Resumo: Este trabalho apresenta uma solução para a indefinição de termo inicial do prazo da prescrição estabelecido no art. 25 da Lei nº 12.846/2013 para o caso de infrações instantâneas. Sugerimos que referido prazo inicia-se com a ciência oficial da respectiva infração por parte de qualquer servidor público.
Palavras-chave: direito administrativo. Direito administrativo sancionador. Lei Anticorrupção. Lei nº 12.846/2013. Prescrição. Termo inicial da prescrição. Ciência da autoridade. Ciência do fato. Identificação de quem tem tal ciência.
INTRODUÇÃO. BREVE DESCRIÇÃO DO PROBLEMA E EXPOSIÇÃO DA METODOLOGIA
Este trabalho visa estabelecer um marco inicial para a contagem do prazo de prescrição da Lei nº 12.846/2013 (doravante “LAC”, ou “Lei Anticorrupção”). Seu art. 25 estabelece que “Prescrevem em 5 (cinco) anos as infrações previstas nesta Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.”; não está definido nem no próprio art. 25, nem em qualquer outro ponto da LAC quem deve tomar ciência da infração para que o prazo se inicie.
A falta de uma definição para o termo inicial da prescrição é um problema evidente. Os operadores do direito que tratam com o assunto ficam sem segurança jurídica, pois não se sabe se o prazo prescricional de certo ato lesivo já se iniciou, se ainda não se iniciou ou mesmo se já está esgotado. A propósito, em nosso entender, a doutrina sobre a LAC ainda não respondeu satisfatoriamente à questão do prazo inicial da prescrição. Por isso, quando alguma norma estabelece um prazo, ela normalmente cuida de estabelecer claramente seu termo inicial.
A falta de um termo inicial do próprio prazo apresenta um problema especialmente agudo de hermenêutica, pois o comando legal está intrinsecamente incompleto. Não se trata de o intérprete considerar que “para o caso X ou Y, a LAC não apresenta solução”: o próprio esquema lógico-abstrato do comando legal está incompleto. Assim, discutiremos as limitações das técnicas hermenêuticas para mostrar que a adoção de qualquer interpretação específica implica, necessariamente, a tomada de uma decisão por motivos estranhos ao direito. A questão da fundamentação de decisões e interpretações por motivos que não estritamente técnico-jurídicos é antiga e intensa, de modo que nos limitaremos a expor a controvérsia nos limites do que pode ser aproveitado para o presente trabalho.
Curiosamente, a LAC não é a primeira lei importante a ter cometido este mesmo deslize de não indicar o termo inicial de seu prazo prescricional: a Lei nº 8.112/1990, o estatuto dos servidores públicos federais, tem a mesma falha, pois o § 1º de seu art. 142 estabelece que o “prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido.” Isso levou a que o referido art. 142 recebesse certo debate sobre qual sujeito ou autoridade administrativa deve tomar conhecimento do tal fato.
Como a Lei nº 8.112/1990 precede a LAC em quase 20 anos, analisaremos o debate doutrinário já estabelecido em relação ao prazo prescricional disciplinar para verificar se podemos aproveitar diretamente alguma solução. No entanto, como mostraremos no trabalho, entendemos que as soluções propostas para o termo inicial da prescrição da Lei nº 8.112/1990 não podem ser aproveitadas para a LAC, pois as soluções para a Lei nº 8.112/1990 baseiam-se na hierarquia administrativa.
Ao final, apresentaremos nossa escolha para um termo inicial para o prazo prescricional da LAC com base em motivos, a qual acreditamos ser a melhor possível diante das limitações do texto legal e das questões metainterpretativas. Pretendemos que nossa solução obtenha, para usar uma expressão de Perelman e Olbrechts-Tyteca, a “adesão dos espíritos” por sua força persuasiva, pois entendemos não haver solução objetivamente correta ou estritamente técnico-jurídica para o problema.
Faremos uma exposição do levantamento bibliográfico que realizamos sobre o tema e, a seguir, apresentaremos nossa crítica sobre ele. Assim, os métodos utilizados são o exame de textos doutrinários sobre o problema (não localizamos jurisprudência) e a aplicação da hermenêutica para buscar uma solução.
