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Vitimização e processo penal

Vitimização e processo penal

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1. Introdução

É fato público e notório que o sistema penal estigmatiza e exclui pessoas. A atuação seletiva da justiça criminal cria e reforça as desigualdades sociais, o sistema criminal rouba o conflito das partes diretamente envolvidas, estigmatizando-as como "delinqüente" e "vítima". A pena imposta pelo Estado perde sua legitimidade porque não guarda nenhuma relação com a pessoa efetivamente prejudicada no conflito. A vítima sofre o mesmo processo de privação de identidade que o delinqüente; suas expectativas não são levadas em conta. O Estado substitui a vítima sem levar em conta suas necessidades.

Como bem diz OLIVEIRA (1999, p.109), embasada em Nils Christie:

"No sistema penal atual, os conflitos são decididos por pessoas estranhas e as partes originalmente envolvidas desaparecem. Aquela que é representada pelo Estado – a vítima – só tem papel de desencadear o processo e prestar algumas informações. A vítima é uma perdedora diante do autor da infração e diante do Estado; não recupera o que perdeu para o infrator, pois as penas não levam em conta seus interesses, e perde ainda a oportunidade de vivenciar de forma positiva o conflito, que não é mais seu. A localização das salas de julgamento nos tribunais das cidades grandes, a ritualização dos atos, a linguagem peculiar – uma verdadeira subcultura -, tudo afasta a vítima que, quando comparece em juízo, percebe que seu conflito é propriedade dos advogados, dos promotores, dos juízes. A despersonalização dos conflitos reflete o desempenho dos papéis sociais; nas sociedades industrializadas, as pessoas se conhecem em fragmentos, de acordo com os papéis que desempenham em cada cenário da vida, e o sistema penal não oferece oportunidade para que as partes e os operadores atuem como seres humanos integrais".

Ou seja, no processo penal a vítima é – em regra – esquecida, abandonada, relegada a segundo plano. Em verdade, ninguém se preocupa com a vítima penal.

Nos dizeres de MOLINA (2000, p.73):

"O abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos: no Direito Penal (material e processual), na Política Criminal, na Política Social, nas próprias ciências criminológicas. Desde o campo da Sociologia e da Psicologia social, diversos autores, têm denunciado esse abandono: O Direito Penal contemporâneo – advertem – acha-se unilateral e equivocadamente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, no âmbito da previsão social e do Direito civil material e processual".

A simples previsão de crimes cuja ação penal é de iniciativa privada não desmente o alegado abandono, já que poucos são estes crimes. Também a utilização da ação penal privada subsidiária da pública é raríssima no processo penal brasileiro, apesar da previsão constitucional, o que demonstra o pouco caso com a vítima.

É bem verdade que com a Lei nº 9.099/95 a vítima foi "redescoberta" no processo penal nacional, dando maior ênfase à reparação do dano às vítimas. Mas referida lei só tem incidência no âmbito da criminalidade pequena e média, ficando as vítimas de graves delitos no esquecimento, sobretudo quanto a reparação de danos [01].

Essa falta de atenção do processo penal para com a vítima (o abandono) causa o fenômeno conhecido por "sobrevitimização" ou "vitimização secundária" que é o dano adicional causado à vítima de crime ocasionado pela própria mecânica da justiça penal formal.

O presente texto tem por objetivo demonstrar como ocorre esta sobrevitimização e como evitá-la ou, pelo menos, minorá-la, sobretudo nas hipóteses de apuração de crimes sexuais que tenham por vítimas mulheres e crianças, sendo a aplicação da recente Lei nº.11.690/2008 - que alterou diversos artigos do Código de Processo Penal – um forte instrumento para a minoração da sobrevitimização.


2. Conceitos iniciais

Vítima. Vitimização primária, secundária e terciária. Autovitimização secundária.

No Código Penal e no Código de Processo Penal brasileiros, encontramos os termos vítima, ofendido e lesado várias vezes e até indistintamente. Entretanto, a doutrina usa a terminologia vítima para designar aquele que o foi nos crimes contra a pessoa; já o termo ofendido, nos crimes contra a honra e contra os costumes e, por fim, lesado, nos crimes contra o patrimônio.

Pelo enfoque da vitimologia, a vítima não se restringe àquela vítima de um delito, havendo outras fontes de vitimização além do delito.

Valendo-se da vitimologia, OLIVEIRA (1993) conceitua vítima como sendo "aquela pessoa que sofre danos de ordem física, mental e econômica, bem como a que perde direitos fundamentais, seja em razão de violações de direitos humanos (reconhecidos internacionalmente), bem como por atos criminosos comuns".

Entretanto, para o presente trabalho utilizaremos o conceito restrito de vítima, nos moldes da Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delitos e Abuso de Poder da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1985 onde:

"1 – Entende-se por ''vítimas'' as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como conseqüência de ações ou omissões que violem a legislação penal vigente nos Estados-membros, incluída a que prescreve o abuso criminal de poder".

