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A boa-fé X o Código Civil.

Um escorregão no art. 1222

A boa-fé X o Código Civil. Um escorregão no art. 1222

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O legislador induz o aplicador da norma num caminho bastante perigoso. Pode o possuidor de boa-fé ser prejudicado no momento da indenização? Ele poderá receber menos do que aplicou?

INTRODUÇÃO

A idéia de boa-fé encontra-se latente nas mais diversas áreas que compõem o Código Civil de 2002. A intensificação das relações interpessoais suscitou a necessidade de reconhecimento de que o direito deveria ir além de de previsões apartadas de valores. O positivismo puro e indiferente deixava diversas portas entreabertas. O sistema jurídico em muitos casos era incompetente para fechar corretamente o ciclo, mitigando a eficácia de sua incidência no âmbito social.

A relativa instabilidade decorrente das regras estanques que tratavam as relações sociais de forma científica e purista distanciava o direito, principalmente o civil, do cotidiano das interações na medida em que inúmeras situações cotidianas acabavam sem a devida resposta estatal, fulminando, por conseqüência a manutenção da paz social.

A inserção de diversas cláusulas abertas [01], aliada a uma forte carga principiológica, foram algumas das preocupações mais pulsantes nos juristas responsáveis pela confecção do atual diploma civilista. [02]

daí a orientação assumida pelos autores do Anteprojeto do Código Civil, sistematizado e publicado em 1972, o qual, devidamente revisto culminou no Projeto de 1975, enviado ao Congresso Nacional, nele já apresentada a eticidade, cuja raiz é a boa-fé, como um dos princípios diretores que o distinguem do individualismo do Código revogado de 1916. [03]

Utilizando-se de uma base de sustentação formada a partir da combinação de três princípios - eticidade, socialidade e operabilidade -, o Código Civil recheia seu texto com previsões onde é possível encontrar a incidência da boa-fé [04]. Não é por outro motivo que o coordenador responsável pela sua elaboração afirma categoricamente que: "O constante valor dado à boa-fé constitui uma das mais relevantes diferenças entre o Código Civil de 1916 e o de 2.002, que o substituiu." [05]

Os princípios já anunciados, inclusive o da ética, influenciam a interpretação de todos os dispositivos que compõem o mencionado diploma, adequando-os às reivindicações da cidadania que se pretende vivenciar no século XXI, onde o respeito à dignidade humana e aos valores sociais do homem são exigências de ordem constitucional. [06]

Considerado como o cerne do princípio da eticidade, o tema central do presente ensaio demanda a necessidade de observância do elemento psicológico – da intenção - do sujeito, afinal, "dessa intencionalidade, no amplo sentido que Husserl dá a essa palavra, resulta a boa-fé objetiva, como norma de conduta que deve salvaguardar a veracidade do que foi estipulado." [07]. A necessidade de valoração da probidade das partes da relação é inconteste para a manutenção a segurança jurídica, na medida em que este, certamente, é um ponto de partida para a construção de uma expectativa de cumprimento da obrigação pactuada sem desvios no seu roteiro.

Torna-se, portanto, uma cláusula geral [08] segundo a qual é estabelecido um padrão de confiança. As condutas devem ser pautadas a partir de delineamentos adjetivados de lealdade, com a imposição de comportamentos necessários para a preservação da expectativa criada em razão da celebração do liame. Não é necessária a existência de normas positivadas que tragam consigo determinações expressas neste sentido. "Não se orientam diretamente ao cumprimento da prestação, mas sim ao processamento da relação obrigacional, isto é, a satisfação dos interesses globais que se encontram envolvidos. Pretendem a realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes." [09]


AS MODALIDADES DE BOA-FÉ.

A configuração da boa-fé parte de dois vieses que foram denominados doutrinariamente de subjetivo e objetivo. O segundo caminho trilha no sentido de garantir a obediência à uma conduta comportamental pré-estabelecida pelo homem médio. A postura proba e honesta são matizes condutoras para a incidência da boa-fé objetiva. Neste caso, a postura perante a sociedade é colocada como baluarte da análise.

Entretanto, vale ressaltar que a existência prévia deste arquétipo não deve conduzir a uma análise engessada do acontecimento jurídico. Ao contrário, para a sua efetiva aplicação, deve ser considerara fatores inerentes ao caso concreto, como por exemplo, a condição social dos indivíduos ali envolvidos. "O que importa é a consideração de um padrão objetivo de conduta, verificável em certo tempo, em certo meio social ou profissional e em certo momento histórico." [10]

Por sua vez, o primeiro grupo inclina-se na análise do âmbito íntimo da pessoa. É um estado de consciência individual que conduz à certeza de não lesar o direito de outrem, ou seja, de não causar dano injusto ao seu semelhante. A intenção do sujeito é o mais importante na abordagem desta boa-fé. [11]


BOA-FÉ E MÁ-FÉ NOS DIREITOS REAIS: UMA RÁPIDA ABORDAGEM.

No que se refere ao direito das coisas, a análise deve permeia-se no âmbito da boa-fé subjetiva [12]. Quando a norma agrega esta qualidade ao comportamento do sujeito não está suscitando a sua forma objetivada, como ocorre, por exemplo, com a parte obrigacional e contratual. Aqui, no âmbito das relações reais, assim como das familiares, por exemplo, no caso do casamento putativo, o intérprete deve levar em consideração a análise do aspecto íntimo do agente. Assim, afirma-se se que, o possuidor é de boa-fé quando ele demonstra que ignora o vício ou qualquer outro entrave que lhe impeça adquirir a coisa [13]. O Código Civil é harmônico neste sentido ao afirmar em seu art. 1202 que: "a posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente".