1. LINHAS GERAIS SOBRE PRESCRIÇÃO. DESCRIÇÃO DO PROBLEMA: A FALTA DE DEFINIÇÃO DE QUEM DEVE TOMAR CIÊNCIA DA INFRAÇÃO NA PRESCRIÇÃO DA LAC
A prescrição é um dos mais importantes conceitos do Direito. Com base em Amorim Filho (1997, pp. 738 e 739 et passim), podemos conceituar a prescrição no Direito Civil como a extinção, em razão do decurso do tempo, da pretensão referente a um direito a uma prestação, o qual se pleiteia por ação condenatória. Distingue-se, assim, da decadência, a qual extingue o direito à criação, modificação ou extinção de certo estado jurídico (direito potestativo ou formativo), também em razão do decurso de certo prazo. Fazemos aqui uma pequena ressalva: dissemos “com base em” porque, apesar de o texto de Amorim Filho ser referência quase obrigatória na distinção entre prescrição e decadência no Brasil e de seu objetivo expresso de estabelecer “critérios científicos”, o autor não chega a conceituá-las. O máximo que ele faz é dizer que as extinções da ação e do direito são meros “efeitos”, não servindo para conceituar os institutos (p. 727), que somente direitos a uma prestação conduzem à prescrição (p. 736) e que “só na classe dos potestativos é possível cogitar-se da extinção de um direito em virtude do seu não-exercício” (p. 738).
No Direito Administrativo sancionador, também se fala em “prescrição”. No entanto, o conceito é um pouco diferente, de modo que quisemos deixar claro de qual “prescrição” estamos tratando. Di Pietro oferece estes conceitos para “prescrição administrativa”:
Em diferentes sentidos costuma-se falar em prescrição administrativa: ela designa, de um lado, a perda do prazo para recorrer de decisão administrativa; de outro, significa a perda do prazo para aplicação de penalidades administrativas.
DI PIETRO, 2018, p. 926.
Para fins deste trabalho, utilizaremos este sentido administrativo de prescrição, isto é, a perda, em razão do decurso de certo prazo, da possibilidade de a Administração aplicar penalidades. Tal conceito é o mesmo para as diversas penalidades que a Administração pode aplicar, seja contra particulares, seja contra seus próprios agentes públicos, isto é, tanto no exercício do poder de polícia como no exercício do poder disciplinar; daí falarmos em “Direito Administrativo Sancionador”.
De todo modo, este conceito tem algo em comum com as diversas outras definições de prescrição, independentemente do ramo do Direito: a finalidade de obter segurança jurídica, pois a perene possibilidade do exercício de uma ação ou de uma pretensão punitiva gera inquietação social.
No entanto, o art. 25 da LAC, por atecnia legislativa, acabou criando um prazo prescricional que gera insegurança jurídica por não estabelecer seu termo inicial: “Art. 25. Prescrevem em 5 (cinco) anos as infrações previstas nesta Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.” (destaque nosso)
Inicialmente, chamamos a atenção a que existem dois termos iniciais diferentes conforme a infração seja ou não “permanente ou continuada”. Caso a infração se considere “permanente ou continuada”, o termo inicial do prazo prescricional não apresentará problemas, pois será simplesmente a data em que tal infração tiver cessado. A própria detecção da infração permanente invariavelmente leva à sua cessação, ainda que em período diferente de sua identificação (por exemplo, pela necessidade de coleta adicional de documentos, por eventual aplicação da técnica da ação controlada, etc.). Pode até ser difícil determinar a data exata da cessação da infração na prática, mas isso é uma questão probatória e não diz respeito à essência do instituto. Portanto, o termo inicial da prescrição não apresenta problemas estruturais na hipótese de infração permanente ou continuada
Contudo, a outra situação (isto é, infração que não seja permanente nem continuada) apresenta um problema, pois o texto legal diz simplesmente “ciência da infração”, sem dizer quem deve tomar essa ciência; é evidentemente um um texto incompleto, pois estabelece apenas o prazo de prescrição, não seu termo inicial. Sabemos que “texto de lei” e “norma jurídica” não se confundem: “A norma jurídica é a significação que obtemos a partir da leitura dos textos do direito positivo” (CARVALHO, 2017, p. 40). No entanto, não há uma resposta imediata em qualquer outro texto de lei sobre qual seria esse termo inicial, seja na própria LAC, seja em outras leis da temática, tais como a Lei nº 9.783/1999 (prescrição do poder de polícia da Administração). Utilizando-se o esquema do mesmo autor, temos que a própria estrutura formal da norma jurídica está defeituosa:
Figura 1 – Esquema do processo de formalização e desformalização da linguagem jurídica
Formalização |
L4 = Linguagem da Lógica Jurídica |
Unívoca |
Desformalização |
---|---|---|---|
L3 = Linguagem da Teoria Geral do Direito |
Científica |
||
L2 = Linguagem da Ciência do Direito |
Científica |
||
L1 = Linguagem do Direito Positivo |
Técnica |
Fonte: Reprodução manual do esquema apresentado por CARVALHO, 2017, p. 40.