Ou seja, vítima é aquele indivíduo que sofre ou foi agredido de alguma forma por uma infração criminal praticada por um agente.

A vitimização primária é normalmente entendida como aquela provocada pelo cometimento do crime, pela conduta violadora dos direitos da vítima – pode causar danos variados, materiais, físicos, psicológicos, de acordo com a natureza da infração, personalidade da vítima, relação com o agente violador, extensão do dano, dentre outros.

Por vitimização secundária ou sobrevitimização, entende-se aquela causada pelas instâncias formais de controle social, no decorrer do processo de registro e apuração do crime, a qual estudaremos mais detidamente ao longo deste trabalho.

Já vitimização terciária é levada a cabo no âmbito dos controles sociais, mediante o contato da vítima com o grupo familiar ou em seu meio ambiente social, como no trabalho, na escola, nas associações comunitárias, na igreja ou no convívio social (BARROS,2008, p.72). Também desta trataremos, de forma resumida.

Além dos três conceitos vitimológicos acima, encontramos ainda o conceito de autovitimização secundária fornecido pela Psicologia Jurídica, onde, segundo TRINDADE (2007, p.158/159) a vítima se culpa do evento criminoso, passando a "recriminar-se pelo que aconteceu, procurando encontrar motivos para explicar o fato, supondo-se co-responsável pelo evento", o que lhe poderá causar sérios problemas de ordem psicológica.


3. Sobrevitimização (vítimização secundária)

Como bem afirmou BARROS (2008, p.73):

"O estudo das hipóteses de vitimização inicia-se no momento do cometimento do fato; posteriormente, passa pela fase investigativa do inquérito policial; e seguem as fases cronológicas do processo penal".

Com a prática de um delito, temos de pronto, a vitimização primária mencionada acima.

A vítima é um "agente informal de controle do sistema" (MANZANERA,1999, p.323), pois é através dela, de regra, que o fato delituoso chega ao conhecimento das autoridades responsáveis.

Após a prática do delito, começa o drama da vítima. Além da dor física, patrimonial e/ou moral decorrente do crime, a vítima é colocada em frente a um primeiro dilema: levar o fato criminoso ao conhecimento da polícia ou "deixar para lá"?

A segunda opção ("deixar para lá") causa as famosas "cifras negras" que são os fatos delituosos que não chegam ao conhecimento das autoridades competentes.

As "cifras negras" possuem diversos fatores determinantes: medo de vingança ou represálias, falta de confiança na atuação da polícia, falta de confiança no sistema penal brasileiro, a sensação de que a impunidade é a regra no Brasil, o entendimento de que determinados conflitos são de natureza "doméstica" (âmbito privado) e que por isso não devem ser expostos ao público, a influência de amigos, familiares etc. que tendem, muitas das vezes, a minimizar o ocorrido, a angustia da sensação de insegurança, a vergonha etc.

Influencia ainda o fenômeno da autovitimização secundária, onde a vítima, abalada psicologicamente com o fato delituoso, passa a sentir-se responsável pelo crime.

Diz MOLINA (2000, p.93):

"A vítima sofre, com freqüência, um severo impacto ''psicológico'' que se acrescenta ao dano material ou físico provocado pelo delito. A vivência criminal se atualiza, revive e perpetua. A impotência frente ao mal e ao temor de que se repita produz ansiedade, angústia, depressões, processos neuróticos etc. A tudo isso se acrescentam, não poucas vezes, outras reações psicológicas, produto da necessidade de explicar o fato traumático: a própria atribuição da responsabilidade ou autoculpabilização, os complexos etc."

Tais reações são mais comuns em crimes contra os costumes – especialmente estupro e atentado violento ao pudor – e em crimes como o seqüestro, o roubo, a tentativa de homicídio, os crimes de violência doméstica e nos crimes que tem por vítimas crianças e adolescentes.

Passada esta etapa, onde a vítima vence seus próprios medos e suas angústias, decidindo-se por procurar a polícia (em regra) para comunicar o fato criminoso, inicia-se o calvário "formal" da vítima, pois as misérias do processo penal não são apenas para o acusado.

Anota BARROS (2008, p.77):

"É importante ressaltar que a atuação da denominada ''polícia investigativa'' pode causar possível sobrevitimização, como a decorrente da primeira fase acima analisada, em virtude da falta de preparo das autoridades em lidar com a vítima, que já se encontra fragilizada com a situação vitimizadora, ou, mesmo, da própria estrutura do inquérito e da polícia, assim como das questões estruturais que se denotam da contingência brasileira".

Ao procurar a polícia, a vítima, por vezes, é tratada como objeto de investigação e não sujeito de direitos. A grande demanda de questões policiais faz com que a polícia não dê a devida atenção às vítimas e se importe unicamente com o suspeito do crime. O caso apresentado, de suma importância para a vítima, é fato corriqueiro para os policiais que tratam as vítimas todas de maneira igual como se um crime fosse igual aos outros e por vezes com desconfiança e sem nenhum respeito [02].

