Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/110264
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O programa da desinternação progressiva como etapa obrigatória para o processo de ressocialização na medida de segurança

O programa da desinternação progressiva como etapa obrigatória para o processo de ressocialização na medida de segurança

Publicado em .

Apresentamos a desinternação progressiva como metodologia indicada para aprimorar a execução da medida de segurança com estratégias de reinserção social sem previsão legal.

Resumo: A desinternação progressiva é um programa que foi instituído por meio de decisões judiciais com o objetivo de oportunizar a reintegração comunitária dos inimputáveis que cumprem medida de segurança. Diferentemente da desinternação tradicional, prevista em nosso Código Penal, esse programa adota um mecanismo mais humanizado e foca em realizar um tratamento além do farmacológico. O objetivo do presente trabalho é apresentar a desinternação progressiva como metodologia mais indicada para aprimorar a execução da medida de segurança por meio de estratégias de reinserção social – as quais não possuem previsão em nosso ordenamento. Propõe-se, assim, a observância da Reforma Psiquiátrica e de atos normativos posteriores a ela, a fim de garantir um tratamento mais eficiente e diferente do cenário atual, em que as instituições de cumprimento das medidas de segurança possuem caráter perpétuo e prisional. Sob essa perspectiva, a implementação mais efetiva desse programa só seria possível por meio de mudanças em nosso Código Penal e com a criação de lei especial, a fim de garantir que esta seja efetivamente instituída como obrigatória no processo de ressocialização da medida de segurança.

Palavras-chave: Desinternação progressiva. Reintegração comunitária. Medida de segurança. Reforma Psiquiátrica. Inimputáveis.

Sumário: Introdução. 1. Aspectos históricos e gerais das medidas de segurança. 1.1. Princípios que norteiam as medidas de segurança. 1.2. Transição do sistema duplo binário para o sistema vicariante. 1.3. Previsão legal e finalidade. 2. Da medida de segurança. 2.1. Pressupostos para sua aplicabilidade. 2.2. Espécies. 2.3. Duração da medida de segurança e a violação dos princípios e garantias constitucionais. 3. Inadequação da medida de segurança no Código Penal brasileiro. 3.1. Caso Ximenes Lopes e Chico Picadinho. 3.2. O impacto da Reforma Psiquiátrica (Lei Nº 10.216, de 2001) no Código Penal. 3.3. Novos parâmetros para as medidas de segurança. 4. Desinternação progressiva como meio de humanização na execução da medida de segurança. 4.1. Conceito e previsão legal. 4.2. Procedimentos. 4.3. A necessidade de observar a desinternação progressiva no tratamento dos inimputáveis. Conclusão. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO

Implementada a primeira vez no Brasil em 1966, pelo Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso, em Porto Alegre, a desinternação progressiva foi um método desenvolvido a fim de concretizar a ressocialização dos inimputáveis de forma mais eficiente, humanizando o tratamento recebido e reinserindo esses indivíduos ao convívio social de forma paulatina. Apesar de não ter respaldo em lei, sua aplicação decorre de decisão judicial e, por esse motivo, vem a ser um tema pouco conhecido, mas de extrema importância, haja vista que seu programa possui estratégias capazes de tratar efetivamente o inimputável, ou ao menos proporcionar recursos adequados para que estes não voltem a delinquir.

No entanto, pouco se sabe sobre a situação dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, por isso, o presente trabalho tem como objetivo detalhar o programa de desinternação progressiva, diferenciando-a da desinternação tradicional, e propô-la como etapa obrigatória no processo de ressocialização na medida de segurança. Em vista da parca literatura e omissão de dados sobre o tema, foi utilizada a metodologia descritiva qualitativa por meio de análises bibliográficas e científicas.

Desse modo, visando garantir a dignidade da pessoa humana, julgamos necessário abordar um tema com potencial para ser analisado pelas autoridades competentes para estruturar melhorias no programa através do poder judiciário e legislativo. Nesse passo, verificou-se também a necessidade de atuação conjunta do judiciário com outros órgãos, tal como o Sistema Único de Saúde, para que a desinternação progressiva desempenhe com êxito suas finalidades durante e posteriormente ao tratamento.

A presente monografia foi desenvolvida em quatro partes, sendo a primeira responsável por examinar conceitos e aspectos introdutórios importantes para o desenvolvimento do trabalho e suas respectivas discussões. Dentre elas, relaciona os princípios penais e constitucionais às medidas de segurança, aborda sobre a transição do sistema duplo binário para o vicariante, momento em que a medida de segurança passou a ser aplicada somente nos casos de absolvição imprópria, isto é, deixou de ser aplicada conjuntamente com a pena comum, e também esclarece quanto às finalidades desta, com destaque para as abordagens da prevenção especial positiva e negativa.

Já a segunda parte, trata brevemente sobre os pressupostos de aplicação da medida de segurança e suas espécies, introduzindo a finalidade da desinstitucionalização dos portadores de transtorno mental através do tratamento ambulatorial, tecendo breves críticas ao legislador que impôs a necessidade de internação nos casos com pena de reclusão. Além disso, inicia a discussão sobre o prazo indeterminado do cumprimento da medida de segurança, analisando pontos de sua execução que violam os princípios abordados inicialmente, bem como retratando a inércia do Estado para mudança desse cenário.

Diante todo o exposto, a terceira parte evidencia a inadequação da medida de segurança no ordenamento jurídico brasileiro através de análises do caso Ximenes Lopes e Chico Picadinho. Essa análise recai sobre o fato do nosso Código Penal não estar adequado (e atualizado) para a aplicação da medida de segurança após a reforma psiquiátrica e os atos normativos posteriores a ela, demonstrando a necessidade de readequação da nossa legislação penal.

Por fim, a quarta e última parte apresenta o programa de desinternação progressiva, comentando sobre a sua regulamentação, diferenciando-a da desinternação tradicional em vista de suas finalidades, descrevendo etapas e procedimentos adotados. Por fim, apresenta os indícios de que tal metodologia, se aplicada corretamente - e até mesmo se implementada como obrigatória, pode vir a se tornar uma ótima solução para os problemas que são apresentados no decorrer do trabalho, tal como abandono dos inimputáveis por suas famílias e o caráter de pena perpétua. Apesar da parca discussão da literatura sobre o tema e a ausência de dados atualizados, foi possível concluir que a implementação dessa medida seria a opção mais humanizada e correspondente às finalidades da própria medida de segurança.


“Para que uma pena produza o seu efeito, basta que o mal que ela mesmo inflige exceda o bem que nasce do delito.” (Cesare Beccaria)


1. Aspectos históricos e gerais das medidas de segurança

1.1. Princípios que norteiam as medidas de segurança

Dispõe a Constituição Federal (CF) de 1988 princípios e garantias fundamentais que são imprescindíveis para a aplicação do direito penal em um Estado democrático de direito - assim como em todo ordenamento jurídico. Dentre eles, está o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF), da igualdade (art. 5º, CF), da individualização da pena (art. 5º, inciso XLVI, CF) e, implicitamente, o da proporcionalidade.

No que tange às medidas de segurança, podemos elencar esses quatro princípios como principais pilares a serem conceituados no presente capítulo, embora muitos outros possam ser vinculados ao tema, a fim de contextualizar as críticas a serem formuladas posteriormente. Impende notar, em primeiro lugar, a dignidade da pessoa humana como base para os demais princípios existentes em todo o ordenamento jurídico, uma vez que esta está presente pela intrínseca existência do ser humano, isto é, pessoa dotada de direitos e deveres, que devem ser garantidos pelo Estado e respeitados pela sociedade.

Para Sarlet (2011) a dignidade por si só decorre da razão e capacidade de autonomia do ser humano, na sua ausência, recorre ao Estado para que seja garantida em sua dimensão assistencial e protetiva. No caso dos inimputáveis, a perspectiva assistencial deverá prevalecer a capacidade de autodeterminação, garantindo a dignidade do indivíduo em vista da sua higidez mental.

Nessa linha, temos o princípio da igualdade. Conferida por Aristóteles, a igualdade material é medida cabível aos inimputáveis, devendo haver um tratamento desigual na medida de suas desigualdades para que seja possível atingir a finalidade da execução da medida de segurança, em decorrência de suas peculiaridades.

Advindas tais singularidades, podemos mencionar a individualização da pena, elencada no art. 5º, inciso XLVI, CF, como um princípio que evita a padronização da pena, em razão das circunstâncias do crime e do próprio indivíduo. A respeito do tema leciona Nucci (2017, p. 26):

Não teria sentido igualar os desiguais, sabendo-se, por certo, que a prática de idêntica figura típica não é suficiente para nivelar dois seres humanos. Assim, o justo é fixar a pena de maneira individualizada, seguindo-se os parâmetros legais, mas estabelecendo a cada um o que lhe é devido.

Nessa linha, podemos equipará-lo com o princípio da proporcionalidade. Princípio este que é implícito em nossa Carta Magna, e tem como objetivo a aplicação da pena de forma harmônica com o ilícito penal praticado, nesse caso, em sede de medida de segurança, de acordo com a detenção ou reclusão do condenado.

Tal preceito também é reconhecido pela doutrina espanhola, e podemos verificar sua importância no que diz respeito às medidas de segurança, como bem preceitua Martín (2006, p. 459):

As medidas de segurança, assim como qualquer ato estatal que interfira em bens ou direitos do cidadão devem submeter-se ao princípio da proporcionalidade, por tratar-se de princípio ético-jurídico que deve reger todo tipo de atuação estatal em um Estado de Direito (apud SILVA, 2015, p. 116).

O Código Penal português, em seu art. 40.3, que reza sobre a finalidade das penas e das medidas de segurança, tem entendimento análogo ao que dispõe a doutrina e código penal espanhol (art. 6.2): “A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.”

Nesse passo, Silva (2015) interpreta o art. 97, do Código Penal (CP), como uma retratação do princípio da proporcionalidade, em vista que o dispositivo aduz sobre a internação do inimputável que cometer crime com pena de reclusão, ao passo que adota o tratamento ambulatorial àquele com pena de detenção. Nesse ponto, concordamos que o referido dispositivo legal demonstra a questão da proporcionalidade, todavia, nota-se que não se adequa tanto ao princípio da individualização da pena.1

Para Nucci (2017), a escolha da espécie da medida de segurança a ser aplicada torna-se abstrata, pois a periculosidade do agente não é medida pela pena do crime que praticou, sendo possível que, a depender das circunstâncias do delinquente, este seja submetido ao tratamento ambulatorial, embora tenha sido condenado com pena de reclusão. Nesse sentido, Abdalla-Filho, Chalub e Telles (2016) defendem que a sanção a ser aplicada deveria observar o estado e a condição psiquiátrica do indivíduo.

Apresentados os princípios que norteiam as medidas de segurança, resta incontroverso a imprescindibilidade destes em sua aplicação. Todavia, a sua observância não é funcional na prática quando tratamos de portadores de transtorno mental no sistema prisional e de saúde no Brasil, vejamos.

