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Identificação do termo inicial da prescrição da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção)

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01/07/2023 às 16:51
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3. EXPLORAÇÃO DOS TRATAMENTOS E SOLUÇÕES JÁ EXISTENTES SOBRE O TEMA

3.1. Soluções da doutrina em livros

Vamos primeiro procurar soluções na doutrina especializada, isto é, textos que tratam especificamente da LAC. Não são muitos, pois o problema do termo inicial passou relativamente despercebido; aliás, é exatamente essa relativa falta de tratamento que nos motivou a escrever este trabalho. Encontramos apenas dois autores que tratam satisfatoriamente do problema (Motta et al. e Ribeiro). Mas, por exemplo, o livro Responsabilidade Sancionadora da Pessoa Jurídica, de Gustavo Costa Ferreira, nada diz sobre prescrição, muito menos sore seu termo inicial: embora a prescrição seja pressuposto negativo de responsabilização da pessoa jurídica, o autor optou por restringir seu escopo a aspectos ontológicos.

Dentre os livros que abordam o termo inicial da prescrição ao menos tangencialmente, comecemos pelos autores Gilson Dipp e Manoel Volkmer de Castilho. Em seus comentários à LAC, tratam do termo inicial de sua prescrição nos seguintes termos:

A lei manteve a regra usual da prescrição quinquenária para a administração também aqui erigida como marco extintivo das infrações contado da data da ciência ou da cessação dela conforme tenha sido instantânea ou continuada. (...) De outra parte, para a aferição da prescrição antes da instauração do processo administrativo ou judicial conta-se ela da data da infração, mas a data da infração nem sempre é identificada ou identificável. Por essa razão a lei, de modo oportuno, fez iniciar o prazo de prescrição a partir da ciência da infração pela autoridade quando a infração é instantânea. Essa é uma medida unilateral e possível, embora desfavorável ao infrator, pois permite à autoridade alegar conhecimento em data que lhe convier. À pessoa jurídica acusada nesse caso caberá demonstrar que a autoridade já tinha ciência dos fatos com inversão do ônus que usualmente é da autora, assim em juízo quanto perante a administração.

(DIPP e CASTILHO, 2016, pp. 111 e 112. Grifos em itálico no original; grifos em negrito nossos.

Notamos que os autores não problematizam o termo inicial do prazo; simplesmente afirmam que a “ciência” da infração deve se dar pela “autoridade”. Eles até chegam a perceber os problemas que essa escolha pode causar, mas, claramente, nem mesmo percebem que eles fizeram uma escolha interpretativa. A escolha dos autores é problemática por dois motivos: 1) não é fundamentada; 2) não especifica qual autoridade deve tomar ciência. Será especificamente uma autoridade com competência para determinar a apuração dos fatos? Ou qualquer autoridade pública? Ou somente autoridades administrativas de certa gradação? Por tudo isso, não podemos aceitar a solução proposta por esses autores.

A análise de Santos, Bertoncini e Costódio Filho sobre o termo inicial da prescrição é igualmente superficial:

O termo inicial da contagem desse prazo prescricional será o dia em que a Administração Pública tiver tomado ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que a infração tiver cessado.

(SANTOS, BERTONCINI e COSTÓDIO FILHO, 2015, p. 329).

Esses autores, tal como Dipp e Castilho, limitam-se a indicar que é a “Administração Pública” quem deve tomar ciência da infração para que o prazo prescricional se inicie, sem, no entanto, indicar quem da Administração deve fazê-lo. Pelos mesmos motivos expostos acima, não podemos aceitar o posicionamento de Santos, Bertoncini e Costódio Filho.

Dal Pozzo et al. tampouco tratam do tema; seus comentários limitam-se a afirmar que a ciência da infração deve se dar pelo “Poder Público”, e não vão muito além de reescrever o art. 25 com suas próprias palavras e fazer uma observação geral sobre a aplicabilidade de “normas gerais” sobre o tema:

Os atos lesivos à Administração Pública previstos na Lei nº 12.846/13 terão sua prescrição em cinco anos, que são contados a partir da ciência da infração pelo Poder Público e, no caso de se cuidar de infração continuada, no dia em que cessou – mas o prazo prescricional será interrompido com a instauração do processo administrativo ou judicial: [transcrição do artigo 25 da LAC]

A despeito desta disposição específica, entende-se que, no mais, aplicam-se à prescrição disciplinada nesta norma as demais regras gerais acerca do tema.

(DAL POZZO et al.: 2015, 116)

“Poder Público” é uma expressão um pouco mais vaga do que Administração, de modo que, com mais razão ainda, não podemos aceitar este entendimento, com base nos mesmos argumentos que expusemos acima.

Nascimento é um dos raros autores que perceberam a existência do problema. No entanto, o autor nos frustra porque se limita a apresentar o problema sucintamente, e, logo depois, passa a escrever generalidades sobre direitos fundamentais e a finalidade da prescrição, utilizando-se figuras de linguagem exageradas como “suplício interminável”:

Questão ainda tormentosa na práxis administrativa é a (im)precisão da contagem do tempo da prescrição, exatamente pelas elaboradas criações a respeito da data da ciência da infração ou do dia de sua cessação, em casos infracionais permanentes ou continuados. Aqui não há aspecto de pequena monta, quando se tem em vista a preocupação de se observar o justo processo, em cuja noção se insere a determinaçaõ do termo inicial da persecução. Veja-se que, ainda sob o pálio de um mesmo artigo de norma (artigo 25), há duas formas de tempo no processo administrativo: (a) o tempo da ciência por parte da [A]dministração pública (tempo do ato de conhecer); e (b) o tempo da cessação da infração (tempo do fato).