Isto é, poderíamos expressar que o nível L4 do art. 25 da LAC tem a seguinte estrutura: “Se ... => então, o prazo se iniciará.” As reticências são a hipótese abstrata que faria o prazo se iniciar, mas a linguagem inferior L1 não a determina e nem nos permite determiná-la.
Trata-se de evidente erro dos legisladores, o qual cabe aos juristas corrigir. Como diz Paulo de Barros Carvalho, é da natureza do processo democrático que os legisladores tenham as mais variadas formações profissionais, o que, a despeito de comissões especializadas de constitucionalidade e redação, não impede que eventualmente haja erros legislativos:
Os membros das Casas Legislativas, em países que se inclinam por um sistema democrático de governo, representam os vários segmentos da sociedade. Alguns são médicos, outros bancários, industriais, agricultores, engenheiros, advogados, dentistas, comerciantes, operários, o que confere um forte caráter de heterogeneidade, peculiar aos regimes que se queiram representativos. (...) Ponderações desse jaez nos permitem compreender o porquê dos erros, impropriedades, atecnias, deficiências e ambiguidades que os textos legais cursivamente apresentam. Não é, de forma alguma, o resultado de um trabalho sistematizado cientificamente. (...) Ainda que as Assembleias nomeiem comissões encarregadas de cuidar dos aspectos formais e jurídico-constitucionais dos diversos estatutos, prevalece a formação extremamente heterogênea que as caracteriza.
P. CARVALHO: 2017, 38
Ressaltamos que, tal como Carvalho, não vemos nisso um problema. É saudável que os legisladores provenham dos mais variados segmentos da sociedade, pois é um indicativo de que existe uma efetiva participação da sociedade na produção legislativa: “E podemos aduzir que tanto mais autêntica será a representatividade do Parlamento quanto maior for a presença, na composição de seus quadros, dos inúmeros setores da comunidade social.” (idem)
Os legisladores têm um corpo técnico qualificado para auxiliá-los no lado técnico da lei, mas mesmo isso nem sempre é suficiente para evitar problemas de atecnia legislativa como aquele tratado neste ensaio. Assim, no nosso papel de juristas, procuraremos corrigir a falha do art. 25 da LAC e estabelecer a norma jurídica completa correspondente ao prazo prescricional dessa lei. Nos termos do próprio Carvalho, procuraremos superar a dificuldade do nível “inferior” de linguagem e estabelecer qual a estrutura lógico-abstrata da norma jurídica em comento:
Para isso, analisaremos primeiro as soluções propostas pela doutrina especializada. A seguir, examinaremos as técnicas clássicas da hermenêutica; faremos uma apreciação crítica dessas técnicas; e finalmente procuraremos construir uma solução que consideramos a melhor.
2. TRATAMENTO DO PROBLEMA POR MEIO DA HERMENÊUTICA.
2.1. As quatro técnicas clássicas
Vamos primeiro aplicar as técnicas clássicas da hermenêutica: “Deixando de lado as possíveis variações terminológicas, os cânones de interpretação sistematizados por Savigny são: interpretação gramatical, lógica, histórica e sistemática” (SILVA, 2009, p. 116, nota de rodapé nº 1). Estamos conscientes das limitações de tais técnicas, mas elas serão úteis para uma exploração inicial do problema. Utilizando a terminologia de Theodor Viehweg e adotada por Ferraz Jr., tomaremos primeiro uma postura dogmática diante dessas técnicas, isto é, vamos considerar que elas são um dado inquestionável e abordar o problema por meio delas (FERRAZ JR., 2018, p. 18). Depois, mudaremos para uma abordagem zetética, enfatizando o aspecto pergunta da investigação (idem, de modo que exporemos as limitações e os problemas dessas técnicas, o que, por sua vez, nos levará à utilização de outras.
