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Identificação do termo inicial da prescrição da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção)

Identificação do termo inicial da prescrição da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção)

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A Lei nº 12.846/2013 não diz quando começa a prescrição nas infrações instantâneas. Entendemos que qualquer servidor público pode ter ciência institucional.

Resumo: Este trabalho apresenta uma solução para a indefinição de termo inicial do prazo da prescrição estabelecido no art. 25 da Lei nº 12.846/2013 para o caso de infrações instantâneas. Sugerimos que referido prazo inicia-se com a ciência oficial da respectiva infração por parte de qualquer servidor público.

Palavras-chave: direito administrativo. Direito administrativo sancionador. Lei Anticorrupção. Lei nº 12.846/2013. Prescrição. Termo inicial da prescrição. Ciência da autoridade. Ciência do fato. Identificação de quem tem tal ciência.


INTRODUÇÃO. BREVE DESCRIÇÃO DO PROBLEMA E EXPOSIÇÃO DA METODOLOGIA

Este trabalho visa estabelecer um marco inicial para a contagem do prazo de prescrição da Lei nº 12.846/2013 (doravante “LAC”, ou “Lei Anticorrupção”). Seu art. 25 estabelece que “Prescrevem em 5 (cinco) anos as infrações previstas nesta Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.”; não está definido nem no próprio art. 25, nem em qualquer outro ponto da LAC quem deve tomar ciência da infração para que o prazo se inicie.

A falta de uma definição para o termo inicial da prescrição é um problema evidente. Os operadores do direito que tratam com o assunto ficam sem segurança jurídica, pois não se sabe se o prazo prescricional de certo ato lesivo já se iniciou, se ainda não se iniciou ou mesmo se já está esgotado. A propósito, em nosso entender, a doutrina sobre a LAC ainda não respondeu satisfatoriamente à questão do prazo inicial da prescrição. Por isso, quando alguma norma estabelece um prazo, ela normalmente cuida de estabelecer claramente seu termo inicial.

A falta de um termo inicial do próprio prazo apresenta um problema especialmente agudo de hermenêutica, pois o comando legal está intrinsecamente incompleto. Não se trata de o intérprete considerar que “para o caso X ou Y, a LAC não apresenta solução”: o próprio esquema lógico-abstrato do comando legal está incompleto. Assim, discutiremos as limitações das técnicas hermenêuticas para mostrar que a adoção de qualquer interpretação específica implica, necessariamente, a tomada de uma decisão por motivos estranhos ao direito. A questão da fundamentação de decisões e interpretações por motivos que não estritamente técnico-jurídicos é antiga e intensa, de modo que nos limitaremos a expor a controvérsia nos limites do que pode ser aproveitado para o presente trabalho.

Curiosamente, a LAC não é a primeira lei importante a ter cometido este mesmo deslize de não indicar o termo inicial de seu prazo prescricional: a Lei nº 8.112/1990, o estatuto dos servidores públicos federais, tem a mesma falha, pois o § 1º de seu art. 142 estabelece que o “prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido.” Isso levou a que o referido art. 142 recebesse certo debate sobre qual sujeito ou autoridade administrativa deve tomar conhecimento do tal fato.

Como a Lei nº 8.112/1990 precede a LAC em quase 20 anos, analisaremos o debate doutrinário já estabelecido em relação ao prazo prescricional disciplinar para verificar se podemos aproveitar diretamente alguma solução. No entanto, como mostraremos no trabalho, entendemos que as soluções propostas para o termo inicial da prescrição da Lei nº 8.112/1990 não podem ser aproveitadas para a LAC, pois as soluções para a Lei nº 8.112/1990 baseiam-se na hierarquia administrativa.

Ao final, apresentaremos nossa escolha para um termo inicial para o prazo prescricional da LAC com base em motivos, a qual acreditamos ser a melhor possível diante das limitações do texto legal e das questões metainterpretativas. Pretendemos que nossa solução obtenha, para usar uma expressão de Perelman e Olbrechts-Tyteca, a “adesão dos espíritos” por sua força persuasiva, pois entendemos não haver solução objetivamente correta ou estritamente técnico-jurídica para o problema.

Faremos uma exposição do levantamento bibliográfico que realizamos sobre o tema e, a seguir, apresentaremos nossa crítica sobre ele. Assim, os métodos utilizados são o exame de textos doutrinários sobre o problema (não localizamos jurisprudência) e a aplicação da hermenêutica para buscar uma solução.


1. LINHAS GERAIS SOBRE PRESCRIÇÃO. DESCRIÇÃO DO PROBLEMA: A FALTA DE DEFINIÇÃO DE QUEM DEVE TOMAR CIÊNCIA DA INFRAÇÃO NA PRESCRIÇÃO DA LAC

A prescrição é um dos mais importantes conceitos do Direito. Com base em Amorim Filho (1997, pp. 738 e 739 et passim), podemos conceituar a prescrição no Direito Civil como a extinção, em razão do decurso do tempo, da pretensão referente a um direito a uma prestação, o qual se pleiteia por ação condenatória. Distingue-se, assim, da decadência, a qual extingue o direito à criação, modificação ou extinção de certo estado jurídico (direito potestativo ou formativo), também em razão do decurso de certo prazo. Fazemos aqui uma pequena ressalva: dissemos “com base em” porque, apesar de o texto de Amorim Filho ser referência quase obrigatória na distinção entre prescrição e decadência no Brasil e de seu objetivo expresso de estabelecer “critérios científicos”, o autor não chega a conceituá-las. O máximo que ele faz é dizer que as extinções da ação e do direito são meros “efeitos”, não servindo para conceituar os institutos (p. 727), que somente direitos a uma prestação conduzem à prescrição (p. 736) e que “só na classe dos potestativos é possível cogitar-se da extinção de um direito em virtude do seu não-exercício” (p. 738).

No Direito Administrativo sancionador, também se fala em “prescrição”. No entanto, o conceito é um pouco diferente, de modo que quisemos deixar claro de qual “prescrição” estamos tratando. Di Pietro oferece estes conceitos para “prescrição administrativa”:

Em diferentes sentidos costuma-se falar em prescrição administrativa: ela designa, de um lado, a perda do prazo para recorrer de decisão administrativa; de outro, significa a perda do prazo para aplicação de penalidades administrativas.

DI PIETRO, 2018, p. 926.

Para fins deste trabalho, utilizaremos este sentido administrativo de prescrição, isto é, a perda, em razão do decurso de certo prazo, da possibilidade de a Administração aplicar penalidades. Tal conceito é o mesmo para as diversas penalidades que a Administração pode aplicar, seja contra particulares, seja contra seus próprios agentes públicos, isto é, tanto no exercício do poder de polícia como no exercício do poder disciplinar; daí falarmos em “Direito Administrativo Sancionador”.

De todo modo, este conceito tem algo em comum com as diversas outras definições de prescrição, independentemente do ramo do Direito: a finalidade de obter segurança jurídica, pois a perene possibilidade do exercício de uma ação ou de uma pretensão punitiva gera inquietação social.

No entanto, o art. 25 da LAC, por atecnia legislativa, acabou criando um prazo prescricional que gera insegurança jurídica por não estabelecer seu termo inicial: “Art. 25. Prescrevem em 5 (cinco) anos as infrações previstas nesta Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.” (destaque nosso)

Inicialmente, chamamos a atenção a que existem dois termos iniciais diferentes conforme a infração seja ou não “permanente ou continuada”. Caso a infração se considere “permanente ou continuada”, o termo inicial do prazo prescricional não apresentará problemas, pois será simplesmente a data em que tal infração tiver cessado. A própria detecção da infração permanente invariavelmente leva à sua cessação, ainda que em período diferente de sua identificação (por exemplo, pela necessidade de coleta adicional de documentos, por eventual aplicação da técnica da ação controlada, etc.). Pode até ser difícil determinar a data exata da cessação da infração na prática, mas isso é uma questão probatória e não diz respeito à essência do instituto. Portanto, o termo inicial da prescrição não apresenta problemas estruturais na hipótese de infração permanente ou continuada

Contudo, a outra situação (isto é, infração que não seja permanente nem continuada) apresenta um problema, pois o texto legal diz simplesmente “ciência da infração”, sem dizer quem deve tomar essa ciência; é evidentemente um um texto incompleto, pois estabelece apenas o prazo de prescrição, não seu termo inicial. Sabemos que “texto de lei” e “norma jurídica” não se confundem: “A norma jurídica é a significação que obtemos a partir da leitura dos textos do direito positivo” (CARVALHO, 2017, p. 40). No entanto, não há uma resposta imediata em qualquer outro texto de lei sobre qual seria esse termo inicial, seja na própria LAC, seja em outras leis da temática, tais como a Lei nº 9.783/1999 (prescrição do poder de polícia da Administração). Utilizando-se o esquema do mesmo autor, temos que a própria estrutura formal da norma jurídica está defeituosa:

Figura 1 – Esquema do processo de formalização e desformalização da linguagem jurídica

Formalização

L4 = Linguagem da Lógica Jurídica

Unívoca

Desformalização

L3 = Linguagem da Teoria Geral do Direito

Científica

L2 = Linguagem da Ciência do Direito

Científica

L1 = Linguagem do Direito Positivo

Técnica

Fonte: Reprodução manual do esquema apresentado por CARVALHO, 2017, p. 40.

Isto é, poderíamos expressar que o nível L4 do art. 25 da LAC tem a seguinte estrutura: “Se ... => então, o prazo se iniciará.” As reticências são a hipótese abstrata que faria o prazo se iniciar, mas a linguagem inferior L1 não a determina e nem nos permite determiná-la.

Trata-se de evidente erro dos legisladores, o qual cabe aos juristas corrigir. Como diz Paulo de Barros Carvalho, é da natureza do processo democrático que os legisladores tenham as mais variadas formações profissionais, o que, a despeito de comissões especializadas de constitucionalidade e redação, não impede que eventualmente haja erros legislativos:

Os membros das Casas Legislativas, em países que se inclinam por um sistema democrático de governo, representam os vários segmentos da sociedade. Alguns são médicos, outros bancários, industriais, agricultores, engenheiros, advogados, dentistas, comerciantes, operários, o que confere um forte caráter de heterogeneidade, peculiar aos regimes que se queiram representativos. (...) Ponderações desse jaez nos permitem compreender o porquê dos erros, impropriedades, atecnias, deficiências e ambiguidades que os textos legais cursivamente apresentam. Não é, de forma alguma, o resultado de um trabalho sistematizado cientificamente. (...) Ainda que as Assembleias nomeiem comissões encarregadas de cuidar dos aspectos formais e jurídico-constitucionais dos diversos estatutos, prevalece a formação extremamente heterogênea que as caracteriza.

P. CARVALHO: 2017, 38

Ressaltamos que, tal como Carvalho, não vemos nisso um problema. É saudável que os legisladores provenham dos mais variados segmentos da sociedade, pois é um indicativo de que existe uma efetiva participação da sociedade na produção legislativa: “E podemos aduzir que tanto mais autêntica será a representatividade do Parlamento quanto maior for a presença, na composição de seus quadros, dos inúmeros setores da comunidade social.” (idem)

Os legisladores têm um corpo técnico qualificado para auxiliá-los no lado técnico da lei, mas mesmo isso nem sempre é suficiente para evitar problemas de atecnia legislativa como aquele tratado neste ensaio. Assim, no nosso papel de juristas, procuraremos corrigir a falha do art. 25 da LAC e estabelecer a norma jurídica completa correspondente ao prazo prescricional dessa lei. Nos termos do próprio Carvalho, procuraremos superar a dificuldade do nível “inferior” de linguagem e estabelecer qual a estrutura lógico-abstrata da norma jurídica em comento:

Para isso, analisaremos primeiro as soluções propostas pela doutrina especializada. A seguir, examinaremos as técnicas clássicas da hermenêutica; faremos uma apreciação crítica dessas técnicas; e finalmente procuraremos construir uma solução que consideramos a melhor.