A prescrição do poder de punir – como a prescrição em geral – atende à necessidade da pacificação das relações sociais e da segurança das relações jurídicas em particular, evitando que determinadas situações de conflito efetivo ou potencial se prolonguem indefinidamente no tempo, deixando a parte a ela submissa, em estado de contínua inquietação, como a famosa espada de Dâmocles pendendo sobre a cabeça, criando suplício interminável. É preciso enfatizar que o instituto da prescrição não deverá ser percebido como de menor importância, mas sempre como fator impossibilitante da sanção, a operar em favor do imputado, porque se trata de algo estabelecido com a finalidade de paralisar a atividade punitiva e pacificar as relações sociais. Não se compadece com esse entendimento superior a alegação tantas vezes repetida de que a prescrição favorece a impunidade ou estimula a prática de novos ilícitos.

Após esse importante tema do Direito Administrativo e Constitucional, a Lei Anticorrupção migra para a sua conclusão, destacando a representação da pessoa jurídica (artigo 26). (...)

NASCIMENTO, Mellilo Dinis do. O Controle da Corrupção no Brasil, p. 110, in NASCIMENTO (org.), 2014. Grifamos.

Ou seja, diferentemente dos outros casos, aqui nem mesmo há propriamente um entendimento do autor sobre qual seria o termo inicial. O resultado é o mesmo – continuamos em dúvida sobre o tema.

Por fim, vamos agora aos únicos autores que abordam o tempo satisfatoriamente que encontramos. Comecemos pelo artigo de Fabrício Motta e Spiridon Anyfantis:

Ao utilizar o termo “ciência da infração”, o legislador cria alguma complexidade para a exata fixação do dies a quo da prescrição. Neste caso, parece ser a interpretação mais adequada da exata intenção do legislador aquela que considera não a ciência do fato diretamente pela autoridade competente para a instauração do procedimento investigatório, mas o conhecimento pelo órgão responsável pelas providências persecutórias, inclusive o Ministério Público. Esta ciência inequívoca pode se manifestar por documentos como termos de recebimento de representação ou, apenas, sua protocolização no órgão administrativo próprio.

MOTTA, Fabrício, e ANYFANTIS, Spiridon Nicofotis. Comentários ao art. 25, in DI PIETRO e MARRARA, 2017, pp. 285 e 286.

A expressão “órgão responsável pelas providências persecutórias” gera alguma dúvida, ainda mais pelo uso do artigo definido “as” qualificando “providências”: que providências persecutórias são essas? Persecutórias do quê? De que tipo de órgão estamos falando? Sabemos apenas que deve incluir o Ministério Público. No entanto, parece-nos que os autores quiseram dizer “qualquer autoridade com poder decisório”, por dois motivos: (1) conforme mostraremos a seguir, ambos seguem muito de perto os entendimentos de Ribeiro, embora não o citem; e (2) o parágrafo seguinte defende que a autoridade que deve tomar conhecimento não precisa ser aquela competente especificamente para a instauração de procedimento investigatório:

Não é imprescindível que a autoridade a conhecer em primeiro momento da infração seja a competente para instauração do procedimento. Deve, porém, ter mínimos poderes decisórios ou, ao menos, atribuições legais para encaminhar ao conhecimento da autoridade competente os fatos, para que esta possa fazer a apreciação adequada e decidir pela instauração de processo administrativo.

Idem, p. 286

Em suma, eles defendem que qualquer autoridade competente com “mínimos poderes decisórios” que tome “ciência da infração” provocará o início do prazo prescricional. Não basta que qualquer servidor público tome ciência do fato, apesar do dever legal de comunicação às autoridades superiores (e. g., inciso VI do art. 116 da Lei nº 8.112/1990); é necessário que a ciência se dê por alguma “autoridade”.

Os autores não explicam por que rejeitam a possibilidade de a prescrição se iniciar por ciência de dqualquer servidor público; simplesmente dizem que “deve... ter mínimos poderes decisórios”, como se fosse um fato auto-evidente. Felizmente, Ribeiro desenvolve o ponto, apesar de dele discordar:

Uma primeira opção seria considerar qualquer agente público que tivesse ciência da ocorrência do ilícito no exercício da sua função. Tal opção, entrementes, pelo seu caráter altamente difuso, afrontaria, de igual maneira, o fundamento maior da imposição do prazo prescricional, a segurança jurídica, devendo a definição da autoridade competente justificar a contagem de a prescrição se balizar em critérios mais precisos.

RIBEIRO, 2017, p. 278.

Discordamos do entendimento de Ribeiro, por motivos que desenvolveremos posteriormente; primeiro, terminemos de expor o entendimento de Ribeiro sobre o assunto. Esse autor tem o tratamento mais extenso sobre o tema, pois descreve (e eventualmente refuta) diversas possibilidades para o termo inicial da prescrição, utilizando-se de doutrina, jurisprudência e argumentação própria para fundamentar sua posição. É também o único autor que não considera que a Administração Pública deva automaticamente ser considerada o sujeito a que “ciência da infração” se refere:

Uma primeira questão a ser dirimida diz respeito à definição do sujeito a que se requer o conhecimento dos fatos, para que seja dado início ao prazo prescricional.

Uma vez que os efeitos da consumação da prescrição recairão sobre a prerrogativa que tem a Administração Pública de impor sanção administrativa a infratores, será ela o sujeito que deverá tomar ciência da ocorrência do ilícito.

RIBEIRO, 2017, p. 278.

Mais adiante, defende também a existência de uma ciência “presumida” pela Administração pública em razão de notícias amplamente divulgadas:

Outra situação que fará presumir a ciência pela Administração Pública da ocorrência do ato ilícito ocorre quando a notícia das correspondentes irregularidades for divulgada em veículos de imprensa de grande circulação, a exemplo de jornais e noticiários televisivos. Nesses casos, pela exata configuração de fato notório, presume-se a ciência por todos, inclusive pelas autoridades administrativas competentes

RIBEIRO, 2017, p. 279.