Comecemos pela primeira das quatro técnicas clássicas listadas acima, a gramatical. Ferraz Jr. a conceitua deste modo:
Quando se enfrenta uma questão léxica, a doutrina costuma falar em interpretação gramatical. Parte-se do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para obter-se o correto significado da norma. (...) Ao valer-se da língua natural, o legislador está sujeito a equivocidades que, por não existirem nessas línguas regras de rigor (como na ciência), produzem perplexidades.
(2018, p. 241; destaque em itálico no original).
No entanto, sua aplicação ao caso limita-se a apontar o próprio escopo do trabalho, isto é, o fato de que, na estrutura frasal do art. 25 da LAC, “ciência” é um substantivo que precisa ser complementado por um sujeito, mas tal sujeito não consta na frase. Isto é, tal como Ferraz Jr., explica, a interpretação gramatical serve mais para identificar problemas do que solucioná-los: “no fundo, pois, a chamada interpretação gramatical tem na análise léxica apenas um instrumento para mostrar e demonstrar o problema, naõ para resolvê-lo.” (FERRAZ JR., 2018, p. 241)
Passemos então à interpretação lógica, a qual, segundo o mesmo autor, é “um instrumento técnico, inicialmente a serviço da identificação de inconsistências. Parte-se do pressuposto de que a conexão de uma expressão normativa com as demais do contexto é importante para a obtenção do significado correto.” (idem) Entretanto, mais novamente, sua aplicação não leva a qualquer progresso, pois o comando do art. 25 não contém contradições lógicas internas. Sua única impropriedade lógica é o próprio fato de que seu comando está incompleto em razão da ausência de um sujeito para o termo "ciência”. Mas já tínhamos identificado isso por meio da interpretação gramatical.
Vamos então à interpretação sistemática:
A pressuposição hermenêutica é a da unidade do sistema jurídico do ordenamento. (...) Portanto, nunca devemos isolar o preceito nem em seu contexto (a lei em tela, o código penal, civil etc.) e muito menos em sua concatenação imediata (nunca leia só um artigo, leia também os parágrafos e os demais artigos).
(FERRAZ JR., pp. 244 e 245)
Assim, começamos analisando outras leis do próprio Direito Administrativo, divisão na qual a LAC se insere. Encontramos assim a Lei nº 8.112/1990, que é o estatuto dos servidores públicos civis federais e contém disposições sobre a prescrição para apurar infrações dos servidores; a Lei nº 9.873/1999, que trata da prescrição do poder de polícia da Administração Pública; e a Lei nº 9.784/1999, que trata do processo administrativo federal em geral. A tabela abaixo resume os aspectos estruturais dos prazos prescricionais de tais leis, bem como, para comparação, os da LAC:
Tabela 1 – Estrutura dos principais prazos prescricionais da Administração
Nº e ano da lei |
Prazo |
Termo inicial |
Artigo |
8.112/1990 |
180 dias a 5 anos |
Data em que o fato se tornou conhecido |
142, § 1º |
9.784/1999 |
5 anos |
Prática do ato |
54 |
9.873/1999 (infrações instantânetas) |
5 anos |
Prática do ato |
1º |
9.873/1999 (infrações permanentes) |
5 anos |
Cessação do ato |
1º |
12.846/2013 (infrações instantâneas) |
5 anos |
Ciência da infração |
25 |
12.846/2013 (infrações continuadas) |
5 anos |
Cessação do ato |
25 |
Fonte: Elaboração própria.
A tabela nos mostra que a LAC efetivou uma “mistura” das disposições das Leis nº 8.112/1990 e 9.873/1999, pois utilizou a distinção entre infrações permanentes e continuadas da segunda e o termo inicial contado da “ciência do fato” da primeira. Como o problema só existe no caso de infrações instantâneas, podemos considerar a Lei nº 8.112/1990 como uma primeira pista interpretativa.
Vamos então expandir a pesquisa sistemática para o direito penal, pois o direito administrativo ocasionalmente aproveita alguns institutos e técnicas do direito penal. Por exemplo, o critério de considerar que a infração permanente ou continuada deve ter um termo inicial diferente (em vez de utilizar o termo inicial geral) vem do Código Penal: “Art. 111 – A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr (...) III – nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência” (Código Penal). Como vimos acima, tal critério foi utilizado pelas Leis nº 9.873/1999 e 12.846/2013.