Muito antes da reforma psiquiátrica, no século XIX, os portadores de sofrimento psíquico, denominados como loucos, eram negligenciados por toda a sociedade e mantidos afastados nos chamados manicômios, em decorrência da política higienista. Tal política tinha como finalidade a higiene da saúde mental e moral, visando o bem social. Com isso, a conduta do ser humano passou a ser analisada e a doença foi vista como um problema, ocasionando a exclusão daqueles que não conseguiam se adaptar à nova doutrina (DIWAN, 2007). Nesse sentido, observava-se que:

Ao atribuir ao louco uma identidade marginal e doente, a medicina torna a loucura ao mesmo tempo visível e invisível. Criam-se condições de possibilidade para a medicalização e a retirada da sociedade, segundo o encarceramento em instituições médicas, produzindo efeitos de tutela e afirmando a necessidade de enclausuramento deste para gestão de sua periculosidade social. Assim, o louco torna-se invisível para a totalidade social e, ao mesmo tempo, torna-se objeto visível e passível de intervenção pelos profissionais competentes, nas instituições organizadas para funcionarem como locus de terapeutização e reabilitação – ao mesmo tempo, é excluído do meio social, para ser incluído de outra forma em um outro lugar: o lugar da identidade marginal da doença mental, fonte de perigo e desordem social (AMARANTE, 1998, p. 46).

Enraizada essa cultura no país, mesmo com a transição do sistema duplo binário para o vicariante, as medidas de segurança mantiveram o caráter segregacionista desde então, sustentando essa ideia até a elaboração do Código Penal de 1940, ocasionando a deslegitimação da medida de segurança.

A exemplo disso, temos a primeira condenação internacional do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em decorrência do caso Damião Ximenes Lopes, portador de transtorno psíquico, torturado até a morte dentro de uma instituição psiquiátrica. O caso ocorreu em 1999, mas somente em 2006 adveio a condenação ao Brasil, responsabilizando o Estado por violação do direito à vida, à integridade pessoal, garantias judiciais e proteção judicial da Convenção Americana, além de entender que houve negligência na fiscalização e regulamentação nesse tipo de estabelecimento, por parte do Estado (PAIXÃO, et. al., 2007).

Por esse e outros motivos, a Lei Antimanicomial (10.216, de 2001) foi um grande marco para o Brasil no que se refere aos deveres do Estado em garantir um tratamento adequado para os portadores de sofrimento psíquico. Recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), embora não seja de matéria penal2, seu objeto passou a refletir nessa esfera, resultando em diversos conflitos enquanto se busca adequar medidas mais humanizadas, como esta, juntamente com a legislação aplicável, os quais serão discutidos nos capítulos seguintes.

1.2. Transição do sistema duplo binário para o sistema vicariante

O sistema duplo-binário, também chamado de dualista, tinha como finalidade a aplicação da pena e da medida de segurança em uma mesma condenação, e foi adotado pelo Código Penal de 1940.

Nessa disposição, o acusado responderia pelo crime duas vezes, além de estar fadado a uma pena perpétua, pois, primeiramente se aplicava as diretrizes da pena e somente após o cumprimento destas se iniciava a medida de segurança (GRECO, 2009).

O código então vigente foi inspirado na doutrina clássica, e em seu período filosófico teve como representante Césare Beccaria que, na obra “Dos delitos e das penas”, expõe que os delinquentes deveriam ser punidos, desde que dentro das limitações da lei, baseando suas ideias no princípio da legalidade (PERES e FILHO, 2002, p. 343). Ao mesmo tempo, esse código baseava seus ideais na escola positiva, que em contrapartida, era representada por Lombroso, que qualificava o indivíduo como um ser com predisposição para criminalidade. Portanto, defendiam o tratamento compulsório durante a execução da penalidade imposta com o objetivo de segregar e prevenir, denominada como a “ideologia do tratamento” (FERRARI, 2001).

Diante desse cenário, a escola positivista teve grande influência na permanência do sistema duplo-binário, além disso, contribuiu fortemente para a sub-cultura da periculosidade que até hoje persiste no Brasil (GOMES JUNIOR, 2014). Seguindo as convicções dessa escola e da presunção de periculosidade, para Hungria (1955, p. 361. apud JUNIOR, 2014, p. 6) a medida de segurança era vista como obra de assistência social que o delinquente recebe para beneficiar-se moral e materialmente, auxiliando-o a se afastar da “triste carreira do crime e tornar-se um homem de bem”.

Entretanto, o sistema dualista sempre foi alvo de críticas: se a medida de segurança tem como finalidade a prevenção e ressocialização do indivíduo, como pode o legislador aplicar cumulativamente duas penas? Foi no Código de 1969 que a supressão do sistema dualista foi idealizada, adotando como premissa a necessidade de diferenciação do imputável e inimputável, pelo julgador. Para aquele, seria cabível apenas a pena, já para este, a medida de segurança, não sendo mais possível a cumulação entre as sanções3.

Contudo, em vista do cenário político que o Brasil se encontrava à época, o presente código sequer chegou a sua vigência. Foi apenas com a Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, que finalmente o sistema dualista foi abolido e passou a aderir o sistema vicariante, reformando o Código Penal que hoje se encontra vigente. Nesses termos, leciona Bitencourt:

A partir da Reforma Penal de 1984 os condenados imputáveis não estarão mais sujeitos à medida de segurança. Os inimputáveis são isentos de pena, (art. 26. do CP), mas ficam sujeitos à medida de segurança. Os semi-imputáveis estão sujeitos à pena ou à medida de segurança, ou uma ou outra (2010, p. 782).

A modificação trazida pelo legislador foi de suma importância para que se adequasse aos princípios basilares da Carta Magna, bem como para definir quanto à aplicabilidade e pressupostos das medidas de segurança.

1.3. Previsão legal e finalidade

No início, a medida de segurança era aplicada aos imputáveis, dentre eles, os menores infratores, com a finalidade de segregar e prevenir a delinquência, e nas palavras de Ferrari (2001, p. 16) “constituía meio de defesa social contra atos antissociais”. Contudo, observou-se que essa forma de atuação não era um impeditivo para a criminalidade, colocando em xeque a sua efetividade, tornando-se necessário a mudança de ideias retributivas para um viés preventivo (ibid., p.17). Assim, por uma consequência lógica, tal medida passou a ser aplicada somente aos inimputáveis, tornando-se um mecanismo do Estado para garantir que os delinquentes não voltassem a cometer ilícitos penais em vista do tratamento fornecido, além disso, visando de forma terapêutica a reintegração social. Em continuidade, Ferrari discorre:

A função da resposta penal deveria, primordialmente, evitar a reiteração delituosa, intimidando os agentes a não praticarem novas condutas proibidas; valorizava-se o fim utilitário da sanção, preferindo-se prevenir o delito a punir o delinquente. A finalidade da pena não seria mais castigar o agente, porque cometeu um mal, mas sim evitar que o delinquente voltasse a praticar outros crimes. Mais relevante do que a pena merecida seria alcançar-se a sanção eficaz, impedindo-se a reiteração delituosa pela exemplaridade da resposta jurídico-penal (ibid., p.18).

No tocante a fundamentação legal, a medida de segurança é resultado de uma sentença absolutória imprópria, conforme dispõe o art. 386, V, parágrafo único, inciso III, do Código de Processo Penal (CPP), com fundamentação legal nos art. 26, e art. 96. a 99, todos do Código Penal.

Inicialmente faz-se necessário discorrer sobre a aplicabilidade de tal medida, qual seja, para os inimputáveis ou semi-imputáveis. Para Ferrari (2001, p. 40), ambos possuem aspectos causais, temporais e consequenciais. Aos inimputáveis, o aspecto causal consiste na doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado; o aspecto temporal qualifica-se com o tempo da ação ou omissão; e o aspecto consequencial configura-se com a inteira incapacidade de compreender o ilícito penal praticado. É o que dispõe o art. 26, do Código Penal, na definição de inimputabilidade:

É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (BRASIL, 1940).

Já para os semi-imputáveis, o aspecto causal se dá pela perturbação mental4, desenvolvimento incompleto ou retardado, que ocorrem durante a ação ou omissão, daí se revela o aspecto temporal e, por fim, a capacidade não plena para entender o ilícito penal cometido, sendo este seu aspecto consequencial.

O parágrafo único do mesmo dispositivo legal delimita as hipóteses em que o indivíduo será considerado semi-imputável:

A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (BRASIL, 1940).

E nos casos em que o condenado considerado semi-imputável necessitar de tratamento especial, aplicar-se-á o que dispõe o art. 98, do Código Penal:

Na hipótese do parágrafo único do art. 26. deste Código e necessitando o condenado de especial tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação, ou tratamento ambulatorial, pelo prazo mínimo de 1 a 3 anos, nos termos do artigo anterior e respectivos §§ 1º a 4º (BRASIL, 1940).

Quanto aos inimputáveis, foco do presente artigo, é importante ressaltar dois pontos válidos. O primeiro, verifica-se no campo da culpabilidade; em se tratando das medidas de segurança não é pressuposto para sua aplicação, justamente pela completa incapacidade do indivíduo nessas condições de compreender seus atos - sendo a periculosidade um de seus pressupostos, que será explicitado no capítulo seguinte. Nas palavras de Silva (2015, p.112) “a culpabilidade se entranha no território ético, enquanto a periculosidade se engata no naturalístico.”

Por consequência, o segundo ponto considera o transtorno mental como fator determinante da inimputabilidade somente quando esta for capaz de impedir inteiramente o discernimento do agente, caso contrário, tornar-se-á imputável. Exemplifica Silva (2015, p. 57) o caso de um esquizofrênico, devidamente medicado, que comete um crime contra seu vizinho em decorrência de uma discussão futebolística. Nessa situação, constata-se a culpabilidade do agente, uma vez que sua medicação pôde restabelecer a possibilidade de discernimento do fato praticado, devendo, portanto, responder por uma sanção penal, e não mais pela medida de segurança. Inclusive, é nesse sentido que o critério biopsicológico, adotado pelo atual Código Penal, é utilizado para a caracterização do inimputável.

Esclarecido quanto à aplicabilidade, voltemos a abordar o critério de prevenção que foi adotado para tratar sobre a medida de segurança, indicando a sua finalidade diante do ordenamento jurídico. De início, cumpre ressaltar que existem dois tipos de prevenção, sendo a prevenção geral, subdividida em negativa e positiva, e a prevenção especial, com a mesma subdivisão. No que se refere a prevenção geral negativa, esta é utilizada como forma de intimidação dos indivíduos - deixando de ser aplicada no viés retributivista, para mostrar a todos os criminosos que as pessoas efetivamente eram punidas e as consequências do crime, a fim de evitar novos delitos. Já a prevenção geral positiva visa a valorização do ordenamento jurídico e reintegração social (FERRARI, 2015, p. 50).

Por sua vez, a prevenção especial revela preocupação com o indivíduo. Em seu aspecto positivo é direcionada para a ressocialização e tratamento, e seu aspecto negativo pressupõe amenizar a segregação àquele que não logrou êxito em atingir o aspecto positivo (GARCIA, 1997). Em suma, a prevenção geral tem como finalidade a proteção da sociedade como um todo, e a prevenção especial é voltada diretamente para o indivíduo.

N esta esteira, a principal finalidade da aplicação das medidas de segurança é a total ressocialização do indivíduo através da cura5 e, na sua impossibilidade, minorar os efeitos da segregação e da ocorrência de novos crimes. Nesse último caso, esclarece Cia (2011, p. 60) que a prevenção especial negativa não deve ser tratada como preceito primordial da medida de segurança, exceto quando a ressocialização for impossível, por esse motivo, a prevenção especial positiva prevalece sob a negativa.