Curiosamente, Motta e Anyfantis defendem exatamente o mesmo entendimento sobre ciência presumida:

Mostra a doutrina que, em período de fluxo incessante de informações como a atual, notícias publicadas em caráter ostensivo pela imprensa ou portais de internet possuem verdadeiro potencial para serem reconhecidas como fatos notórios, não sendo razoável presumir-se que tais possam ser abstraídas do conhecimento da autoridade administrativa para instauração de processo administrativo de responsabilização. Nestas hipóteses, havendo verssomilhança e identificação clara e objetiva do fato, a data da publicação deve ser fixada como termo inicial da prescrição, afinal, em se tratando de norma de ordem pública, não parece atender ao princípio da legalidade, moralidade ou, ainda, impessoalidade, deixar à discrição da autoridade a escolha do melhor momento para se considerar informada acerca da existência de fato ilícito, o qual, a esta altura, já deveria ser considerado notório.

(MOTTA & ANYFANTIS, op. cit., , p. 286)

Encontramos entendimento análogo no direito administrativo disciplinar (“Isso não impede, por conseguinte, que o prazo da prescrição disiplinar tenha início a partir dessa ciência (fato notório)”; COSTA, 2008, p. 305) e penal (MASSON, 2019, p. 785; vide trecho citado no item 3.1, supra).

3.2. Soluções da doutrina em manuais e artigos

Pesquisamos soluções sobre o tema também em artigos e manuais, no entanto, encontramos ainda menos material. Localizamos dois artigos que tratam especificamente do termo inicial, bem como uma solução sugerida pelo Manual de Responsabilização de Pessoas Jurídicas da CGU. Vejamos primeiro a solução proposta pelo manual da CGU:

Existe amplo debate doutrinário sobre quem é o sujeito que deve tomar ciência da infração e ainda não existe uma posição unânime, ou mesmo razoavelmente pacífica, sobre o tema. Portanto, recomendamos, por cautela, que se utilize o critério de que qualquer agente público que tome ciência institucional de infração da Lei nº 12.846/2013 provoca o início do respectivo prazo prescricional. O fundamento desta posição está em que, apesar das diversas e complexas divisões internas da Administração pública, ela se apresenta como uma só para o cidadão, pois a Administração nada mais é do que a corporificação do Estado. Portanto, entendemos que, se um agente da Administração pública toma ciência de uma infração, ainda que ele não tenha competência para apurá-la, a informação da infração já chegou a um agente estatal e, portanto, já chegou ao Estado. Se o agente em questão não tiver competência para apuração, incumbe-lhe, por dever funcional, encaminhar para a autoridade competente.

CGU, 2020, pp. 122 e 123

O mesmo manual também qualifica a “ciência” como devendo ser “institucional”, definida nestes termos:

Destacamos também que essa ciência deve ser institucional, ou seja, informações veiculadas em meios jornalísticos ou redes sociais não contam como ciência para a Administração pública. Se um agente público toma ciência de uma infração ao ler um jornal ou assistindo a uma reportagem, ele faz isso como um cidadão qualquer – isto é, ele lê jornal como “José das Couves”, e não como “agente administrativo do órgão X”. Somente quando ele encaminha o caso para apuração é que podemos falar que a Administração, como tal, tomou ciência. Um exemplo disso seria o seguinte: ao chegar à repartição, o servidor José das Couves encaminha uma mensagem para a ouvidoria de seu órgão dizendo, “li no jornal Y uma reportagem sobre suposto esquema em que empresas pagam propinas a servidores do nosso órgão; por favor, solicito providências.”

CGU, 2020, p. 123.

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Como mostraremos a seguir, esse é exatamente o entendimento que propomos na conclusão deste trabalho. Assim, fundamentaremos a aceitação desse entendimento em tópico próprio, infra.

Vejamos agora a solução do artigo de Leonardo Galvão, que entende que o prazo prescricional é inconstitucional por violar a segurança jurídica:

Nessa toada, é inarredável a inconstitucionalidade que permeia o preceptivo legal em debate, ante o confronto não apenas com o teor da norma lógica e da norma constitucional, mas também das legislações infraconstitucionais afetas ao tema, principalmente com o texto constitucional que eleva o princípio da segurança jurídica à [sic] cláusula pétrea.

GALVÃO, 2015.

O art. 25 da LAC violaria a segurança jurídica por dois motivos, embora somente o segundo esteja claro no texto: (1) fazer a prescrição correr somente da ciência do fato prolongaria excessivamente o prazo que a Administração dispõe para punir o ilícito; e (2) o fato de a lei não ter fixado um termo inicial para o prazo gera insegurança jurídica, pois não se sabe se o prazo começou a correr ou não.

O primeiro motivo não procede, pois a escolha de termo inicial da prescrição a partir de quando o fato se torna conhecido, apesar da má técnica de não se indicar quem deve conhecer o fato, é escolha legítima do legislador. Algumas infrações são de detecção tão difícil que o legislador escolhe por somente fazer extinguir a pretensão punitiva do Estado a partir da ciência da infração, tal como ocorre nas infrações disciplinares e no crime de bigamia (inciso IV do art. 114 do Código Penal). Tanto o argumento de Galvão não procede que ele não aduz a inconstitucionalidade dessas outras previsões, apesar de citar explicitamente a prescrição das infrações disciplinares no artigo.

O segundo motivo tampouco procede, pois não é mais do que uma maneira de presumir que a lei não pode ter erros, sob pena de inconstitucionalidade. Alegar isso é fugir do problema, afinal, como expusemos na introdução, é da natureza do processo legislativo que ocasionalmente haja erros na redação legal. Tanto isso é fugir do problema que o autor nem se dá ao trabalho de sugerir qual deve ser o prazo prescricional da LAC. Ora, aduzir a inconstitucionalidade do art. 25 como um todo significa que a LAC não tem prazo prescricional. Admitindo-se que toda infração tem prazo prescricional, qual seria então ele no caso da LAC? Paradoxalmente, o autor defende que a interpretação que melhor prestigia a segurança jurídica é deixar a LAC sem qualquer prazo prescricional, o que gera ainda mais insegurança jurídica.