Pode-se dizer que a boa-fé é a alma das relações sociais e continua representando importante papel no campo do direito, o qual lhe confere numerosos privilégios e imunidades, sobretudo em matéria de posse, atribuindo ao possuidor de boa-fé, por exemplo, direito à percepção dos frutos. [14]

Orlando Gomes afirma que o direito nacional concebe a boa-fé de maneira negativa, ou seja, como uma ignorância e não como uma convicção. Em outras palavras afirma-se que se o possuidor possui idéia ou conhecimento do vício ele será considerado como sendo de má-fé. [15] "A culpa, a negligência ou a falta de diligência comum são enfocadas, pois como excludentes da boa-fé, como o fazem os adeptos da concepção ética." [16]

O fato é que a ignorância do vício ou do impedimento figura como ponto central na sustentação da boa-fé. Inexistirá sua configuração, caso haja o conhecimento de qualquer empecilho existente. Sendo assim, é plenamente aceitável que determinada pessoa transmute-se da condição de possuidora de boa-fé para de má-fé. Para tanto, basta que salte aos seus olhos a existência de irregularidades na sua posse.

Nesta solução, há um deslocamento para o objetivismo. A conversão da posse não se verifica no momento em que o possuidor tem conhecimento da existência do vício ou do obstáculo, mas, sim, quando as circunstâncias firmem a presunção de que não os ignora. Essa exteriorização é inevitável, porquanto não e pode apanhar. Na mente do possuidor, o momento preciso em que soube que possui indevidamente. Mister se faz, pois que não possa ocultar esse conhecimento, o que se verifica quando a alegação de que ignorava é desmentida por fatos. [17]

O grande problema enfrentado pela doutrina era estabelecer qual o momento em que isso realmente ocorre. Utiliza-se para tanto o oferecimento de ação cabível contra o possuidor de boa-fé. Partindo-se deste ponto, a doutrina divide-se em três correntes: a primeira afirma que cessará a boa-fé do possuidor quando da propositura da ação contra ele. Afastamos-nos deste pensamento na medida em que, com a simples propositura da ação, ainda não houve a correta adequação dos liames jurídicos. Uma das partes, juridicamente, ainda não teve conhecimento das alegações contra ela ofertadas.

Paralelamente, surge a teoria de que a boa-fé somente cessará com a apresentação da defesa do réu. Como se pode observar há uma ampliação demasiada nestes casos, pois após o recebimento da citação, o acionado já tem conhecimento de que a sua posse não se encontra de forma tão perfeita como ele imaginava. Há um impedimento que mitiga a sua condição de incontestável. Assim, não há porque aguardar todo o lapso temporal de apresentação da defesa para configurar a existência da má-fé. A própria doutrina estabelece que se considera cessada a boa-fé a partir do conhecimento do fato impeditivo, o que implica em dizer que seria controvertido afirmar que apenas com a apresentação defesa põe termo à condição de desconhecimento.

Portanto, mais adequada para os preceitos determinados pela doutrina brasileira é considerar a boa-fé extinta a partir da efetiva citação do réu. Não é necessário aguardar o transcurso do lapso temporal de defesa para que haja a transformação da sua condição. Sendo válida, a citação, não há mais que se falar em boa-fé, pois ciente encontra-se o possuidor da sua situação.

Em sintonia com as garantias fundamentais alinhavadas na Constituição Federal de 1988, é de se entender que, em geral, a boa-fé converte-se em má-fé pela citação ou algum outro modo de interpelação judicial que culmine em uma demanda que venha posteriormente validar a pretensão de quem pleiteie a restituição da coisa. [18]

Este "estado de desconhecimento" ganha proteção jurídica até que seja destruída pela superveniência da má-fé, que, segundo doutrina majoritária [19], é concretizada a partir da citação do réu na ação possessória cabível.

A ignorância da condição real não poderá prevalecer eternamente, sob pena de destruir institutos como o da segurança jurídica necessária nas relações sociais. É evidente que, por manobras de terceiros, ou até mesmo por desconhecimento, alguém poderá trazer em seu âmago o pensamento de que não está prejudicando outrem, porém, a manutenção deste sentimento após o seu conhecimento oficial de existência de litígio – a citação – seria agraciar aquele que se encontra numa situação considerada incompatível com os anseios da sociedade. "La buena fé del poseedor consiste en ignorar el vicio que le há impedido convertirse en proprietario y que have fragil su título de adquisición, o también en tener por real un título que no existe". [20]

O subjetivismo característico desta espécie de boa-fé pode induzir ao pensamento em torno da necessidade de existência de prova material, denominada pela jurisprudência de justo título [21]. Porém, a viabilidade deste aspecto físico, não forma um liame indissociável para a comprovação da boa-fé subjetiva. Há uma desvinculação – ainda que relativa - de um para com o outro. Poderá existir boa-fé sem que haja o justo título, porém este último torna presumível a existência daquele outro. O parágrafo único do artigo 1201 garante a presunção juris tantum da boa-fé ao possuidor que possua justo título.

Convém observar que o conceito de justo título para a posse é mais amplo do que o justo título para fins de usucapião. Para se alcançar a modalidade ordinária de usucapião (art. 1242 do CC) requer-se um ato jurídico em tese formalmente perfeito a transferir a propriedade (v.g, escritura de compra e venda, forma de partilha). Já o justo título título para posse demanda apenas uma título que aparenta ao possuidor que a causa de sua posse é legítima (v.g. contrato de locação ou de cessão de direitos possessórios) [22]

A observância da condição de possuidor de boa ou de má-fé é de suma importância quando se verifica, por exemplo, a percepção dos frutos decorrentes do bem. Também se encontram incluídos neste nesta análise a obrigação de indenizar em razão da deterioração do bem e pelas benfeitorias realizadas. Sendo o possuidor coberto pelo desconhecimento do vício ele terá proteção jurídica mais ampla do que aquele que tem consigo um bem com o conhecimento do vício existente.


BOA-FÉ X MÁ-FÉ: ALGUNS EXEMPLOS NOS DIREITOS REAIS DO CC/02

As condições fornecidas pela lei ao possuidor de má-fé são restritas ao extremo. O legislador civilista buscou evitar a todo custo que aquele que tem conhecimento do vício venha a beneficiar-se desta sua condição. Como exemplo deste repúdio, pode-se citar a obrigação de indenizar conferida ao possuidor de má-fé no caso de deterioração ou perda do bem.

