autor multicitado, é o caso da bigamia. A bigamia é a condição de quem é formalmente casado com duas ou mais pessoas. Não é necessária a convivência afetiva com os diversos cônjuges para sua verificação. Basta o vínculo formal. Desse modo, a simultaneidade familiar só se verificaria se houvesse a efetiva convivência com os cônjuges. Dessa trama complexa, chega Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005) às seguintes conclusões: se o cônjuge do segundo casamento gozasse de boa-fé subjetiva, por determinação legal, a relação conceberia os efeitos de um casamento para ele até a declaração judicial de sua nulidade; de outro modo, aplicar-se-ia a teoria da boa-fé objetiva antes falada.

Arremata o familiarista dizendo que

O direito não pode se colocar como alheio às pretensões de felicidade coexistencial dessas pessoas: se a violação da boa-fé pode obstar, por conta do sentido ético que dela emerge, a produção de certos efeitos, esse mesmo sentido ético se coloca, quando a boa-fé resta plenamente atendida, a impor eficácia jurídica à situação de simultaneidade. A excepcionalidade da situação passível de eficácia tendencialmente plena não é argumento suficiente para que o direito negue aos sujeitos que a compõem a devida proteção (idem, p. 198)

Preferimos outra forma de avaliar os possíveis efeitos jurídicos do concubinato adulterino, partindo do princípio da boa-fé subjetiva, assim como já fazem os tribunais e a doutrina (ver ponto 4.2.2). Vale dizermos: não levamos em conta a ciência do cônjuge ou do companheiro da outra entidade familiar.

Com efeito, vislumbramos no caso concreto duas formas de concubinato adulterino: primeiro, quando o concubino não tem ciência de sua condição (boa-fé subjetiva); e segundo, quando tem ("má-fé" subjetiva). Na primeira situação, ponto pacífico na doutrina, bem assim na jurisprudência, estamos a vislumbrar uma união estável putativa, segundo a qual ao concubino de boa-fé aproveitarão todos os efeitos de uma legítima união estável enquanto durar sua ignorância sobre a relação simultânea de seu parceiro.

A segunda situação é mais comum, complexa e polêmica, pois o concubino tem completa consciência de sua condição na simultaneidade familiar. Importa ressaltarmos que, da pretensa "má-fé" do concubino, não nos é dado filtrar uma inexistência de objetivo de constituição de uma família no concubinato adulterino, principalmente quando a relação é duradoura e/ou quando dela nascem filhos. Ora, se é verdade que será uma família a relação humana que apresente as características da afetividade, da publicidade e da durabilidade, então, sempre que estivermos diante de um concubinato adulterino, estaremos diante de uma família. De outra maneira, estaríamos a malferir os princípios da dignidade da pessoa humana, do pluralismo familiar e da autonomia privada.

Portanto, no caso dos concubinos de "má-fé", entendemos que, desde logo, afora os direitos previdenciários consideravelmente reconhecidos nos tribunais, podem ser garantidos os seguintes direitos: 1) tendo em vista que, é uma entidade familiar, os assuntos do concubinato adulterino devem ser discutidos dentro de uma vara especializada, qual seja, a de família. Mesmo porque no concubinato adulterino pode haver conexão ou continência com assuntos já reconhecidamente de direito de família; 2) em vez de indenização pelos serviços prestados, como vêm decidindo os tribunais em alguns casos de inexistência de patrimônio comum a ser partilhado, a concessão de alimentos ao concubino que demonstre uma necessidade e prove que o outro pode supri-la, pois o requisito da parentesco familiar está preenchido; 3) o bem imóvel em que reside a família dos concubinos deve estar sob a proteção legal do bem de família, pois, do contrário, estaria o direito a negar uma condição mínima de dignidade a eles; e 4) direito à partilha dos bens onerosamente adquiridos na constância da relação afetiva, desde que de uso exclusivo do casal de concubinos. Nesse caso, deve haver uma presunção de que tenham sido construídos em comum esforço.