A incoerência fica maior ainda porque Vasconcellos não defende a inconstitucionalidade do art. 142 da Lei nº 8.112/1990, a qual tem exatamente o mesmo problema, e isso apesar de o próprio autor transcrever o art. 142 logo antes de discutir o art. 25 da LAC.

Assim, parece-nos que esse artigo é uma tentativa superficial e mal-sucedida aplicar a “filtragem constitucional” preconizada pelo Neoconstitucionalismo, e nada acrescenta à discussão do problema.

Felizmente, o artigo de Sousa é mais preciso, apesar de discordarmos de sua proposta:

Logo, parece apropriado defender entendimento similar ao STJ no sentido de que no que tange à responsabilização administrativa prevista na LAC, o marco inicial da regra geral seria a partir da ciência da infração por qualquer autoridade administrativa do órgão ou entidade que sofreu o ato lesivo, sendo prescindível para o início da contagem prescricional a ciência da autoridade máxima do órgão ou entidade pública lesada.

SOUSA, 2017.

No entanto, entendemos que a atribuição do termo inicial a uma ciência de uma autoridade administrativa, e não a qualquer servidor, parece arbitrária. Para mostrar isso, vamos analisar a jurisprudência do STJ citada por Sousa; aproveitaremos para tratar da súmula nº 635 do STJ, editada depois do artigo de Sousa.

3.3. Soluções da jurisprudência

O primeiro e mais recente dos precedentes citados por Sousa (MS nº 14.446/DF) parece ir contra o entendimento do autor, pois diz: “considera-se autoridade, para os efeitos dessa orientação, somente quem estiver investido de poder decisório na estrutura administrativa, ou seja, o integrante da hierarquia superior da Administração (Superior Tribunal de Justiça – STJ, Mandado de Segurança nº 14.446/DF, julgado em 13/12/2010, apud SOUSA, 2017. Grifamos.). O segundo precedente citado, mais antigo (2007), tem posição oposta à do primeiro; inclusive, parece até que o primeiro precedente (mais recente, de 2010) critica o precedente de 2007. Vejamos então o referido precedente de 2007:

Desse modo, é razoável entender-se que o prazo prescricional de cinco anos, para a ação disciplinar tendente à apuração de infrações puníveis com demissão ou cassação de aposentadoria, comece a correr da data em que autoridade da administração tem ciência inequívoca do fato imputado ao servidor, e não apenas a partir do conhecimento de tais irregularidades pela autoridade competente para a instauração do processo administrativo disciplinar.

Superior Tribunal de Justiça. MS nº 11.974/DF, julgado em 07/05/2007, apud Sousa, 2017.

Isto é, os dois precedentes do STJ parecem contraditórios entre si e não fundamentam a escolha por tal ou qual critério. Assim, precisamos investigar os inteiros teores de cada um para verificar se lá consta alguma fundamentação.

No caso do precedente mais antigo (MS nº 11.974/DF), o inteiro teor do acórdão mostra que o critério “qualquer autoridade administrativa” foi escolhido por dois fundamentos:

(1) fazer a prescrição contar-se somente da ciência da autoridade competente para instauração do processo geraria insegurança jurídica: “No entanto, entendo que não seria essa a melhor conclusão, por gerar uma verdadeira insegurança jurídica para o servidor público.” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, idem). Observamos que o acórdão não explica de que modo isso gera insegurança jurídica.

(2) o dever geral de toda autoridade administrativa de apurar as irregularidades de que tiver conhecimento, consignado no art. 143 da Lei nº 8.112/1990:

Consoante o mencionado artigo, havendo elementos substanciais acerca da existência de irregularidade no serviço público, qualquer autoridade administrativa que dela tomar conhecimento deverá proceder à sua apuração ou comunicá-la à autoridade que tiver competência para promovê-la, sob pena de responder pelo delito de condescendência criminosa.

Superior Tribunal de Justiça. MS nº 11.974/DF, julgado em 07/05/2007, apud Sousa, 2017.

Ao analisarmos o inteiro teor do acórdão referente ao segundo e mais recente precedente, temos uma pequena surpresa: a referência a que a autoridade deve pertencer à “hierarquia superior” da Administração, na verdade, não reflete o posicionamento do STJ. A ementa diz, confusamente, “ressalva do ponto de vista do relator quanto a esta última exigência”, não deixando claro se “ressalva do ponto de vista do relator” significa que o entendimento da “hierarquia superior” é exclusivo do relator ou se o relator foi o único que não o aceitou. Estudemos então o inteiro teor do respectivo acórdão.

Esse estudo mostra que existem apenas três referências à tal da “hierarquia superior”: (1) na própria ementa do julgado; (2) na ementa do voto do relator, ministro Napoleão Nunes Maia; e (3) no parágrafo 21 do mesmo voto, quando o relator diz:

Não custa advertir que, qualquer autoridade administrativa que tiver ciência de irregularidade no serviço público tem o dever de proceder a apuração do ilícito ou comunicar imediatamente a autoridade competente para promovê-la, sob pena de incidir no delito de condescendência criminosa (art. 143 da Lei 8.112/90). Considera-se autoridade, para os efeitos dessa orientação, quem deter poder decisório na estrutura administrativa, ou seja, o integrante da hierarquia superior da Administração Pública.

Superior Tribunal de Justiça. MS nº 14.446/DF, julgado em 13/12/2010, p. 14.

Inicialmente, precisamos esclarecer o que o parágrafo realmente quis dizer, pois ele contém uma ambiguidade crítica. Na primeira frase, ele utiliza o termo “autoridade” com sentidos diferentes, a saber, (1) qualquer autoridade administrativa em geral; e (2) autoridades administrativas com competência para apurar o ilícito, às quais a “autoridade administrativa” em geral deve comunicar atos ilícitos caso não tenham competência para apurá-lo. A segunda frase retoma a expressão “autoridade” sem deixar claro a qual delas se refere, mas uma leitura atenta do parágrafo mostra que a referência é ao segundo tipo de autoridade. Ou seja, para o relator, somente o “integrante da hierarquia superior” da Administração Pública tem “poder decisório na estrutura administrativa” e competência para apurar ilícitos.