Por tais motivos, nota-se que a manifestação da prevenção geral negativa ocorre no momento da reclusão do inimputável – haja vista que a inocuização do delinquente é meio de impedir que pratique outros crimes e, por consequência, a prevenção especial positiva se manifesta no momento em que ele é acolhido para receber o tratamento de reintegração social.


2. Da medida de segurança

2.1. Pressupostos para sua aplicabilidade

Além do reconhecimento da imputabilidade ou semi-imputabilidade para aplicação da medida de segurança, se faz necessário que sejam atendidos dois pressupostos: a prática de fato definido como crime e periculosidade do agente. Ademais, assim como a definição do conceito supramencionado, e de alguns princípios que regem essa medida, os pressupostos para sua aplicação não estão previstos em lei, mas decorrem da interpretação da segunda parte do art. 97, Código Penal, na observância de fato previsto como crime, assim como no §1º do mesmo dispositivo legal, no que se refere a cessação da periculosidade.

Dito isso, a prática de fato punível como crime é observada antes mesmo de verificar eventual inimputabilidade do agente (SILVA, 2011, p. 118). Ora, se não houvesse prática de ilícito, não seria cabível sequer sanção penal. Para isso, o fato praticado deve ser típico e antijurídico, porque pode o fato ser causa de excludente de ilicitude ou de culpabilidade, descaracterizando a aplicação da medida de segurança (SANTOS, 2008).

Nessa linha, interessante abordar a visão de Salo de Carvalho (2013) sobre os mecanismos (os próprios pressupostos de aplicabilidade) criados a fim de garantir maior proteção aos inimputáveis, a qual recai sobre a esfera material e processual e a garantia de direitos que, na verdade, não são oportunizados aos inimputáveis. Em sede de medida de segurança, na esfera material, não é possível considerar causas de exclusão de tipicidade, ilicitude, de culpabilidade e punibilidade. Já na esfera processual, não são cabíveis os institutos despenalizadores de transação penal e suspensão condicional do processo, por exemplo. Além disso, durante a execução das medidas não existe possibilidade de garantir, assim como nas penas comuns, o direito a remissão, detração e livramento condicional, isso tudo em decorrência da qualificação de inimputabilidade que exclui a responsabilidade penal.

Nesse sentido:

[...] apesar de a perpetuidade das medidas de segurança ser o mais emblemático dispositivo de violação dos direitos fundamentais dos portadores de sofrimento psíquico em conflito com a lei, a restrição aos direitos e garantias mínimas se prolifera em todas as fases da intervenção jurídico-penal (CARVALHO, 2013, p. 520).

Assim, essa falácia tutelar, como bem nomeou Salo de Carvalho, se prolifera em todas as fases de intervenção penal no que se refere a aplicação da medida de segurança, o que, mais uma vez, distancia os inimputáveis em termos de condições e garantias mínimas dentro do sistema penal.

Sobre a periculosidade, Bitencourt (2019) destaca com propriedade ser indispensável que o indivíduo seja dotado desta, propiciando uma prognose de que o agente, mediante a conduta praticada e o diagnóstico psicopatológico, voltará a delinquir. Por sua vez, a periculosidade pode ser presumida, quando se tratar de sujeito inimputável, isto é, quando determinado por lei (art. 26, CP), ou real, quando reconhecida e comprovada pelo juiz no caso dos semi-imputáveis (art. 26, parágrafo único, CP) que necessitam do especial tratamento curativo disposto no art. 98, Código Penal.

2.2. Espécies

As espécies das medidas de segurança estão elencadas no art. 96, incisos I e II, do Código Penal, sendo respectivamente, internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTP) e tratamento ambulatorial. Nesse passo, a imposição de cada espécie se dará conforme dispõe o art. 97, CP: sendo o agente inimputável, o juiz determinará sua internação; sendo o fato punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo ao tratamento ambulatorial.

A internação compulsória, segundo Santos (2008, p. 663), tem como objetivo proteger a sociedade contra ações antissociais futuras e submeter o portador de transtorno psíquico a tratamento psiquiátrico compulsório. Considerando que essa espécie só se aplica nos casos de reclusão, não obstante ser reconhecida como detentiva, retira o indivíduo do convívio social para que sua readaptação seja otimizada dentro de uma instituição que proporcione uma estrutura adequada e salubre, “sob pena de transformar-se a medida de segurança criminal em depósitos de esquecidos” (FERRARI, 2001, p. 84).

Já o tratamento ambulatorial possui os mesmos objetivos da internação, todavia, diferencia-se no aspecto de realizar um tratamento ambulante (SANTOS, 2008, p. 664), isto é, o agente comparece ao hospital em dias determinados para que receba tratamento terapêutico, impondo-se somente nos casos de detenção. Considera-se, portanto, um indivíduo de menor periculosidade, o que justificaria sua aplicação nos casos de detenção. Entretanto, dispõe o legislador que nesses casos, poderá o juiz optar pelo tratamento ambulante, ou seja, não há uma conversão imediata. Nesse sentido, explicita Bitencourt (2019) a necessidade de que sejam analisadas as condições do indivíduo para que seja imposta a medida mais liberal, podendo, mesmo que tenha praticado fato punível com detenção, ser submetido a internação compulsória.

Vale dizer que para Ferrari a medida de segurança ambulante é uma tendência de desinstitucionalização dos portadores de transtornos mentais - assim como propõe a desinternação progressiva, considerando que o agente além de receber o tratamento, tem possibilidade de manter contato e convívio com seus familiares, diferentemente da internação, em que receberá seu tratamento dentro de um hospital.

2.3. Duração da medida de segurança e a violação dos princípios e garantias constitucionais

O assunto abordado nessa vereda, como bem preceitua Cia (2011), verifica que a contribuição estatal para com as medidas de segurança é mínima quando se trata de portadores de transtornos mentais. É cediço as pesquisas e discussões realizadas acerca do sistema penitenciário no Brasil, todavia, pouco se fala sobre as medidas de segurança - e nem mesmo sabe-se o motivo de tal situação6, razão pela qual Cia conclui sobre a falta de fiscalização nas instituições. Em decorrência dessa análise, pressupõe-se que a violação dos princípios ocorre não por estar em desacordo com a legislação - em parte, mas sim por não fornecer a devida atenção aos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Nesse sentido:

[...] a situação carcerária nacional é, por si só, uma afronta aos direitos humanos, o cenário dos hospitais de custódia e dos manicômios judiciários rememora, sem exageros, as piores experiências de degradação humana presenciadas na história, que foram os campos de concentração criados pelo nacional-socialismo germânico (CARVALHO, 2013, p. 520).

Diante desse cenário, a falta de estrutura, tratamento adequado e individualizado também é um ponto observado em todas as instituições de cumprimento de medida de segurança, violando, respectivamente, o princípio da dignidade da pessoa humana e da individualização da pena. Nesse sentido, questiona-se se a doença dos indivíduos que permanecem quase que perpetuamente nessas instituições são, de fato, incuráveis, ou se houve inércia do Estado. Isso porque quando o interno é curado, a credibilidade é da instituição que o tratou, mas se não obtém êxito no tratamento, justifica-se pela complexidade do transtorno mental (CIA, 2011).

A fiscalização realizada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) no ano de 2014 apurou que as instalações e equipamentos fornecidos pelos três HCTPs de São Paulo (Franco da Rocha I e II e Taubaté) se encontravam em situação precária, incluindo vazamentos, infiltrações e mofo em áreas destinadas ao preparo alimentício e de refeições; ambientes fétidos que se estendiam por instalações próximas; e setores de internação e enfermarias sem utensílios para higiene básico. Portanto, não há dúvidas de que Cia estava certa ao afirmar a incoerência do Estado em dizer que na maior parte dos casos o tratamento é ineficaz em vista da natureza da doença mental.

Voltemos ao princípio da individualização da pena, em que sua violação ocorre no momento que não há consequências proporcionais aos atos praticados, isso porque inicialmente impõe-se a medida de segurança de acordo com a pena de reclusão ou detenção. Para Nucci (2017), o legislador pecou ao determinar tal requisito, visto que existem casos em que o indivíduo condenado por reclusão possui toda assistência para sua recuperação, não devendo, portanto, ser submetido imediatamente a internação, mas sim para o tratamento ambulante. Nesse sentido, vejamos:

[...] 5. A doutrina brasileira majoritariamente tem se manifestado acerca da injustiça da referida norma, por padronizar a aplicação da sanção penal, impondo ao condenado, independentemente de sua periculosidade, medida de segurança de internação em hospital de custódia, em razão de o fato previsto como crime ser punível com reclusão. 6. Para uma melhor exegese do art. 97. do CP, à luz dos princípios da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade, não deve ser considerada a natureza da pena privativa de liberdade aplicável, mas sim a periculosidade do agente, cabendo ao julgador a faculdade de optar pelo tratamento que melhor se adapte ao inimputável. 7. Deve prevalecer o entendimento firmado no acórdão embargado, no sentido de que, em se tratando de delito punível com reclusão, é facultado ao magistrado a escolha do tratamento mais adequado ao inimputável, nos termos do art. 97. do Código Penal.8. Embargos de divergência rejeitados (EREsp n. 998.128/MG, relator Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, julgado em 27/11/2019, DJe de 18/12/2019).

A tese supramencionada foi consolidada em 2019 pela Terceira Sessão da Corte do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que colocou fim a referida discussão sobre a individualização da pena entre a Quinta e Sexta turma. De um lado, a Quinta turma entendia a interpretação literal do art. 97, CP, por outro, a Sexta turma observava o princípio da proporcionalidade para que fosse possibilitado a imposição da medida de segurança de acordo com a periculosidade do agente, independente da pena que lhe seria aplicada, ficando a cargo do magistrado escolher a medida mais adequada ao inimputável.

Apesar da discussão, esse entendimento já havia sido alvo da Recomendação Nº 35, de 2011, II, alínea “f”: “Adoção de medida adequada às circunstâncias do fato praticado, de modo a respeitar as singularidades sociais e biológicas do paciente judiciário” (BRASIL, 2011).

Outro ponto válido para se questionar é a inconstitucionalidade do §3º, art. 97, Código Penal. O referido dispositivo prevê uma espécie de supervisão mesmo após findada a medida de segurança, e tal imposição não tem disposição semelhante no âmbito do cumprimento de pena, ensejando a violação do princípio da igualdade e legalidade. Ainda, a disposição que determina o prazo mínimo para internação de 1 a 3 anos (§1º, do mesmo dispositivo legal), viola o princípio da intervenção mínima que, para Ferrari (2001, p. 184), não faz sentido falar de limites mínimos obrigatórios quando é possível cessar a periculosidade a qualquer momento.

Destarte, assim como para Michele Cia, Juarez Cirino Santos e parte da doutrina, entendemos que o prazo indeterminado para duração da medida de segurança é inconstitucional, violando além do princípio da proporcionalidade, todos os outros aqui citados. Nessa mesma linha, leciona Carvalho (2013, p. 527):

Assim, é possível pensar em um procedimento sui generis de responsabilização que tenha, como primeiro passo, a individualização da sanção como se o réu portador de sofrimento psíquico fosse efetivamente imputável; posteriormente, seria indicada sua substituição pela medida de segurança que passaria a ser regulada, em seu máximo, pela quantidade de sanção atribuída. Outrossim, [...] o limite mínimo da medida deveria ser abandonado em prol da avaliação das condições psíquicas do usuário do sistema de saúde mental. Constatado que o sujeito se encontra em condições de convívio social, extingue-se automaticamente a medida.