O próprio Superior Tribunal de Justiça já prolatou algumas decisões em prol do concubino de "má-fé", mormente, no campo previdenciário. Só por ilustração, relembremos os julgados transcritos no ponto 4.2.2. supra, em que, mesmo reconhecendo o concubinato adulterino, o Egrégio Tribunal Superior entendeu pela concessão de efeitos jurídicos típicos de uma entidade familiar, tudo isso em face da estabilidade da relação. Senão, vejamos:

RECURSO ESPECIAL. PENSÃO PREVIDENCIÁRIA. PARTILHA DE PENSÃO ENTRE A VIÚVA E A CONCUBINA. COEXISTÊNCIA DE VÍNCULO CONJUGAL E A NÃO SEPARAÇÃO DE FATO DA ESPOSA. CONCUBINATO IMPURO DE LONGA DURAÇÃO. Circunstâncias especiais reconhecidas em juízo. Possibilidade de geração de direitos e obrigações, máxime no plano da assistência social. Acórdão recorrido não deliberou à luz dos preceitos legais invocados. Recurso especial não conhecido (STJ – REsp. n.º 742.685-RJ – 5-9-05).

HOMEM CASADO. SITUAÇÃO PECULIAR, DE COEXISTÊNCIA DURADOURA DO DE CUJUS COM DUAS FAMÍLIAS E PROLE CONCOMITANTE ADVINDA DE AMBAS AS RELAÇÕES. INDICAÇÃO DA CONCUBINA COMO BENEFICIÁRIA DO BENEFÍCIO. [...] II – Inobstante a regra protetora da família, consubstanciada nos arts. 1.474, 1.177 e 248, IV, da lei substantiva civil, impedindo a concubina de ser instituída como beneficiária de seguro de vida, porque casado o de cujus, a particular situação dos autos, que demonstra espécie de "bigamia", em que o extinto mantinha-se ligado à família legítima e concubinária, tendo prole concomitante com ambas, demanda solução isonômica, atendendo-se à melhor aplicação do direito. III – Recurso conhecido e provido em parte, para determinar o fracionamento, por igual, da indenização securitária (STJ – Resp. n.º 100.888-BA – 12-3-01).

Por fim, advertimos que, para os casos de amantes, que vivem na clandestinidade e por isso não formam uma entidade familiar, devemos aplicar a teoria do enriquecimento ilícito — que, por sinal, não serve mais para o concubinato adulterino, como veremos no ponto a seguir.

6.1 CRÍTICA À VISÃO TRADICIONALISTA DA DOUTRINA JURÍDICA E DA JURISPRUDÊNCIA

A reserva da jurisprudência e da doutrina no que concerne às entidades familiares que não o casamento sempre impediram a ordem jurídica de assimilar por completo a existência dos vários arranjos familiares. Um caso emblemático é o da união estável, que mesmo após a Constituição Federal de 1988 continuou sem um regramento e um reconhecimento pleno do direito de família pátrio. Aliás, chegava-se ao absurdo de negar-se alimentos aos companheiros em face da ausência de regras próprias desse instituto — erro que só foi resolvido em parte com a promulgação da Lei n.º 8.971/94.

Pior ainda é pensar que, já vigente a Carta Magna de 1988, que empunhava o princípio da pluralidade familiar e previa expressamente a união estável, a súmula 380 do Supremo Tribunal Federal ("Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.") era-lhe normalmente aplicada. Essa atitude representava um atraso com o qual o ordenamento jurídico não mais compactuava. Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), comentando a história dessa súmula, escreve:

Sabe-se que a Súmula 380 foi uma engenhosa formulação construída pela doutrina e pela jurisprudência, durante a vigência da Constituição de 1946, consolidada no início da década de sessenta, para tangenciar a vedação de tutela legal das famílias constituídas sem casamento, de modo a encontrar-se alguma proteção patrimonial a, freqüentemente, mulheres abandonadas por seus companheiros, após anos de convivência afetiva. Como não era possível encontrar fundamento no direito de família, em virtude da vedação constitucional, socorreu-se do direito obrigacional, segundo o modelo das sociedades mercantis ou civis de constituição incompleta, ou seja, das "sociedades de fato". Essa construção é típica do que determinada escola jurídica italiana denomino "uso alternativo do direito". Os efeitos da Súmula limitam-se exclusivamente ao plano econômico ou patrimonial.