Ora, tal compreensão está completamente equivocada. Não se pode considerar que somente as autoridades da hierarquia superior têm poder decisório na estrutura administrativa; até mesmo servidores sem qualquer função comissionada podem tomar decisões que vinculam toda a Administração pública – basta pensar nos autos de infração, os quais são aplicados após uma decisão do fiscal administrativo. Pela estrutura da Administração, é extremamente raro que autoridades administrativas tenham essa função de fiscalização direta e autuação, normalmente reservada para servidores sem função ou cargo comissionado.

Do mesmo modo, não são somente os integrantes da “hierarquia superior” da Administração pública que têm competência para apurar e punir ilícitos. Basta pensarmos nos chefes de repartição, competentes para aplicar a penalidade disciplinar de advertência, conforme o inciso III do art. 141 da Lei nº 8.112/1990.

Podemos entender os motivos pelos quais considerar que o termo inicial da prescrição deve ser quando da ciência da autoridade competente para instaurar o processo. Também podemos entender o posicionamento segundo o qual esse grau de exigência não é necessário e que basta a ciência de qualquer autoridade administrativa para que se inicie o prazo prescricional. Mas por que dizer que a ciência deve ser de alguma autoridade da “hierarquia superior” da Administração? O que é hierarquia superior? Por que dizer que somente as autoridades da hierarquia superior têm “capacidade decisória”?

Nada disso faz sentido, o que nos leva a concluir que a referida “ressalva do ponto de vista do relator” significa que os outros ministros também perceberam quão estranha e sem fundamento era essa confusão entre “autoridade competente para punir” e “integrar a hierarquia superior da Administração” e não seguiram o relator nesse ponto. Infelizmente, essa ressalva curiosa e sem qualquer fundamento acabou “vazando” para a ementa do acórdão. Isso, somado à confusa dicção “ressalva do ponto de vista do relator quanto a essa última exigência” serviu apenas para gerar uma desnecessária dificuldade interpretativa.

De todo modo, o entendimento do STJ parecia caminhar no sentido de que bastaria a ciência de qualquer autoridade administrativa para que se iniciasse o prazo prescricional da Lei nº 8.112/1990. No entanto, em 2019, o próprio STJ editou súmula sobre com entendimento diametralmente oposto:

Súmula 635. Os prazos prescricionais previstos no artigo 142 da Lei 8.112/1990 iniciam-se na data em que a autoridade competente para a abertura do procedimento administrativo toma conhecimento do fato, interrompem-se com o primeiro ato de instauração válido – sindicância de caráter punitivo ou processo disciplinar – e voltam a fluir por inteiro, após decorridos 140 dias desde a interrupção. (Grifamos)

A página do próprio STJ na internet oferece uma lista de acórdãos que fundamentaram a súmula, todos no sentido da restritiva exigência de que a ciência se dê pela autoridade competente (vide os comentários completos nesta página). Assim, apesar de os precedentes citados no artigo de Sousa afirmarem que o “posicionamento consolidado” do STJ era no sentido de que o início do prazo se dava com a ciência por qualquer autoridade, houve mudança de entendimento da referida corte.

Para nós, esse entendimento mais recente, veiculado no enunciado de súmula nº 635, não deveria ser aceito. Ele toma as diversas possibilidades de “ciência” do fato e escolhe especificamente a mais restritiva possível, o que, como os próprios ministros do STJ haviam dito anteriormente, consiste em distinguir onde o legislador não distinguiu. Com efeito, é comum que a autoridade competente para a apuração do ato não seja a primeira a tomar ciência do fato, ainda mais quando se trata de fato em tese punível com demissão, pois a competência para instaurar o processo tende a ser próxima do nível de Ministro de Estado. Assim, quando a autoridade competente para instauração toma ciência do fato ilícito, certamente outros servidores e autoridades também tomaram ciência do fato. Nem sempre é assim, mas o importante é que é possível diversas autoridades tomarem ciência do fato antes da autoridade competente, o que já atenderia ao requisito legal de o fato “tornar-se conhecido”, ainda que não se especifique o sujeito desse conhecimento.

Compreende-se que a Administração, interessada em prazos prescricionais mais largos, sustente um entendimento tão restritivo, mas o STJ não deveria ter cedido a um posicionamento que não parece ter outro fundamento a não ser o de beneficiar a Administração.

De todo modo, a presença de uma súmula do STJ sobre o início do prazo prescricional da Lei nº 8.112/1990 sugere que essa solução também deva ser adotada para a LAC, pois ela sofre do mesmo defeito de condicionar o início do prazo prescricional a uma “ciência do fato” sem especificar quem deva tomá-la. No entanto, como mostraremos em tópico próprio, a solução da súmula nº 635 do STJ não pode, mediante interpretação analógica, ser transposta para a LAC.

3.4. Resumo dos posicionamentos encontrados. Apreciação crítica.

Podemos sumarizar os entendimentos sobre o início do prazo prescricional da LAC desta maneira:

  1. toda vez que o fato ilícito puder ser considerado público e notório (ciência presumida);

  2. ciência oficial por parte de qualquer servidor público;

  3. ciência oficial por parte de qualquer autoridade administrativa;

  4. somente quando a autoridade competente para apurar a infração tomar-lhe oficialmente ciência.

Examinemos primeiramente o início da prescrição por notoriedade do fato, por nos parecer o entendimento mais problemático de todos.