2. TRATAMENTO DO PROBLEMA POR MEIO DA HERMENÊUTICA.

2.1. As quatro técnicas clássicas

Vamos primeiro aplicar as técnicas clássicas da hermenêutica: “Deixando de lado as possíveis variações terminológicas, os cânones de interpretação sistematizados por Savigny são: interpretação gramatical, lógica, histórica e sistemática” (SILVA, 2009, p. 116, nota de rodapé nº 1). Estamos conscientes das limitações de tais técnicas, mas elas serão úteis para uma exploração inicial do problema. Utilizando a terminologia de Theodor Viehweg e adotada por Ferraz Jr., tomaremos primeiro uma postura dogmática diante dessas técnicas, isto é, vamos considerar que elas são um dado inquestionável e abordar o problema por meio delas (FERRAZ JR., 2018, p. 18). Depois, mudaremos para uma abordagem zetética, enfatizando o aspecto pergunta da investigação (idem, de modo que exporemos as limitações e os problemas dessas técnicas, o que, por sua vez, nos levará à utilização de outras.

Comecemos pela primeira das quatro técnicas clássicas listadas acima, a gramatical. Ferraz Jr. a conceitua deste modo:

Quando se enfrenta uma questão léxica, a doutrina costuma falar em interpretação gramatical. Parte-se do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para obter-se o correto significado da norma. (...) Ao valer-se da língua natural, o legislador está sujeito a equivocidades que, por não existirem nessas línguas regras de rigor (como na ciência), produzem perplexidades.

(2018, p. 241; destaque em itálico no original).

No entanto, sua aplicação ao caso limita-se a apontar o próprio escopo do trabalho, isto é, o fato de que, na estrutura frasal do art. 25 da LAC, “ciência” é um substantivo que precisa ser complementado por um sujeito, mas tal sujeito não consta na frase. Isto é, tal como Ferraz Jr., explica, a interpretação gramatical serve mais para identificar problemas do que solucioná-los: “no fundo, pois, a chamada interpretação gramatical tem na análise léxica apenas um instrumento para mostrar e demonstrar o problema, naõ para resolvê-lo.” (FERRAZ JR., 2018, p. 241)

Passemos então à interpretação lógica, a qual, segundo o mesmo autor, é “um instrumento técnico, inicialmente a serviço da identificação de inconsistências. Parte-se do pressuposto de que a conexão de uma expressão normativa com as demais do contexto é importante para a obtenção do significado correto.” (idem) Entretanto, mais novamente, sua aplicação não leva a qualquer progresso, pois o comando do art. 25 não contém contradições lógicas internas. Sua única impropriedade lógica é o próprio fato de que seu comando está incompleto em razão da ausência de um sujeito para o termo "ciência”. Mas já tínhamos identificado isso por meio da interpretação gramatical.

Vamos então à interpretação sistemática:

A pressuposição hermenêutica é a da unidade do sistema jurídico do ordenamento. (...) Portanto, nunca devemos isolar o preceito nem em seu contexto (a lei em tela, o código penal, civil etc.) e muito menos em sua concatenação imediata (nunca leia só um artigo, leia também os parágrafos e os demais artigos).

(FERRAZ JR., pp. 244 e 245)

Assim, começamos analisando outras leis do próprio Direito Administrativo, divisão na qual a LAC se insere. Encontramos assim a Lei nº 8.112/1990, que é o estatuto dos servidores públicos civis federais e contém disposições sobre a prescrição para apurar infrações dos servidores; a Lei nº 9.873/1999, que trata da prescrição do poder de polícia da Administração Pública; e a Lei nº 9.784/1999, que trata do processo administrativo federal em geral. A tabela abaixo resume os aspectos estruturais dos prazos prescricionais de tais leis, bem como, para comparação, os da LAC:

Tabela 1 – Estrutura dos principais prazos prescricionais da Administração

Nº e ano da lei

Prazo

Termo inicial

Artigo

8.112/1990

180 dias a 5 anos

Data em que o fato se tornou conhecido

142, § 1º

9.784/1999

5 anos

Prática do ato

54

9.873/1999 (infrações instantânetas)

5 anos

Prática do ato

9.873/1999 (infrações permanentes)

5 anos

Cessação do ato

12.846/2013 (infrações instantâneas)

5 anos

Ciência da infração

25

12.846/2013 (infrações continuadas)

5 anos

Cessação do ato

25

Fonte: Elaboração própria.

A tabela nos mostra que a LAC efetivou uma “mistura” das disposições das Leis nº 8.112/1990 e 9.873/1999, pois utilizou a distinção entre infrações permanentes e continuadas da segunda e o termo inicial contado da “ciência do fato” da primeira. Como o problema só existe no caso de infrações instantâneas, podemos considerar a Lei nº 8.112/1990 como uma primeira pista interpretativa.

Vamos então expandir a pesquisa sistemática para o direito penal, pois o direito administrativo ocasionalmente aproveita alguns institutos e técnicas do direito penal. Por exemplo, o critério de considerar que a infração permanente ou continuada deve ter um termo inicial diferente (em vez de utilizar o termo inicial geral) vem do Código Penal: “Art. 111 – A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr (...) III – nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência” (Código Penal). Como vimos acima, tal critério foi utilizado pelas Leis nº 9.873/1999 e 12.846/2013.

Nesse sentido, José Armando da Costa faz uma interessante contextualização sobre o critério da “ciência da infração”:

Na área do direito, são basicamente dois os critérios que marcam o dies a quo do prazo prescricional, a saber: a) o dia em que o fato se consumou; e b) a data em que o fato se tornou conhecido.

As legislações penais, de um modo geral, acatam um desses dois critérios. Alguns códigos penais, a exemplo do nosso, adotam ambos. (...)

O estatuto anterior do funcionário federal (Lei nº 1.711/52) era silente nesse tocante, havendo o antigo e extinto DASP [Departamento Administrativo do Serviço Público], para preencher tal lacuna, editado a formulação de nº 76, a qual assim estipulava: “a prescrição, nas infrações disciplinares, começa a correr do dia em que o fato se tornou conhecido”.

COSTA, 2008, pp. 301 e 302.

Com base nessa informação, busquemos o que a doutrina em direito penal diz sobre o critério da ciência da infração:

O conhecimento do fato, exigido pela lei, refere-se à autoridade pública que tenha poderes para apurar, processar ou punir o responsável pelo delito, aí se incluindo o Delegado de Polícia, o membro do Ministério Público e o órgão do Poder Judiciário.

Prevalece o entendimento de que não é necessária a ciência formal do crime (notícia do delito perante o Poder Público), bastando a de cunho presumido, relativa à notoriedade do fato.

MASSON, 2019, p. 785.

Notamos como a investigação sistemática se misturou com a histórica, pois verificamos que o problemático critério da “ciência da infração” da LAC tem um histórico que remonta a uma antiga jurisprudência administrativa, positivada na Lei nº 8.112/1990, jurisprudência que, por sua vez, inspirou-se no Código Penal.

Passemos então à interpretação histórica propriamente dita; sobre ela, Ferraz Jr. diz:

É preciso ver as condições específicas do tempo em que a norma incide, mas não podemos desconhecer as condições em que ocorreu sua gênese.

Para o levantamento das condições históricas, recomenda-se ao intérprete o recurso aos precedentes normativos, isto é, de normas que vigoraram no passado e que antecederam à nova disciplina para, por comparação, entender os motivos condicionantes de sua gênese. (..) Essa investigação leva o intérprete também a buscar – quando existem –, nos chamados trabalhos preparatórios (...), elementos auxiliares do sentido histórico da norma. Tudo isso há de lhe fornecer a chamada occasio legis, isto é, o conjunto de circunstâncias que marcaram efetivamente a gênese da norma.

(Ferraz Jr., 2018, pp. 249 e 250)

Apesar da especificidade do problema desta monografia, achamos conveniente pesquisar o histórico mais completo da LAC, o qual se inicia com a promulgação, em 1977, da Foreign Corrupt Practices Act, mundialmente conhecida pela sigla “FCPA”, a pioneira lei americana de combate ao suborno transnacional. Mas primeiro, ater-nos-emos ao histórico “formal” da LAC, isto é, eventuais mudanças de redação ao longo de seu trâmite legislativo.

O trâmite legislativo da LAC é razoavelmente recente e bem documentado. Ele se inicia formalmente em 18/02/2010, quando o Poder Executivo encaminhou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 6.826/2010, elaborado por equipes técnicas da Controladoria-Geral da União (CGU), Advocacia-Geral da União (AGU) e Ministério da Justiça. O projeto sofreu os trâmites de praxe, mas ficou parado do fim de 2012 até meados de 2013, quando eclodiram diversas manifestações populares pelo país, as quais não tinham pauta específica, mas expressavam um descontentamento geral com as instituições políticas do país. Assim, uma das respostas do governo e dos parlamentares da época foi aproveitar que o PL nº 6.826/2010 já estava razoavelmente maduro, pois já tinha passado por diversas discussões e emendas, e transformá-lo em lei:

Um olhar superficial pode transparecer que a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que ganhou notoriedade na imprensa como Lei Anticorrupção, é apenas mais uma norma dentre outras muitas que existem no país para punir ou onerar as empresas. Ou então, que foi elaborada às pressas, em resopsta às manifestações populares que afloraram no Brasil no final do primeiro semestre de 2013.

A verdade, no entanto, passa ao largo das impressões superficiais. A lei tem por objetivo preencher lacuna histórica do nosso marco jurídico, que não dispunha, até então, de legislação específica que punisse as pessoas jurídicas – e não as pessoas físicas – por ilícitos como o suborno, por exemplo. E as manifestações, ao que parece, apenas aceleraram um processo que, por várias razões, já era inevitável.

(CAPANEMA, Renato. Inovações da Lei nº 12.846/2013, in NASCIMENTO, pp. 13 e 14.)

A página da Câmara dos Deputados na internet tem documentação bastante completa sobre as versões do PL 6.826/2010; no entanto, percebemos que, desde a redação original, ele já tinha o problema de não especificar quem deveria tomar ciência da infração para que o prazo de prescrição se iniciasse (art. 22):

Art. 22. Ressalvada a imprescritibilidade da reparação do dano, nos termos do § 5º do art. 37 da Constituição, prescrevem em dez anos as infrações previstas nesta Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.

Parágrafo único. Interrompe a prescrição qualquer ato administrativo ou judicial que tenha por objeto a apuração da infração.

Projeto de lei nº 6.826/2010 da Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=734764&filename=PL+6826/2010; último acesso em 16/07/2021.

As sucessivas emendas parlamentares ignoraram o problema, limitando-se a reduzir o prazo prescricional de 10 para 5 anos e a eliminar a referência à imprescritibilidade da pretensão de reparação dos danos – provavelmente porque se entendeu que a previsão era inteiramente redundante, já que consta expressamente no art. 37 da Constituição Federal.

Vamos então retroceder um pouco mais na história da LAC, em busca de alguma solução ou orientação. Tal lei decorre diretamente de compromisso internacional que o Brasil assumiu no âmbito da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais. Tal convenção, formulada pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), foi internalizada mediante o Decreto nº 3.678/2000.

Tal convenção trata de maneira muito genérica da prescrição. Seu artigo 6 prevê simplesmente que “qualquer regime de prescrição aplicável ao delito de corrupção de um funcionário público estrangeiro deverá permitir um período de tempo adequado para a investigação e abertura de processo sobre o delito”, disposição razoavelmente padronizada nesse tipo de tratado.

Como a Convenção da OCDE nada diz sobre o termo inicial da prescrição, expandamos nossa pesquisa para a origem mais remota da LAC, a lei americana conhecida mundialmente pela sua sigla “FCPA”, cuja sigla traduzimos livremente como “Lei contra as práticas corruptas no estrangeiro”.

Diversos fatores motivaram o FCPA, dos quais destacamos o constrangimento gerado por escândalos de empresas americanas pagando propinas a funcionários públicos de aliados geopolíticos dos Estados Unidos na Guerra Fria. Com efeito, um dos escândalos chegou a derrubar o primeiro-ministro do Japão, o mais forte aliado dos Estados Unidos na Ásia.