Estando uma pessoa na posse de determinado bem é inegável que a conseqüência desta utilização poderá decorrer em três conseqüências: o bem permanecerá com o seu estado físico inalterado; ao bem serão acrescidas novas qualidades, ou, por fim, o bem perderá em sua qualidade ou substância.

O art. 1217 apresenta a responsabilidade do possuidor de boa-fé pela deterioração da coisa apenas em situações estritas, ou seja, quando ele deu causa por culpa ou por dolo [23]. Nesta esteira, é possível observar que à exceção destas duas situações, este possuidor não será responsabilizado caso o bem venha a perecer em suas mãos. Em assim sendo, por exemplo, caso uma pessoa esteja na posse de terminado bem e em razão de uma forte chuva, tal objeto venha a perecer, será ele escusado da responsabilidade de indenizar o real possuidor ou proprietário do bem, em razão dos danos decorrentes. Isso porque, neste caso, não teve ele culpa pela ocorrência do fato.

Tratamento bastante diferenciado é aquele conferido ao possuidor de má-fé. Ao contrário das "intenções protetivas" que permeiam as previsões normativas concernentes ao possuidor de boa-fé, o de má-fé não é visto como bons olhos pelo legislador civilista.

Ainda permanecendo na situação de responsabilização pelos danos decorrentes por perda ou deterioração do bem, é possível perceber que o diploma civil foi muito mais rígido. Enquanto, como dito, para aquele que desconhece do vício a responsabilidade é incidente apenas no caso de culpa ou dolo, para o outro que possui o bem viciado com o conhecimento desta condição, a lei porta-se de forma diferenciada. Ela apresenta apenas uma forma de excludente de responsabilidade, qual seja: salvo se conseguir provar que aquele dano sofrido ocorreria da mesma forma na situação em que o bem se encontrasse na mão do reivindicante. [24]

No texto do art. 1218, o Código Civil trouxe uma expressão que restringe ainda mais a possibilidade do possuidor de má-fé se livrar da responsabilidade pela deterioração da coisa. Segundo o legislador civil ele somente será escusado caso prove que "de igual modo" teria ocorrido os danos caso estivesse na mão, por exemplo, do proprietário de direito.

A expressão "de igual modo" conduz a uma idéia de limitação bastante salutar. Perceba que não poderá fugir de indenizar o reivindicante o possuidor de má-fé sob a alegação de que, "de qualquer forma iria acontecer um dano" ao bem. O ordenamento previu a única possibilidade quando os danos configurados nas "mãos" do possuidor de má-fé sejam os mesmos daqueles que aconteceriam caso estivesse nas mãos do proprietário. Assim, ainda permanecendo no exemplo acima, caso determinada pessoa possua um bem com conhecimento de seu vício (má-fé) e, em razão de fortes, chuvas este bem venha a deteriorar por completo, é impingido pelo ordenamento que este possuidor arque com a indenização ao proprietário, mesmo em se tratando de um acontecimento imprevisto. Também será a ele imposta a obrigação de responder caso seja caracterizado que na posse do proprietário de direito o bem não se deterioraria por completo, mas apenas ocorreriam danos de menor monta.

É evidente que a rigidez com que foi tratado o tema apresenta uma opção legislativa por uma espécie de punição àquele que arca com a posse de um bem viciado sabendo da existência deste gravame. Não poderia o ordenamento jurídico fechar os olhos para tal situação, na medida em que estaria ele viabilizando benefício ao mais esperto ao reconhecer a possibilidade de determinada pessoa aproveitar-se de uma situação considerada irregular pela sociedade para, dali, retirar vantagem em relação aos demais.


A BOA-FÉ E AS BENFEITORIAS

A mesma análise acerca do aspecto subjetivo do possuidor deve ser desenvolvida, também, quando se agrega valor ao bem a partir da realização de benfeitorias.

Em breves palavras, pode-se afirmar, que benfeitorias são construções realizadas pelo ser humano diretamente na estrutura da coisa com o objetivo de conservá-la, melhorá-la ou, até mesmo, embelezá-la. Em assim sendo, a norma civilista divide em seu art. 96 as benfeitorias em três grupos: as necessárias, as úteis e as voluptuárias. [25]

No que se refere à posse, quando detectada a existência de benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa-fé, são assegurados alguns benefícios. Caso haja, por exemplo, a feitura de obras com o objetivo de conservar ou evitar o perecimento de determinado bem, será concedido a este possuidor o direito a ser indenizado e, além disso, de reter o objeto em questão, até que o requerente lhe pague pelos custos decorrentes desta melhoria.

O mesmo pensamento deve ser aplicado, também, para as benfeitorias denominadas úteis, ou seja, aquelas que buscam aumentar ou facilitar o uso do bem.

Por sua vez, quanto às benfeitorias consideradas como voluptuárias, terá o possuidor de boa-fé o direito de suspendê-las caso isso não venha a provocar danos no bem principal. Exemplificando, pode-se dizer que caso haja uma escultura na entrada de determinada casa, poderá o possuidor de boa-fé retirá-la quando da devolução do bem ao proprietário originário, o que não poderá fazê-lo com relação à piscina semi-olímpica construída aos fundos desta mesma residência, pois neste caso haverá danos ao bem em questão. [26]

Já no que se refere ao possuidor de má-fé, o legislador civilista mantém o tratamento diferenciado e rigoroso existente quanto à deterioração da coisa. Segundo o art. 1220, do Código Civil, a indenização destinada àquele que conhece dos vícios do bem somente será aceita pelo regramento quando se tratar de benfeitorias necessárias. [27]

É evidente que este comportamento demonstra a clara intenção de evitar o enriquecimento sem causa do requerente, na medida em que, mesmo estando de má-fé, o possuidor viu-se obrigado a realizar reparos no bem, evitando que este viesse a se deteriorar ou a ter o seu uso mitigado em razão de uma destruição. Nesta situação, não deve haver escolha entre fazer ou não fazer. O que se deve ter em mente é que ante a omissão na execução do ato conservatório, incidirá o possuidor de má-fé em responsabilidade pela conservação do objeto. Então, a omissão seria mais prejudicial do que a realização de obras com a finalidade de evitar que o bem se deteriore - tanto para o reivindicante que teria o sem bem deteriorado, quanto ao possuidor que teria que arcar com a responsabilidade por ter permitido que a coisa danificasse.