Apesar de eles não o dizerem explicitamente, o raciocínio dos autores que defendem a fluência da prescrição com a notoriedade do fato parece basear-se no inciso I do art. 374 do Código de Processo Civil (CPC), que determina que os fatos públicos e notórios dispensam prova: “Não dependem de prova os fatos: (I) notórios”. Essa dispensa de prova decorre de uma presunção de que as partes têm efetivo conhecimento acerca desses fatos; se as partes conhecem o fato, não há por que prová-lo. Aplicando-se a mesma lógica, teríamos que certos fatos são tão notórios que podemos dizer que todos têm efetivo conhecimento dele, o que inclui qualquer autoridade administrativa efetivamente competente para apurá-lo. Assim, estaria superado o problema da falta de definição sobre o sujeito da ciência a que o art. 25 da LAC se refere, pois todos teriam ciência daquele fato.

Contudo, tal entendimento apresenta diversos problemas. Em relação especificamente à fundamentação de Motta e Anyfantis, ela é incoerente porque estabelece uma falsa causalidade entre “notícia amplamente divulgada” e “arbítrio da autoridade para escolher a data da ciência”, isto é, eles alegam que a rejeição da possibilidade de a ciência da infração ser presumida em razão da notoriedade do fato automaticamente leva a que a autoridade administrativa possa escolher o prazo em que tomou tal ciência.

Ora, mesmo que rejeitássemos a possibilidade de fatos notórios serem capazes de iniciar o prazo prescricional, a Administração não necessariamente poderia escolher a data de sua ciência. Poderíamos defender, por exemplo, que qualquer denúncia protocolada no respectivo órgão público já inicia o prazo prescricional. Assim, a autoridade estaria vinculada a tal protocolo, independentemente de reportagens sobre o fato terem ou não o condão de também iniciar o prazo prescricional.

Na verdade, tal arbítrio foi criado pelos próprios autores em razão de não estabelecerem de modo completo a data do início da prescrição, pois dizem que, por se tratar de “norma de ordem pública” e com base nos diversos princípios citados, o termo inicial deve ser o da “publicação da reportagem”. Qual reportagem? Se um fato é tão notório assim, certamente será reportado por diversos veículos diferentes, permitindo à Administração escolher a data da publicação que lhe for mais conveniente. Tal arbítrio estaria afastado se considerássemos, singelamente, que o termo inicial se dá com a publicação da primeira reportagem.

Outro problema é que, diferentemente do que os autores dizem, tal entendimento não tem base “na doutrina”. O único autor que eles citam nesse sentido é Bruno Calabrich e o único outro autor que encontramos pelo mesmo entendimento é o próprio Márcio Ribeiro. Em todos os outros cinco livros que pesquisamos, bem como em bases de dados na internet, como vimos acima, mal existe tratamento para o problema do termo inicial da prescrição, muito menos uma opinião sobre sua relação com os fatos públicos e notórios. Então, o suposto argumento de autoridade apresentado por Motta e Anyfantis por meio da fórmula “Mostra a doutrina que...” não procede.

De qualquer maneira, consideramos que o entendimento em si mesmo deve ser rejeitado. Permitir que fatos “públicos e notórios” iniciem o prazo prescricional tem apenas uma aparência de objetividade e segurança jurídica, mas dá margem a diversas discussões sobre o que se qualifica como fato público e notório. Por exemplo, podemos considerar uma reportagem do programa jornalístico Fantástico? Em caso positivo, por que poderíamos considerar que uma reportagem de um programa jornalístico de uma emissora específica tem o condão de gerar presunção absoluta de que a autoridade administrativa tomou conhecimento do fato? Provavelmente pelos elevados índices de audiência do referido programa, que é tradicionalmente um dos mais conhecidos do Brasil.

Mas o que podemos consdierar “elevados índices de audiência”? E por que nos limitar a programas televisivos, especificamente? Afinal uma autoridade administrativa pode se manter perfeitamente bem informada sem recorrer a um televisor, utilizando-se, por exemplo, de portais de notícias na internet.

E se considerarmos que o fato se considera público e notório com a publicação de certa reportagem sobre fato ilícito em jornais de grande circulação? Isso também é problemático, pois teríamos de presumir que as autoridades administrativas lêem todas as reportagens de tais jornais, todos os dias. Por isso, faz mais sentido considerar que um fato é público e notório somente se ele se repete em diversas mídias diferentes. Mas isso nos leva a um problema: em que momento certo fato ilícito passa de “mais um no noticiário” e passa para “fato público e notório”? A partir da sua repetição em quantos veículos? Devemos considerar mídias diferentes, tais como televisão, rádio e internet?

Ou seja, os autores deixaram-se iludir pela aparente facilidade de se estabelecer que todos têm ciência de fatos públicos e notórios. No entanto, um fato só pode objetivamente ser considerado como tal após sua divulgação e repetição em diversos meios, por diversos dias – e, mesmo assim, pode haver “zonas cinzentas” nas quais cabe discutir se certo fato pode ou não ser considerado, efetivamente, público e notório. Somente é fácil estabelecer que certo fato é público e notório retrospectivamente, e não contemporaneamente. Por exemplo, hoje, a pandemia de COVID-19 pode ser considerada fato público e notório; no entanto, as primeiras notícias a apresentaram como um fenômeno relativamente isolado da China, e diversos veículos de mídia simplesmente a ignoraram na época.

O exemplo da pandemia de COVID mostra outra dificuldade que impede de aceitar tal posicionamento: a partir de qual data podemos considerar a Administração notificada? Afinal, é certo que a pandemia de COVID-19 é fato público e notório hoje. Mas em que dia exatamente ele passou de notícia local para fato notório? Normalmente, não faz diferença saber o dia exato em que um fato passou a ser notório, mas quando condicionamos o próprio início do prazo prescricional à “notoriedade do fato”, precisamos determinar com precisão a data em que isso ocorreu. Por um lado, é correto dizer que “em fevereiro de 2020, a pandemia de COVID-19 certamente era um fato público e notório”; por outro, como podemos fazer a prescrição se iniciar em “fevereiro de 2020”? Em qual dia de fevereiro? O dia 1º, simplesmente por ficção?