No caso dos imputáveis a sociedade assume o risco de novas práticas delitivas justamente em respeito aos princípios constitucionais, o que não é verificado aos inimputáveis (CIA, 2011, p. 81). Nessa lógica, dados colhidos da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, em maio de 2023, demonstram que o número de imputáveis é muito maior do que o número de internos que cumprem medida de segurança no estado de São Paulo.

Vejamos, na unidade prisional de Franco da Rocha I, a população de encarcerados é de 1.459 presos; na unidade de Franco da Rocha II, constam 1.015 presos, e em Franco da Rocha III, constam 1.461 presos. Por outro lado, nos hospitais de tratamento das mesmas unidades, respectivamente, existem 541 internos, 192 internos e no HCTP de Taubaté, são 249 internos. Portanto, em vista da quantidade mínima de dados disponibilizados, é possível deduzir que é injustificável diferenciar o prazo de duração máxima da sanção penal em ambos os casos, dado que os números indicam maior índice de criminalidade aos imputáveis no regime prisional comum.

Nessa perspectiva, o lapso temporário para determinação do fim da medida de segurança, segundo Bitencourt (2019), se transfigura em uma prisão perpétua e, em recorrência a essa situação, foi consolidada a Súmula 527, do STJ, que determina a duração da medida de segurança ao limite máximo da pena em abstrato do crime cometido.

Entretanto, diante de todos os parâmetros deficientes do Estado em proporcionar um cumprimento de medidas de segurança digno - de modo que seja eficaz em seu objetivo de tratar ou curar o indivíduo, os internos acabam por ser submetidos a uma pena perpétua.

Sendo assim, resta claro que a execução das medidas de segurança necessita de reformulações em diversos aspectos, quais sejam – na garantia dos direitos constitucionais, no texto legislativo, na forma de sua aplicação e na execução. Por esse motivo, abordaremos especificamente sobre a aplicação da desinternação progressiva como etapa adequada ao tratamento dos inimputáveis que estão submetidos a esse sistema.


3. Inadequação da medida de segurança no Código Penal brasileiro

3.1. Caso Ximenes Lopes e Chico Picadinho

Para avançar na discussão do presente trabalho, é mister apresentar duas situações relevantes que ocorreram no Brasil, e que demonstram claramente a inadequação da medida de segurança no nosso ordenamento jurídico. O primeiro caso, “Ximenes Lopes versus Brasil”, brevemente apresentado nos capítulos iniciais, foi responsável por uma repercussão internacional e de grande impacto no que se refere ao tratamento dos portadores de transtorno psíquico no Brasil, o qual demonstrou a necessidade que o país tem em aderir políticas públicas de saúde mental. Já o segundo caso trata-se da condenação de Chico Picadinho que, embora não tenha refletido diretamente em sede de medida de segurança, aborda sobre o caráter perpétuo da pena para pessoas portadoras de transtorno mental.

A morte de Ximenes Lopes ocorreu em 1999, dentro da Casa de Repouso Guararapes, horas depois de sofrer maus tratos. No laudo fornecido pelo médico responsável da instituição constava morte natural, por parada cardiorrespiratória. Sua mãe, Albertina, e sua irmã, Irene, após a primeira internação em 1995, optaram por não o internar na mesma casa, tendo em vista o relato de maus tratos que sofreu durante os meses em que esteve lá. Dentre 1998 e 1999 foram realizadas mais duas internações sendo que, no último ano, Damião não pode voltar para casa (PAIXÃO, et. al., 2007).

A partir daí, a mãe e irmã de Ximenes passaram a buscar por justiça. Primeiramente deram queixa à polícia, mas, coincidentemente ou não, o médico legista responsável pelo caso foi o mesmo que “cuidou” de Damião durante seu período na casa de repouso. No laudo pericial constava que a causa da morte era indeterminada. Após isso, Irene passou a tentar contato com diversos órgãos e entidades para buscar auxílio, incluindo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A movimentação deu certo, e então se iniciaram diversos processos para investigar o ocorrido, surgindo, inclusive, relato de outros pacientes da mesma clínica (SILVA, 2001).

Foi então que a Comissão reconheceu a denúncia formulada por Irene, e remeteu ao Estado brasileiro concedendo-lhe um prazo para resposta, mas este quedou-se inerte. Em vista disso, com base no artigo 44 da Convenção Americana e 23 do Regulamento, admitiu-se a denúncia e o caso Ximenes Lopes passou a ter caráter internacional, haja vista a violação dos direitos humanos estabelecidos na Convenção.7

Preliminarmente, a Corte deveria decidir se o Estado era responsável pela violação dos direitos da Convenção Americana8, em vista das ocorrências sofridas por Ximenes Lopes, desde a sua internação em uma instituição em condições inadequadas, a inércia dos órgãos responsáveis pela investigação, até sua morte. Além disso, a Comissão reconheceu a gravidade do caso em vista da vulnerabilidade das pessoas com transtorno psíquico, bem como do dever do Estado em proteger os cidadãos que usufruem do Sistema Único de Saúde (SUS). Com isso, requereu à Corte que ordenasse medidas de reparação ao Brasil, incluindo indenizações e caminhos para evitar tratamentos desumanos nas instituições psiquiátricas (CIDH, 2006).

No curso do processo foi realizada audiência pública, momento que a Comissão alegou falha do Estado brasileiro em resguardar o direito à vida e à integridade pessoal de Ximenes Lopes, respectivamente, em vista de não ter cumprido o dever de preservar a vida da vítima – tanto pelos funcionários responsáveis por sua morte, quanto do Estado por não ter realizado a devida fiscalização e investigação e, em relação à violação da integridade pessoal, foi considerada a hospitalização em ambiente impróprio e com tratamento desumano, em que Damião foi mantido em condições desumanas para o tratamento. O Brasil admitiu9 a violação dos princípios supramencionados e da responsabilização internacional, mas não reconheceu a violação das garantias judiciais (art. 8.1) e proteção judicial (25.1) da mesma Convenção. 10

Tendo em vista a controvérsia, a Comissão alegou a violação dos artigos supramencionados em vista das omissões das autoridades responsáveis pela investigação, falha nas ações processuais, tais como a morosidade para instauração da investigação criminal e pelo aditamento da denúncia, bem como pela falta de sentença em primeira instância após 6 anos da morte de Damião. Em relação às reparações, a Comissão entendeu que os beneficiários seriam os pais e irmãos de Ximenes Lopes para o recebimento de indenizações referentes ao dano material correspondente ao dano emergente e lucro cessante, que apesar da morte não ter resultado em alteração patrimonial da família, entendeu-se que Damião poderia aumentar sua renda através de outras atividades no futuro. Assim como reparação à título de dano imaterial, considerando os danos causados aos familiares (CIDH, 2006).

Além dessas indenizações, a Corte fixou recomendações que refletiriam no futuro do país referente ao tratamento da saúde mental, quais sejam:

[...] i. adote as medidas necessárias para dar efetividade a sua obrigação de supervisionar as condições de hospitalização ou internação das pessoas portadoras de deficiência mental nos centros hospitalares, inclusive adequados sistemas de inspeção e controle judicial;

ii. adote as medidas necessárias para evitar a utilização de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes nos centros de saúde, inclusive programas de treinamento e capacitação, ademais da efetiva proibição e punição desse tipo de ação;

iii. implemente padrões mínimos para a elaboração de relatórios médicos, como os estabelecidos no Protocolo de Istambul;

iv. faça cessar de imediato a denegação de justiça a que continuam submetidos os familiares do senhor Ximenes Lopes no que diz respeito a sua morte;

v. leve o reconhecimento de responsabilidade parcial do Estado ao conhecimento da opinião pública de maneira oficial; e

vi. crie mecanismos de inspeção, denúncia e documentação de mortes, torturas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes de pessoas portadoras de deficiência mental (CIDH, 2006, p. 70).

Na sentença, a Corte acatou todas alegações da Comissão em relação à indenização e reparação11, mas reconheceu parcialmente a responsabilidade internacional do Estado:

[...] pela violação dos direitos à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, nos termos dos parágrafos 61 a 81 da presente Sentença (CIDH, 2006, p.83).

Quanto às recomendações mais pertinentes12 para o presente trabalho, a Corte decidiu que:

6. O Estado deve garantir, em um prazo razoável, que o processo interno destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos deste caso surta seus devidos efeitos, nos termos dos parágrafos 245 a 248 da presente Sentença (CIDH, 2006, p. 84).

8. O Estado deve continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e aqueles dispostos nesta Sentença, nos termos do parágrafo 250 da presente Sentença (CIDH, 2006, p. 84).

Sentenciado o caso Ximenes Lopes, foi realizado o relatório de Supervisão de Cumprimento de Sentença (2010), em que o Brasil demonstrou dificuldades em garantir o direito à razoável duração do processo, mas a Corte reconheceu o esforço no avanço processual para a resolução do caso, assim como no gerenciamento de políticas públicas voltadas à saúde mental para capacitação dos profissionais. Entretanto, os representantes da Comissão valoraram as políticas apresentadas pelo Estado brasileiro e não as acharam suficiente para impedir violação dos direitos humanos, principalmente nas instituições privadas. Isso porque apesar das capacitações estarem sendo realizadas e disponibilizadas, necessitava-se de informações detalhadas sobre os profissionais que estavam se capacitando, tal como o local de trabalho e função exercida por estes (SUPERVISÃO DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA, 2010).

Em resposta à condenação do Brasil no caso Ximenes Lopes, verificamos os impactos positivos que as recomendações trouxeram para a necessidade de reforçar as políticas públicas para a saúde mental, seja no âmbito do judiciário ou não, mas mesmo assim verifica-se que nosso ordenamento carece de mudanças na gestão de políticas distributivas. Nesse sentido:

[...] A morte de um cidadão em um hospital psiquiátrico analisada por uma corte internacional reiterou os apelos já constantes por uma maior responsabilização pública em relação aos portadores de sofrimento mental, refletindo diretamente nas demandas pela implementação de uma política pública em saúde mental comprometida com os direitos humanos. A análise do caso Ximenes Lopes demonstra como a condenação do Brasil representou também um controle, uma censura em relação à existência de uma política pública em saúde mental que, embora seja avançada em seus princípios, é deficitária em termos de aplicação [...] (PAIXÃO, et. al., 2007, p. 23).

Conforme dispõe Lima e Pontes (2015), é nítido a forma em que o Brasil busca se tornar um país reconhecido por garantir os direitos humanos, ratificando tratados e viabilizando recursos para proteger os portadores de transtornos mentais, todavia, não é o que o judiciário e as instituições responsáveis por estes indivíduos transparecem.

Um exemplo prático dessa situação é o caso midiático de Francisco Costa Rocha, mais conhecido como “Chico Picadinho”. Francisco, diagnosticado com personalidade psicopática, ficou preso por mais de quatro décadas e, somente em 2018, foi submetido a internação no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté.

A Magistrada determinou que Chico fosse transferido para estabelecimento que lhe fornecesse tratamento psiquiátrico diário, pois em decorrência de uma interdição civil se manteve preso além do prazo máximo estipulado pelo Código Penal, na época, 30 anos. Além disso, verificou que os laudos juntados nos autos do processo indicaram que Francisco não recebia nenhum tipo de acompanhamento (R7, 2019).