O FCPA responsabiliza criminalmente a pessoa jurídica por dois grandes conjuntos de infrações: (1) o pagamento de propina a funcionários públicos estrangeiros e (2) a falta de adequada contabilização de despesas no estrangeiro; cada um deles tem um regime de prescrição diferente. Segundo a especialista Julie Mendel, o FCPA não tem uma previsão específica sobre prescrição (em inglês, “statute of limitations”), de maneira que, no caso do pagamento de propinas, aplica-se a regra geral do código criminal federal dos Estados Unidos (MENDEL, 2020):

A não ser que expressamente disposto em contrário na lei, nenhuma pessoa será acusada, julgada ou punida por qualquer infração, não capital, a não ser que a acusação seja formulada em 5 anos contados da data do cometimento da infração.

18 U. S. C., § 3282(a). Tradução livre. Disponível em https://www.webce.com/news/2020/11/19/foreign-corrupt-practices-act-(fcpa)-enforcement-penalties, último acesso em 20/07/2021.

Conforme a mesma autora (idem), as infrações às disposições contábeis do FCPA prescrevem em 6 anos, contados também da data da infração, conforme o 18 U. S. C. § 3301(b) (disponível em inglês em https://www.law.cornell.edu/uscode/text/18/3301; último acesso em 20/07/2021).

Em suma, infelizmente, mesmo uma pesquisa histórica mais remota da LAC não nos trouxe resultados. A interpretação histórica só nos ofereceu pistas na medida em que se combinou com a interpretação sistemática, a qual nos revelou que condicionar o início da prescrição à ciência da respectiva infração é técnica familiar no Direito brasileiro. Retomaremos esses achados posteriormente, em tópico próprio. Por enquanto, adotaremos outras técnicas tradicionais em busca de mais pistas ou soluções.

2.2. Outras técnicas da hermenêutica.

Tratemos agora o problema por meio de outras técnicas, a começar pelas orientações do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB): “a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Principiaremos pela analogia, a qual Karl Engisch conceitua do seguinte modo:

Usualmente diz-se que a conclusão por analogia é uma conclusão do particular para o particular, ao passo que a conclusão por dedução vai do geral para o particular e a conclusão indutiva do particular para o geral. (...) E, assim, o multissignificativo conceito de semelhança torna-se o eixo da conclusão. (...) Daí a antiga concepção de que a conclusão analógica se compõe de indução e dedução. Somente quando, dos fenômenos particulares, a partir dos quais se conclui (no nosso exemplo: a regulamentação da ofensa corporal praticada com o consentimento do lesado), se abstrai um pensamento geral (no exemplo: a licitude da violação dos interesses privados exista o consentimento do lesado, é que é possível concluir (dedução) para um outro particular (a licitude da privação da liberdade quando exista o consentimento da vítima).

ENGISCH, 2001, pp. 288 a 290. Destaques no original.

No nosso caso, o “primeiro particular” é a falta de definição de termo inicial de prescrição no art. 25 da LAC, especificamente. O § 1º do art. 142 da Lei nº 8.112/1990, que estabelece que a prescrição disciplinar se inicia de quando o fato se tornou conhecido, é o “segundo particular”. A passagem de um para o outro precisa ser justificada com base numa semelhança, a qual, evidentemente, é a ausência de definição do sujeito que deve tomar ciência da infração para que o respectivo prazo prescricional se inicie.

A passagem se inicia a partir de uma indução, a qual, no nosso caso, consiste em tomar eventuais soluções para o referido § 1º do art. 142 e generalizá-las como um princípio geral do tipo “todos os prazos prescricionais sem termo inicial devem utilizar esta solução”. A dedução seria tomar este princípio geral e aplicá-lo ao art. 25 da LAC.

Como isso exige uma pesquisa razoavelmente extensa, deixaremos o tratamento da analogia para capítulo próprio, no qual exploramos todas as soluções que localizamos para a falta de termo inicial na Lei nº 8.112/1990.

Depois da analogia, o art. 4º da LINDB fala em costumes e princípios gerais do direito. Definimos costume como “as práticas reiteradas no tempo. (...) A repetição de usos e comportamentos os torna obrigatórios, na ausência de legislação” (CARNACCHIONI, 2018, p. 60). Infelizmente, os costumes nada dizem sobre o caso, pois a LAC é muito recente, de modo que não há uma praxe da aplicação de seu art. 25 que possa ser considerada “diuturna e uniforme”.

Finalmente, os princípios gerais do direito são “linhas de orientações genéricas, premissas implícitas, ou seja, verdadeiras ideias gerais qeue orientam o sistema jurídico” (idem). Contudo, eles têm “baixo grau de objetividade” (FERRAZ JR., 2018, p. 202) e não há consenso doutrinário sobre seu sentido, ou mesmo sobre uma lista de exemplos. Com efeito, Ferraz Jr. explica que eles “compõem a estrutura do sistema, não seu repertório. São regras de coesão que constituem as relações entre as normas como um todo” (idem, p. 203; destaque no original). Assim, eles pouco nos auxiliam, pois se limitam a nos orientar que o sistema jurídico deve ser coeso e que, portanto, deve haver uma solução para a falta de definição do termo inicial da prescrição da LAC. Nada dizem sobre qual seria a solução.

Assim, exploremos outras técnicas e princípios também consagrados da hermenêutica. Uma antiga controvérsia hermenêutica opõe as escolas chamadas subjetivista e objetivista. Resumidamente, a escola subjetivista propõe que o intérprete deve procurar o máximo possível colocar-se no lugar do legislador histórico, isto é, daqueles que elaboraram aquele texto de lei: “interpretar significa colocar-se em pensamento no ponto de vista do legislador e recapitular mentalmente a sua actividade” (SAVIGNY, apud ENGISCH, 2001, pp. 170 e 171). Um de seus exemplos mais famosos é o artigo 1º do Código Civil suíço de 1907, ainda que com certo temperamento:

Prescreve o art. 1º que, se nem a letra, nem o espírito de algum dos dispositivos da lei, nem o Direito Consuetudinário oferecerem a solução para um caso concreto, decida o juiz “de acordo com a regra que ele próprio estabeleceria se fôra legislador. Inspire-se na doutrina e na jurisprudência consagrados.”

MAXIMILIANO, 2020, p. 270. Destaques em itálico no original.

Notamos que, conforme o próprio Carlos Maximiliano observa, essa disposição já ameniza a figura do legislador histórico “puro” e a substitui por um legislador mais “técnico”, que deve se inspirar em doutrina e jurisprudência. Isso se relaciona com um avanço hermenêutico em relação ao legislador histórico, a saber, o legislador racional:

Trata-se de uma construção dogmática que não se confunde com o legislador normativo (o ato juridicamente competente, conforme o ordenamento) nem como legislador rea (a vontade que de fato positiva normas) É uma figura intermédia, que funciona como um terceiro metalinguístico, em face da língua normativa (LN) e da língua-realidade (LR).

FERRAZ JR., 2018, p. 234.

Como oposição à escola subjetivista, temos também uma abordagem chamada objetivista, que desconsidera o legislador e considera apenas o texto escrito da lei, em razão da evidente arbitrariedade de imaginarmos o que o legislador, ainda que racional, teria querido dizer. Afinal, o que é promulgado e publicado é o texto da lei, não as intenções dos legisladores, ainda que documentadas nos anais, e aquilo a que objetivamente todos têm acesso é o texto publicado da lei, e não conjecturas sobre motivações e intenções do legislador. Existe até um componente democratizante na concepção objetivista, pois o próprio legislador precisa submeter-se à lei:

Com o acto legislativo (...), a lei desprende-se do seu autor e adquire uma existência objectiva. (...) Este conteúdo de pensamento de de vontade imanente à lei é de futuro o único decisivo. Com efeito, só ele se constituiu e legalizou de acordo com a Constituição, ao passo que as representações e expectativas do autor da lei, que em volta dele pairam, não adquiriram carácter vinculativo algum. Ao contrário: como qualquer outro, também aquele que participou no acto legislativo fica, de agora em diante, ele próprio, sujeito à lei.

ENGISCH, 2001, p. 172.

Compreendemos as limitações das abordagens subjetivista e objetivista, mas as utilizaremos como técnica de operabilidade, numa tentativa de atribuir lógica à produção legislativa e solucionar problemas sem que se deva recorrer ao órgão legislativo toda vez que haja dúvida de interpretação ou que se perceba alguma incoerência lógica em certos dispositivos de lei. Com efeito, podemos ver ecos de ambas as abordagens nas quatro técnicas de interpretação: a gramatical e a lógica inspiram-se na escola objetiva; a histórica inspira-se diretamente na subjetiva; e a sistemática tem elementos de ambas.

No entanto, mesmo desconsiderando as referidas limitações de tais técnicas, sua aplicação tampouco nos permite solucionar o problema. A única coisa que a premissa do legislador racional faz no nosso caso é impor-nos a descoberta de uma solução para o problema, pois um legislador racional jamais admitiria prazo de prescrição definido de forma incompleta. No entanto, o “legislador racional” só nos diz que o problema deve ser resolvido, mas não como, exatamente como ocorreu com diversas das técnicas hermenêuticas vistas acima, tais como a gramatical e a léxica (vide supra). Até podemos, apesar disso, extrair certas ideias sugeridas pelo art. 25 da LAC, tais como a de que o termo inicial precisa depender de alguma ação da Administração pública, e não de particulares, pois isso está no “espírito” (isto é, sistema, ideia geral, intenção) do estabelecimento de um prazo para a atuação da Administração. No entanto, não é possível ir muito além disso.

A técnica objetivista também não soluciona o problema, pois como já tínhamos identificado o problema como uma falta de definição de prazo na própria lei, atermo-nos à própria lei pouco acrescenta.

Como vimos, todas as técnicas de interpretação vistas aqui conseguem, no máximo, expor o problema e sugerir algumas soluções, mas não permitem decidir por uma das soluções. Essa decisão é um ato inevitavelmente extrajurídico, pois não há como extrair uma solução estritamente jurídica para o nosso problema. Foge ao escopo do trabalho adentrar a fundo nessa controvérsia, mas trataremos dela brevemente (capítulo 4, infra), pois proporemos abertamente a que a solução oferecida desta monografia deve ser adotada por ser persuasiva, e não objetivamente necessária.


3. EXPLORAÇÃO DOS TRATAMENTOS E SOLUÇÕES JÁ EXISTENTES SOBRE O TEMA

3.1. Soluções da doutrina em livros

Vamos primeiro procurar soluções na doutrina especializada, isto é, textos que tratam especificamente da LAC. Não são muitos, pois o problema do termo inicial passou relativamente despercebido; aliás, é exatamente essa relativa falta de tratamento que nos motivou a escrever este trabalho. Encontramos apenas dois autores que tratam satisfatoriamente do problema (Motta et al. e Ribeiro). Mas, por exemplo, o livro Responsabilidade Sancionadora da Pessoa Jurídica, de Gustavo Costa Ferreira, nada diz sobre prescrição, muito menos sore seu termo inicial: embora a prescrição seja pressuposto negativo de responsabilização da pessoa jurídica, o autor optou por restringir seu escopo a aspectos ontológicos.

Dentre os livros que abordam o termo inicial da prescrição ao menos tangencialmente, comecemos pelos autores Gilson Dipp e Manoel Volkmer de Castilho. Em seus comentários à LAC, tratam do termo inicial de sua prescrição nos seguintes termos:

A lei manteve a regra usual da prescrição quinquenária para a administração também aqui erigida como marco extintivo das infrações contado da data da ciência ou da cessação dela conforme tenha sido instantânea ou continuada. (...) De outra parte, para a aferição da prescrição antes da instauração do processo administrativo ou judicial conta-se ela da data da infração, mas a data da infração nem sempre é identificada ou identificável. Por essa razão a lei, de modo oportuno, fez iniciar o prazo de prescrição a partir da ciência da infração pela autoridade quando a infração é instantânea. Essa é uma medida unilateral e possível, embora desfavorável ao infrator, pois permite à autoridade alegar conhecimento em data que lhe convier. À pessoa jurídica acusada nesse caso caberá demonstrar que a autoridade já tinha ciência dos fatos com inversão do ônus que usualmente é da autora, assim em juízo quanto perante a administração.