Nesse sentido, José Armando da Costa faz uma interessante contextualização sobre o critério da “ciência da infração”:
Na área do direito, são basicamente dois os critérios que marcam o dies a quo do prazo prescricional, a saber: a) o dia em que o fato se consumou; e b) a data em que o fato se tornou conhecido.
As legislações penais, de um modo geral, acatam um desses dois critérios. Alguns códigos penais, a exemplo do nosso, adotam ambos. (...)
O estatuto anterior do funcionário federal (Lei nº 1.711/52) era silente nesse tocante, havendo o antigo e extinto DASP [Departamento Administrativo do Serviço Público], para preencher tal lacuna, editado a formulação de nº 76, a qual assim estipulava: “a prescrição, nas infrações disciplinares, começa a correr do dia em que o fato se tornou conhecido”.
COSTA, 2008, pp. 301 e 302.
Com base nessa informação, busquemos o que a doutrina em direito penal diz sobre o critério da ciência da infração:
O conhecimento do fato, exigido pela lei, refere-se à autoridade pública que tenha poderes para apurar, processar ou punir o responsável pelo delito, aí se incluindo o Delegado de Polícia, o membro do Ministério Público e o órgão do Poder Judiciário.
Prevalece o entendimento de que não é necessária a ciência formal do crime (notícia do delito perante o Poder Público), bastando a de cunho presumido, relativa à notoriedade do fato.
MASSON, 2019, p. 785.
Notamos como a investigação sistemática se misturou com a histórica, pois verificamos que o problemático critério da “ciência da infração” da LAC tem um histórico que remonta a uma antiga jurisprudência administrativa, positivada na Lei nº 8.112/1990, jurisprudência que, por sua vez, inspirou-se no Código Penal.
Passemos então à interpretação histórica propriamente dita; sobre ela, Ferraz Jr. diz:
É preciso ver as condições específicas do tempo em que a norma incide, mas não podemos desconhecer as condições em que ocorreu sua gênese.
Para o levantamento das condições históricas, recomenda-se ao intérprete o recurso aos precedentes normativos, isto é, de normas que vigoraram no passado e que antecederam à nova disciplina para, por comparação, entender os motivos condicionantes de sua gênese. (..) Essa investigação leva o intérprete também a buscar – quando existem –, nos chamados trabalhos preparatórios (...), elementos auxiliares do sentido histórico da norma. Tudo isso há de lhe fornecer a chamada occasio legis, isto é, o conjunto de circunstâncias que marcaram efetivamente a gênese da norma.
(Ferraz Jr., 2018, pp. 249 e 250)
Apesar da especificidade do problema desta monografia, achamos conveniente pesquisar o histórico mais completo da LAC, o qual se inicia com a promulgação, em 1977, da Foreign Corrupt Practices Act, mundialmente conhecida pela sigla “FCPA”, a pioneira lei americana de combate ao suborno transnacional. Mas primeiro, ater-nos-emos ao histórico “formal” da LAC, isto é, eventuais mudanças de redação ao longo de seu trâmite legislativo.
O trâmite legislativo da LAC é razoavelmente recente e bem documentado. Ele se inicia formalmente em 18/02/2010, quando o Poder Executivo encaminhou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 6.826/2010, elaborado por equipes técnicas da Controladoria-Geral da União (CGU), Advocacia-Geral da União (AGU) e Ministério da Justiça. O projeto sofreu os trâmites de praxe, mas ficou parado do fim de 2012 até meados de 2013, quando eclodiram diversas manifestações populares pelo país, as quais não tinham pauta específica, mas expressavam um descontentamento geral com as instituições políticas do país. Assim, uma das respostas do governo e dos parlamentares da época foi aproveitar que o PL nº 6.826/2010 já estava razoavelmente maduro, pois já tinha passado por diversas discussões e emendas, e transformá-lo em lei:
Um olhar superficial pode transparecer que a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que ganhou notoriedade na imprensa como Lei Anticorrupção, é apenas mais uma norma dentre outras muitas que existem no país para punir ou onerar as empresas. Ou então, que foi elaborada às pressas, em resopsta às manifestações populares que afloraram no Brasil no final do primeiro semestre de 2013.
A verdade, no entanto, passa ao largo das impressões superficiais. A lei tem por objetivo preencher lacuna histórica do nosso marco jurídico, que não dispunha, até então, de legislação específica que punisse as pessoas jurídicas – e não as pessoas físicas – por ilícitos como o suborno, por exemplo. E as manifestações, ao que parece, apenas aceleraram um processo que, por várias razões, já era inevitável.