Aqui, verificamos a clara violação da própria legislação. Chico, mesmo com diagnóstico de psicopatia13, foi submetido a pena de prisão comum e por lá se manteve até que fosse realizada outra medida que lhe garantisse tratamento.

A problemática do caso se deu ao fato de que após o primeiro laudo emitido para que Chico retornasse o convívio em sociedade, cometeu um segundo homicídio, retornando então ao estabelecimento prisional com reiterados laudos que não atestaram a cessação de sua periculosidade, permanecendo enclausurado desde então. Antes de ser determinada sua transferência para o HCTP em 2015, o Desembargador Rômolo Russo negou provimento ao recurso do Ministério Público que pediu a interdição e desinternação de Chico:

[...] A interdição civil de doente mental com gravíssima patologia, ainda que prolongada por três décadas, não se iguala a prisão perpétua, a qual diz respeito à privação de liberdade de quem conscientemente prática ilícito penal e cumpre pena privativa de liberdade superior a trinta anos consecutivos. Situações jurídicas distintas. O direito material ao levantamento de interdição depende, ordinária e necessariamente, da cessação da causa que a determinara (art. 1.186, caput, do CPC c/c art. 1.767, inciso I, do Cód. Civil), ou seja, de prova cabal da sanidade mental e possibilidade real do retorno daquele à vida em coletividade. Interditando conhecido por "Chico Picadinho". [...] Diagnóstico médico de personalidade psicopática, perversa, amoral e sádica (CID 10, F 65.5) e transtorno categórico misto. Características duradoura e irreversível. Quadro gravíssimo, de difícil controle e reversão. Terapêutica medicamentosa ou psicoterápica sem resultado prático. Laudos médico-legais conclusivos. [...] Elevada periculosidade e desvio constitutivo [...] (TJSP; Apelação Cível 0005327-65.1998.8.26.0625; Relator (a): Rômolo Russo; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Taubaté - 1ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 25/11/2015; Data de Registro: 26/11/2015).

Nesse ponto, compreendemos a justificativa da respeitosa decisão no que se refere a periculosidade do agente. Todavia, discordamos da situação em que o agente estava submetido, isto é, sendo diagnosticado com alta periculosidade em vista de seu transtorno e sem nenhum acompanhamento para que fosse realizada a tentativa de sua cura, ou tratamento para amenizar suas “impulsividades”.

Além disso, o Desembargador considerou que mantê-lo preso por mais tempo do que a legislação previa – antes da alteração da Lei Nº 13.964, de 2019, era plenamente justificável, haja vista que estávamos falando de uma patologia incurável, não devendo, portanto, ser comparado ao caso de um imputável, para que fosse considerado pena perpétua. Embora a medida de segurança não seja uma pena privativa de liberdade – já que se dá através de uma absolvição imprópria, e sim uma espécie sanção penal, nada diz o dispositivo (art. 75, CP) sobre outras interpretações. Ocorre que, conforme discutido em capítulos anteriores, o prazo indeterminado do cumprimento da medida de segurança acaba possibilitando margens para outros entendimentos referente ao artigo supramencionado.

Apesar disso, vemos como o distanciamento do judiciário perante a execução das medidas de segurança afeta diretamente a finalidade desta, que é reinserir o inimputável socialmente, mesmo quando não há cura absoluta. Finalidade essa que deverá prevalecer de outras formas, como através da periculosidade controlada e o acompanhamento do SUS fora dos hospitais de tratamento. Sem isso, esse cenário, assim como muitos outros, iriam caminhar para uma prisão perpétua com tratamento unicamente farmacológico.

Mais uma vez, é evidente a violação do princípio da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e também da garantia constitucional de que não haverá pena de caráter perpétuo – esta que estaria sendo violada por não encontrar método que solucionasse o problema do encarcerado, dispondo mantê-lo preso até que sua periculosidade incurável, fosse curada.

3.2. O impacto da Reforma Psiquiátrica (Lei Nº 10.216, de 2001) no Código Penal

Conforme leciona Carvalho (2013), as vertentes da criminologia crítica e antipsiquiatria foram capazes de evidenciar a discrepância dos objetivos da medida de segurança, qual seja, de tratamento e ressocialização, para a real finalidade de segregação dos portadores de transtorno mental. Assim, o modelo manicomial iniciou o seu processo de desestruturação nos países ocidentais, com o objetivo de superar a lógica hospitalocêntrica existente. No Brasil, durante a década de 1990 as políticas públicas voltadas para saúde mental já tinham perspectivas voltadas para a censura do tratamento desumano praticado pelos hospitais psiquiátricos, mas somente após a morte de Ximenes Lopes, em 1999, ganharam força (PAIXÃO, et. al., 2007). Com isso, após 12 anos em tramitação, a morte de Damião impulsionou a aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Nº 10.216, de 2001).

Também chamada de Lei Antimanicomial, a reforma tem como objetivo mudar a abordagem do tratamento de saúde mental, redirecionamento o modelo assistencial desta para proporcionar uma intervenção mais humanizada e inclusiva para os portadores de sofrimento psíquico, tendo como enforque o indivíduo em si, e não mais sua doença. Ou seja, sai da perspectiva de prevenção geral, para focar na prevenção especial positiva.

A principal mudança que essa normativa trouxe foi o reconhecimento do portador de transtorno mental como verdadeiro sujeito de direito, isso porque deixou de reconhecer o inimputável como absolutamente incapaz pelos atos praticados e, justamente por esse fato, suscitou formas diferentes para interpretação do direito penal, excluindo, inclusive, a denominação de portador de doença mental, para portador de transtorno mental (CARVALHO, 2013).

Nessa linha, propiciou a ruptura do modelo manicomial das internações em HCTPs para tratamento a ser realizado nas redes alternativas transdisciplinares de atendimento, isto é, além de visualizar a internação como tratamento excepcional (art. 4), proibiu que fosse realizada em instituições com características asilares (art. 4, § 3º). Tais medidas alternativas à internação nos HCTPs seriam realizadas em Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), Serviços de Residência Terapêuticas (SRTs) e outras redes de serviço público que visam a reabilitação desses indivíduos, proporcionando um tratamento menos invasivo (art. 2, VIII), de preferência em serviços comunitários (art. 2, IX) e, nos casos de internação, com assistência integral (art. 4, § 2º). Nota-se que essa estrutura proporciona uma maior colaboração entre a secretaria de saúde e de segurança pública, fazendo com que a aplicação e execução da medida de segurança seja aperfeiçoada.

Nesse sentido, Salo de Carvalho (2013) observa que não existe diferença entre os usuários comuns da rede de saúde pública para os que praticaram ilícito penal e foram submetidos ao tratamento nos serviços comunitários, isso porque a prestação desse tipo de serviço deve ser realizada de forma igualitária, independente da forma em que foram acionados. Esse entendimento decorre da linha de desinstitucionalização da Lei Antimanicomial.

3.3. Novos parâmetros para as medidas de segurança

Diante todo o exposto, resta claro como o Código Penal de 1940 manteve seu caráter higienista, o que dificulta - apesar das políticas públicas realizadas, que os atos administrativos já mencionados sejam operados em conjunto com a legislação penal. Nessa toada, existem outros dispositivos que podem ser utilizados para auxiliar na execução da medida de segurança, os quais não são devidamente considerados. Primeiramente, podemos mencionar a Resolução Nº 113, de 2010, que dispõe em seu art. 14, sobre a necessidade de a sentença penal absolutória imprópria ser executada em observância à Lei de Execução Penal, bem como da Lei Antimanicomial.

Ocorre que, diferente da previsão em nosso Código, a Reforma Psiquiátrica compreende que a internação deve ser a última medida a ser aplicada. Como esse intuito, em 2002 o Ministério da Saúde instituiu a criação dos CAPs para substituir os hospitais psiquiátricos (AGÊNCIA SENADO, 2021), o que não foi suficiente para que os magistrados considerassem a necessidade de ambientes mais adequados.

A mais recente Resolução (Nº 487, de 2023) trouxe consigo pontos interessantíssimos a serem (re)considerados, haja vista que alguns deles já haviam sido objeto de discussão. O primeiro ponto a ser destacado é que o tratamento iniciará durante o curso de todo o processo, isto é, da audiência de custódia até a execução da medida de tratamento indicada, possibilitando ao inimputável o auxílio das redes de serviço público nos atos judiciais. Nessa linha, consoante às ideias da Resolução Nº 113, de 2010, no que tange à internação como medida excepcional, em seu art. 3º, a resolução supramencionada entende que:

VIII – a indicação da internação fundada exclusivamente em razões clínicas de saúde, privilegiando-se a avaliação multiprofissional de cada caso, pelo período estritamente necessário à estabilização do quadro de saúde e apenas quando os recursos extrahospitalares se mostrarem insuficientes, vedada a internação em instituição de caráter asilar, como os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs) e estabelecimentos congêneres, como hospitais psiquiátricos;

Bem como:

Art. 12. A medida de tratamento ambulatorial será priorizada em detrimento da medida de internação e será acompanhada pela autoridade judicial a partir de fluxos estabelecidos entre o Poder Judiciário e a Raps, com o auxílio da equipe multidisciplinar do juízo, evitando-se a imposição do ônus de comprovação do tratamento à pessoa com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial.

Ademais, temos também a Recomendação Nº 35, de 2011, que além de indicar que a medida de segurança deve ser aplicada de acordo com o fato praticado, discorre que nos casos de internação, deverá ser realizada em rede de saúde pública com o devido acompanhamento da parte judicial (BRASIL, 2011), mas sempre se atendo as recomendações previstas.

Nessa linha, a Resolução Nº 487, de 2023 reitera ambas as ideias e, inclusive, institui que as internações deverão ser realizadas nos chamados Hospitais Gerais, e não mais nos HCTPs, isso porque resta claro que tal instituição não possui estrutura para proporcionar a devida assistência. É o que diz o art. 13. do mesmo dispositivo, vejamos:

Art. 13. A imposição de medida de segurança de internação ou de internação provisória ocorrerá em hipóteses absolutamente excepcionais, quando não cabíveis ou suficientes outras medidas cautelares diversas da prisão e quando compreendidas como recurso terapêutico momentaneamente adequado no âmbito do PTS, enquanto necessárias ao restabelecimento da saúde da pessoa, desde que prescritas por equipe de saúde da Raps.

§ 1º A internação, nas hipóteses referidas no caput, será cumprida em leito de saúde mental em Hospital Geral ou outro equipamento de saúde referenciado pelo Caps da Raps, cabendo ao Poder Judiciário atuar para que nenhuma pessoa com transtorno mental seja colocada ou mantida em unidade prisional, ainda que em enfermaria, ou seja submetida à internação em instituições com características asilares, como os HCTPs ou equipamentos congêneres, assim entendidas aquelas sem condições de proporcionar assistência integral à saúde da pessoa ou de possibilitar o exercício dos direitos previstos no art. 2º da Lei n. 10.216/2001 (BRASIL, 2023).

Outro ponto interessante que a referida Resolução trouxe foi a possibilidade de a avaliação para extinção da medida de segurança ser realizada com maior frequência, anualmente ou a qualquer tempo, desde que requerido pela defesa ou indicada pela equipe de saúde, sem obstar na continuidade dos tratamentos mentais (art. 12, § 5º). Esse dispositivo beneficiaria os internos ou indivíduos em tratamento ambulante, pois diferente do que institui nosso Código Penal (somente mediante determinação do juiz), a melhora poderá ser verificada antes mesmo do prazo instituído em lei (de 1 a 3 anos, conforme art. 97, § 2º, CP).