(DIPP e CASTILHO, 2016, pp. 111 e 112. Grifos em itálico no original; grifos em negrito nossos.

Notamos que os autores não problematizam o termo inicial do prazo; simplesmente afirmam que a “ciência” da infração deve se dar pela “autoridade”. Eles até chegam a perceber os problemas que essa escolha pode causar, mas, claramente, nem mesmo percebem que eles fizeram uma escolha interpretativa. A escolha dos autores é problemática por dois motivos: 1) não é fundamentada; 2) não especifica qual autoridade deve tomar ciência. Será especificamente uma autoridade com competência para determinar a apuração dos fatos? Ou qualquer autoridade pública? Ou somente autoridades administrativas de certa gradação? Por tudo isso, não podemos aceitar a solução proposta por esses autores.

A análise de Santos, Bertoncini e Costódio Filho sobre o termo inicial da prescrição é igualmente superficial:

O termo inicial da contagem desse prazo prescricional será o dia em que a Administração Pública tiver tomado ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que a infração tiver cessado.

(SANTOS, BERTONCINI e COSTÓDIO FILHO, 2015, p. 329).

Esses autores, tal como Dipp e Castilho, limitam-se a indicar que é a “Administração Pública” quem deve tomar ciência da infração para que o prazo prescricional se inicie, sem, no entanto, indicar quem da Administração deve fazê-lo. Pelos mesmos motivos expostos acima, não podemos aceitar o posicionamento de Santos, Bertoncini e Costódio Filho.

Dal Pozzo et al. tampouco tratam do tema; seus comentários limitam-se a afirmar que a ciência da infração deve se dar pelo “Poder Público”, e não vão muito além de reescrever o art. 25 com suas próprias palavras e fazer uma observação geral sobre a aplicabilidade de “normas gerais” sobre o tema:

Os atos lesivos à Administração Pública previstos na Lei nº 12.846/13 terão sua prescrição em cinco anos, que são contados a partir da ciência da infração pelo Poder Público e, no caso de se cuidar de infração continuada, no dia em que cessou – mas o prazo prescricional será interrompido com a instauração do processo administrativo ou judicial: [transcrição do artigo 25 da LAC]

A despeito desta disposição específica, entende-se que, no mais, aplicam-se à prescrição disciplinada nesta norma as demais regras gerais acerca do tema.

(DAL POZZO et al.: 2015, 116)

“Poder Público” é uma expressão um pouco mais vaga do que Administração, de modo que, com mais razão ainda, não podemos aceitar este entendimento, com base nos mesmos argumentos que expusemos acima.

Nascimento é um dos raros autores que perceberam a existência do problema. No entanto, o autor nos frustra porque se limita a apresentar o problema sucintamente, e, logo depois, passa a escrever generalidades sobre direitos fundamentais e a finalidade da prescrição, utilizando-se figuras de linguagem exageradas como “suplício interminável”:

Questão ainda tormentosa na práxis administrativa é a (im)precisão da contagem do tempo da prescrição, exatamente pelas elaboradas criações a respeito da data da ciência da infração ou do dia de sua cessação, em casos infracionais permanentes ou continuados. Aqui não há aspecto de pequena monta, quando se tem em vista a preocupação de se observar o justo processo, em cuja noção se insere a determinaçaõ do termo inicial da persecução. Veja-se que, ainda sob o pálio de um mesmo artigo de norma (artigo 25), há duas formas de tempo no processo administrativo: (a) o tempo da ciência por parte da [A]dministração pública (tempo do ato de conhecer); e (b) o tempo da cessação da infração (tempo do fato).

A prescrição do poder de punir – como a prescrição em geral – atende à necessidade da pacificação das relações sociais e da segurança das relações jurídicas em particular, evitando que determinadas situações de conflito efetivo ou potencial se prolonguem indefinidamente no tempo, deixando a parte a ela submissa, em estado de contínua inquietação, como a famosa espada de Dâmocles pendendo sobre a cabeça, criando suplício interminável. É preciso enfatizar que o instituto da prescrição não deverá ser percebido como de menor importância, mas sempre como fator impossibilitante da sanção, a operar em favor do imputado, porque se trata de algo estabelecido com a finalidade de paralisar a atividade punitiva e pacificar as relações sociais. Não se compadece com esse entendimento superior a alegação tantas vezes repetida de que a prescrição favorece a impunidade ou estimula a prática de novos ilícitos.

Após esse importante tema do Direito Administrativo e Constitucional, a Lei Anticorrupção migra para a sua conclusão, destacando a representação da pessoa jurídica (artigo 26). (...)

NASCIMENTO, Mellilo Dinis do. O Controle da Corrupção no Brasil, p. 110, in NASCIMENTO (org.), 2014. Grifamos.

Ou seja, diferentemente dos outros casos, aqui nem mesmo há propriamente um entendimento do autor sobre qual seria o termo inicial. O resultado é o mesmo – continuamos em dúvida sobre o tema.

Por fim, vamos agora aos únicos autores que abordam o tempo satisfatoriamente que encontramos. Comecemos pelo artigo de Fabrício Motta e Spiridon Anyfantis:

Ao utilizar o termo “ciência da infração”, o legislador cria alguma complexidade para a exata fixação do dies a quo da prescrição. Neste caso, parece ser a interpretação mais adequada da exata intenção do legislador aquela que considera não a ciência do fato diretamente pela autoridade competente para a instauração do procedimento investigatório, mas o conhecimento pelo órgão responsável pelas providências persecutórias, inclusive o Ministério Público. Esta ciência inequívoca pode se manifestar por documentos como termos de recebimento de representação ou, apenas, sua protocolização no órgão administrativo próprio.

MOTTA, Fabrício, e ANYFANTIS, Spiridon Nicofotis. Comentários ao art. 25, in DI PIETRO e MARRARA, 2017, pp. 285 e 286.

A expressão “órgão responsável pelas providências persecutórias” gera alguma dúvida, ainda mais pelo uso do artigo definido “as” qualificando “providências”: que providências persecutórias são essas? Persecutórias do quê? De que tipo de órgão estamos falando? Sabemos apenas que deve incluir o Ministério Público. No entanto, parece-nos que os autores quiseram dizer “qualquer autoridade com poder decisório”, por dois motivos: (1) conforme mostraremos a seguir, ambos seguem muito de perto os entendimentos de Ribeiro, embora não o citem; e (2) o parágrafo seguinte defende que a autoridade que deve tomar conhecimento não precisa ser aquela competente especificamente para a instauração de procedimento investigatório:

Não é imprescindível que a autoridade a conhecer em primeiro momento da infração seja a competente para instauração do procedimento. Deve, porém, ter mínimos poderes decisórios ou, ao menos, atribuições legais para encaminhar ao conhecimento da autoridade competente os fatos, para que esta possa fazer a apreciação adequada e decidir pela instauração de processo administrativo.

Idem, p. 286

Em suma, eles defendem que qualquer autoridade competente com “mínimos poderes decisórios” que tome “ciência da infração” provocará o início do prazo prescricional. Não basta que qualquer servidor público tome ciência do fato, apesar do dever legal de comunicação às autoridades superiores (e. g., inciso VI do art. 116 da Lei nº 8.112/1990); é necessário que a ciência se dê por alguma “autoridade”.

Os autores não explicam por que rejeitam a possibilidade de a prescrição se iniciar por ciência de dqualquer servidor público; simplesmente dizem que “deve... ter mínimos poderes decisórios”, como se fosse um fato auto-evidente. Felizmente, Ribeiro desenvolve o ponto, apesar de dele discordar:

Uma primeira opção seria considerar qualquer agente público que tivesse ciência da ocorrência do ilícito no exercício da sua função. Tal opção, entrementes, pelo seu caráter altamente difuso, afrontaria, de igual maneira, o fundamento maior da imposição do prazo prescricional, a segurança jurídica, devendo a definição da autoridade competente justificar a contagem de a prescrição se balizar em critérios mais precisos.

RIBEIRO, 2017, p. 278.

Discordamos do entendimento de Ribeiro, por motivos que desenvolveremos posteriormente; primeiro, terminemos de expor o entendimento de Ribeiro sobre o assunto. Esse autor tem o tratamento mais extenso sobre o tema, pois descreve (e eventualmente refuta) diversas possibilidades para o termo inicial da prescrição, utilizando-se de doutrina, jurisprudência e argumentação própria para fundamentar sua posição. É também o único autor que não considera que a Administração Pública deva automaticamente ser considerada o sujeito a que “ciência da infração” se refere:

Uma primeira questão a ser dirimida diz respeito à definição do sujeito a que se requer o conhecimento dos fatos, para que seja dado início ao prazo prescricional.

Uma vez que os efeitos da consumação da prescrição recairão sobre a prerrogativa que tem a Administração Pública de impor sanção administrativa a infratores, será ela o sujeito que deverá tomar ciência da ocorrência do ilícito.

RIBEIRO, 2017, p. 278.

Mais adiante, defende também a existência de uma ciência “presumida” pela Administração pública em razão de notícias amplamente divulgadas:

Outra situação que fará presumir a ciência pela Administração Pública da ocorrência do ato ilícito ocorre quando a notícia das correspondentes irregularidades for divulgada em veículos de imprensa de grande circulação, a exemplo de jornais e noticiários televisivos. Nesses casos, pela exata configuração de fato notório, presume-se a ciência por todos, inclusive pelas autoridades administrativas competentes

RIBEIRO, 2017, p. 279.

Curiosamente, Motta e Anyfantis defendem exatamente o mesmo entendimento sobre ciência presumida:

Mostra a doutrina que, em período de fluxo incessante de informações como a atual, notícias publicadas em caráter ostensivo pela imprensa ou portais de internet possuem verdadeiro potencial para serem reconhecidas como fatos notórios, não sendo razoável presumir-se que tais possam ser abstraídas do conhecimento da autoridade administrativa para instauração de processo administrativo de responsabilização. Nestas hipóteses, havendo verssomilhança e identificação clara e objetiva do fato, a data da publicação deve ser fixada como termo inicial da prescrição, afinal, em se tratando de norma de ordem pública, não parece atender ao princípio da legalidade, moralidade ou, ainda, impessoalidade, deixar à discrição da autoridade a escolha do melhor momento para se considerar informada acerca da existência de fato ilícito, o qual, a esta altura, já deveria ser considerado notório.

(MOTTA & ANYFANTIS, op. cit., , p. 286)

Encontramos entendimento análogo no direito administrativo disciplinar (“Isso não impede, por conseguinte, que o prazo da prescrição disiplinar tenha início a partir dessa ciência (fato notório)”; COSTA, 2008, p. 305) e penal (MASSON, 2019, p. 785; vide trecho citado no item 3.1, supra).

3.2. Soluções da doutrina em manuais e artigos

Pesquisamos soluções sobre o tema também em artigos e manuais, no entanto, encontramos ainda menos material. Localizamos dois artigos que tratam especificamente do termo inicial, bem como uma solução sugerida pelo Manual de Responsabilização de Pessoas Jurídicas da CGU. Vejamos primeiro a solução proposta pelo manual da CGU:

Existe amplo debate doutrinário sobre quem é o sujeito que deve tomar ciência da infração e ainda não existe uma posição unânime, ou mesmo razoavelmente pacífica, sobre o tema. Portanto, recomendamos, por cautela, que se utilize o critério de que qualquer agente público que tome ciência institucional de infração da Lei nº 12.846/2013 provoca o início do respectivo prazo prescricional. O fundamento desta posição está em que, apesar das diversas e complexas divisões internas da Administração pública, ela se apresenta como uma só para o cidadão, pois a Administração nada mais é do que a corporificação do Estado. Portanto, entendemos que, se um agente da Administração pública toma ciência de uma infração, ainda que ele não tenha competência para apurá-la, a informação da infração já chegou a um agente estatal e, portanto, já chegou ao Estado. Se o agente em questão não tiver competência para apuração, incumbe-lhe, por dever funcional, encaminhar para a autoridade competente.