FERNANDES (1995, p.69) faz excelente resumo da situação:

"Há uma grande diferença entre o anseio da vítima, vinculada a um só caso, para ela especial, significativo, raro e o interesse da autoridade policial ou agente policial, que tem naquele fato um a mais de sua rotina diária, marcada muitas vezes por outros de bem maior gravidade; ainda, assoberbada pelo volume, impões-se naturalmente a necessidade de estabelecer prioridades. As deficiências burocráticas por outro lado, aumentam geralmente a decepção. Não há funcionários suficientes e preparados. Não há veículos disponíveis para diligências rápidas. Tudo ocasiona demora e perde tempo. Mais do que tudo isso, muitas vezes a vítima é vista com desconfiança, as suas palavras nã merecem logo de início, crédito, mormente em determinados crimes como os sexuais. Deve prestar declarações desagradáveis. Se o fato é rumoroso, há grande publicidade em torno dela, sendo fotografada, inquirida, analisada em sua vida anterior. As atenções maiores são voltadas para o réu. Isso gera o fenômeno que os estudos recentes têm chamado de vitimização secundária do ofendido".

Já na delegacia, as vítimas – sem qualquer acompanhamento especializado (assistentes sociais, p.ex.) - são ouvidas pelas autoridades policias muitas das vezes do sexo masculino o que torna o ato mais constrangedor quando se trata de crimes como estupro e atentado violento ao pudor, caso a vítima seja do sexo feminino, depois as vítimas são submetidas a exames de conjunção carnal ou atentado violento ao pudor – também por vezes são médicos do sexo masculino que fazem o exame -, tudo isso de uma forma impessoal, sem qualquer cuidado com os sentimentos da vítima, sem levar em consideração sua condição de pessoa violada em sua dignidade.

Ainda há aqueles que entendem, com fulcro no art.201,§1º, do CPP, que caso a vítima se recuse a fazer exame de corpo de delito pode ser conduzida coercitivamente para tanto - desde que o exame não seja invasivo, consistente na ofensa à sua integridade corporal ou à intimidade -, podendo inclusive ser processada por crime de desobediência. O que causará nova vitimização.

No fórum criminal, a situação continua desfavorável à vítima. Primeiro, antes de começar a audiência, fica no corredor aguardando ser chamada, quase sempre desacompanhada e sem saber ao certo o que acontecerá, e muitas das vezes bem próximo ao seu agressor que também aguarda ser chamado no mesmo corredor para a audiência.

Quando começa a audiência, pelo menos até o magistrado mandar o acusado se retirar da sala – isto quando manda -, a vítima fica "cara a cara" com o seu algoz. Depois, vai reviver todos os momentos do crime, respondendo às perguntas do juiz, do promotor e do advogado na frente do digitador, do oficial de justiça e até do funcionário que serve cafezinho, tornando o ato mais constrangedor quando se apura um crime sexual e os inquiridores são todos do sexo masculino e a vítima é do sexo feminino ou é uma criança!

Adverte TRINDADE (2007, p.158):

"Mesmo depois de ocorrer o evento vitimizador (vitimização primária), a vítima precisa continuar a se relacionar com outras pessoas, colegas, vizinhos, profissionais da área dos serviços sanitários, tais como enfermeiros, médicos, psicólogos e assistentes sociais, e profissionais da área dos serviços judiciais e administrativos, funcionários de instâncias burocráticas, policiais, advogados, promotores de justiça e juízes, podendo ainda se defrontar com o próprio agente agressor ou violador, em procedimentos de reconhecimento, depoimentos ou audiências. Essas situações, se não forem bem conduzidas, podem levar ao processo de vitimização secundária, no qual a vítima, por assim dizer, ao relatar o acontecimento traumático, revive-o com alguma intensidade, reexperenciando sentimentos de medo, raiva, ansiedade, vergonha e estigma. Devido a essa possibilidade, as agências de cuidados sanitários e judiciais devem estar adequadamente aparelhadas, tanto do ponto de vista material, quanto do ponto de vista humano, para evitar a revitimização-hetero-secundária, ou pelo menos, para minimizá-la".

Enquanto na fase policial a vitimização aparece com maior intensidade por ocasião da realização de exame de corpo de delito nos crimes sexuais e nas declarações prestadas perante a autoridade policial, na fase judicial parece ser a audiência de instrução o maior foco de vitimização, tanto antes, como durante e depois da oitiva da vítima pelo magistrado. Antes há o constrangimento de, como dito, por vezes aguardar no corredor com o acusado. Durante, devido ser "bombardeada" de perguntas sobre o fato delituoso, fazendo com que reviva o momento que deseja esquecer. Depois da audiência fica a vítima sofre a angústia de sofrer retaliações por parte do acusado ou mesmo da família dele e ainda a dúvida de que nada esqueceu ou aumentou em suas declarações.

Devido a importância da audiência no processo penal, mais a frente retornaremos ao tema em tópico separado.