(CAPANEMA, Renato. Inovações da Lei nº 12.846/2013, in NASCIMENTO, pp. 13 e 14.)
A página da Câmara dos Deputados na internet tem documentação bastante completa sobre as versões do PL 6.826/2010; no entanto, percebemos que, desde a redação original, ele já tinha o problema de não especificar quem deveria tomar ciência da infração para que o prazo de prescrição se iniciasse (art. 22):
Art. 22. Ressalvada a imprescritibilidade da reparação do dano, nos termos do § 5º do art. 37 da Constituição, prescrevem em dez anos as infrações previstas nesta Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.
Parágrafo único. Interrompe a prescrição qualquer ato administrativo ou judicial que tenha por objeto a apuração da infração.
Projeto de lei nº 6.826/2010 da Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=734764&filename=PL+6826/2010; último acesso em 16/07/2021.
As sucessivas emendas parlamentares ignoraram o problema, limitando-se a reduzir o prazo prescricional de 10 para 5 anos e a eliminar a referência à imprescritibilidade da pretensão de reparação dos danos – provavelmente porque se entendeu que a previsão era inteiramente redundante, já que consta expressamente no art. 37 da Constituição Federal.
Vamos então retroceder um pouco mais na história da LAC, em busca de alguma solução ou orientação. Tal lei decorre diretamente de compromisso internacional que o Brasil assumiu no âmbito da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais. Tal convenção, formulada pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), foi internalizada mediante o Decreto nº 3.678/2000.
Tal convenção trata de maneira muito genérica da prescrição. Seu artigo 6 prevê simplesmente que “qualquer regime de prescrição aplicável ao delito de corrupção de um funcionário público estrangeiro deverá permitir um período de tempo adequado para a investigação e abertura de processo sobre o delito”, disposição razoavelmente padronizada nesse tipo de tratado.
Como a Convenção da OCDE nada diz sobre o termo inicial da prescrição, expandamos nossa pesquisa para a origem mais remota da LAC, a lei americana conhecida mundialmente pela sua sigla “FCPA”, cuja sigla traduzimos livremente como “Lei contra as práticas corruptas no estrangeiro”.
Diversos fatores motivaram o FCPA, dos quais destacamos o constrangimento gerado por escândalos de empresas americanas pagando propinas a funcionários públicos de aliados geopolíticos dos Estados Unidos na Guerra Fria. Com efeito, um dos escândalos chegou a derrubar o primeiro-ministro do Japão, o mais forte aliado dos Estados Unidos na Ásia.
O FCPA responsabiliza criminalmente a pessoa jurídica por dois grandes conjuntos de infrações: (1) o pagamento de propina a funcionários públicos estrangeiros e (2) a falta de adequada contabilização de despesas no estrangeiro; cada um deles tem um regime de prescrição diferente. Segundo a especialista Julie Mendel, o FCPA não tem uma previsão específica sobre prescrição (em inglês, “statute of limitations”), de maneira que, no caso do pagamento de propinas, aplica-se a regra geral do código criminal federal dos Estados Unidos (MENDEL, 2020):
A não ser que expressamente disposto em contrário na lei, nenhuma pessoa será acusada, julgada ou punida por qualquer infração, não capital, a não ser que a acusação seja formulada em 5 anos contados da data do cometimento da infração.
18 U. S. C., § 3282(a). Tradução livre. Disponível em https://www.webce.com/news/2020/11/19/foreign-corrupt-practices-act-(fcpa)-enforcement-penalties, último acesso em 20/07/2021.
Conforme a mesma autora (idem), as infrações às disposições contábeis do FCPA prescrevem em 6 anos, contados também da data da infração, conforme o 18 U. S. C. § 3301(b) (disponível em inglês em https://www.law.cornell.edu/uscode/text/18/3301; último acesso em 20/07/2021).
Em suma, infelizmente, mesmo uma pesquisa histórica mais remota da LAC não nos trouxe resultados. A interpretação histórica só nos ofereceu pistas na medida em que se combinou com a interpretação sistemática, a qual nos revelou que condicionar o início da prescrição à ciência da respectiva infração é técnica familiar no Direito brasileiro. Retomaremos esses achados posteriormente, em tópico próprio. Por enquanto, adotaremos outras técnicas tradicionais em busca de mais pistas ou soluções.