CGU, 2020, pp. 122 e 123

O mesmo manual também qualifica a “ciência” como devendo ser “institucional”, definida nestes termos:

Destacamos também que essa ciência deve ser institucional, ou seja, informações veiculadas em meios jornalísticos ou redes sociais não contam como ciência para a Administração pública. Se um agente público toma ciência de uma infração ao ler um jornal ou assistindo a uma reportagem, ele faz isso como um cidadão qualquer – isto é, ele lê jornal como “José das Couves”, e não como “agente administrativo do órgão X”. Somente quando ele encaminha o caso para apuração é que podemos falar que a Administração, como tal, tomou ciência. Um exemplo disso seria o seguinte: ao chegar à repartição, o servidor José das Couves encaminha uma mensagem para a ouvidoria de seu órgão dizendo, “li no jornal Y uma reportagem sobre suposto esquema em que empresas pagam propinas a servidores do nosso órgão; por favor, solicito providências.”

CGU, 2020, p. 123.

Como mostraremos a seguir, esse é exatamente o entendimento que propomos na conclusão deste trabalho. Assim, fundamentaremos a aceitação desse entendimento em tópico próprio, infra.

Vejamos agora a solução do artigo de Leonardo Galvão, que entende que o prazo prescricional é inconstitucional por violar a segurança jurídica:

Nessa toada, é inarredável a inconstitucionalidade que permeia o preceptivo legal em debate, ante o confronto não apenas com o teor da norma lógica e da norma constitucional, mas também das legislações infraconstitucionais afetas ao tema, principalmente com o texto constitucional que eleva o princípio da segurança jurídica à [sic] cláusula pétrea.

GALVÃO, 2015.

O art. 25 da LAC violaria a segurança jurídica por dois motivos, embora somente o segundo esteja claro no texto: (1) fazer a prescrição correr somente da ciência do fato prolongaria excessivamente o prazo que a Administração dispõe para punir o ilícito; e (2) o fato de a lei não ter fixado um termo inicial para o prazo gera insegurança jurídica, pois não se sabe se o prazo começou a correr ou não.

O primeiro motivo não procede, pois a escolha de termo inicial da prescrição a partir de quando o fato se torna conhecido, apesar da má técnica de não se indicar quem deve conhecer o fato, é escolha legítima do legislador. Algumas infrações são de detecção tão difícil que o legislador escolhe por somente fazer extinguir a pretensão punitiva do Estado a partir da ciência da infração, tal como ocorre nas infrações disciplinares e no crime de bigamia (inciso IV do art. 114 do Código Penal). Tanto o argumento de Galvão não procede que ele não aduz a inconstitucionalidade dessas outras previsões, apesar de citar explicitamente a prescrição das infrações disciplinares no artigo.

O segundo motivo tampouco procede, pois não é mais do que uma maneira de presumir que a lei não pode ter erros, sob pena de inconstitucionalidade. Alegar isso é fugir do problema, afinal, como expusemos na introdução, é da natureza do processo legislativo que ocasionalmente haja erros na redação legal. Tanto isso é fugir do problema que o autor nem se dá ao trabalho de sugerir qual deve ser o prazo prescricional da LAC. Ora, aduzir a inconstitucionalidade do art. 25 como um todo significa que a LAC não tem prazo prescricional. Admitindo-se que toda infração tem prazo prescricional, qual seria então ele no caso da LAC? Paradoxalmente, o autor defende que a interpretação que melhor prestigia a segurança jurídica é deixar a LAC sem qualquer prazo prescricional, o que gera ainda mais insegurança jurídica.

A incoerência fica maior ainda porque Vasconcellos não defende a inconstitucionalidade do art. 142 da Lei nº 8.112/1990, a qual tem exatamente o mesmo problema, e isso apesar de o próprio autor transcrever o art. 142 logo antes de discutir o art. 25 da LAC.

Assim, parece-nos que esse artigo é uma tentativa superficial e mal-sucedida aplicar a “filtragem constitucional” preconizada pelo Neoconstitucionalismo, e nada acrescenta à discussão do problema.

Felizmente, o artigo de Sousa é mais preciso, apesar de discordarmos de sua proposta:

Logo, parece apropriado defender entendimento similar ao STJ no sentido de que no que tange à responsabilização administrativa prevista na LAC, o marco inicial da regra geral seria a partir da ciência da infração por qualquer autoridade administrativa do órgão ou entidade que sofreu o ato lesivo, sendo prescindível para o início da contagem prescricional a ciência da autoridade máxima do órgão ou entidade pública lesada.

SOUSA, 2017.

No entanto, entendemos que a atribuição do termo inicial a uma ciência de uma autoridade administrativa, e não a qualquer servidor, parece arbitrária. Para mostrar isso, vamos analisar a jurisprudência do STJ citada por Sousa; aproveitaremos para tratar da súmula nº 635 do STJ, editada depois do artigo de Sousa.

3.3. Soluções da jurisprudência

O primeiro e mais recente dos precedentes citados por Sousa (MS nº 14.446/DF) parece ir contra o entendimento do autor, pois diz: “considera-se autoridade, para os efeitos dessa orientação, somente quem estiver investido de poder decisório na estrutura administrativa, ou seja, o integrante da hierarquia superior da Administração (Superior Tribunal de Justiça – STJ, Mandado de Segurança nº 14.446/DF, julgado em 13/12/2010, apud SOUSA, 2017. Grifamos.). O segundo precedente citado, mais antigo (2007), tem posição oposta à do primeiro; inclusive, parece até que o primeiro precedente (mais recente, de 2010) critica o precedente de 2007. Vejamos então o referido precedente de 2007:

Desse modo, é razoável entender-se que o prazo prescricional de cinco anos, para a ação disciplinar tendente à apuração de infrações puníveis com demissão ou cassação de aposentadoria, comece a correr da data em que autoridade da administração tem ciência inequívoca do fato imputado ao servidor, e não apenas a partir do conhecimento de tais irregularidades pela autoridade competente para a instauração do processo administrativo disciplinar.

Superior Tribunal de Justiça. MS nº 11.974/DF, julgado em 07/05/2007, apud Sousa, 2017.

Isto é, os dois precedentes do STJ parecem contraditórios entre si e não fundamentam a escolha por tal ou qual critério. Assim, precisamos investigar os inteiros teores de cada um para verificar se lá consta alguma fundamentação.

No caso do precedente mais antigo (MS nº 11.974/DF), o inteiro teor do acórdão mostra que o critério “qualquer autoridade administrativa” foi escolhido por dois fundamentos:

(1) fazer a prescrição contar-se somente da ciência da autoridade competente para instauração do processo geraria insegurança jurídica: “No entanto, entendo que não seria essa a melhor conclusão, por gerar uma verdadeira insegurança jurídica para o servidor público.” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, idem). Observamos que o acórdão não explica de que modo isso gera insegurança jurídica.

(2) o dever geral de toda autoridade administrativa de apurar as irregularidades de que tiver conhecimento, consignado no art. 143 da Lei nº 8.112/1990:

Consoante o mencionado artigo, havendo elementos substanciais acerca da existência de irregularidade no serviço público, qualquer autoridade administrativa que dela tomar conhecimento deverá proceder à sua apuração ou comunicá-la à autoridade que tiver competência para promovê-la, sob pena de responder pelo delito de condescendência criminosa.

Superior Tribunal de Justiça. MS nº 11.974/DF, julgado em 07/05/2007, apud Sousa, 2017.

Ao analisarmos o inteiro teor do acórdão referente ao segundo e mais recente precedente, temos uma pequena surpresa: a referência a que a autoridade deve pertencer à “hierarquia superior” da Administração, na verdade, não reflete o posicionamento do STJ. A ementa diz, confusamente, “ressalva do ponto de vista do relator quanto a esta última exigência”, não deixando claro se “ressalva do ponto de vista do relator” significa que o entendimento da “hierarquia superior” é exclusivo do relator ou se o relator foi o único que não o aceitou. Estudemos então o inteiro teor do respectivo acórdão.

Esse estudo mostra que existem apenas três referências à tal da “hierarquia superior”: (1) na própria ementa do julgado; (2) na ementa do voto do relator, ministro Napoleão Nunes Maia; e (3) no parágrafo 21 do mesmo voto, quando o relator diz:

Não custa advertir que, qualquer autoridade administrativa que tiver ciência de irregularidade no serviço público tem o dever de proceder a apuração do ilícito ou comunicar imediatamente a autoridade competente para promovê-la, sob pena de incidir no delito de condescendência criminosa (art. 143 da Lei 8.112/90). Considera-se autoridade, para os efeitos dessa orientação, quem deter poder decisório na estrutura administrativa, ou seja, o integrante da hierarquia superior da Administração Pública.

Superior Tribunal de Justiça. MS nº 14.446/DF, julgado em 13/12/2010, p. 14.

Inicialmente, precisamos esclarecer o que o parágrafo realmente quis dizer, pois ele contém uma ambiguidade crítica. Na primeira frase, ele utiliza o termo “autoridade” com sentidos diferentes, a saber, (1) qualquer autoridade administrativa em geral; e (2) autoridades administrativas com competência para apurar o ilícito, às quais a “autoridade administrativa” em geral deve comunicar atos ilícitos caso não tenham competência para apurá-lo. A segunda frase retoma a expressão “autoridade” sem deixar claro a qual delas se refere, mas uma leitura atenta do parágrafo mostra que a referência é ao segundo tipo de autoridade. Ou seja, para o relator, somente o “integrante da hierarquia superior” da Administração Pública tem “poder decisório na estrutura administrativa” e competência para apurar ilícitos.

Ora, tal compreensão está completamente equivocada. Não se pode considerar que somente as autoridades da hierarquia superior têm poder decisório na estrutura administrativa; até mesmo servidores sem qualquer função comissionada podem tomar decisões que vinculam toda a Administração pública – basta pensar nos autos de infração, os quais são aplicados após uma decisão do fiscal administrativo. Pela estrutura da Administração, é extremamente raro que autoridades administrativas tenham essa função de fiscalização direta e autuação, normalmente reservada para servidores sem função ou cargo comissionado.

Do mesmo modo, não são somente os integrantes da “hierarquia superior” da Administração pública que têm competência para apurar e punir ilícitos. Basta pensarmos nos chefes de repartição, competentes para aplicar a penalidade disciplinar de advertência, conforme o inciso III do art. 141 da Lei nº 8.112/1990.

Podemos entender os motivos pelos quais considerar que o termo inicial da prescrição deve ser quando da ciência da autoridade competente para instaurar o processo. Também podemos entender o posicionamento segundo o qual esse grau de exigência não é necessário e que basta a ciência de qualquer autoridade administrativa para que se inicie o prazo prescricional. Mas por que dizer que a ciência deve ser de alguma autoridade da “hierarquia superior” da Administração? O que é hierarquia superior? Por que dizer que somente as autoridades da hierarquia superior têm “capacidade decisória”?

Nada disso faz sentido, o que nos leva a concluir que a referida “ressalva do ponto de vista do relator” significa que os outros ministros também perceberam quão estranha e sem fundamento era essa confusão entre “autoridade competente para punir” e “integrar a hierarquia superior da Administração” e não seguiram o relator nesse ponto. Infelizmente, essa ressalva curiosa e sem qualquer fundamento acabou “vazando” para a ementa do acórdão. Isso, somado à confusa dicção “ressalva do ponto de vista do relator quanto a essa última exigência” serviu apenas para gerar uma desnecessária dificuldade interpretativa.