Entendemos que a súmula foi instrumento importante de realização alternativa de justiça para aqueles que faziam parte dos então conhecidos concubinatos puros, que, nos regimes constitucionais precedentes, não se incluíam entre as entidades familiares em face da proeminência do casamento. Mas sua aplicação refletia outro momento histórico que não o posterior a Constituição Federal de 1988.

Não bastasse isso, o equívoco se repete ainda hoje, quando já encontramos alguma regulamentação legal da união estável. É que o entendimento vem constantemente sendo utilizado para as relações afetivas à margem do casamento e também da união estável. Como podemos, nos dias de hoje, considerar "sociedades de fato" relações que se fazem a partir do afeto? Outrossim, se a súmula tem cunho genuinamente patrimonial, como aplicá-la às uniões afetivas?

A resposta a esses questionamentos é uma só: a súmula 380 é inaplicável às entidades familiares, entre as quais, o concubinato adulterino. Compreendemos suas razões, porém, os motivos autorizadores desse sumulado não mais persistem num Estado democrático que preza pela inclusão familiar. Não podemos jamais considerar "sociedade de fato" uma convivência conjugal em que se verifiquem uma publicidade, uma durabilidade e, principalmente, uma afetividade. "Afinal, que ‘sociedade de fato’ mercantil ou civil é essa que se constitui e se mantém por razões de afetividade, sem interesse de lucro?", pergunta Paulo Luiz Netto LÔBO (2002).

Afora a implementação da súmula 380, questionamos outro entendimento jurisprudencial que tem boa acolhida na doutrina: a indenização pelos serviços prestados pela concubina. Na verdade, essa foi outra forma de realização alternativa de justiça pretendida pelos tribunais para acolher a situação da concubina, que, após anos de convivência afetiva, não havia formado um patrimônio comum apto à partilha. Tal qual a súmula multicitada, a pretensão indenizatória permeou primeiro a união estável, sendo que, após a regulamentação dos alimentos entre os companheiros, o entendimento acabou escorrendo para as outras entidades familiares fora do casamento como o concubinato adulterino. O julgado a seguir diz bem dessa situação:

Caracterizada a sociedade de fato e havendo a comprovação da participação da companheira nos bens adquiridos durante o período concubinário, terá ela, em conseqüência, direito à partilha do patrimônio; não se formando o patrimônio comum, faz jus à indenização correspondente aos serviços domésticos prestados (TAMG, Ap. 119.119-5, em 5.11.1991, Rel. Juiz Abreu Leite, RJTAMG 46/295).

Afinal de contas qual a natureza para os tribunais do concubinato adulterino: uma "sociedade de fato" ou um contrato verbal de trabalho?

Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004a:81-82) critica firmemente esse precedente jurisprudencial. Em suas palavras:

Esta indenização decorre de serviços prestados. Ora, quais são esses serviços? Esbarramos aí em uma contradição e até mesmo uma imoralidade, embora se negue isto. Primeiro: se forem serviços prestados, estaremos diante de uma relação trabalhista e deveremos buscar na Justiça do Trabalho as reparações devidas. Segundo: se são os prazeres, companhia ou qualquer outro desfrute que um tenha proporcionado ao outro, não se poderia cobrar por isso, sob pena de estar o Direito admitindo algo inadmissível na ordem jurídica. Ademais, indenização pressupõe que tenha havido dano. Qual dano?

A evolução dessas correntes jurisprudenciais guerreadas passou a considerar também, como prova de aquisição do patrimônio comum, a contribuição indireta, qual seja, através dos serviços domésticos. A ementa do acórdão proferido pela Segunda Câmara de Direto Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo nos autos do processo n.º 1999/0080154-7, esclarece o caso:

1. [...] 2. CONCUBINATO. Sociedade de fato. Partilha de bens. Contribuição direta da mulher na aquisição do patrimônio. Desnecessidade. Ação da ex-concubina julgada procedente em parte. Provimento parcial do recurso para esse fim. Inteligência do requisito esforço comum exigido pela súmula 380 do STF. Para partilha de bens, nos termos da súmula 380 do STF, a contribuição da companheira, ou companheiro, pode ser indireta, a qual tanto pode estar na direção educacional do filhos, no trabalho doméstico, ou em serviços materiais doutra ordem, como na ajuda em termos de afeto, estímulo e amparo psicológico.