2.2. Outras técnicas da hermenêutica.
Tratemos agora o problema por meio de outras técnicas, a começar pelas orientações do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB): “a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Principiaremos pela analogia, a qual Karl Engisch conceitua do seguinte modo:
Usualmente diz-se que a conclusão por analogia é uma conclusão do particular para o particular, ao passo que a conclusão por dedução vai do geral para o particular e a conclusão indutiva do particular para o geral. (...) E, assim, o multissignificativo conceito de semelhança torna-se o eixo da conclusão. (...) Daí a antiga concepção de que a conclusão analógica se compõe de indução e dedução. Somente quando, dos fenômenos particulares, a partir dos quais se conclui (no nosso exemplo: a regulamentação da ofensa corporal praticada com o consentimento do lesado), se abstrai um pensamento geral (no exemplo: a licitude da violação dos interesses privados exista o consentimento do lesado, é que é possível concluir (dedução) para um outro particular (a licitude da privação da liberdade quando exista o consentimento da vítima).
ENGISCH, 2001, pp. 288 a 290. Destaques no original.
No nosso caso, o “primeiro particular” é a falta de definição de termo inicial de prescrição no art. 25 da LAC, especificamente. O § 1º do art. 142 da Lei nº 8.112/1990, que estabelece que a prescrição disciplinar se inicia de quando o fato se tornou conhecido, é o “segundo particular”. A passagem de um para o outro precisa ser justificada com base numa semelhança, a qual, evidentemente, é a ausência de definição do sujeito que deve tomar ciência da infração para que o respectivo prazo prescricional se inicie.
A passagem se inicia a partir de uma indução, a qual, no nosso caso, consiste em tomar eventuais soluções para o referido § 1º do art. 142 e generalizá-las como um princípio geral do tipo “todos os prazos prescricionais sem termo inicial devem utilizar esta solução”. A dedução seria tomar este princípio geral e aplicá-lo ao art. 25 da LAC.
Como isso exige uma pesquisa razoavelmente extensa, deixaremos o tratamento da analogia para capítulo próprio, no qual exploramos todas as soluções que localizamos para a falta de termo inicial na Lei nº 8.112/1990.
Depois da analogia, o art. 4º da LINDB fala em costumes e princípios gerais do direito. Definimos costume como “as práticas reiteradas no tempo. (...) A repetição de usos e comportamentos os torna obrigatórios, na ausência de legislação” (CARNACCHIONI, 2018, p. 60). Infelizmente, os costumes nada dizem sobre o caso, pois a LAC é muito recente, de modo que não há uma praxe da aplicação de seu art. 25 que possa ser considerada “diuturna e uniforme”.
Finalmente, os princípios gerais do direito são “linhas de orientações genéricas, premissas implícitas, ou seja, verdadeiras ideias gerais qeue orientam o sistema jurídico” (idem). Contudo, eles têm “baixo grau de objetividade” (FERRAZ JR., 2018, p. 202) e não há consenso doutrinário sobre seu sentido, ou mesmo sobre uma lista de exemplos. Com efeito, Ferraz Jr. explica que eles “compõem a estrutura do sistema, não seu repertório. São regras de coesão que constituem as relações entre as normas como um todo” (idem, p. 203; destaque no original). Assim, eles pouco nos auxiliam, pois se limitam a nos orientar que o sistema jurídico deve ser coeso e que, portanto, deve haver uma solução para a falta de definição do termo inicial da prescrição da LAC. Nada dizem sobre qual seria a solução.
Assim, exploremos outras técnicas e princípios também consagrados da hermenêutica. Uma antiga controvérsia hermenêutica opõe as escolas chamadas subjetivista e objetivista. Resumidamente, a escola subjetivista propõe que o intérprete deve procurar o máximo possível colocar-se no lugar do legislador histórico, isto é, daqueles que elaboraram aquele texto de lei: “interpretar significa colocar-se em pensamento no ponto de vista do legislador e recapitular mentalmente a sua actividade” (SAVIGNY, apud ENGISCH, 2001, pp. 170 e 171). Um de seus exemplos mais famosos é o artigo 1º do Código Civil suíço de 1907, ainda que com certo temperamento:
Prescreve o art. 1º que, se nem a letra, nem o espírito de algum dos dispositivos da lei, nem o Direito Consuetudinário oferecerem a solução para um caso concreto, decida o juiz “de acordo com a regra que ele próprio estabeleceria se fôra legislador. Inspire-se na doutrina e na jurisprudência consagrados.”