Tais perguntas não têm resposta, porque nem todos os fatos públicos e notórios têm uma data exata em que podem ser considerados como tal. Quando o têm, é mero acidente.

Por tudo isso, não podemos deixar o termo inicial da prescrição ser definido com base em divulgação midiática, pois a objetividade dos fatos públicos e notórios é apenas aparente e não pode ser estabelecida de maneira segura.

Além do argumento da falta de objetividade, entendemos que há também um argumento ontológico contra a utilização do fato notório como ciência da infração. O CPC pode estabelecer que um fato público e notório dispensa prova porque isso ainda está sujeito ao crivo do contraditório. Isto é, se uma parte alega certo fato e deixa de prová-lo com base em ele ser público e notório, a outra parte pode impugnar a notoriedade do fato, e competirá a um juiz imparcial decidir a respeito de maneira definitiva. Tal situação é muito diferente de presumirmos abstratamente uma ciência de irregularidade pelas autoridades competentes, de maneira extraprocessual e sem contraditório. Ou seja, as ontologias das situações “dispensa de prova de fatos notórios no CPC” e “ciência do fato pela Administração pública” são de tal modo diferentes entre si que elas não apresentam paralelos que autorizariam a transposição de uma para a outra.

3.5. Do não cabimento do uso analógico das soluções da Lei nº 8.112/1990 para o problema da LAC

Alguns dos autores estudados neste capítulo 2 perceberam a similaridade do problema do art. 25 da LAC ao problema da falta de definição do sujeito na prescrição disciplinar da Lei nº 8.112/1990. Por isso, é natural que alguns deles tenham sugerido utilizar as soluções da Lei nº 8.112/1990 para o problema, pois ele está mais desenvolvido lá.

No entanto, entendemos que, apesar da similitude dos problemas, não podemos transpor analogicamente a solução da Lei nº 8.112/1990 para a LAC, em razão de que a premissa por trás da solução do âmbito disciplinar é sempre a hierarquia, a qual inexiste na relação entre Administração pública e pessoa jurídica sujeita à LAC. Além disso, entendemos que os argumentos no sentido de que a ciência por qualquer servidor não pode iniciar prazo prescricional são insubsistentes. Vejamos cada ponto detalhadamente.

Em relação ao primeiro ponto, um exame da doutrina em direito disciplinar indica que sempre se utiliza a questão da hierarquia para se justificar as soluções para o termo inicial do prazo prescricional, pois a hierarquia impõe às autoridades o dever de apurar irregularidades. Assim, um servidor que descobre que um colega cometeu irregularidades não teve “ciência do fato” ou fez com que o fato se tornasse “conhecido” para efeitos da Lei nº 8.112/1990, pois o servidor não tem atribuição de apurar a conduta. Só se caracteriza o “conhecimento do fato” quando o servidor leva o fato ao conhecimento do respectivo chefe hierárquico. Nesse sentido, Antônio Carlos Alencar Carvalho entende que o termo inicial da prescrição da Lei nº 8.112/1990 é o da ciência da autoridade competente para instaurar o processo, e defende isso com base na hierarquia:

Essa ilação dimana da regra de que a competência para instaurar processo disciplinar é conferida ao chefe da repartição à autoridade superior, com ascendência hierárquica sobre os acusados. Isso por força do consagrado pressuposto de que o poder disciplinar é decorrência da estrutura hierarquizada da Administração Pública: as autoridades administrativas, competentes para expedir comandos aos subordinados e controlar-lhes o desempenho funcional, devem dispor da prerrogativa de punir os infratores, a bem da disciplina (...)

É de clareza solar que o preceito normativo não poderia obrigar qualquer autoridade que fosse cientificada do ilícito a prontamente instaurar o consentâneo feito administrativo investigatório ou processual, senão aquela com competência para a medida.

A. Carvalho, 2008, pp. 784 e 785. Grifamos.

José Armando da Costa utiliza arroubos de linguagem semelhantes, mas tem entendimento diverso, a saber: o prazo prescricional se inicia a partir da ciência de qualquer autoridade administrativa. No entanto, ele também justifica seu entendimento com base na hierarquia. Nesse sentido, cita o seguinte trecho de parecer do respeitado administrativista Caio Tácito:

O poder disciplinar, em que repousa a estabilidade das instituições administrativas, somente se poderá exercer, como é elementar, a partir do momento em que a falta se torne conhecida pela autoridade. Desde que, pelas circunstâncias de fato, a violação do dever funcional se acoberte no sigilo, subtraindo-se ao conhecimento normal da administração, não se configura a noção de inércia no uso do poder disciplinar.

Caio Tácito, parecer oferecido no processo nº 3.323/49, Diário Oficial da União de 05/01/1956, apud Costa, p. 303.

A ideia de que o “conhecimento do fato” a que a Lei nº 8.112/1990 se refere tem relação com o poder disciplinar também foi adotada na praxe administrativa. O auditor da Receita Federal do Brasil Marcos Salles Teixeira redigiu um manual de processo disciplinar intitulado “Anotações sobre PAD”, no qual apresenta uma visão geral dos posicionamentos sobre o tema, e explicita que todos eles se reportam, de uma maneira ou de outra, à hierarquia:

Conforme aduzido em 2.3.1, embora não desça à minúcia (e nem poderia mesmo fazê-lo, diante da diversidade e das peculiaridades do conjunto de órgãos que integram a Administração Pública federal), a Lei nº 8.112, de 11/12/90, em seu art. 143 e também no parágrafo único de seu art. 116, aponta no sentido inespecífico e genérico de que a competência disciplinar reside em via hierárquica. Ou seja, para a Lei, em princípio, a autoridade em sentido lato é responsável pela promoção da imediata apuração. Extrai-se portanto, teleologicamente, que o instituto da prescrição repercute na via hierárquica, pois é de ma autoridade hierarquicametne superior ao representado que se espera a diligência no sentido de deflagrar a apuração, recaindo sobre ela o ônus de cuidar da prescrição diante de sua inércia.