De todo modo, o entendimento do STJ parecia caminhar no sentido de que bastaria a ciência de qualquer autoridade administrativa para que se iniciasse o prazo prescricional da Lei nº 8.112/1990. No entanto, em 2019, o próprio STJ editou súmula sobre com entendimento diametralmente oposto:

Súmula 635. Os prazos prescricionais previstos no artigo 142 da Lei 8.112/1990 iniciam-se na data em que a autoridade competente para a abertura do procedimento administrativo toma conhecimento do fato, interrompem-se com o primeiro ato de instauração válido – sindicância de caráter punitivo ou processo disciplinar – e voltam a fluir por inteiro, após decorridos 140 dias desde a interrupção. (Grifamos)

A página do próprio STJ na internet oferece uma lista de acórdãos que fundamentaram a súmula, todos no sentido da restritiva exigência de que a ciência se dê pela autoridade competente (vide os comentários completos nesta página). Assim, apesar de os precedentes citados no artigo de Sousa afirmarem que o “posicionamento consolidado” do STJ era no sentido de que o início do prazo se dava com a ciência por qualquer autoridade, houve mudança de entendimento da referida corte.

Para nós, esse entendimento mais recente, veiculado no enunciado de súmula nº 635, não deveria ser aceito. Ele toma as diversas possibilidades de “ciência” do fato e escolhe especificamente a mais restritiva possível, o que, como os próprios ministros do STJ haviam dito anteriormente, consiste em distinguir onde o legislador não distinguiu. Com efeito, é comum que a autoridade competente para a apuração do ato não seja a primeira a tomar ciência do fato, ainda mais quando se trata de fato em tese punível com demissão, pois a competência para instaurar o processo tende a ser próxima do nível de Ministro de Estado. Assim, quando a autoridade competente para instauração toma ciência do fato ilícito, certamente outros servidores e autoridades também tomaram ciência do fato. Nem sempre é assim, mas o importante é que é possível diversas autoridades tomarem ciência do fato antes da autoridade competente, o que já atenderia ao requisito legal de o fato “tornar-se conhecido”, ainda que não se especifique o sujeito desse conhecimento.

Compreende-se que a Administração, interessada em prazos prescricionais mais largos, sustente um entendimento tão restritivo, mas o STJ não deveria ter cedido a um posicionamento que não parece ter outro fundamento a não ser o de beneficiar a Administração.

De todo modo, a presença de uma súmula do STJ sobre o início do prazo prescricional da Lei nº 8.112/1990 sugere que essa solução também deva ser adotada para a LAC, pois ela sofre do mesmo defeito de condicionar o início do prazo prescricional a uma “ciência do fato” sem especificar quem deva tomá-la. No entanto, como mostraremos em tópico próprio, a solução da súmula nº 635 do STJ não pode, mediante interpretação analógica, ser transposta para a LAC.

3.4. Resumo dos posicionamentos encontrados. Apreciação crítica.

Podemos sumarizar os entendimentos sobre o início do prazo prescricional da LAC desta maneira:

  1. toda vez que o fato ilícito puder ser considerado público e notório (ciência presumida);

  2. ciência oficial por parte de qualquer servidor público;

  3. ciência oficial por parte de qualquer autoridade administrativa;

  4. somente quando a autoridade competente para apurar a infração tomar-lhe oficialmente ciência.

Examinemos primeiramente o início da prescrição por notoriedade do fato, por nos parecer o entendimento mais problemático de todos.

Apesar de eles não o dizerem explicitamente, o raciocínio dos autores que defendem a fluência da prescrição com a notoriedade do fato parece basear-se no inciso I do art. 374 do Código de Processo Civil (CPC), que determina que os fatos públicos e notórios dispensam prova: “Não dependem de prova os fatos: (I) notórios”. Essa dispensa de prova decorre de uma presunção de que as partes têm efetivo conhecimento acerca desses fatos; se as partes conhecem o fato, não há por que prová-lo. Aplicando-se a mesma lógica, teríamos que certos fatos são tão notórios que podemos dizer que todos têm efetivo conhecimento dele, o que inclui qualquer autoridade administrativa efetivamente competente para apurá-lo. Assim, estaria superado o problema da falta de definição sobre o sujeito da ciência a que o art. 25 da LAC se refere, pois todos teriam ciência daquele fato.

Contudo, tal entendimento apresenta diversos problemas. Em relação especificamente à fundamentação de Motta e Anyfantis, ela é incoerente porque estabelece uma falsa causalidade entre “notícia amplamente divulgada” e “arbítrio da autoridade para escolher a data da ciência”, isto é, eles alegam que a rejeição da possibilidade de a ciência da infração ser presumida em razão da notoriedade do fato automaticamente leva a que a autoridade administrativa possa escolher o prazo em que tomou tal ciência.

Ora, mesmo que rejeitássemos a possibilidade de fatos notórios serem capazes de iniciar o prazo prescricional, a Administração não necessariamente poderia escolher a data de sua ciência. Poderíamos defender, por exemplo, que qualquer denúncia protocolada no respectivo órgão público já inicia o prazo prescricional. Assim, a autoridade estaria vinculada a tal protocolo, independentemente de reportagens sobre o fato terem ou não o condão de também iniciar o prazo prescricional.

Na verdade, tal arbítrio foi criado pelos próprios autores em razão de não estabelecerem de modo completo a data do início da prescrição, pois dizem que, por se tratar de “norma de ordem pública” e com base nos diversos princípios citados, o termo inicial deve ser o da “publicação da reportagem”. Qual reportagem? Se um fato é tão notório assim, certamente será reportado por diversos veículos diferentes, permitindo à Administração escolher a data da publicação que lhe for mais conveniente. Tal arbítrio estaria afastado se considerássemos, singelamente, que o termo inicial se dá com a publicação da primeira reportagem.

Outro problema é que, diferentemente do que os autores dizem, tal entendimento não tem base “na doutrina”. O único autor que eles citam nesse sentido é Bruno Calabrich e o único outro autor que encontramos pelo mesmo entendimento é o próprio Márcio Ribeiro. Em todos os outros cinco livros que pesquisamos, bem como em bases de dados na internet, como vimos acima, mal existe tratamento para o problema do termo inicial da prescrição, muito menos uma opinião sobre sua relação com os fatos públicos e notórios. Então, o suposto argumento de autoridade apresentado por Motta e Anyfantis por meio da fórmula “Mostra a doutrina que...” não procede.

De qualquer maneira, consideramos que o entendimento em si mesmo deve ser rejeitado. Permitir que fatos “públicos e notórios” iniciem o prazo prescricional tem apenas uma aparência de objetividade e segurança jurídica, mas dá margem a diversas discussões sobre o que se qualifica como fato público e notório. Por exemplo, podemos considerar uma reportagem do programa jornalístico Fantástico? Em caso positivo, por que poderíamos considerar que uma reportagem de um programa jornalístico de uma emissora específica tem o condão de gerar presunção absoluta de que a autoridade administrativa tomou conhecimento do fato? Provavelmente pelos elevados índices de audiência do referido programa, que é tradicionalmente um dos mais conhecidos do Brasil.

Mas o que podemos consdierar “elevados índices de audiência”? E por que nos limitar a programas televisivos, especificamente? Afinal uma autoridade administrativa pode se manter perfeitamente bem informada sem recorrer a um televisor, utilizando-se, por exemplo, de portais de notícias na internet.

E se considerarmos que o fato se considera público e notório com a publicação de certa reportagem sobre fato ilícito em jornais de grande circulação? Isso também é problemático, pois teríamos de presumir que as autoridades administrativas lêem todas as reportagens de tais jornais, todos os dias. Por isso, faz mais sentido considerar que um fato é público e notório somente se ele se repete em diversas mídias diferentes. Mas isso nos leva a um problema: em que momento certo fato ilícito passa de “mais um no noticiário” e passa para “fato público e notório”? A partir da sua repetição em quantos veículos? Devemos considerar mídias diferentes, tais como televisão, rádio e internet?

Ou seja, os autores deixaram-se iludir pela aparente facilidade de se estabelecer que todos têm ciência de fatos públicos e notórios. No entanto, um fato só pode objetivamente ser considerado como tal após sua divulgação e repetição em diversos meios, por diversos dias – e, mesmo assim, pode haver “zonas cinzentas” nas quais cabe discutir se certo fato pode ou não ser considerado, efetivamente, público e notório. Somente é fácil estabelecer que certo fato é público e notório retrospectivamente, e não contemporaneamente. Por exemplo, hoje, a pandemia de COVID-19 pode ser considerada fato público e notório; no entanto, as primeiras notícias a apresentaram como um fenômeno relativamente isolado da China, e diversos veículos de mídia simplesmente a ignoraram na época.

O exemplo da pandemia de COVID mostra outra dificuldade que impede de aceitar tal posicionamento: a partir de qual data podemos considerar a Administração notificada? Afinal, é certo que a pandemia de COVID-19 é fato público e notório hoje. Mas em que dia exatamente ele passou de notícia local para fato notório? Normalmente, não faz diferença saber o dia exato em que um fato passou a ser notório, mas quando condicionamos o próprio início do prazo prescricional à “notoriedade do fato”, precisamos determinar com precisão a data em que isso ocorreu. Por um lado, é correto dizer que “em fevereiro de 2020, a pandemia de COVID-19 certamente era um fato público e notório”; por outro, como podemos fazer a prescrição se iniciar em “fevereiro de 2020”? Em qual dia de fevereiro? O dia 1º, simplesmente por ficção?

Tais perguntas não têm resposta, porque nem todos os fatos públicos e notórios têm uma data exata em que podem ser considerados como tal. Quando o têm, é mero acidente.

Por tudo isso, não podemos deixar o termo inicial da prescrição ser definido com base em divulgação midiática, pois a objetividade dos fatos públicos e notórios é apenas aparente e não pode ser estabelecida de maneira segura.

Além do argumento da falta de objetividade, entendemos que há também um argumento ontológico contra a utilização do fato notório como ciência da infração. O CPC pode estabelecer que um fato público e notório dispensa prova porque isso ainda está sujeito ao crivo do contraditório. Isto é, se uma parte alega certo fato e deixa de prová-lo com base em ele ser público e notório, a outra parte pode impugnar a notoriedade do fato, e competirá a um juiz imparcial decidir a respeito de maneira definitiva. Tal situação é muito diferente de presumirmos abstratamente uma ciência de irregularidade pelas autoridades competentes, de maneira extraprocessual e sem contraditório. Ou seja, as ontologias das situações “dispensa de prova de fatos notórios no CPC” e “ciência do fato pela Administração pública” são de tal modo diferentes entre si que elas não apresentam paralelos que autorizariam a transposição de uma para a outra.

3.5. Do não cabimento do uso analógico das soluções da Lei nº 8.112/1990 para o problema da LAC

Alguns dos autores estudados neste capítulo 2 perceberam a similaridade do problema do art. 25 da LAC ao problema da falta de definição do sujeito na prescrição disciplinar da Lei nº 8.112/1990. Por isso, é natural que alguns deles tenham sugerido utilizar as soluções da Lei nº 8.112/1990 para o problema, pois ele está mais desenvolvido lá.

No entanto, entendemos que, apesar da similitude dos problemas, não podemos transpor analogicamente a solução da Lei nº 8.112/1990 para a LAC, em razão de que a premissa por trás da solução do âmbito disciplinar é sempre a hierarquia, a qual inexiste na relação entre Administração pública e pessoa jurídica sujeita à LAC. Além disso, entendemos que os argumentos no sentido de que a ciência por qualquer servidor não pode iniciar prazo prescricional são insubsistentes. Vejamos cada ponto detalhadamente.

Em relação ao primeiro ponto, um exame da doutrina em direito disciplinar indica que sempre se utiliza a questão da hierarquia para se justificar as soluções para o termo inicial do prazo prescricional, pois a hierarquia impõe às autoridades o dever de apurar irregularidades. Assim, um servidor que descobre que um colega cometeu irregularidades não teve “ciência do fato” ou fez com que o fato se tornasse “conhecido” para efeitos da Lei nº 8.112/1990, pois o servidor não tem atribuição de apurar a conduta. Só se caracteriza o “conhecimento do fato” quando o servidor leva o fato ao conhecimento do respectivo chefe hierárquico. Nesse sentido, Antônio Carlos Alencar Carvalho entende que o termo inicial da prescrição da Lei nº 8.112/1990 é o da ciência da autoridade competente para instaurar o processo, e defende isso com base na hierarquia:

Essa ilação dimana da regra de que a competência para instaurar processo disciplinar é conferida ao chefe da repartição à autoridade superior, com ascendência hierárquica sobre os acusados. Isso por força do consagrado pressuposto de que o poder disciplinar é decorrência da estrutura hierarquizada da Administração Pública: as autoridades administrativas, competentes para expedir comandos aos subordinados e controlar-lhes o desempenho funcional, devem dispor da prerrogativa de punir os infratores, a bem da disciplina (...)