CÓDIGO NOVO, IDÉIA VELHA.

Tudo estaria em plena harmonia caso o legislador civilista de 2002 tivesse deixado para trás as amarras existentes no sistema jurídico-econômico anterior.

Caso pudéssemos regredir no tempo num lapso temporal de um pouco mais do que dez anos encontraríamos uma figura que, por muito pouco, não se transformou em mascote do Brasil. O ícone da sua representatividade era feito a partir da imagem de um dragão até por que, estes animais representam a idéia de brutalidade e de inconseqüência nos seus atos. [28]

A inflação era – e nos tempos atuais ainda amedronta sair da cova na qual foi enterrada – o temor primordial da economia brasileira. Inúmeros foram os planos, as mudanças de moedas e outras táticas metajurídicas utilizadas para conseguir colocar este "monstro" deitado e calmo. [29] A sua inquietude fazia com que o poderio econômico do brasileiro, simplesmente, escorregasse por entre seus dedos num lapso de tempo que, em muitas vezes, era menor do que o espaço de um mês. "A inflação referida não é essa pequena variação de hoje em dia, medida com a precisão de duas casas depois da vírgula. É a inflação dos dois dígitos por mês, dos quatro dígitos por ano. É a hiperinflação, que bateu em 2.700% em 1993 e que os chargistas representavam como um dragão." [30]

O fato é que até o presente momento, o dragão cuspidor de fogo existente anteriormente, hoje, encontra-se engaiolado, apesar de suas veementes ameaças de força com os aumentos, quase que mensais, dos preços dos alimentos. É inquestionável que apesar de algumas turbulências momentâneas o vôo da economia brasileira ainda continua num céu sem muitas nuvens.

Mesmo diante do gradativo controle da economia e da sua estabilização já se encontrar bastante firme ao tempo da promulgação do Código Civil de 2002 – perceba que o plano real foi instituído em 1994, ou seja oito anos antes – o legislador não foi cuidadoso ao tratar do assunto referente a forma de indenização pelas benfeitorias realizadas.

Como já mencionado, o reivindicante somente possui a obrigatoriedade de indenizar o possuidor de boa-fé nos casos de benfeitorias necessárias e úteis, enquanto que ao de má-fé, resume-se apenas à primeira hipótese. O fato é que, o art. 1222 anuncia o seguinte: "o reivindicante, obrigado a indenizar as benfeitorias ao possuidor de má-fé, tem o direito de optar entre o seu valor atual e o seu custo; ao possuidor de boa-fé indenizará pelo valor atual."

Pode até parecer birra criticar um artigo tão claro e inconteste como esse!

Primeiramente deve-se incidir a crítica sobre a parte inicial do artigo. Segundo ele, por exemplo, o proprietário, numa situação em que o possuidor de má-fé realizou benfeitorias necessárias, tem o direito de optar pelo pagamento do valor atual ou daquele exato montante gasto para a realização da obra. Observe que a lei abre a possibilidade de escolha, o que conduz ao pensamento de que o reivindicante irá escolher a opção que incida seja menos custoso para o seu orçamento. Porém, é válido observar que o possuidor de má-fé não interveio no bem por sua mera deliberação, mas sim por que era havia uma espécie de imposição na sua realização, na medida em que se não o fizesse o objeto poderia vir a perecer ao longo do tempo. Foi um ato de conservação que, ao nosso ver, deveria ser indenizado pelo valor depreendido pelo possuidor de má-fé.

Não é este o pensamento de Clóvis Beviláqua que defende a viabilidade da escolha pelo reivindicante "porque o reivindicante deve indenizar as vantagens, o acréscimo de utilidades, que, realmente, lhe advenha. Por outro lado, pode o valor atual resultar acrescido por causas estranhas ao possuidor, e não é justo que ele colha vantagens dessa circunstância, com prejuízo reivindicante." [31]

Apesar da opinião do ilustre autor, acredita-se que a sustentação desta linha poderá conduzir ao enriquecimento sem causa - no exemplo, em questão – do proprietário que, teve em sua casa conservada através de realização de benfeitorias necessárias no valor, por exemplo, de cinco mil reais e poderá optar pelo pagamento da quantia de dois mil reais, valor atual. Ora, como pode haver desvalorização do produto num país que sempre viveu sob a sobra do dragão da inflação?

Com o advento da estabilidade econômica abriu-se a possibilidade para a manobra por parte do governo de desoneração de tributos de alguns produtos considerados por ele como importantes. Isso ocorreu, por exemplo, com os carros populares 1.0 [32].

Não data de muito tempo, outra manobra do governo para aumentar a acessibilidade dos mais humildes foi a redução do IPI sobre os produtos de construção civil. O decreto 5697 de 07 de fevereiro de 2006 trouxe consigo a alteração na tabela de incidência do IPI sobre vinte e seis produtos utilizados na construção civil. [33] Esta novidade afeta diretamente a aplicabilidade do artigo 1222 do Código Civil.

Apesar de encontrar-se de má-fé, o possuidor que realizou obras dentro do necessário para a conservação do bem não poderá provocar o enriquecimento sem causa do proprietário!

Porém, muito pior do que a primeira parte do referido artigo, é a sua segunda metade. Afirma o legislador: "ao possuidor de boa-fé indenizará pelo valor atual". Restringindo apenas na análise das benfeitorias necessárias – pois as úteis também são indenizáveis – é possível exemplificar o seguinte: determinada pessoa A, possuidora de boa-fé, realizou obras de conservação no imóvel no valor de dez mil reais. Após a execução dos serviços ela foi citada para numa ação possessória. O reivindicante logrou êxito com na prestação jurisdicional, sendo-lhe concedido o direito de ter o bem de volta, porém, mediante o pagamento de indenização pelo valor atual da obra, conforme determina o art. 1222 do Código Civil.