Ora, aqui podemos verificar mais um conflito com o Código Penal. Se eventualmente um indivíduo tiver sua melhora decretada antes do prazo mínimo, com sua periculosidade cessada ou até mesmo controlada, como deveria o magistrado agir? Autorizar que a medida seja extinta, ou mantê-lo pelo prazo mínimo para que seja realizada nova perícia no prazo determinado por lei?

Em suma, por não serem normas fundamentais, conforme dita a pirâmide de Kelsen, estas deverão obedecer a ordem hierárquica, portanto, nesse caso dever-se-á aplicar o que institui o Código Penal, o que discordamos, pelos motivos expostos. Apesar de serem atos administrativos, cremos que tais dispositivos não são executados em vista a precariedade do nosso sistema carcerário, impossibilitando, por exemplo, o melhor tratamento de saúde de acordo com necessidades específicas de cada indivíduo e acesso à equipe médica a qualquer tempo14 (BRASIL, 2001) e, por consequência, a possibilidade de contrariar a legislação de forma eficiente.

Ainda, para a Resolução 487, de 2023, a falta de suporte familiar não deve ser motivo de impedimento para progressão ao tratamento ambulatorial ou para a desinternação (art. 12, § 3º). Embora acreditemos que isso possibilitaria ao interno maior liberdade e possibilidade de progredir, verificamos que a ausência de suporte familiar dificultaria o acompanhamento da reintegração comunitária (proposta da desinternação progressiva), isso porque o apoio familiar é de suma importância para gerar relatórios e pareceres quanto ao desenvolvimento do reeducando, o que contribuiria diretamente em seus prontuários, facilitando, inclusive, as medidas de progressão.

No entanto, não sendo possível o suporte da família, vale lembrar a existência das SRTs que:

[...] são moradias inseridas na comunidade, destinadas a cuidar de pessoas com transtornos mentais crônicos com necessidade de cuidados de longa permanência, prioritariamente egressos de internações psiquiátricas e de hospitais de custódia, que não possuam suporte financeiro, social e/ou laços familiares que permitam outra forma de reinserção, de acordo com as diretrizes descritas na Portaria nº 106 (Brasil, 2000) e normativas relacionadas (Brasil, 2017, 2011; 2001; 1990). São dispositivos estratégicos no processo de desinstitucionalização (PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 2021).

Desse modo, ainda que o apoio familiar seja de suma importância, a metodologia da desinternação progressiva possibilita que outros mecanismos de desinstitucionalização sejam utilizados, a fim de garantir efetivamente a reintegração comunitária. Importante salientar que em ambos os casos, se faz necessário a integração do CAPs para continuidade do tratamento.

Por fim, como medida expressa neste dispositivo, é apresentada a desinstitucionalização dos doentes mentais que iniciará com a revisão dos processos a fim de extinguir a medida de segurança, progredir internações para tratamento ambulatorial ou, se necessário, realizar a transferência para um estabelecimento adequado para tratamento. Após esse feito, projeta a interdição total de todos os HCTPs:

Art. 18. No prazo de 6 (seis) meses contados da publicação desta Resolução, a autoridade judicial competente determinará a interdição parcial de estabelecimentos, alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil, com proibição de novas internações em suas dependências e, em até 12 (doze) meses a partir da entrada em vigor desta Resolução, a interdição total e o fechamento dessas instituições (BRASIL, 2023).

Cumpre ressaltar que logo após a Reforma Psiquiátrica, o Ministério da Saúde instituiu a criação de CAPs justamente para que houvesse a desinstitucionalização desses indivíduos, assim como na Resolução 113, de 2010, mas estes foram apenas utilizados como rede de serviços auxiliares no processo de tratamento.


4. Desinternação progressiva como meio de humanização na execução da medida de segurança

4.1. Conceito e previsão legal

Pela primeira vez no Brasil, em 1966 o Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso, possibilitando aos internos visitarem seus familiares por um determinado período até que estivessem aptos para manter-se definitivamente em sociedade, instaurou a desinternação progressiva. Em São Paulo, o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha foi a instituição pioneira a criar um pavilhão exclusivo e oportunizar visitas experimentais com os familiares nos anos de 1981 a 1984. Todavia, o experimento foi suspenso por falta de previsão legal e somente em 1989 o HCTP-II inaugurou um pavilhão exclusivo para a desinternação progressiva com o intuito de progredir do tratamento hospitalar ao convívio social, realizando a progressividade da medida de segurança através de um procedimento que consiste em etapas.

Inicialmente, o Decreto Nº 46.046, de 2001, organizou o HCTP II de Franco da Rocha implementando as medidas necessárias nas áreas de atuação do hospital, desde a administração até o tratamento multidisciplinar. Nessa linha, a regulamentação do programa ocorreu somente através da Portaria Nº 9 de 09 de junho de 2003, da Vara de Execuções, assinada pelo Doutor Miguel Marques da Silva, todavia, sua aplicação não possui respaldo na legislação atual, mas é concedida sempre por meio de autorização judicial embasada em relatório produzido pela equipe técnica que acompanha os pacientes.

Após a avaliação inicial dos profissionais da equipe multidisciplinar (enfermagem, médico psiquiatra, assistente social e psicólogo) e o respaldo efetivo da família, o paciente gradualmente retorna ao meio social por meio das visitas domiciliares (CIA, 2011).

Diferentemente da desinternação prevista no Código Penal (art. 97, §3º), que consiste em findar a medida de segurança imediatamente após determinação judicial, recolocando o interno diretamente ao convívio social após um período recluso, até mesmo sem apoio da rede familiar, essa medida consiste em uma etapa anterior à desinternação tradicional.

A desinternação progressiva constitui um método terapêutico que agiliza e aprimora a compreensão, o manejo e a efetivação do tratamento, restando claro que o regime de contenção se aplica a poucos internos. Consiste numa revolução terapêutica aplicável aos pacientes-delinqüentes "condenados" à internação, opondo-se ao regime fechado (FERRARI, 2001, p. 9).

Um dos objetivos dessa etapa é garantir segurança jurídica tanto para o indivíduo, quanto para a sociedade, garantindo a funcionalidade das prevenções especiais positivas e negativas assim respectivamente.

Além disso, a desinternação progressiva tem como finalidade a desinstitucionalização do tratamento do portador de sofrimento psíquico e, por consequência, visa alcançar a autonomia dos indivíduos através de um tratamento mais humanitário, com avaliações comportamentais que permitem qualificar a eventual ressocialização do indivíduo (CIA, 2006).

4.2. Procedimentos

Como mencionado, a aplicação da desinternação progressiva ocorre através de etapas visando diminuir a dependência das instalações hospitalares. Primeiramente, é feita a seleção dos internos que apresentaram evolução no tratamento; depois, as acomodações do hospital são ajustadas para que os reeducandos tenham livre acesso aos ambientes, além de terem a possibilidade de visitar espaços externos da instituição, sendo esta uma das formas de estimular a independência e ressocialização; durante as refeições, utensílios e eletrodomésticos ficam a disposição dos agentes, tal como pratos, copos de vidros e talheres, como anota Ferrari (2001).

No HCTP II Franco da Rocha, conforme evolução, é realizada uma estratégia para reintegração comunitária, que funciona através das chamadas imediações acompanhadas, desacompanhadas e, finalmente, as visitas domiciliares assistidas (VDAs).

Nas imediações com acompanhamento, os internos são supervisionados por agentes de segurança da penitenciária dentro de um veículo com outros internos, mostrando os principais locais da cidade. Tudo isso para que sejam ambientados ao local onde cumprem a medida de segurança, e possibilitar que no avanço de seu tratamento possam, futuramente, realizar atividades externas na cidade. Nas imediações desacompanhadas, também conhecida como “permissões de saída”, o reeducando é autorizado a visitar Franco da Rocha ou cidades próximas por até três horas totalmente desacompanhado (CIA, 2011).

Já as VDAs sempre contam com a participação da família durante todo o processo, que inclusive deve anuir e autorizar o procedimento. Geralmente são iniciadas com 3 dias, e vão sendo paulatinamente ampliadas até 21 dias e, durante as visitas, a família e o paciente são orientados a procurar a retaguarda da Secretaria Estadual da Saúde, no CAPs mais próximo da residência, e o paciente sob fiscalização da família recebe toda a medicação necessária para o período da visita domiciliar (SAP, 2022).

Insta salientar que apesar dessas estratégias, todos os internos têm direito a visitas familiares, estando eles aptos ou não para as medidas aqui descritas, além de que tais medidas são aplicadas gradativamente de acordo com o desempenho dos reeducandos, podendo, inclusive, inverter a ordem da execução.

Além das estratégias para reinserir o interno ao convívio social, vale ressaltar que os HCTPs também introduzem atividades educativas, laborativas e recreativas como forma de ressocialização (CIA, 2011), dentre elas, está a possibilidade de trabalhar dentro das unidades hospitalares, com serviços de manutenção e benfeitorias nas instalações, e até mesmo trabalhos remunerados que seguem os padrões de contratação da Lei de Execução Penal (FUNAP, 2020).

4.3. A necessidade de observar a desinternação progressiva no tratamento dos inimputáveis

Diante a ausência de dados, podemos inferir que o descaso com os pacientes que cumprem medida de segurança é um fato. Não só pelas situações apresentadas, ainda que de anos anteriores, mas também pelo sistema de intervenção penal que corrobora para que a medida de segurança acabe se tornando mais próxima de um presídio, do que de uma instituição de tratamento. Nesse sentido:

A sobreposição de dois modelos de intervenção social – o jurídico-punitivo e o psiquiátrico-terapêutico – acarreta uma discrepância entre a finalidade declarada e a sua inserção de fato, que já vem ocorrendo desde o surgimento dos HCTPs. Se a medida de segurança não tem caráter punitivo, então a sua feição terapêutica deve preponderar. É necessária uma reorganização burocrática entre as Secretarias da Administração Penitenciária e da Saúde, para que essa última assuma os HCTPs (CREMESP, 2014, p. 78).

Isso porque mesmo em condições satisfatórias, o tratamento muitas vezes não obtém êxito, em vista que o pressuposto da intervenção médica segrega o doente, não possibilita a cura e ainda cronifica a doença (CIA, 2011). Além disso, muitos casos são classificados como incuráveis, o que a princípio impossibilita que o HCTP - nas condições atuais, busque um avanço progressivo para a desinternação desses indivíduos.

Entretanto, em entrevista realizada com a equipe do HCTP II Franco da Rocha, um dos participantes relatou que em sede de medida de segurança o objetivo não é buscar de imediato a cura e cessação da periculosidade, porque muitas vezes isso não é possível, mas sim em conseguir o que eles chamam de periculosidade controlada. Atingido esse patamar, o interno poderá ser inserido novamente ao convívio social, mas em tratamento a ser realizado e acompanhado pelo Sistema Único de Saúde (CIA, 2011).

O antagonismo gerado pela vinculação dos HCTPs à Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), ao invés de ser conduzido diretamente por órgão da saúde pública, tal como o SUS, evidencia que as falhas na aplicação da medida de segurança e a baixa incidência da desinternação progressiva, estão intrinsecamente correlacionadas ao fato de que existem lacunas na legislação brasileira. Lacunas essas que seriam resolvidas se o Poder Judiciário observasse e aplicasse as recomendações dos atos administrativos mencionados anteriormente, e regulamentasse a desinternação progressiva propriamente dita. Como exemplo, temos o fato de que tais atos dão ênfase no sistema de saúde como órgão que deve ter maior participação na execução da medida de segurança.