No Tribunal do Júri, não raro são os ataques a vítima, tentando fazer da mesma a culpada pelo crime. A vítima, quando presente, sente os efeitos das acusações, o mesmo ocorrendo com seus familiares que muitas vezes, apesar da condenação do acusado, saem abaladas psicologicamente pelas ofensas sofridas.

Com o fim do processo criminal, que pode ou não acabar com a condenação do acusado, nada muda para a vítima, pois sua dignidade já foi ferida e nada vai ser capaz de repará-la, ainda mais se sabendo que no Brasil poucos são aqueles que ficam presos por muito tempo.

O processo penal volta a colocar a vítima no esquecimento, afinal já cumpriu seu papel, pois já foi ouvida em Juízo. A Justiça vira seus olhos para, no caso de condenação, a execução da pena privativa de liberdade.

A vítima pode sentir grande frustração e desamparo, pois a Justiça não mais quer saber dela.

Como revela OLIVEIRA (1999,p.113):

"Vale analisar alguns possíveis motivos pelos quais a vitimização secundária é mais preocupante que a primária. O primeiro deles diz respeito ao desvio de finalidade: afinal, as instâncias formais de controle social destinam-se a evitar a vitimização. Assim, a vitimização secundária pode trazer uma sensação de desamparo e frustração maior que a vitimização primária (do delinqüente, a vítima não esperava ajuda ou empatia)".

Assim, temos o acusado (vitimização primária) e o aparelho de repressão policial/judicial estatal vitimizador (vitimização secundária). Mas temos mais ainda, pois há a vitimização terciária.


4. Vitimização terciária

A vitimização terciária, como visto, é aquela que ocorre no meio social em que vive a vítima. É a vitimização causada pela família, grupo de amigos, no seio de seu trabalho etc.

A comunidade em que a vítima vive a vitimiza. Após a divulgação do crime, sobretudo aqueles contra os costumes, muitos se afastam, os comentários são variados e os olhares atravessados para a vítima, o que a fazem se sentir cada vez mais humilhada e, não raras vezes, até culpada do delito. Quando se tratam de vítimas crianças e adolescentes na escola, por exemplo, muitos são solidários; mas outros, até mesmo pela curiosidade, fazem perguntas demais, brincam com o fato, e mais constrangimentos impõem as vítimas. No ambiente de trabalho, o mesmo acontece.

Entretanto, talvez a pior vitimização seja imposta pela família. Quando a família, alicerce da sociedade (art.226 da CF) impõe à vítima mais sofrimento em decorrência do crime é que os efeitos são deletérios ao extremo.

Muitos parentes rejeitam as vítimas, fazem comentários impertinentes. Pais tratam as vítimas como eternos coitados sem dar força aos mesmos para se erguerem e superarem a derrota imposta pelo agressor.

Mães voltam a viver com os companheiros agressores ou abusadores de seus filhos na mesma casa como se nada houvesse acontecido causando danos irreparáveis às chamadas vítimas familiares, sobretudo quando são crianças e adolescentes. Além de colocarem as mesmas sob permanente estado de alerta devido ao medo de que o fato criminoso volte a acontecer.

Tais fatos também são verificados com maior freqüência em crimes como estupro, atentado violento ao pudor, seqüestro, extorsão, maus-tratos de menores, violência doméstica etc. Sendo necessário esclarecer que, devido a inúmeras circunstâncias, inclusive comportamento da própria vítima, nem sempre o que ora se relata sobre vitimização, tanto secundária como terciária, acontece. Entretanto, parece correto dizer que a incidência com que tais fatores vitimológicos ocorrem são em grande quantidade, principalmente nas camadas mais pobres e nas menores cidades do País.


5. Ainda sobre a vitimização secundária: a audiência penal

Como dito, parece ser a audiência de instrução o maior foco de vitimização na fase judicial de apuração de um crime.

A afirmação consiste na constatação de que, em determinados crimes e com determinadas vítimas, os operadores do Direito, entenda-se: juízes, promotores de Justiça e advogados, não são as pessoas mais adequadas para a inquirição direta de vítimas.

Algumas vezes, tais inquirições causam grande constrangimento às vítimas e dificultam a apuração correta do fato delituoso, além de danos psicológicos às vítimas.

Em matéria de crimes sexuais é visível a dificuldade de magistrados e promotores de Justiça em elaborar perguntas extremamente intimas às vítimas. Fato que se torna ainda mais constrangedor quando a vítima é criança ou adolescente.

O despreparo ainda é evidente quando advogados de defesa com o único objetivo de defender os seus clientes, custe o que custar, elaboram perguntas mais do que indiscretas às vítimas de crimes sexuais e perguntam detalhes minuciosos destes crimes para crianças de pouca idade.

Segundo informa PEREIRA (2008) há um movimento chamado "backlash" que, surgido no Canadá, nos estados Unidos e na Inglaterra na década de 80 e com grande aceitação na Argentina a partir do ano 2000, investe pesado para desacreditar as vítimas de violência sexual, sobretudo menores de idade.