Acontece que com a redução do IPI nos produtos industrializados, houve uma defasagem nos preços que pode chegar a 12% do que foi pago anteriormente. Assim, caso fosse aplicada a letra fria da norma, acabaríamos adentrando numa contradição inconteste, na medida em que, a norma estaria chancelando a possibilidade do possuidor de boa-fé ter prejuízo pelos seus atos praticados.

Certamente que alguns argumentarão que ele também terá prejuízos nos casos de benfeitorias voluptuárias já que, caso não consiga levantá-las, não será indenizado!

Acontece que a lei garante a ele a possibilidade de levantá-las. Apenas em última hipótese de impossibilidade é que ele deverá levar consigo o prejuízo. Ademais, esta melhoria é apenas em âmbito embelezador. As demais, necessárias e úteis é garantido ao possuidor de boa-fé proteção total, na medida em que dispõe do direito de retenção.

Portanto, ainda contaminado com o aspecto econômico vivido pelo País ao tempo da existência do Diploma de 1916, o legislador civilista atual acaba por induzir o aplicador da norma num caminho bastante perigoso. Afinal, pode o possuidor de boa-fé vir a ser prejudicado no momento da indenização? Em outras palavras, ele poderá receber menos no que aplicou?

Parece-nos que não!

Na medida em que a boa-fé para os direitos reais representa o desconhecimento de vício, não há porque punir o possuidor com um pagamento a menor do valor investido. Desconhecia o possuidor a sua condição irregular, o que lhe garante o direito de ser integralmente restituído pelo montante pago. Certamente caminharam em trilhas tortuosas os idealizadores, especificamente, deste dispositivo legal. Infeliz a disposição da expressão "pelo valor atual" pois amarra o aplicador do direito a determinar o pagamento da quantia-referência do momento.

Certamente, a intenção do legislador em incluir a expressão "pelo valor atual" foi blindar o investimento feito por aquele que estivesse de boa-fé, na medida em que, num país onde a inflação reinava absoluta, a desvalorização do montante aplicado era um acontecimento inconteste. Sendo assim, ao imputar ao aplicador do direito a utilização do preço atual, estaria a norma evitando, pelo menos, que a depreciação da moeda não fulminasse este possuidor.

Porém, na realidade atual, podemos dizer que "o tiro saiu pela culatra". A utilização do artigo 1222 do Código Civil de 2002 por um magistrado positivista pode vir a causar prejuízos para o possuidor de boa-fé. A possibilidade de queda de preços surgida com a estabilidade social trouxe consigo, também, a viabilidade de uma indenização menor do que aquilo que foi gasto, o que não pode ser aceito pelo ordenamento jurídico.

Em sendo assim, acreditamos que não foi feliz o legislador no momento em que decidiu por inserir no supracitado artigo a expressão "pelo valor atual". [34] Melhor seria se ao invés disso, houvesse um direcionamento no sentido de existir previsão que ressalvasse o valor investido, com as devidas atualizações necessárias. Somente desta forma estaria o legislador assegurando a proteção necessária ao possuidor de boa-fé, evitando, inclusive, em casos do cotidiano a configuração do seu enriquecimento sem causa ou, até mesmo, da imputação de prejuízos, situação essa que deve ser completamente repudiada.

O fato é que, a sociedade não aguarda a aprimoramento da norma jurídica. Na realidade, esta última sempre anda passos atrás daquela primeira. São as interações sociais que moldam e conduzem o ordenamento jurídico. Numa metáfora, podemos dizer que as margens entre o certo e o errado são modeladas pela correnteza do rio social. De acordo com a força ou da violência das águas a transformação das cercaduras será feita com maior ou menor intensidade. O que é importante salientar é que, seja de uma forma ou de outra, as relações não adormecem a espera da evolução do ordenamento.

Sendo assim, o operador do direito que se debruçar sobre tal situação deve ter, a prima face, a visão principiológica que o Código Civil demanda. A utilização apenas de uma hermenêutica gramatical da norma, certamente, conduzirá o ordenamento num caminho dispare àquele esperado pela sociedade. Já que, no âmbito da boa-fé subjetiva verifica-se "o estado psicológico do sujeito que pratica o ato no tráfico, isto é, que se saber se ele agiu efetivamente movido por erro ou na crença de estar em conformidade com o ordenamento jurídico" [35] a incidência do princípio da eticidade deve reinar absoluto.

É evidente que o dispositivo normativo em apreço apresenta choque frontal com o princípio da eticidade, o que obriga o aplicador do direito a utilizá-lo com todo esmero possível, evitando-se, com isso, a construção de decisões díspares com a tábua axiológica que vigora absoluta no ordenamento jurídico atual. Portanto, acreditamos que a expressão "pelo seu valor atual" deve ser vista com ressalvas na medida em que deve operador do direito determinar o pagamento de uma indenização no mesmo valor daquele utilizado ao tempo da realização das benfeitorias, com as atualizações necessárias para garantir a manutenção do poder econômico do possuidor de boa-fé. O objetivo da norma não é enriquecê-lo, e muito menos aceitar um possível prejuízo.

Assim, a chave para a resolução desta discordância encontra-se exatamente na análise do princípio da eticidade que é uma das bases centrais do Novo Código Civil.