MAXIMILIANO, 2020, p. 270. Destaques em itálico no original.
Notamos que, conforme o próprio Carlos Maximiliano observa, essa disposição já ameniza a figura do legislador histórico “puro” e a substitui por um legislador mais “técnico”, que deve se inspirar em doutrina e jurisprudência. Isso se relaciona com um avanço hermenêutico em relação ao legislador histórico, a saber, o legislador racional:
Trata-se de uma construção dogmática que não se confunde com o legislador normativo (o ato juridicamente competente, conforme o ordenamento) nem como legislador rea (a vontade que de fato positiva normas) É uma figura intermédia, que funciona como um terceiro metalinguístico, em face da língua normativa (LN) e da língua-realidade (LR).
FERRAZ JR., 2018, p. 234.
Como oposição à escola subjetivista, temos também uma abordagem chamada objetivista, que desconsidera o legislador e considera apenas o texto escrito da lei, em razão da evidente arbitrariedade de imaginarmos o que o legislador, ainda que racional, teria querido dizer. Afinal, o que é promulgado e publicado é o texto da lei, não as intenções dos legisladores, ainda que documentadas nos anais, e aquilo a que objetivamente todos têm acesso é o texto publicado da lei, e não conjecturas sobre motivações e intenções do legislador. Existe até um componente democratizante na concepção objetivista, pois o próprio legislador precisa submeter-se à lei:
Com o acto legislativo (...), a lei desprende-se do seu autor e adquire uma existência objectiva. (...) Este conteúdo de pensamento de de vontade imanente à lei é de futuro o único decisivo. Com efeito, só ele se constituiu e legalizou de acordo com a Constituição, ao passo que as representações e expectativas do autor da lei, que em volta dele pairam, não adquiriram carácter vinculativo algum. Ao contrário: como qualquer outro, também aquele que participou no acto legislativo fica, de agora em diante, ele próprio, sujeito à lei.
ENGISCH, 2001, p. 172.
Compreendemos as limitações das abordagens subjetivista e objetivista, mas as utilizaremos como técnica de operabilidade, numa tentativa de atribuir lógica à produção legislativa e solucionar problemas sem que se deva recorrer ao órgão legislativo toda vez que haja dúvida de interpretação ou que se perceba alguma incoerência lógica em certos dispositivos de lei. Com efeito, podemos ver ecos de ambas as abordagens nas quatro técnicas de interpretação: a gramatical e a lógica inspiram-se na escola objetiva; a histórica inspira-se diretamente na subjetiva; e a sistemática tem elementos de ambas.
No entanto, mesmo desconsiderando as referidas limitações de tais técnicas, sua aplicação tampouco nos permite solucionar o problema. A única coisa que a premissa do legislador racional faz no nosso caso é impor-nos a descoberta de uma solução para o problema, pois um legislador racional jamais admitiria prazo de prescrição definido de forma incompleta. No entanto, o “legislador racional” só nos diz que o problema deve ser resolvido, mas não como, exatamente como ocorreu com diversas das técnicas hermenêuticas vistas acima, tais como a gramatical e a léxica (vide supra). Até podemos, apesar disso, extrair certas ideias sugeridas pelo art. 25 da LAC, tais como a de que o termo inicial precisa depender de alguma ação da Administração pública, e não de particulares, pois isso está no “espírito” (isto é, sistema, ideia geral, intenção) do estabelecimento de um prazo para a atuação da Administração. No entanto, não é possível ir muito além disso.
A técnica objetivista também não soluciona o problema, pois como já tínhamos identificado o problema como uma falta de definição de prazo na própria lei, atermo-nos à própria lei pouco acrescenta.
Como vimos, todas as técnicas de interpretação vistas aqui conseguem, no máximo, expor o problema e sugerir algumas soluções, mas não permitem decidir por uma das soluções. Essa decisão é um ato inevitavelmente extrajurídico, pois não há como extrair uma solução estritamente jurídica para o nosso problema. Foge ao escopo do trabalho adentrar a fundo nessa controvérsia, mas trataremos dela brevemente (capítulo 4, infra), pois proporemos abertamente a que a solução oferecida desta monografia deve ser adotada por ser persuasiva, e não objetivamente necessária.