Afirma PEREIRA que "também no Brasil, um grupo de advogados e especialistas passou a atuar, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, se utilizando de questionáveis mecanismos para desmontar os serviços de apuração e atendimento de abuso e violência intrafamiliar, buscando invalidar as denúncias, invertendo o sentido da conduta abusiva e atribuindo culpa a quem denuncia ou protege a vítima. Magistrados e promotores, acusados de ''parcialidade'', e profissionais responsáveis (advogados, psicólogos, assistentes sociais e médicos) têm sido denunciados em seus órgãos de classe, visando intimidá-los ou impedi-los de atuar em situações de abuso sexual".

Ora, tal movimento, ainda que de outra forma, ocorre sempre em que, em audiência, advogados tentam desacreditar as vítimas de crimes sexuais, questionando suas condutas e atitudes, fazendo perguntas a menores de idade sobre coisas que elas ainda não estão aptas a responder por não conhecer, usando este argumento na tentativa de desqualificar seus depoimentos.

Na realidade, quando se trata de vítimas de crimes sexuais, crimes estes que dificilmente são praticados na presença de testemunhas, suas declarações são sempre encaradas com ressalva e desconfiança. Se a vítima é criança então, há imenso lastro de argumentos para desacreditar o que foi dito por uma criança vítima de crime sexual, o que faz esta vítima sentir-se culpada da situação que está o acusado, pois seu testemunho é colocado xeque, podendo causar abalo mental em sua consciência.

MYRA Y LOPEZ (2008, p.129) diz que "geralmente, nem as crianças nem os velhos são testemunhos dignos de confiança".

NUCCI (2006, p.452) cita Enrico Altavilla que na sua "Psicologia Judiciária", 3ªed., vol.1,p.80 e segs., chega ao ponto de afirmar que "a criança possui defeitos inatos inabilitando-a para o papel de testemunha confiável".

Veja-se que se coloca a vítima, sobretudo quando se trata de criança, em uma posição de inferioridade e desconfiança.

Refutando os clássicos autores acima mencionado, diz PEREIRA (2008):

"Mitos a serem combatidos – Diante da afirmação freqüente de que a criança abusada mente e inventa o abuso, um documento oficial de orientação aos professores nas escolas comprova que ''apenas 6% dos casos são fictícios e, nessas situações, trata-se, em geral, de crianças mais velhas que objetivam alguma vantagem".

Sabe-se da dificuldade que é para as vítimas, especialmente a de crimes sexuais, comparecerem ao fórum para prestar esclarecimentos. Há a questão do medo de represálias, o constrangimento etc., além da questão sócio-econômica já que muitos fóruns são distantes da residência da vítima que tem que gastar um dinheiro que não possui para comparecer até a presença do magistrado.

Muitos magistrados, devido a ausência da vítima em audiência, absolvem os acusados de crimes sexuais por entenderem que a vítima não tem interesse no processo, como se sua presença fosse imprescindível para a resolução da causa.

Essa postura não leva em conta as dificuldades financeiras e, principalmente, psicológicas em que se encontram as vítimas de crimes graves.

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Maranhão, acolhendo a recurso do Ministério Público, reformou sentença absolutória onde o magistrado entendeu que a ausência da vítima na audiência de instrução de um crime sexual demonstrava seu desinteresse pela causa, condenando o acusado pela prática do delito. Vejamos a importante decisão na íntegra:

"Segunda Câmara Criminal

Sessão do dia 27 de março de 2008

Apelação criminal nº 024407-2007

Apelante: MPE

Promotor: Joaquim Henrique de Carvalho Lobato

Apelado: A.F.R

Comarca: São Luís/MA

Vara: 5ª Vara Criminalidade

Relator: Des. Jaime Ferreira de Aráujo

Revisora: Desª. Maria dos Remédios Buna C. Magalhães

Acórdão nº 72.169/2008

Ementa: Penal e Processual Penal. Apelação Criminal. Estupro e Atentado ao Pudor. Constranger mulher a ato sexual. Importância da palavra da vítima colhida na fase de inquérito, ainda que não ratificada em Juízo em face de sua ausência para prestar depoimento. Condenação que se impõe tendo em vista outros elementos de prova, colhidos durante a fase instrutória, a corroborarem o que disse a vítima na Polícia. O delito de estupro é sempre vexatório para a ofendida que não acusaria seu algoz se tal não fosse verdadeiro. Delito configurado. Concurso material. Sentença reformada.

1. Nos crimes contra o costume atribui-se especial importância à palavra da ofendida se coerente e harmônica com as demais provas produzidas. O fato de a vítima não ter comparecido em juízo para prestar declarações não tem o condão de, por si só, excluir a culpabilidade do Apelado.

2. Na ausência do testemunho da ofendida, perante a autoridade judicial, devem ser analisadas as outras evidências probatórias, pois se estas demonstrarem a materialidade e a autoria delitiva, certo é que servirão de subsídio válido para originar um juízo de certeza acerca do fato delituoso.