Aqui, a crítica do familiarista Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004a) encontra a mesma razão de ser. Como podemos admitir a indenização de uma relação afetiva? Com efeito, pensar dessa forma o concubinato adulterino é desnaturá-lo, embora haja uma boa intenção por trás. Enfim, não estamos tratando de um contrato de trabalho ou "sociedade de fato", mas de uma entidade familiar.


7 CONCLUSÃO

A família é uma estrutura psíquica em que cada membro ocupa um lugar, detendo por isso uma função específica — lugar do pai, da mãe, do filho, do marido etc. Suas características imediatas são a afetividade, a estabilidade (durabilidade) e a ostensibilidade (publicidade). Segundo Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), toda vez que essas características qualificarem uma relação amorosa, ela será uma família.

Em nossa Constituição Federal de 1988, a família se apresentou de forma inédita. É que a mudança dos paradigmas da família fez com que ela passasse do singular, formada unicamente pelo casamento, para o plural, reconhecendo-se a existência de várias entidades familiares. Com efeito, o texto maior vigente não mais repetiu a norma de exclusão familiar de suas antecessoras, sendo certo que a interpretação correta do preceito constitucional do art. 226 faz-nos compreender que o Estado brasileiro protege tanto entidades explícitas — casamento, união estável e famílias monoparentais — como implícitas — entre as quais o concubinato adulterino.

Outra ponto importante trazido pela Carta Magna de 1988 foi o macroprincípio da dignidade da pessoa humana, conforme o qual o Estado deve fornecer condições de vida digna ao ser humano. A partir dele, temos que o foco de proteção à família é o indivíduo que a integra, como positivado no § 8.º, do art. 226. Assim sendo, qualquer forma de exclusão ou tratamento preconceituoso entre as entidades familiares explícitas e implícitas no Texto Constitucional é terminantemente proibido.

Foi por essas brechas proporcionadas pelos princípios constitucionais que o concubinato adulterino encontrou condições favoráveis à sua inclusão como entidade familiar dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Isso por seu próprio conceito, vez que detém os caracteres identificadores de uma família: afetividade, publicidade e estabilidade (durabilidade). Qualquer discussão sobre concubinato adulterino insere-se, sem sombra de dúvidas, no direito de família.

Mesmo assim a doutrina jurídica e a jurisprudência estão reticentes quanto a essa assimilação. Teimam em ver no concubinato adulterino uma "sociedade de fato", com efeitos exclusivamente no campo do direito obrigacional, embora já encontremos importantes decisões favoráveis aos concubinos na seara do direito previdenciário. Por sua vez, a lei é quase que indiferente ao instituto.

Contudo, já de posse dos novos paradigmas acima anunciados, não é mais admissível esse posicionamento excludente diante do concubinato adulterino. Em sendo ele uma família, devemos sempre partir dessa idéia.

Nem mesmo o princípio da monogamia pode impedir essa apreensão pelo ordenamento jurídico do concubinato adulterino, uma vez que está relativizado principalmente pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso, sua manutenção não se justifica se isso significa criar privilégios ilícitos para os cônjuges ou companheiros em detrimento do concubino.

Uma vez reconhecida a entidade familiar do concubinato adulterino, deve o Estado conceder-lhe efeitos. Se o concubino tem boa-fé subjetiva, ou seja, não tinha ciência que fazia parte de uma simultaneidade familiar, tem ele garantido todos os direitos aplicáveis a uma união estável, porque de sua putatividade. Isso sem maiores discussões. Do contrário, quando o concubino tem ciência de sua condição, verificamos, sem prejuízo de outros que porventura possam aparecer, os seguintes efeitos: partilha igualitária dos bens exclusivos dos casais de concubinos; o direito aos alimentos; a consideração do imóvel de moradia do casal de concubinos como bem de família; e, por último, a competência da vara de família para apreciação dessas causas.

Devemos ventilar, ainda, que a aplicação atual da súmula 380 para os concubinos é um verdadeiro equívoco, tendo em vista que o concubinato adulterino é uma entidade familiar e não uma "sociedade de fato". Do mesmo modo, as indenizações ao concubino pelos serviços prestados não condizem com a realidade social. A bem da verdade, não podemos indenizar o afeto dado de bom grado pelo concubino ao seu parceiro.