Notas

  1. Em análise sobre o sistema Aberto Nelson Rosenvald afirma que: "Com a edição de conceitos abertos como a da boa-fé, é possível ao magistrado adequar a aplicação do Direito e dos influxos de valores sociais, pois os limites dos fatos preconizados nas cláusulas gerais é exatamente imaginá-las como uma técnica de legislar oposta à casuística, que se configurava pela regulação típica de matérias, mediante delimitação por pattispecie, aplicando-se a norma, através do processo conhecido como subsunção, e evitando-se a amplitude das generalizações. O verdadeiro significado das cláusulas gerais reside no domínio da técnica legislativa, pois graças à sua generalidade, torna-se possível captar um vasto grupo de situações a uma conseqüência jurídica." (ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. 3 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 28)
  2. Segundo Clóvis do Couto e Silva: "O pensamento que norteou a Comissão que elaborou o projeto do Código Civil brasileirofoi o de realizar um Código central, no sentido que lhe deu Arthur Steinwenter, sem a pretensão de nele incluir a totalidade das lei em vigor no País (...). O Código Civil, como Código Central, é mais amplo que os código civis tradicionais. É que a linguagem é outra, e nela se contém "clausulas gerais", um convite para uma atividade judicial mais criadora, destinada a complementar o corpus júris vigente com novos princípios e normas" (SILVA, Clóvis do Couto e. O Direito Civil Brasileiro em Perspectiva Histórica e Visão de Futuro. In: Revista Ajuris nº 40: Porto Alegre,1987, p. 148- 149
  3. REALE, Miguel. A boa-fé no Código Civil. disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm>; acessado em: 29 abr. 2008
  4. Como exemplo, pode-se citar os artigos 113, 167 e 765 do Código Civil de 2002 que trazem em seu texto, respectivamente: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração."; "Presumem-se, porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família." e "O segurado e o segurador são obrigados a guardar, na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes."
  5. Idem
  6. DELGADO, José Augusto. A ética e a boa-fé no Código Civil. Disponível em: < http://bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/8592/1/A_etica_e_a_boa_fe_no_novo_codigo_civil.pdf>; acessado em: 29 abril 2008
  7. REALE, Miguel. Um  Artigo-Chave  Do  Código  Civil disponível em: < http://www.miguelreale.com.br/artigos/artchave.htm>; acessado em: 29 abr. 2008
  8. Segundo Judith Martins-Costa: "às cláusulas gerais é assinalada a vantagem da mobilidade, proporcionada pela intencional imprecisão dos termos da fattispecie que contém, pelo que é afastado o risco do imobilismo porquanto é utilizado em grau mínimo o princípio da tipicidade.

    Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar, previamente, resposta a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. Na verdade, por nada regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como metanormas, cujo objetivo é enviar o juiz para critérios aplicativos determináveis ou em outros espaços do sistema ou através de variáveis tipologias sociais, dos usos e costumes objetivamente vigorantes em determinada ambiência social. Em razão destas características esta técnica permite capturar, em uma mesma hipótese, uma ampla variedade de casos cujas características específicas serão formadas por via jurisprudencial, e não legal.

    Considerada, pois, do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente "aberta", "fluida" ou "vaga", caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico. Esta disposição é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual não só resta assegurado o controle racional da sentença como, reiterados no tempo fundamentos idênticos, será viabilizada, através do recorte da ratio decidendi, a ressistematização destes elementos, originariamente extra-sistemáticos, no interior do ordenamento jurídico.

    Conquanto tenha a cláusula geral a vantagem de criar aberturas do direito legislado à dinamicidade da vida social tem, em contrapartida, a desvantagem de provocar --- até que consolidada a jurisprudência --- certa incerteza acerca da efetiva dimensão dos seus contornos. O problema da cláusula geral situa-se sempre no estabelecimento dos seus limites. É por isto evidente que nenhum código pode ser formulado apenas e tão somente com base em cláusulas gerais, por que, assim, o grau de certeza jurídica seria mínimo. Verifica-se, pois, com freqüência, a combinação entre os métodos de regulamentação casuística e por cláusulas gerais, técnicas cuja distinção por vezes inclusive resta extremamente relativizada, podendo ocorrer, numa mesma disposição, "graus" de casuísmo e de vagueza. (COSTA, Judith Hofmeister Martins. O Direito Privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/513>. Acesso em: 29 abr. 2008)