3. Apesar de o Inquérito Policial se constitui em fase prévia, investigatória, que confere lastro probatório ao oferecimento da denúncia, as provas nele coligidas não possuem valor meramente informativo.

4. A prova policial só deve ser rejeitada como prova válida quando existir prova judicial, ou, ainda, quando for desmentida ou contrariada durante a instrução criminal.

5. Nos crimes contra a liberdade sexual, especialmente o estupro, a acusação contra o estuprador é sempre vexatória para a vítima que não a faria se não fosse verdadeira.

6. Há concurso material dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor se o agente praticar conjunção carnal com a vítima, além de outros atos libidinosos.

7. Apelação conhecida e provida.

Decisão: Acordam os Desembargadores, por maioria e de acordo com o parecer da douta Procuradoria Geral de Justiça, modificado em banca, contra o voto do desembargador Mário Lima Reis que votou pela condenação do Apelado por tentativa de estupro e de atentado violento ao pudor, a Segunda Câmara Criminal deu provimento ao Recurso para reformar a sentença, condenando o Apelado por ambos os crimes, fixando a pena em 12 (doze) anos de reclusão a ser cumprido em regime inicialmente fechado, determinado a expedição de mandado de prisão, dando-lhe ciência por meio de nota de culpa e inscrevendo seu nome no rol dos culpados, após o trânsito em julgado, nos termos do voto do desembargador Relator".

Assim, as vítimas de crimes devem ser respeitadas e seus depoimentos, sejam elas crianças ou não, sejam prestados na fase policial ou judicial, devem ser levados em consideração e valorados em conjunto com as demais provas.

De fato as vítimas podem sofrer danos psicológicos durante a audiência penal, sendo certo, porém, que as crianças vítimas são as que maior cuidado necessitam para que a vitimização não seja agravada devido a atuação da Justiça.

No Estado do Rio Grande do Sul foi implantado o sistema denominado "Depoimento sem danos" em que o depoimento das crianças vítimas de crimes sexuais é acompanhado por vídeo, na sala de audiência, pelo juiz, pelo promotor de Justiça, pelo acusado e seu defensor, que dirigem perguntas por meio de uma escuta a uma assistente social ou psicóloga que está conversando com a vítima em uma sala separada e repleta de brinquedos, papéis, lápis etc. que faz o questionamento a vítima de forma mais amena. Tal depoimento é gravado e o DVD anexado aos autos do processo.

Esse tipo de depoimento visa minorar a vitimização secundária e tem obtido excelentes resultados, tanto que há, inclusive, um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que tem por objetivo inserir no Código de Processo Penal a dinâmica do "depoimento sem dano" (PLC 35/2007 em tramitação no Senado Federal).

Claro que como tudo novo e diferente, há pessoas contra esse tipo de procedimento, inclusive de profissionais da área da psicologia que entendem que o "depoimento sem dano" transforma os psicólogos e assistentes sociais em meros intermediários do magistrado nada tendo haver com a formação do profissional. Entretanto, o que se deve levar em consideração é a necessidade de se minorar as conseqüências do delito para as vítimas, sobretudo devido a condição peculiar em que as crianças se encontram.


6. A Nova legislação processual penal e a redescoberta da vítima

Mais de 12 anos depois da entrada em vigor da Lei nº 9.099/95, onde a vítima foi finalmente valorizada no campo criminal nacional, pelo menos no âmbito da criminalidade pequena e média, novas leis foram promulgadas dando ênfase à vítima no processo penal.

A Lei nº 11.690/2008 alterou diversos dispositivos do Código de Processo Penal, especialmente acrescentando cinco parágrafos ao artigo 201 que trata da vítima de crime ("ofendido" na linguagem do código).

Merece aplausos o legislador pátrio pelas alterações feitas no intuito de valorizar a vítima no processo penal.

Pela nova legislação, a vítima será comunicada do ingresso e da saída do acusado da prisão, das datas de todas as audiências e da sentença e do acórdão (§2º do art. 201 do CPP). Importante essa previsão, pois a vítima passa a ter conhecimento oficial do que de fato ocorreu com aquele que lhe causou o dano criminal já que até então, a vítima, em regra, participava apenas da audiência para sua oitiva e raras vezes sabia o que acontecia com seu algoz e ficava sujeita a diversos boatos do tipo "ele praticou o crime e nada ocorreu".

A lei trata dos meios pelos quais a vítima será comunicada dos atos processuais citados e reserva espaço na sala de audiência para a vítima (§§4º e 5º do art. 201).

Entretanto, a regra prevista no novo §5º do art. 201 do CPP nos parece a mais importante. Prevê que "se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado".

Aqui se percebe uma clara preocupação com a vítima no que diz respeito às conseqüências do delito, tanto no campo social quanto psicológico. A vítima, agora, não mais será abandonada pelo sistema criminal, pois terá um atendimento especializado para que possa superar o trauma causado pelo delito, sobretudo naqueles de extrema gravidade e que além do físico ou material atingem o psicológico (crimes de estupro e atentado violento ao pudor etc).