Ao fim deste trabalho, devemos ter em vista pelo menos que, ao discutirmos sobre concubinato adulterino, estaremos diante de uma legítima entidade familiar.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE FILHO, Carlos Cavalcanti de. Famílias simultâneas e concubinato adulterino. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2839>. Acesso em: 14 mar. 2006.

ANGHER, Anne Joyce [org.]. Vade mecum acadêmico de direito. 2. ed. São Paulo: Rideel, 2005.

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o novo código civil, Lei n. 10.406, de 10-1-2002. 2. ed.. São Paulo: Atlas, 2002.

BRAVO, Maria Celina; SOUZA, Mário Jorge Uchoa. As entidades familiares na Constituição. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2665>. Acesso em: 10 abr. 2006.

DIAS, Maria Berenice. Família, ética e afeto. Revista Consulex. Brasília: Consulex, a. 8, n. 174, 15-4-2004. p. 31-32.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 19. ed. rev., aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002) e o Projeto de Lei n. 6.960/2002. São Paulo: Saraiva, 2004.

FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 7.

IBGE. Tabela 1: Distribuição das famílias por tipo e a situação do domicílio, segundo as classes de tamanho da população dos municípios do Brasil – 2000. Censo Demográfico 2000. Disponível em: <http://www.ibge.com.br/home/presidencia/noticias/20122002censo.shtm>. Acesso em: 22 mai. 2006.

KÜMPEL, Vitor. Concubinato Impuro. Complexo Jurídico Damásio de Jesus, São Paulo, jul. 2001. Disponível em: <http://www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm>. Acesso em: 14 mar 2006.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 53, jan. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2552>. Acesso em:10 abr. 2006.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito de família. Atual. por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2001. v. 1.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito de família. 37. ed., rev. e atual. por Regina Beatriz Tavares da Silva. São Paulo: Saraiva, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 12. ed.. São Paulo: Atlas, 2002.

NÓBREGA, Airton Rocha. União estável e concubinato uma diferenciação necessária. Revista Prática Jurídica. Brasília: Consulex, a. 5, n. 48, 31-3-2006. p. 20-23.

NUNES, Rizzatto. Manual da monografia jurídica. 4. ed. rev., ampl. e atual.. São Paulo, Saraiva, 2002.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 15. ed. rev. e atual. por Tânia da Silva Parente. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. 5.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 7. ed. rev. e atual.. Belo Horizonte: Del Rey, 2004a.

______. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. Curitiba. 2004b. 157 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná – UFPR, [2004].

______. Direito de família do século XXI. Revista Literária de Direito, mai/jun 2000. p. 26-28.

QUADROS, Tiago de Almeida. O princípio da monogamia e o concubinato adulterino. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 412, 23 ago. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5614>. Acesso em: 14 mar. 2006.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 28. ed. rev. e atual. por Francisco Cahali; de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2004.

RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5. ed. São Paulo. Malheiros Editores, 2001.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 3. ed.. São Paulo: Atlas, 2003. v. 6.


Notas

01 A Ética compreende a Moral e o Direito. Nas palavras de Arnaldo VASCONCELOS (2001:20): "Pertence a norma jurídica, igualmente ao Direito que por seu intermédio se manifesta e se traduz, ao mundo da Ética, que é a ‘ciência normativa primordial’ (Wilhelm Wundt). Constitui, com a Moral, espécie do gênero norma ética". Nessa esteira, não existe diferença ontológica entre a Moral e a Ética ou entre o Direito e a Ética. Pode haver sim entre a Moral e o Direito. Contudo, ao falarmos aqui da sobreposição da Ética à Moral, temos em vista que esta, em certos casos, produz situações injustas, não pela ótica de quem a pregou, mas daqueles que testemunharam as suas conseqüências. A Ética, conquanto abarque as normas morais, por serem essas normas de conduta humana, não compactua com situações de exclusão moral. E nada a impede de assim determinar-se, uma vez que, como disse Arnaldo VASCONCELOS (2001:20), norma ética é gênero. A Ética, mais do que a Moral, aproxima-se da justiça e a objetiva.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Anderson Lopes. Concubinato adulterino: uma entidade familiar a ser reconhecida pelo Estado brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1360, 23 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9624. Acesso em: 27 abr. 2024.