TEIXEIRA, 2020, pp. 1.791 e 1792. Grifamos.

O Manual de Processo Administrativo Disciplinar da CGU é igualmente claro ao estabelecer a relação entre poder hierárquico e termo inicial da prescrição no âmbito da Lei nº 8.112/1990:

Insta salientar, ademais, que, no Direito Administrativo, o poder disciplinar decorre do poder hierárquico. Dito em outros termos, as providências devem ser tomadas pelo superior hierárquico do servidor que cometer o ilícito administrativo-disciplinar. Cabe ao superior do servidor que cometeu a infração tomar as medidas cabíveis, a fim de que os fatos sejam apurados.

Em muitas instituições públicas o regimento interno prevê que a competência para a instauração do procedimento está centralizada na autoridade máxima. Isso não retira do superior hierárquico do servidor a responsabilidade de agir e levar adiante os fatos, ao conhecimento da autoridade máxima, para que sejam esclarecidos e instaurado o devido processo administrativo.

CGU, 2019, p. 330. Grifamos.

O próprio Ribeiro parece utilizar implicitamente o critério da hierarquia para fundamentar seu entendimento para o termo inicial da prescrição da LAC:

Sabe-se que a Administração Pública é um ente complexo, composto pelas mais variadas estruturas hierárquicas, cujas competências são exercidas pelas mais diversas autoridades, tornando, dessa forma, premente a necessidade de se definir qual é a autoridade administrativa que representa o ente processante para o fim de iniciar o cômputo [do] prazo prescricional da pretensão punitiva.

RIBEIRO, 2017, p. 278

No entanto, não há relação de hierarquia entre a Administração e os particulares que cometem irregularidades, o que torna a situação da LAC qualitativamente diferente da situação da Lei nº 8.112/1990. Com efeito, a hierarquia da Administração faz com que um fato sempre tenha uma respectiva autoridade imediatamente competente para apuração, qual seja, o servidor que for o superior hierárquico daqueles envolvidos no fato. Como bem disse Teixeira, é autoridade hierarquicamente superior ao representado que tem o ônus de promover a apuração e, portanto, é ela quem tem “o ônus de cuidar da prescrição diante de sua inércia” (TEIXEIRA, cit., 1.792).

É evidente que há certa variação entre os órgãos por questões de organização interna e o chefe direto do servidor suspeito pode não ser a autoridade competente para aquele caso específico, mormente quando existe estrutura especializada de corregedoria, mas isso não impede a existência da competência geral de todo chefe para apurar as irregularidades no âmbito de sua autoridade. Contudo, tal hierarquia não existe no âmbito da LAC, como não existe no poder de polícia em geral, do qual a LAC é apenas um exemplo. Assim, podemos dizer que qualquer servidor público que tome ciência de possível infração à LAC já faz com que a Administração pública tome ciência do fato, tal qual a ciência de uma irregularidade por um agente de polícia (por exemplo, um fiscal ambiental ou um guarda de trânsito) já efetiva a ciência da Administração pública.

Como vimos acima, Ribeiro critica a posição de que qualquer servidor possa, ao relatar o fato ilícito às autoridades, já iniciar o prazo prescricional da LAC:

Uma primeira opção seria considerar qualquer agente público que tivesse ciência da ocorrência do ilícito no exercício da sua função. Tal opção, entrementes, pelo seu caráter altamente difuso, afrontaria, de igual maneira, o fundamento maior da imposição do prazo prescricional, a segurança jurídica, devendo a definição da autoridade competente justificar a contagem de a prescrição se balizar em critérios mais precisos.

RIBEIRO, 2017, p. 278

No entanto, essa “excessiva difusão” não pode servir de óbice para o entendimento. Primeiro, porque, ainda que tal difusão exista, o que ela faz, no máximo, é reduzir o prazo de apuração pela Administração pública, pois o fato ilícito pode ser primeiro percebido por servidor distante da autoridade competente para instaurar o processo. Assim, parece-nos que o autor rejeita esse entendimento por questões de conveniência administrativa, e não por uma incompatibilidade intrínseca com os fatos.

Como reforço disso, basta pensar nos outros exemplos de poder de polícia que demos acima. Nem o próprio Ribeiro nem qualquer doutrinador diz que a ciência de irregularidades por agentes de polícia não pode caracterizar ciência da Administração por “excessiva difusão”. É até absurdo pensar que um guarda de trânsito não representa uma ciência de uma infração de trânsito simplesmente porque isso ampliaria excessivamente a quantidade de outros servidores que também poderiam tomar ciência do mesmo fato, o que poderia gerar, por exemplo, duas multas pelo mesmo fato.

Segundo, tal difusão não tem, intrinsecamente, o condão de dificultar a apuração do termo inicial, pois basta considerarmos que a ciência do ato ilícito deve se dar pela via institucional – como, aliás, o próprio Ribeiro o faz. Ou seja, pode acontecer que outros servidores tenham tido ciência do fato antes disso, mas se eles nada disseram a respeito, podemos considerar que a Administração pública não tomou ciência do fato.

Também é assim que ocorre quando no poder de polícia em geral: se certo fiscal percebe certa irregularidade, mas nada faz a respeito, não poderemos considerar que a Administração pública tomou ciência do fato, pois o servidor não oficializou a notícia sobre o fato. Do mesmo modo, o mero fato de um auditor ter contato com contrato que contém vício não caracteriza ciência da infração, pois não necessariamente o auditor já sabe que aquele contrato é viciado. Somente quando o auditor produz um relatório e emite uma opinião a respeito, o que evidentemente leva certo tempo de análise, é que podemos dizer que existiu ciência.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TANAKA, Michel Cunha. Identificação do termo inicial da prescrição da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7304, 1 jul. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104898. Acesso em: 22 dez. 2024.

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