O referido dispositivo visa, em suma, minorar a ocorrência da vitimização secundária da vítima e que por isso, acreditamos que com o §5º do art. 201 do CPP, os juízes adotarão, em regra, a postura de encaminhar a vítima para atendimento especializado sempre que o crime for grave ou que envolver crianças e adolescentes.

Por isso, além de se utilizar dos profissionais ligados aos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), o Poder Judiciário deve contar, em seus quadros, com profissionais da área da psicologia, do serviço social, da saúde etc., o mesmo valendo para o Ministério Público e a Defensoria Pública, pois assim o objetivo de minorar as conseqüências do delito para a vítima seriam alcançados com menos dificuldades operacionais.

Também o §6º do art. 201 do CPP tem a idêntica pretensão de minorar a sobrevitimização, pois procura evitar a exposição da vítima à imprensa, sendo importante, em nosso sentir, que referido dispositivo seja aplicado, inclusive e principalmente, nos casos em que se apuram condutas de associações criminosas, velando o magistrado pelo segredo, inclusive aos advogados, do endereço das vítimas.

Por outro lado, concordamos com a afirmativa de REIS (2008), pois:

"Embora não expressamente previstas no novo art.201, cremos que os mesmos direitos assistem os sucessores da vítima, em caso de morte desta, por analogia com o direito à assistência (CPP, art.268 c/c 31). Quanto aos herdeiros e sucessores carentes de vítimas de crimes dolosos, aliás, a Constituição Federal (art.245) já determinava que a lei deveria dispor sobre hipóteses e condições em que o Poder Público lhes daria assistência, por isso que a Lei 11.690/08 pode ser entendida como uma regulamentação parcial desse dispositivo da Constituição".

Também a Lei nº 11.719/2008 que alterou tantos outros dispositivos do Código de Processo Penal preocupou-se com a vítima, estabelecendo no parágrafo único do art.63 do citado código que "transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido" e dando nova redação ao art.387, IV, do CPP, onde o juiz ao proferir a sentença condenatória "fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido". Como se depreende dos citados artigos, o valor a ser fixado na sentença a título de reparação de danos é mínimo e não impede que a vítima ajuíze ação civil própria para complementação do ressarcimento por parte do autor do crime.

Merece destaque a legislação existente desde 2001 no Município de São Paulo que trata da "assistência às vítimas de violência" onde, dentre outras coisas, consta que as vítimas terão "assistência médica e psicológica integral, de forma exclusiva ou subsidiária, durante todo o tempo necessário à reabilitação" e que as vítimas terão "orientação e assessoria técnica para a proposição e acompanhamento de ações visando o ressarcimento dos danos causados pela violência" (Lei nº 13.198/2001 e Decreto nº 43.667/2003 do Município de São Paulo).

Sendo interessante que outros municípios adotem a postura do Município de São Paulo em se preocupar com as vítimas de crimes violentos.


7. Fundo para reparação dos danos às vítimas de crimes

Com as novas redações dos arts.201,§5º, e 387, IV, do CPP, acima citados, entendemos mais do que necessário a instituição de um Fundo de Amparo às Vítimas de Crimes para se evitar a alegação de impossibilidade financeira de se reparar o dano e deixar a vítima com os prejuízos, material e moral, causados pelo crime, tornando as disposições legais inaplicáveis.

Note-se que o condenado, durante a execução da pena pode trabalhar e para isso é remunerado (art.29 da Lei nº 7.210/84), sendo aberto uma caderneta de poupança ao condenado que, na época da libertação, receberá o dinheiro (art.29,§2º, da Lei nº 7.210/84) oriundo do seu trabalho na prisão.

Também a família do condenado não fica desamparada, já que existe o benefício de prestação continuada chamado de "auxílio-reclusão", cuja existência é justificada como forma de não deixar desamparado aqueles que dependiam economicamente do condenado [03].

Entretanto, as vítimas de crimes e seus familiares não possuem benefício semelhante ao auxílio-reclusão.

Com raras exceções (art.16 do CP, p.ex.) a vítima acaba no prejuízo, quando por exemplo, tem seu relógio furtado e não recuperado pela polícia.

O Fundo de Amparo às Vítimas de Crimes poderia ser constituído das receitas obtidas com as multas penais, com os valores obtidos pela fiança criminal, confisco de bens e valores comprovadamente obtidos por meio ilícitos (art.91,II, ''b", do CP) e com verbas estatais [04]. Também o dinheiro obtido pelo condenado em seu trabalho durante a execução da pena, poderia ser revertido para o Fundo, dando-se total aplicação ao art.29 §1º, alínea "a", da Lei nº 7.210/1984, hoje praticamente esquecido.