Destarte, no que tange a concessão da desinternação progressiva, verificamos que esta só se dá mediante autorização judicial após um conjunto de análise de laudos fornecidos pela unidade de internação. No entanto, na pesquisa realizada por Cia (2011), os entrevistados, ora profissionais do HCTP II Franco da Rocha, revelaram que ainda que o juiz tenha decretado sua aplicação, somente com autorização da equipe médica, os reeducandos poderiam desfrutar desse benefício.

Aqui, observamos novamente um conflito entre as autoridades institucionais. Se somente o juiz de execução tem competência para autorizar saídas temporárias - como é o caso de algumas das etapas da desinternação progressiva, se faz necessário a atuação em conjunto desses órgãos, não cabendo à equipe de saúde do HCTP coordenar as saídas. Cia (2011) reconhece que a colaboração entre o judiciário e os técnicos só seria possível mediante uma reforma estrutural no sistema judiciário, haja vista que a morosidade processual não permitiria que uma solicitação de saída fosse analisada em tempo hábil.

Outra situação analisada por Cia, é de que embora o parecer técnico do perito não seja vinculado à decisão do magistrado, maior parte das decisões segue o parecer técnico. Isto é, se a cessação de periculosidade não foi atestada, o juiz não autorizará a desinternação progressiva. Situação está só é recorrente pelo receio do judiciário em se responsabilizar por contrariar um parecer médico, e por não terem outros recursos que auxiliem em sua tomada de decisão, tal como no caso de Chico Picadinho. Diante esse cenário, verificamos aqui mais um ponto que faz o caráter perpétuo da medida de segurança.

Para Giacoia (et. al., 2016), o distanciamento do judiciário na execução das medidas de segurança e ausência de lei federal que regularize a desinternação progressiva também são um dos motivos pelo qual dificulta o fornecimento de recursos para sua execução. Já para Smanio et al. (2019), a reintegração social deve ser abordada como uma questão de interesse geral, não apenas dos legisladores e do sistema penitenciário. Isso porque tal instituto está diretamente ligado aos direitos fundamentais, além de que a sociedade como um todo é afetada pelos efeitos da delinquência. “Possui a reintegração social, na verdade, uma dimensão transindividual” (GIACOIA, et. al., 2016, p. 509).

Infelizmente, o tema abordado carece de dados recentes, motivo pelo qual ficamos limitados a deduções com base nos estudos de anos anteriores, o que acaba por se tornar um dado relevante, que inclusive é questionado nas pesquisas aqui mencionadas. Com base nos relatórios elaborados por Cia, em 2011, que retrata a falta de fiscalização, estrutura e tratamento médico adequado, pelo CREMESP em 2014, e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNCTP), restou demonstrado que:

[...] a preponderância da lógica da segurança e da disciplina prejudica qualquer perspectiva terapêutica. O tratamento, que deveria ocorrer através da construção de projetos de vida e da aposta na autonomia das pessoas, ficava completamente impossibilitado em um ambiente punitivo e fechado. Além disso, observou-se que as instituições visitadas violavam os direitos das pessoas internadas, sendo, inclusive, frequentes os episódios de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (MNPCT, 2015-2016, p. 62).

Ou seja, as condições e violações criticadas no presente trabalho permaneceram, até onde se sabe, ao menos por 5 anos. Atualmente, notícias disponibilizadas entre os anos de 2017 a 2022, pela Secretaria de Administração Penitenciária, indicam que as tarefas laborais e educativas - ao menos nos HCTPs I e II de Franco da Rocha, estão sendo constantemente incentivadas e têm trazido bons resultados. Exemplo disso é a Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel” de Amparo ao Preso (FUNAP), responsável pelos trabalhos dos internos, ter empregado 70 reeducandos em um convênio com a Prefeitura de Jundiaí, no ano de 2019.

Vejamos, na desinternação prevista em nossa legislação, independente do apoio familiar, ou da existência de uma família que possa acolher o egresso, este é imediatamente reinserido no convívio social, independentemente de ter tido um tratamento psico e sócio-terapêutico, sendo muitas vezes rejeitado pelo seio familiar por dois motivos: receio de suas atitudes e medo de se responsabilizar por eventuais impulsividades - mesmo caso retratado sobre o judiciário.

Por esse motivo, verificou-se que o fato de proporcionar o contato do interno com a sua comunidade de origem inaugura inúmeras possibilidades convenientes para sua ressocialização, mais um indício que tal metodologia é bastante acertada (CIA, 2011, p. 165).

Em suma, é evidente que o mecanismo da desinternação progressiva traria melhores resultados no que tange à execução da medida de segurança. Entretanto, para que isso seja efetivamente possível, se faz necessário a implementação de políticas públicas que viabilizem constantes fiscalizações nos HCTPs e locais de tratamento ambulante (CAPs), visando garantir condições mínimas de salubridade nas instalações e tratamento multidisciplinar adequado, buscando primordialmente respeitar os deveres e garantias constitucionais. Senão, a fim de desintegrar o caráter prisional que a medida de segurança possui hoje, os arts. 1715 e 18 da Resolução Nº 487, que determina a interdição total dos HCTPs - assim como já havia sido indicado na Resolução Nº 113, de 2010 (com a criação dos CAPs), e na Recomendação Nº 35, de 2011, deveriam ser empregados.

Insta salientar que a inclusão das redes alternativas de tratamento demonstra, desde a promulgação da Reforma Psiquiátrica, a ruptura da lógica hospitalocêntrica, uma vez que caminharam da extinção dos manicômios para os HCTPs, e destes, passaram a recomendar a transferência para hospitais gerais nos casos excepcionais de internação, evitando instituições de característica asilar. Ainda, cumpre ressaltar que embora a reforma não tenha sido um ato normativo voltado diretamente para a esfera penal, a Resolução Nº 487, de 2023, foi promulgada justamente com o intuito de reforçar as ideias passadas pela lei antimanicomial, evitando discussões sobre a aplicação ou não de seus dispositivos em sede de medida de segurança.

Nesse sentido, a implementação de lei especial seria imprescindível para que o tema da desinternação progressiva fosse regulamentado e proporcionasse maior segurança jurídica no que tange a sua aplicação e metodologia, padronizando estratégias de reintegração comunitária. Além disso, ainda que se trate de um sistema de intervenção penal, as medidas de segurança deveriam estar diretamente vinculadas ao SUS, haja vista que sua finalidade tem como base a prevenção positiva especial, como foco no tratamento do indivíduo.

Sendo o controle realizado por uma unidade de saúde, a fiscalização e disponibilização de profissionais, por exemplo, seriam de fácil acesso e permitiriam que o objetivo fosse além do farmacológico, visando a cura ou a redução de danos, além de evitar que os indivíduos em tratamento estivessem em ambientes de caráter prisional e asilar.

Apesar das adversidades, as estratégias utilizadas na desinternação progressiva para a ressocialização dos reeducandos trazem indícios de que se esses mecanismos forem aplicados corretamente podem diminuir o índice de reincidência dos inimputáveis, além de proporcionar a periculosidade controlada destes, podendo retornar ao convívio social mediante continuidade do tratamento fornecido pelo SUS.

Sendo assim, a idealização desse mecanismo como uma etapa obrigatória anterior a desinternação propriamente dita decorre da análise de processos que são realizados paulatinamente, a fim de verdadeiramente tratar, ou ao menos mitigar, as consequências do transtorno mental para o indivíduo e a sociedade como um todo.


CONCLUSÃO

O presente trabalho pretendeu compreender detalhadamente como a aplicação do programa da desinternação progressiva poderia aperfeiçoar os resultados da execução da medida de segurança através da metodologia descritiva-qualitativa por meio de pesquisas bibliográficas.

Para compreender a dificuldade que o sistema penal tem em ressocializar os inimputáveis, ocasionando uma pena de caráter perpétuo, definimos três objetivos específicos. O primeiro pretendeu observar a violação de princípios e garantias constitucionais na execução da medida de segurança. Assim, verificou-se que esta violação decorre do caráter higienista que permanece até os dias de hoje, no que se refere aos portadores de transtorno psíquico no sistema penal e também na sociedade como um todo. Depois, buscamos analisar a inconstitucionalidade do prazo indeterminado da duração da medida de segurança, a qual restou demonstrada mais uma evidência de violação da garantia constitucional (de não haver pena de caráter perpétuo), bem como a incompetência do Estado em proporcionar um tratamento adequado aos inimputáveis, que possibilite a reabilitação ao convívio social. Por fim, o último objetivo demonstrou a inadequação do nosso Código Penal no tratamento dos inimputáveis após a Reforma Psiquiátrica. Essa análise permitiu concluir a necessidade de adaptação legislativa do nosso ordenamento e de implementação de políticas públicas de saúde mental, a fim de garantir o aperfeiçoamento na execução das medidas de segurança.

Com isso, a hipótese de implementação do programa de desinternação progressiva se confirmou como medida mais indicada para a execução das medidas de segurança. Isso porque, diferentemente da desinternação prevista em nosso Código, possui uma metodologia diferenciada e estruturada com base na reinserção social de forma paulatina do inimputável. Pois, mesmo que não seja possível a cura absoluta, proporciona um tratamento multidisciplinar dentro da instituição de sanção penal, e oportuniza a continuidade do tratamento após extinção da medida implementada.

Sendo assim, os instrumentos de coleta dos dados, apesar de em parte estarem desatualizados no que se refere aos dados estatísticos das condições de salubridade das instituições, foi possível concluir que estes ambientes permanecem com caráter manicomial até os dias de hoje, em vista da permanência da cultura de segregação dos portadores de transtorno mental e da negligência do Estado em fornecer uma estrutura e tratamento adequado. Além disso, verificamos que o nosso ordenamento carece de dispositivos que possibilitem a regulamentação da própria desinternação progressiva, bem como ignora os atos normativos posteriores a Reforma Psiquiátrica, os quais possibilitariam melhor aplicação das medidas.

Por isso, entendemos que a desinternação progressiva é medida mais indicada para viabilizar a real finalidade de tratamento e ressocialização da medida de segurança, haja vista que sua estrutura foi pensada de forma a desviar a lógica hospitalocêntrica, que segrega e cronifica o transtorno psíquico, para desinstitucionalização desses indivíduos, deixando de ter caráter unicamente prisional, mas sim terapêutico.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABDALLA-FILHO, Elias; CHALUB, Miguel; TELLES, Lisieux E. de Borba. Psiquiatria Forense de Taborda. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2016.

AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.

Após 20 anos, reforma psiquiátrica ainda divide opiniões. Agência Senado, 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/04/06/apos-20-anos-reforma-psiquiatrica-ainda-divide-opinioes

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 15. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010.

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 29 out. 2022.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 30 nov. 2022.

BRASIL. Lei nº 10.216 de 6 de abril de 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm. Acesso em: 01 abr. 2023.