  9. MELO, Lucinete Cardoso de. O princípio da boa-fé objetiva no Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 523, 12 dez. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6027>. Acesso em: 29 abr. 2008.
  10. COSTA, Judith Hofmeister Martins. op. cit
  11. Lembram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que: "o conceito restrito da boa-fé psicológica é um prêmio para os desidiosos e lenientes e uma punição para os diligentes e cuidados, que seriam sancionados por perceber aquilo que todo cidadão comum poderia facilmente atinar. Ademais, é humanamente impossível ingressar no intimo de cada pessoa para desvendarmos se ela conhecia ou não determina circunstância. Portanto, a boa-fé deixa de ser um mero desconhecimento, convertendo-se em um "desconhecimento sem culpa". Assim, se o possuidor adquiriu a coisa de menor impúbere com aparência infantil, não pode alegar ignorância da nulidade que pesa sobre o seu título, como também não pode ignorá-la se comprou imóvel sem examinar a prova de domínio do alienante." (FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 81)
  12. Cristiano de Farias Chaves e Nelson Rosenvald criticam o Código de 2002 ao afirmar que: "o legislador de 2002 reiterando o Código Civil de 1916 não foi sensível a eticização da boa-fé psicológica, perdendo uma bela oportunidade de se ajustar às concepções mais atuais do direito privado e à própria diretriz da eticidade que permeia o novo Código Civil." (FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 80)
  13. Observando, mais uma vez, a doutrina de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald concordamos com os autores no sentido de que: "o vício subjetivo da má-fé decorre da ciência do possuidor no tocante à ilegitimidade de sua posse. Já a boa-fé envolve um estado psicológico que necessariamente não se liga à maneira peã qual a posse foi adquirida, e sim a uma visão interior do possuidor sobre a sua real situação jurídica diante da coisa" ((FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. op cit. p. 80)
  14. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, Vol V, 2008, p. 74
  15. Analisando o tema da boa-fé, Orlando Gomes indaga-se acerca do estado de dúvida. Seria ela um caminho para a configuração da boa-fé ou para a sua destruição total, ou seja, para a consideração no âmbito da má-fé? "Na solução deste problema, influi o conceito de boa-fé. Para os que a concebem de modo positivo, como a convicção de que a coisa possuída de direito lhe pertence, a dúvida, mesmo leve, impede que a posse seja de boa-fé. Entendida em sentido negativo, como a ignorância de vícios ou obstáculos impeditivos da aquisição da coisa, somente a dúvida relevante exclui a possibilidade de boa-fé. Também exclui a culpa do possuidor na aquisição da posse. O erro, de que resulta a posse de boa-fé, há de ser invencível, sendo evidente que "erro oriundo de culpa não tem escusa". Mas, se a boa-fé é simplesmente a ignorância de vícios, somente a culpa grave deve ser equiparada à má-fé, nos seus efeitos. (GOMES, Orlando. Direitos Reais. rev. atual. aum. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense. 2007, p. 55)
  16. GONÇALVES, Carlos Roberto. op. cit. p. 76
  17. GOMES, Orlando. Direitos Reais. rev. atual. aum. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense. 2007, p. 56
  18. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 82
  19. O estudo da boa-fé nas relações possessórias apresenta uma tríplice divisão no que se refere ao momento em que esta é cessada. Orlando Gomes, por exemplo, em sua obra Direitos Reais (GOMES, Orlando. Direitos Reais. ) afirma que a boa-fé cessará a partir do momento em que o réu apresenta a sua defesa. Há outros autores como ____ que determinam a linha limítrofe como sendo a propositura da ação cabível. Discordamos destes dois posicionamento na medida em que, antes da citação do réu este ainda não compõe a relação processual e por causa disso, não pode ser presumível que já tenha conhecimento da sua condição de possuidor de má-fé. Por sua vez, a corrente seguida por Orlando Gomes também não é vista como a mais adequada, pois, durante o lapso temporal existente entre a citação e a apresentação da defesa pode possibilitar ao possuidor a colheita dos frutos pendentes, garantindo-lhe a percepção deste, ou seja, enriquecendo um possuidor que já tem a consciência de que aquele bem não lhe pertence como imaginava outrora. Portanto, filia-se no sentido de chancelar como mais adequada a teoria que sustenta o transmutação da boa-fé em má-fé a partir do momento em que o acionado é citado. Neste sentido, podemos encontrar a opinião de Carlos Roberto Gonçalves ao afirmar que:
  20. RIPERT, Georges; BOULANGER, Jean. Tratado de Derecho Civil. segun el tratado de planiol. Tomo VI, Los Derechos Reales. Buenos Aires: La Ley. P. 126. Em tradução livre: A boa-fé do possuidor consiste em ignorar o vício que lhe está impedido em transformar-se em proprietário e que torna frágil o seu título de aquisição, ou também em ter por verdadeiro um título que não existe.
  21. "la palabra "titulo" designa no a un escrito (instrumentum), sino um acto jurídico (negotium). Por tanto, poco importa que el poseedor tenga o no un título escrito. Para que sirva al poseedor para adquirir los frutos, el acto jurídico en virtud del cual posee debe ser traslativo de propriedad, es decir capaz de haver adquirir la propiedad." [...] "Como se supone que el poseedor no es propietario a pesar de poseer en virtud de un título traslativo de propiedad, es preciso que esse título esté viciado, es decir que um obstáculo haya impedido al justo título producir su efecto ordinário." (RIPERT, Georges; BOULANGER, Jean. Tratado de Derecho Civil. segun el tratado de planiol. Tomo VI, Los Derechos Reales. Buenos Aires: La Ley. P. 124-125) (em tradução livre: A palavra "título" não se refere a um escrito (documento), mas a um ato jurídico (negócio). Portanto, pouco importa que o possuidor tenha ou não um título escrito. Para que seja útil ao possuidor para adquirir os frutos o ato jurídico em virtude do qual a há a posse deve ser translativo da propriedade, ou seja, capaz de adquirir a propriedade [...] como se supõe que o possuidor não é o proprietário, apesar da posse ser decorrente de um título translativo de propriedade, é preciso que este título seja viciado, ou seja, que tenha um obstáculo que esteja impedido o justo título de produzir os seus efeitos ordinários.)
  22. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 82-83
  23. O art. 1217 aborda a questão de forma negativa. Preferiu o legislador trazer em seu texto as situações em que o possuidor de boa-fé não responderá ao afirmar que: "o possuidor de boa fé não responde pela perda ou deterioração da coisa, a que não deu causa."
  24. Assim prevê o art. 1218 do Código Civil: "o possuidor de má-fé responde pela perda, ou deterioração da coisa, ainda que acidentais, salvo se provar que de igual modo se teriam dado, estando ela na posse do reivindicante". Observe que o legislador civil, ao abrir o artigo tratou da responsabilidade do possuidor de má-fé de forma ampla, pois induziu a responsabilidade deste pela perda ou deterioração em qualquer situação, ainda que acidentais. Isso implica em dizer que não compete ao possuidor de má-fé, alegar, por exemplo, imperícia, imprudência ou negligência. Também não poderá alegar que o fato ocorreu em razão de um caso fortuito ou de força maior. Em qualquer destas situações responderá pelos danos causados. Porém, o legislador trouxe também, no mesmo artigo, uma única possibilidade de exclusão da responsabilidade do possuidor de má-fé: a situação na qual estando na mão do proprietário de direito o dano ocorreria nos mesmos moldes daquele que foi constatado em relação ao possuidor de má-fé.
  25. Art. 96, Código Civil – As benfeitorias podem ser voluptuárias, úteis ou necessárias:

    § 1º São voluptuárias as de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do bem, ainda que o tornem mais agradável ou sejam de elevado valor;

    § 2º São úteis as que aumentam ou facilitam o uso do bem;

    § 3º São necessárias as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore.