É de clareza solar que o preceito normativo não poderia obrigar qualquer autoridade que fosse cientificada do ilícito a prontamente instaurar o consentâneo feito administrativo investigatório ou processual, senão aquela com competência para a medida.

A. Carvalho, 2008, pp. 784 e 785. Grifamos.

José Armando da Costa utiliza arroubos de linguagem semelhantes, mas tem entendimento diverso, a saber: o prazo prescricional se inicia a partir da ciência de qualquer autoridade administrativa. No entanto, ele também justifica seu entendimento com base na hierarquia. Nesse sentido, cita o seguinte trecho de parecer do respeitado administrativista Caio Tácito:

O poder disciplinar, em que repousa a estabilidade das instituições administrativas, somente se poderá exercer, como é elementar, a partir do momento em que a falta se torne conhecida pela autoridade. Desde que, pelas circunstâncias de fato, a violação do dever funcional se acoberte no sigilo, subtraindo-se ao conhecimento normal da administração, não se configura a noção de inércia no uso do poder disciplinar.

Caio Tácito, parecer oferecido no processo nº 3.323/49, Diário Oficial da União de 05/01/1956, apud Costa, p. 303.

A ideia de que o “conhecimento do fato” a que a Lei nº 8.112/1990 se refere tem relação com o poder disciplinar também foi adotada na praxe administrativa. O auditor da Receita Federal do Brasil Marcos Salles Teixeira redigiu um manual de processo disciplinar intitulado “Anotações sobre PAD”, no qual apresenta uma visão geral dos posicionamentos sobre o tema, e explicita que todos eles se reportam, de uma maneira ou de outra, à hierarquia:

Conforme aduzido em 2.3.1, embora não desça à minúcia (e nem poderia mesmo fazê-lo, diante da diversidade e das peculiaridades do conjunto de órgãos que integram a Administração Pública federal), a Lei nº 8.112, de 11/12/90, em seu art. 143 e também no parágrafo único de seu art. 116, aponta no sentido inespecífico e genérico de que a competência disciplinar reside em via hierárquica. Ou seja, para a Lei, em princípio, a autoridade em sentido lato é responsável pela promoção da imediata apuração. Extrai-se portanto, teleologicamente, que o instituto da prescrição repercute na via hierárquica, pois é de ma autoridade hierarquicametne superior ao representado que se espera a diligência no sentido de deflagrar a apuração, recaindo sobre ela o ônus de cuidar da prescrição diante de sua inércia.

TEIXEIRA, 2020, pp. 1.791 e 1792. Grifamos.

O Manual de Processo Administrativo Disciplinar da CGU é igualmente claro ao estabelecer a relação entre poder hierárquico e termo inicial da prescrição no âmbito da Lei nº 8.112/1990:

Insta salientar, ademais, que, no Direito Administrativo, o poder disciplinar decorre do poder hierárquico. Dito em outros termos, as providências devem ser tomadas pelo superior hierárquico do servidor que cometer o ilícito administrativo-disciplinar. Cabe ao superior do servidor que cometeu a infração tomar as medidas cabíveis, a fim de que os fatos sejam apurados.

Em muitas instituições públicas o regimento interno prevê que a competência para a instauração do procedimento está centralizada na autoridade máxima. Isso não retira do superior hierárquico do servidor a responsabilidade de agir e levar adiante os fatos, ao conhecimento da autoridade máxima, para que sejam esclarecidos e instaurado o devido processo administrativo.

CGU, 2019, p. 330. Grifamos.

O próprio Ribeiro parece utilizar implicitamente o critério da hierarquia para fundamentar seu entendimento para o termo inicial da prescrição da LAC:

Sabe-se que a Administração Pública é um ente complexo, composto pelas mais variadas estruturas hierárquicas, cujas competências são exercidas pelas mais diversas autoridades, tornando, dessa forma, premente a necessidade de se definir qual é a autoridade administrativa que representa o ente processante para o fim de iniciar o cômputo [do] prazo prescricional da pretensão punitiva.

RIBEIRO, 2017, p. 278

No entanto, não há relação de hierarquia entre a Administração e os particulares que cometem irregularidades, o que torna a situação da LAC qualitativamente diferente da situação da Lei nº 8.112/1990. Com efeito, a hierarquia da Administração faz com que um fato sempre tenha uma respectiva autoridade imediatamente competente para apuração, qual seja, o servidor que for o superior hierárquico daqueles envolvidos no fato. Como bem disse Teixeira, é autoridade hierarquicamente superior ao representado que tem o ônus de promover a apuração e, portanto, é ela quem tem “o ônus de cuidar da prescrição diante de sua inércia” (TEIXEIRA, cit., 1.792).

É evidente que há certa variação entre os órgãos por questões de organização interna e o chefe direto do servidor suspeito pode não ser a autoridade competente para aquele caso específico, mormente quando existe estrutura especializada de corregedoria, mas isso não impede a existência da competência geral de todo chefe para apurar as irregularidades no âmbito de sua autoridade. Contudo, tal hierarquia não existe no âmbito da LAC, como não existe no poder de polícia em geral, do qual a LAC é apenas um exemplo. Assim, podemos dizer que qualquer servidor público que tome ciência de possível infração à LAC já faz com que a Administração pública tome ciência do fato, tal qual a ciência de uma irregularidade por um agente de polícia (por exemplo, um fiscal ambiental ou um guarda de trânsito) já efetiva a ciência da Administração pública.

Como vimos acima, Ribeiro critica a posição de que qualquer servidor possa, ao relatar o fato ilícito às autoridades, já iniciar o prazo prescricional da LAC:

Uma primeira opção seria considerar qualquer agente público que tivesse ciência da ocorrência do ilícito no exercício da sua função. Tal opção, entrementes, pelo seu caráter altamente difuso, afrontaria, de igual maneira, o fundamento maior da imposição do prazo prescricional, a segurança jurídica, devendo a definição da autoridade competente justificar a contagem de a prescrição se balizar em critérios mais precisos.

RIBEIRO, 2017, p. 278

No entanto, essa “excessiva difusão” não pode servir de óbice para o entendimento. Primeiro, porque, ainda que tal difusão exista, o que ela faz, no máximo, é reduzir o prazo de apuração pela Administração pública, pois o fato ilícito pode ser primeiro percebido por servidor distante da autoridade competente para instaurar o processo. Assim, parece-nos que o autor rejeita esse entendimento por questões de conveniência administrativa, e não por uma incompatibilidade intrínseca com os fatos.

Como reforço disso, basta pensar nos outros exemplos de poder de polícia que demos acima. Nem o próprio Ribeiro nem qualquer doutrinador diz que a ciência de irregularidades por agentes de polícia não pode caracterizar ciência da Administração por “excessiva difusão”. É até absurdo pensar que um guarda de trânsito não representa uma ciência de uma infração de trânsito simplesmente porque isso ampliaria excessivamente a quantidade de outros servidores que também poderiam tomar ciência do mesmo fato, o que poderia gerar, por exemplo, duas multas pelo mesmo fato.

Segundo, tal difusão não tem, intrinsecamente, o condão de dificultar a apuração do termo inicial, pois basta considerarmos que a ciência do ato ilícito deve se dar pela via institucional – como, aliás, o próprio Ribeiro o faz. Ou seja, pode acontecer que outros servidores tenham tido ciência do fato antes disso, mas se eles nada disseram a respeito, podemos considerar que a Administração pública não tomou ciência do fato.

Também é assim que ocorre quando no poder de polícia em geral: se certo fiscal percebe certa irregularidade, mas nada faz a respeito, não poderemos considerar que a Administração pública tomou ciência do fato, pois o servidor não oficializou a notícia sobre o fato. Do mesmo modo, o mero fato de um auditor ter contato com contrato que contém vício não caracteriza ciência da infração, pois não necessariamente o auditor já sabe que aquele contrato é viciado. Somente quando o auditor produz um relatório e emite uma opinião a respeito, o que evidentemente leva certo tempo de análise, é que podemos dizer que existiu ciência.


4. NOSSA SOLUÇÃO: A CIÊNCIA INSTITUCIONAL DE QUALQUER SERVIDOR PÚBLICO

4.1. Exposição da solução

Diversos autores de direito administrativo disciplinar parecem entender que a Administração pública somente atua por meio de autoridades de nível elevado. O lapso do ministro do STJ Napoleão Nunes Maia (vide item 3.3, supra) expressa essa posição, pois ele equipara “poder decisório” a “hierarquia superior” da Administração pública, como se somente os mais elevados graus da Administração tivessem algum poder de decisão. No entanto, é evidente que qualquer autoridade tem poder decisório, e mesmo servidores lotados em cargos “normais” podem tomar decisões que vinculam a Administração, bastando que a lei assim o determine. Como exemplo, citamos os já referidos fiscais em geral, bem como os servidores do atendimento ao público do Instituto Nacional da Seguridade Social, que têm autonomia para conceder ou não certo benefício diante da documentação apresentada.

Tal lapso do ministro não foi isolado. Todos os autores em direito disciplinar que examinamos, inclusive o manual de processo disciplinar da CGU, afirmam expressamente que a Administração “somente pode atuar” por meio das autoridades competentes: “Ao servidor – aí incluídas as autoridades de menor hierarquia ocupantes de chefias imediatas – sem poder decisório de conduzir a Administração, cabe o dever de representar, conforme o art. 116, VI e XII do citado Estatuto [Lei nº 8.112/1990]” (TEIXEIRA, 2020, p. 1.791).

Isso nos parece um resquício de uma visão que só enxerga autoridades na Administração pública. Servidores lotados em cargos efetivos sem cargo ou função comissionados quase não existem; são meros “tentáculos” das autoridades superiores, estas sim corporificando a Administração No entanto, essa visão é evidentemente ultrapassada. O Estado é uma abstração, uma hipostasia, e manifesta-se por meio de pessoas. É absurdo dizer que essas pessoas somente são as autoridades, afinal, os setores de atendimento ao público contam com servidores “comuns”, e não autoridades; e, no entanto, tais servidores efetivamente presentam a Administração. Suas declarações e decisões vinculam a Administração pública e podem até caracterizar atos coatores, suscetíveis de mandado de segurança.

Ou seja, no tratamento da prescrição disciplinar, os autores cometem certa confusão entre “autoridade competente para instaurar o processo” e “autoridade que presenta a Administração pública”, mormente porque, como explicamos acima, existe uma intrínseca relação entre a hierarquia e a apuração disciplinar. Mas precisamos rejeitar esse erro, tanto de maneira geral, quanto de maneira especial, quando tratamos das sanções decorrentes do poder de polícia, situação em que inexiste relação hierárquica.

Por tudo isso, conforme já vínhamos sugerindo ao longo do trabalho, nossa proposta é de que a “ciência da infração” a que o art. 25 da LAC se refere deve ser a ciência institucional (ou oficial) por parte de qualquer servidor público. Como visto acima, não vemos motivo válido para restringir essa ciência apenas a autoridades administrativas, independentemente de elas serem ou não competentes para a apuração do ilícito.

Adicionalmente, se o servidor público, ainda que no desempenho de suas funções, tomar ciência de certo fato ilícito mas nada fizer a respeito, não estará caracterizada a ciência institucional. É a mesma lógica que se aplica às funções oficiais em geral do servidor público: por exemplo, não adianta um oficial de justiça, ainda que no exercício de suas funções, meramente tomar ciência de certo fato. Só haverá efeitos jurídicos quando o oficial certificar sua ocorrência. Do mesmo modo, o servidor pode não ter percebido que se trata de ato ilícito – por exemplo, um auditor pode ter ciência dos valores de certo contrato superfaturado, mas não perceber de imediato que existe superfaturamento, ou a própria detecção do superfaturamento pode estar fora de seus conhecimentos específicos, impedindo-o de identificar que se trata de algo que mereça atenção.