BRASIL. Recomendação nº 35, de 12 de julho de 2011. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/849

BRASIL. Resolução nº 113, de 20 de abril de 2010. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/136

BRASIL. Resolução nº 487, de 15 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://sintse.tse.jus.br/documentos/2023/Fev/27/diario-da-justica-eletronico-cnj/resolucao-no-487-de-15-de-fevereiro-de-2023-institui-a-politica-antimanicomial-do-poder-judiciario e

CARVALHO, Salo de. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro: fundamentos e aplicação judicial. São Paulo: Saraiva, 2013.

CIA, Michele. A alta e a desinternação progressivas como forma de efetivação dos direitos fundamentais dos inimputáveis no sistema penal brasileiro. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, n. 19, p. 183-197, jul./dez.. 2006. Disponível em: https://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=123926. Acesso em: 25 set. 2022.

CIA, Michele. Medidas de segurança no direito penal brasileiro: a desinternação progressiva sob uma perspectiva político-criminal. São Paulo: UNESP, 2011. 268. p., 21 cm. ISBN 978-85-393-0166-9. Disponível em: https://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=96859. Acesso em: 10 set. 2022.

CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Hospital de Custódia: Prisão sem Tratamento: fiscalização das instituições de custódia e tratamento psiquiátrico do estado de São Paulo. Organização de Quirino Cordeiro e Mauro Gomes Aranha de Lima. São Paulo: CREMESP, 2014. Disponível em: https://www.cremesp.org.br/pdfs/Livro_Hospital_de_Custodia.pdf. Acesso em: 16 jan. 2023.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de 04 de junho de 2006. Mérito, Reparação e Custas. Disponível em https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em: 25 mar. 2023.

DIWAN, Pietra. Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007.

ESPANHA. Ley Orgánica 10/1995, de 23 de noviembre, del Código Penal. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1995-25444. Acesso em: 02 nov. 2022.

FERRARI, Eduardo Reale. As medidas de segurança criminais e sua progressão executória: desinternação progressiva. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 8, n. 99, p. 9-11, fev.. 2001. Disponível em: https://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=1912. Acesso em: 19 set. 2022.

FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

FUNDAÇÃO “PROF. DR. MANOEL PEDRO PIMENTEL” DE AMPARO AO PRESO. Câmara de Jundiaí aumenta mão de obra de reeducandos. São Paulo: FUNAP, 2020. Disponível em: https://www.funap.sp.gov.br/index.php/2020/02/05/camara-de-jundiai-aumenta-mao-de-obra-de-reeducandos/. Acesso em: 23 jan. 2023.

GARCIA, Gilberto Leme Marcos. A pena como resposta ao delito. Algumas considerações a respeito do tema. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). 14. de novembro de 1997. Disponível em <https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/2111/>. Acesso em: 28 out. 2022.

GIACOIA, Gilberto; ALMEIDA, Letícia Gabriella. Processo Penal e Medida de Segurança: Um Estudo da Desinternação Progressiva Como Instrumento de Reinserção Social. Revista de Direito Penal, Processo Penal e Constituição, Curitiba, vol. 2, n.2, p. 481. - 501, Jul/Dez. 2016.

GOMES JUNIOR, João Florêncio de Salles. A abolição do duplo-binário e a indevida persistência de uma (sub)cultura da periculosidade no sistema penal brasileiro. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 22, n. 256, p. 5-7, mar. 2014. Disponível em: https://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=103855. Acesso em: 1 out. 2022.

GOMES, Luiz Flávio. Medidas de segurança e seus limites. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 64-72, abr./jun.. 1993. Disponível em: https://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=12750. Acesso em: 30 set. 2022.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.

LIMA, Aluísio Ferreira de; PONTES, Maria Vânia Abreu. O CASO DAMIÃO XIMENES LOPES E A PRIMEIRA CONDENAÇÃO INTERNACIONAL DO BRASIL NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Florianópolis, v. 7, p. 01-13, 20 out. 2015

MECANISMO NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA. Relatório anual 2015-2016. Organização: MNPCT. Brasília, 2015. Número de páginas 92. Disponível em: https://mnpctbrasil.files.wordpress.com/2019/09/mecanismo-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura-relatorio-anual-2015-2016.pdf . Acesso em: 24 jan. 2023.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017.

PAIXÃO, Cristiano; FRISSO, Giovanna Maria; SILVA, Janaína Lima Penalva da. Caso Ximenes Lopes versus Brasil - Corte Interamericana de Direitos Humanos: relato e reconstrução jurisprudencial. 2007. 40. f. Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2007. Disponível em: https://direitosp.fgv.br/casoteca/ximenes-lopes-versus-brasil. Acesso em: 08 mar. 2023.

PERES, M. F. T. e NERY FILHO, A.: A doença mental no direito penal brasileiro: inimputabilidade, irresponsabilidade, periculosidade e medida de segurança. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9(2):335-55, maio-ago. 2002.

PORTUGAL. Decreto-Lei n.º 48/1995, Código Penal. Disponível em: https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/decreto-lei/1995-34437675. Acesso em: 10 nov. 2022.

PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. SECRETARIA MUNICIPAL DA SAÚDE. Protocolo Saúde Mental: Serviço Residencial Terapêutico (SRT). 2. ed. 2021. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/Protocolo%20Saude%20Mental%20Servico%20Residencial%20Terapeutico%20(SRT).pdf. Acesso em: 03 abr. 2023.

QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

RELATÓRIO Nº 38/2002. ADMISSIBILIDADE DA PETIÇÃO 12.237. DAMIÃO XIMENES LOPES. BRASIL, 9 DE OUTUBRO, 2002. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2002port/brasil12237.htm. Acesso em: 23 mar. 2023.

RESOLUÇÃO DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. 2010, Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Resolução de 17 de maio de 2010. Supervisão de cumprimento de sentença. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/ximenes_17_05_10_%20por.pdf. Acesso em 23 mar. 2023.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: Lumen Juris, 2008.

SECRETARIA DA ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA DE SÃO PAULO. HCTP II de Franco da Rocha completa 20 anos. São Paulo: SAP, 2022. Disponível em: https://www.sap.sp.gov.br/noticias/not2116.html#top. Acesso em: 14 jan. 2023.

SILVA, M. V. O. (Org). A Instituição Sinistra: Mortes Violentas em Hospitais Psiquiátricos no Brasil. Conselho Federal de Psicologia, 2001. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2004/05/Instituicao_Sinistra_Mortes_violentas_em_Hospitais_Psiquiatricos.pdf. Acesso em: 22 mar. 2023.

SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Da inimputabilidade penal em face do atual desenvolvimento da psicopatologia e da antropologia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

SOUZA, Percival de. Quarenta anos depois, Chico Picadinho deixa a prisão. R7. [S.I.] 2019. Disponível em: https://noticias.r7.com/prisma/arquivo-vivo/quarenta-anos-depois-chico-picadinho-deixa-a-prisao-22012019. Acesso em: 9 dez. 2022.


Notas

  1. Ver item 2.3

  2. Nesse sentido, Silva (2011) discorre sobre a reforma psiquiátrica poder ou não ser utilizada no âmbito penal, isso porque seu objeto não delimita especificamente sobre portadores de doença mental que praticaram ilícito penal.

  3. Nesse sentido, Ferrari, 2001, p. 38.

  4. Isto é, estado que ocorre temporariamente, não sendo, portanto, considerado doença mental. Nesse sentido, Sadock e Sadock (2007, p. 1.238), também esclarece que o retardo mental é o resultado de um processo patológico no cérebro caracterizado por limitações nas funções intelectuais e adaptativas, não sendo, portanto, considerado doença mental (apud SILVA, 2015, p. 56).

  5. Nesse sentido, Dias (1999, p. 143) compreende que o objetivo mediato da medida de segurança é a prevenção da prática de novos ilícitos penais, por meio da intervenção psiquiátrica sobre o indivíduo (apud CIA, 2011, p. 57).

  6. Aqui vemos novamente como o ideário da segregação do portador de transtorno mental e o caráter higienista do século XIX permaneceram na cultura do país: pouco se discute sobre os problemas enfrentados pelos doentes mentais que cumprem medida de segurança, quiçá buscam por melhorias e inclusão ao convívio social.

  7. CIDH, Relatório Nº 38/02.

  8. [...] artigos 4 (Direito à Vida), 5 (Direito à Integridade Pessoal), 8 (Garantias Judiciais) e 25 (Proteção Judicial) da Convenção Americana, com relação à obrigação estabelecida no artigo 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) do mesmo instrumento (CIDH, 2006, p.2).

  9. A Comissão Interamericana salientou, por sua vez, na mesma audiência pública, que reconhecia “a atitude positiva, ética, responsável e construtiva do [… Estado] manifestada na declaração em que reconhece a responsabilidade pela violação dos artigos 4 e 5 [da Convenção]”. A Comissão ressaltou, ademais, que “[u]ma atitude desta natureza contribui para solucionar o caso presente, mas também contribui para estabelecer um precedente muito importante no Brasil e na região de como os Estados devem atuar responsavelmente quando os fatos são inquestionáveis e quando também é inquestionável a responsabilidade do Estado em matéria de direitos humanos no âmbito do sistema interamericano”. A Comissão destacou, finalmente, que entendia que já havia cessado a controvérsia sobre os fatos e o direito com relação aos artigos 4 e 5 da Convenção (CIDH, 2006, p. 22).

  10. CIDH. CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL. SENTENÇA, 2006

  11. Reconheceu os pais e irmão de Ximenes Lopes como beneficiários das indenizações; a reparação à título de dano material para compensar as consequências patrimoniais, quais sejam, a perda da pensão por incapacidade, e à título de perda de ingressos o desemprego de sua irmã, Irene, em vista do ocorrido; reconheceu o dano emergente em vista das despesas com trâmite para realizar o funeral; e reconheceu o dano imaterial pelo sofrimento gerado à família (CIDH, 2006).

  12. Foram determinadas outras recomendações, tais como a forma que o Estado deverá indenizar a família, prazo para que seja publicada a sentença no Diário Oficial e supervisão da sentença. Entretanto, optamos por colocar as recomendações que serão alvo de discussão na presente monografia.

  13. No âmbito jurídico existem discussões sobre a imputabilidade do indivíduo que é portador do transtorno de personalidade psicopático. No entanto, embora a psicopatia não seja considerada uma doença mental, muitos indivíduos acabam sendo transferidos para tratamento nos HCTPs. Nessa toada, acreditamos que a medida de segurança seja a sanção penal mais adequada para tal, uma vez que no sistema penal brasileiro é o único instituto que proporciona um tratamento psico-sócio-terapêutico.

  14. Em sua obra, Cia questiona e relata, a partir de uma entrevista com os funcionários do HCTP II de Franco da Rocha, a falta de tratamento multidisciplinar a ser aplicado de forma individual para cada paciente, inclusive questiona a falta de técnicos profissionais para atendê-los (CIA, 2011).

  15. Art. 17. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a autoridade judicial competente para a execução penal determinará a elaboração, no prazo de 12 (doze) meses contados da entrada em vigor desta Resolução, de PTS para todos os pacientes em medida de segurança que ainda estiverem internados em HCTP, em instituições congêneres ou unidades prisionais, com vistas à alta planejada e à reabilitação psicossocial assistida em meio aberto, a serem apresentadas no processo ou em audiência judicial que conte com a participação de representantes das entidades envolvidas nos PTSs.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PESSOA, Maria Eduarda Ribeiro. O programa da desinternação progressiva como etapa obrigatória para o processo de ressocialização na medida de segurança. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7701, 1 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110264. Acesso em: 13 set. 2024.