  26. Art. 1218, Código Civil – O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor pago das benfeitorias necessárias e úteis.
  27. Art. 1220, Código Civil – Ao possuidor de má-fé serão ressarcidas somente as benfeitorias necessárias; não lhe assiste o direito de retenção pela importância destas, nem o de levantar as voluptuárias.
  28. Ao tratar do tema, lembram Cristina Teixeira Vieira de Melo, Isaltina Maria de Azevedo Mello Gomes e Wilma Peregrino de Morais que: "para fazer referência à questão, é usada a conhecida metáfora do "dragão da inflação". Essa metáfora tem como base uma situação de conflito, onde há um adversário (a inflação, representada pelo dragão) e uma vítima (a economia e o povo brasileiro). O governo brasileiro ocupa a posição de herói. A metáfora cria por si só uma narrativa onde encontramos as forças do bem e do mal (MELO, Cristina Teixeira Vieira de; GOMES, Isaltina Maria de Azevedo Mello ; MORAIS, Wilma Peregrino de. o real e o ficcional no telejornalismo - estudo de caso. Disponível em: < http://www.eca.usp.br/alaic/chile2000/11%20GT%202000Discurso%20e%20Comunic/orealeoficcional.doc#footnote1>; acessado em: 05 mai. 2008.
  29. Em matéria jornalística publicada na Folha On-Line, o repórter Oscar Pilagallo descreve de forma bastante sucinta a evolução da inflação ao longo dos tempos: "Depois do longo período dos mil-réis, a primeira moeda brasileira moderna foi o cruzeiro, introduzido em 1942.

    Em plena Segunda Guerra Mundial, a implementação do cruzeiro enfrentou percalços. As cédulas, impressas na Europa, chegavam ao Brasil com alguma dificuldade, e muitos lotes, transportados em navios torpedeados, foram parar no fundo mar. De qualquer maneira, o cruzeiro durou sem reformas até 1967, quando o regime militar cortou três zeros das notas. O padrão cruzeiro novo duraria três anos.

    Em 1970, o dinheiro voltou a se chamar apenas cruzeiro, nome mantido até 1986, depois de não resistir a um "milagre econômico" e a dois choques do petróleo.

    Comparado a esse histórico de instabilidade, o real prestes a completar 13 anos está se saindo bem. Mas, medida em anos de circulação, é ainda apenas a terceira moeda do Brasil, depois das duas primeiras fases do cruzeiro, que duraram 25 e 16 anos, respectivamente.

    A ênfase na estabilidade econômica tem um custo. A conta é expressa em fraco crescimento. Não precisaria ser assim, necessariamente. Mas foi assim que aconteceu no Brasil, cuja política econômica está ancorada em juros elevados (apesar das quedas recentes) e câmbio valorizado. (PILAGALLO, Oscar. Memórias do dragão. Folha On-Line. Publicado em: 16. abr. 2007. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2007/maisdinheiro3/rf1604200706.shtml>; acessado em: 05 mai 2008)

  30. PILAGALLO, Oscar. Memórias do dragão. Folha On-Line. Publicado em: 16. abr. 2007. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2007/maisdinheiro3/rf1604200706.shtml>; acessado em: 05 mai 2008
  31. BEVILAQUE, CLÓVIS. Direito das Coisas. 4 ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1956, vol 1, p.89
  32. Em notícia publicada no Correio Braziliense de 15 de agosto de 2002 afirmava-se que: "As montadoras estão respirando aliviadas com a redução do Imposto sobre Produto Industrializado. Mas os reflexos dessa redução ainda são uma incógnita. As dúvidas existem sobre se as vendas vão ganhar impulso e quantos reais a menos o consumidor vai desembolsar realmente para comprar o sonhado carro novo. Até porque, o abatimento maior foi para os modelos com motorização acima de 1,0 litro — de 25% para 16% —, versões mais caras que os populares, que, por sua vez, ganharam uma modesta e provisória diminuição do tributo: de 10% para 9% entre agosto e outubro — apenas os modelos a álcool e fuel flex, carros que usam tanto álcool quanto gasolina, vão usufruir indefinidamente da redução.

    IPI está inserido num conjunto de tributos que incluem ainda o ICMS, PIS e Cofins. No caso dos carros mil, representa uma redução pequena, entre 0,5% e 1%, mas de qualquer forma significativa para o bolso do consumidor. Já com os modelos a gasolina acima de mil até 2.000 cilindradas, o desconto pode fazer toda a diferença do mundo. (CORREIO BRAZILIENSE. Publicado em 15 ago 2002. Disponível em: < http://www2.correioweb.com.br/cw/EDICAO_20020815/sup_sro_150802_105.htm>; acessado em 05 mai. 2008

  33. Redução da alíquota de 5% para 0% - - Tubos e conexões de plástico; - Caixas d’água; - Janelas, caixilhos alisares de madeira; - Porta, janelas de ferro e aço; - Chapas, perfis, barras e semelhantes para construção de ferro e aço; - Fios de cobre.

    Redução da alíquota de 12% ou 10% para 5% - Tintas e vernizes; - Argamassa; - Pias e lavatórios de plástico e aço inoxidável; - Azulejos cerâmicos; - Vidro em chapas ou folhas; - Torneiras e registros.

  34. Em seus comentários ao Código Civil, lembra Ricardo Fiúza que: "o dispositivo em tela tinha a seguinte redação quando da remessa do anteprojeto para à Câmara dos Deputados: "o reivindicante, obrigado a indenizar as benfeitorias, tem o direito de optar entre o seu valor atual e o seu custo". Quando da primeira votação pela Câmara, por subemenda do relator Ernani Satyro, o dispositivo ganhou a redação atual, não tendo sido atingido por qualquer outra espécie de modificação, seja da parte do Senado Federal, seja da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto." (FIUZA, Ricardo. Novo código civil comentado. Saraiva: São Paulo, 2002, p. 1090). Para nós, houve uma certa melhoria entre o texto original e o que consta no texto do Código Civil de 2002. Porém isso não quer dizer que acatamos a forma com a qual o legislador caminhou. É evidente que este dispositivo legal é merecedor de um apuramento maior para que entre em consonância com os pilares principiológicos que sustentam o novo diploma.
  35. OLIVEIRA, J. M LEONI LOPES DE. Direito Civil: Introdução ao direito civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2001, vol 1, p. 441.

Autor

  • Salomão Resedá

    Salomão Resedá

    Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia - Ufba. Especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito - Ufba. Professor da Unifacs (Universidade Salvador). Assessor do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Autor de Livros.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESEDÁ, Salomão. A boa-fé X o Código Civil. Um escorregão no art. 1222. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1885, 29 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11656. Acesso em: 6 maio 2024.