Tal ciência oficial exclui a ciência do ilícito por mera notoriedade do fato, em razão das considerações que expusemos no final do item 3.5.

4.2. Fundamentação da escolha: persuasão, e não “objetividade científica”

Estamos conscientes de que nossa proposta não tem qualquer superioridade objetiva em relação às outras, isto é, não podemos apelar à coercibilidade matemática para sustentar sua adoção. Nossa exposição mostrou que, diante da natureza do problema, não se pode dizer que qualquer das soluções apontadas pela doutrina e jurisprudência, inclusive a nossa, tem algum tipo de superioridade intrínseca, isto é, a característica de ser reconhecida por qualquer pessoa racional como a única solução. Oferecemos nossa proposta como a que entendemos ser a mais persuasiva, a mais convincente.

Isso pode parecer muito vago, mas há um rico embasamento teórico para isso, que, de certo modo, toca a própria natureza do direito. No entanto, em razão do escopo limitado deste trabalho, apresentaremos um recorte limitado da concepção da argumentação jurídica como persuasão, e não demonstração matemática.

Na verdade, essa controvérsia existe pelo menos desde a seminal obra Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, tanto é que adquiriu o nome de “desafio kelseniano”. Ao tratar da interpretação, Kelsen diz que existem as interpretações autênticas e não autênticas. As interpretações autênticas da lei são aquelas efetuadas pelos órgãos juridicamente competentes para tanto, e as não autênticas são todas as outras. Em razão de sua competência, tais órgãos podem tomar a lei como uma mera moldura, e decidir o que quiserem dentro dessa moldura. Isto é, Kelsen nos diz quem pode interpretar, mas não diz o que pode ser interpretado:

A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si mesma reveladas, mas tem de deixar tal decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito. (...)

A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência [rectius: ciência do direito] tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximadamente.

(KELSEN, 2003, pp. 395 e 396. Grifamos.)

Kelsen chega às últimas consequências da concepção de interpretação autêntica e doutrinária, e diz explicitamente que o intérprete autêntico pode julgar até mesmo fora da moldura da lei:

A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa.

(KELSEN, 2003, p. 394. Grifamos)

À primeira vista, essa declaração radical pode parecer estranha. Afinal, a teoria pura de Kelsen é frequentemente considerada o ápice do positivismo jurídico, uma teoria tão neutra de valores que pode justificar até mesmo sistemas jurídicos totalitários e genocidas. No entanto, tal declaração é perfeitamente coerente com a própria distinção entre interpretações autêntica e doutrinária: se somente o intérprete autêntico pode estabelecer o sentido da lei, então o próprio conceito de “moldura” da lei como algo externo ao intérprete autêntico não existe, ou, no mínimo, é fixado pelo próprio intérprete autêntico, o que acaba resultando na mesma consequência: o intérprete autêntico tem liberdade de interpretar sem qualquer vinculação lógica com o conteúdo da lei interpretada.

Tal concepção também é coerente com textos do fim da vida de Kelsen, especialmente na correspondência travada com Ulrich Klug entre 1959 e 1965, nas quais Kelsen reiteradamente afirma que a lógica formal é inteiramente inaplicável ao conteúdo das normas jurídicas:

O emprego de princípios lógicos, especialmente o princípio da não contradição e a regra da conclusão, a normas em geral e a normas jurídicas em particular, não é todavia tão evidente como tem sido admitido pelos juristas. Pois os dois princípios lógicos são, de acordo com sua natureza, somente aplicáveis, pelo menos de maneira direta, a afirmações, na medida em que estas são o ignificado de pensamentos e podem ser verdadeiras ou falsas. (...) As normas, porém, significam atos volitivos e como tais não podem ser verdadeiras nem falsas.

(KELSEN & KLUG, 1984, p. 61)

Somente podemos aplicar a lógica às proposições a respeito das normas, mas não sobre o conteúdo das normas em si, pois normas jurídicas são atos de vontade, e não afirmações sobre a realidade. Kelsen não utiliza a terminologia “moldura” nesses textos, mas a implicação é evidente: se não podemos aplicar a lógica ao conteúdo das normas, então não existe uma “moldura” de sentidos possíveis da norma, pois a construção da moldura pressupõe a análise lógica do conteúdo da norma.

Isso também é condizente com a distinção que o próprio Kelsen apresenta entre sistemas normativos estáticos e dinâmicos: sistemas normativos estáticos são aqueles cujas normas podem sempre ser logicamente deduzidas umas das outras:

As normas de um ordenamento do primeiro tipo [estático], quer dizer, a conduta dos indivíduos por elas determinada, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. Assim, por exemplo, as normas: não devemos mentir, não devemos fraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, não devemos prestar falsos testemunhos, podem ser deduzidas de uma norma que prescreve a veracidade.

(KELSEN, 2003, pp. 217 e 218)

Chamam-se estáticos porque não comportam expansão de conteúdo além do que já está ao menos implicitamente nos princípios superiores; cabe, no máximo, declarar consequências até então impensadas dos princípios superiores, mas nunca criar soluções estranhas a tais princípios. Um exemplo apresentado pelo próprio Kelsen seria o conjunto dos “Dez Mandamentos” da Bíblia Sagrada.

Sistemas dinâmicos, por sua vez, são sistemas normativos em que a validade de cada norma é aferida conforme a cadeia de competência dos órgãos que proferiram a decisão, e não do conteúdo lógico das normas:

O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. (...) A norma que constitui o ponto de partida da questão não vale por força de seu conteúdo, ela não pode ser deduzida da norma pressuposta através de uma operação lógica.

(KELSEN, 2003, p. 219)

O direito seria um exemplo típico de sistema dinâmico. Com efeito, a validade de uma norma não decorre da compatibilidade de seu conteúdo com as normas superiores, pois somente a autoridade competente (por exemplo, o juiz de 1ª instância ou o tribunal constitucional) pode dizer se aquela norma é ou não compatível com as normas superiores. Se eu entendo que o conteúdo de certa lei é logicamente incompatível com a Constituição, mas o Supremo Tribunal Federal entende que ela é compatível, a lei será válida.

Ora, se o objeto de hermenêutica são conteúdos normativos essencialmente plurívocos, se o legislador, porque age por vontade e por razão, sempre abre múltiplas possibilidades de sentido para os conteúdos que estabelece, então à ciência jurídica cabe descrever esse fenômeno em seus devidos limites. Isto é, apenas mostrar a plurivocidade. Querer, por artifícios ditos metódicos, ir além dessa demonstração, tentar descobrir uma univocidade que não existe, é falsear o resultado e ultrapassar as fronteiras da ciência.

(...)

Com isso, porém, Kelsen frustra um dos objetivos fundamentais do saber dogmático, desde que ele foi configurado como um conhecimento racional do direito. Ainda que lhe atribuamos um caráter de tecnologia, de saber tecnológico, sua produção teórica fica sem fundamento, aparecendo como mero arbítrio. (...) Enfrentar essa questão constituiu o que chamaríamos, então, de o desafio kelseniano.

(FERRAZ JR., 2017, pp. 218 e 219. Destaques no original.)

Em suma, Kelsen entende que é impossível escolher, por meio de critérios estritamente jurídicos, qual dentre as diversas interpretações deve ser adotada. Ao jurista cabe, no máximo, descrever essa impossibilidade, jamais dizer qual decisão deve ser tomada em cada caso. Kelsen se referia especificamente ao “juiz” em sentido amplo, na condição de intérprete autêntico da norma, mas essas observações também se aplicam ao intérprete doutrinário: podemos construir diversas proposições sobre as normas e aplicar a análise lógica sobre elas, mas as normas em si mesmas não possuem sentidos determináveis logicamente.

Diversos estudos posteriores procuram abordar esse âmbito supostamente “ajurídico” da decidibilidade, isto é, de qual decisão (ou interpretação) deve ser adotada, e fornecer subsídios para, afinal, decidir qual interpretação ou rejeitar. Parece-nos que o Tratado da Argumentação, de Perelman e Olbrechts-Tyteca, dialoga diretamente com o desafio kelseniano, pois esses autores criticam o uso da argumentação matemática (única que pode pretender convencer o “auditório universal”) como único critério de racionalidade. Buscam, assim, trabalhar o que Aristóteles chamava de retórica, a argumentação baseada não no necessário, e sim no verossímil: “O raciocínio dialético é considerado paralelo ao raciocínio analítico, mas trata do verossímil em vez de tratar de proposições necessárias” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2020, p. 5). Leoanrd Schmitz complementa:

O direito é uma prática eminentemente argumentativa, onde (sic) – e essa é a premissa básica da retórica – não existem verdades ou inverdades absolutas. O processo argumentativo depende da existência de um orador e de um auditório, e um argumento pode ter adesão desse auditório, ou seja, ele pode dar-se por convencido do argumento, sem que haja condições materiais de comprovação da sua “veracidade”.

SCHMITZ, 2015, p. 116

Independentemente da controvérsia a respeito das concepções de Kelsen e Perelman & Olbrechts-Tyteca, ela é certamente aplicável para o nosso caso. Nossa pesquisa mostrou que a falta do estabelecimento de um termo inicial para a prescrição da LAC não tem qualquer solução objetiva, demonstrável “matematicamente”; sempre é necessário recorrer a algum outro critério que, em última análise, é persuasivo, e não coercivo.

Conscientes disso, preferimos explicitar os elementos persuasivos pelos quais entendemos capazes de tornar nossa solução da “ciência institucional” como a mais convincente:

  • Objetividade: condicionamos o termo inicial da prescrição da LAC à ciência de qualquer servidor público. A condição de servidor público é objetivamente aferível, assim como a comunicação que ele fizer a respeito do ilícito.

  • Coerência: A rejeição do fato notório como critério de ciência é coerente com a ideia de objetividade adotada acima.

  • Respeito à especificidade: mostramos como a prescrição da LAC tem elementos diferentes da prescrição disciplinar; com efeito, a LAC tem um sistema de polícia, enquanto a prescrição da Lei nº 8.112/1990 tem um sistema hierárquico disciplinar. Assim, rejeitamos a utilização analógica de que a ciência do ilícito deva necessariamente se dar por uma “autoridade” administrativa.

  • Justiça (lato sensu): o critério nos parece balanceado tanto para o administrado como para a Administração: condicionar o termo inicial da prescrição à ciência da autoridade especificamente competente para instaurar processo prorroga-o demasiadamente. Por outro lado, condicionar o transcurso da prescrição à ciência de pelo menos um servidor público evita que atos ilícitos prescrevam sem que a Administração pública tivesse tido sequer a possibilidade abstrata de apurá-lo.


5. CONCLUSÃO

Concluímos então que não há uma solução unívoca para a pergunta “quem deve tomar ciência da infração da LAC para que o prazo de prescrição deva ser iniciado?” No entanto, concluímos também que isso não deve nos impedir de procurar construir respostas e procurar persuadir nossos pares à sua adesão. Nesse sentido, propomos a solução da ciência institucional de qualquer servidor público – “institucional” porque se deve dar por canais oficiais, sem considerar a ciência do fato que o servidor público tomou como cidadão comum nem a suposta notoriedade do fato. Esperamos que, diante dos atributos de objetividade, justiça, atenção à especificidade e coerência dessa solução, sejamos capazes de persuadir, e não forçar, os leitores a aceitar nossa solução.


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Abstract: This work proposes a solution to the lack of definition of the starting date of the deadline for article 25 of Law no. 12.846/2013’s statute of limitations referring to non-continuos illicit acts. We suggest that said starting date should be the date when any civil servant officially takes note of said illicit act.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TANAKA, Michel Cunha. Identificação do termo inicial da prescrição da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7304, 1 jul. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104898. Acesso em: 18 maio 2024.