O referido Fundo serviria para que, sobretudo através do trabalho do condenado, do pagamento efetuado por ele da multa penal e da fiança criminal houvesse uma reparação do dano à vítima, ainda que não fosse uma reparação integral, e para o pagamento do atendimento multidisciplinar mencionado no art.201,§5º, do CPP, quando necessário.

Nos crimes como homicídio consumado, os familiares da vítima seriam indenizados, na forma de pensão, com o dinheiro do Fundo, cujo valor seria arbitrado pelo juiz, assim como o tempo de duração, levando-se em conta as condições da vítima, a sua idade e expectativa de vida etc.

Em casos com os crimes de lesão corporal grave ou gravíssima, o condenado pagaria uma pensão a vítima cujo valor equivaleria ao salário que a vítima estava recebendo por seu trabalho na época do crime ou que poderia vir a receber quando fosse trabalhar, levando-se em conta, novamente, o idade, as condições pessoais da vítima etc, aplicando-se o raciocínio estabelecido quando da aplicação pelos juízes em casos de pensão de alimentos e de responsabilidade civil do Estado.

Inclusive os danos morais seriam arbitrados pelo juiz criminal, como, por exemplo, nos casos de estupro, atentado violento ao pudor etc.

Se a vítima ou seus familiares, por questões de ordem moral, religiosa, social etc., não quisesse receber a indenização arbitrada pelo magistrado criminal, o valor deveria ser revertido ao próprio Fundo ou para instituições assistenciais, inclusive porque o condenado sempre estaria apenado também na forma pecuniária.

Com essa nova postura não apenas as vítimas de crimes pequenos e médios seriam ressarcidos (como já o são devido principalmente após ao surgimento da Lei nº 9.099/95), mas também aqueles que foram vítimas de graves delitos [05].

A reparação do delito através do Fundo seria uma forma de "humanização das vítimas dos delitos" [06], visando minimizar os prejuízos sofridos pela vítima e seus familiares.


8. Conclusão

Com as mudanças no Código de Processo Penal fica a convicção de que a tendência atual do direito penal (material e processual) é a valorização da vítima e que há mecanismos legais que podem ser utilizados para minorar a sobrevitimização acarretada pelo crime e levada a cabo pelo processo penal nacional.

A instituição do Fundo de Amparo às Vítimas, a adoção de leis como a do Município de São Paulo e a realização de audiências no estilo "depoimento sem dano" são formas de tornar escassa a sobrevitimização do processo penal. A aplicabilidade dos novos artigos 201 e 387 do CPP é um enorme avanço nesse sentido que deve ser de logo analisado e posto em prática pelo poder público federal.

Juízes, promotores de Justiça, defensores públicos, advogados, delegados de polícia e demais servidores da Justiça devem ter noções de psicologia para melhor tratar as vítimas, bem como, tendo o auxílio dos profissionais da área do Serviço Social e da Psicologia, fato que não diminui a competência dos membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e nem da Advocacia, ainda mais se estes profissionais fossem do quadro de servidores ligados aos Órgãos mencionados. Ao contrário, apenas engrandece as carreiras. O mesmo se diga aos psicólogos e assistentes sociais. Não há qualquer rebaixamento ao ajudar a se alcançar uma Justiça plena e com danos minimizados àqueles que a procuram.

Nas palavras de TRINDADE (2007, p.160):

"O fenômeno da vitimização secundária parece estar se tornando comum no mundo moderno e servindo para o agravamento da situação das vítimas. Por isso, há necessidade de um olhar atento tanto da psicologia quanto do direito, tanto dos psicólogos, quanto dos operadores judiciais. Reconhecer essa situação revitimizatória é sempre questionar os fundamentos em que se baseia a própria sociedade, por isso uma missão de difícil execução".

Não se pode esquecer que um dos fundamentos da República é a dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF) e esta deve ser respeitada e aplicada a todos, pouco importando se são réus ou vítimas.

As vítimas, como já acontece com os acusados, devem ser tratadas como sujeitos de direitos e respeitadas pelos por todos a sua volta e, principalmente, pelos membros do sistema de Justiça.


REFERÊNCIAS:

BARROS, Flaviane de Magalhães. A Participação da Vítima no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

CALHAU, Lélio Braga. Vítima, Direito Penal e Cidadania. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/1124>.Acesso em 20/05/2008.

FERNANDES, Antônio Scarance. O Papel da Vítima no Processo Criminal. São Paulo: Malheiros, 1995.

GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antônio García-Pablos de. Criminologia. 3ª ed. Trad. Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

MANZANERA, Luís Rodrigues. Victimologia – Estúdios de La Víctima. México: Porrúa, 1999.

MIRA Y LOPEZ, Emílio. Manual de Psicologia Jurídica.2ª ed. São Paulo: Impactus, 2008.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt. A Vítima e o Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

OLIVEIRA, Frederico Abrahão de. Vítimas e Criminosos, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993.

PEREIRA, Tânia da Silva. Abuso Sexual de Menores. Revista Visão Jurídica, nº 25, São Paulo: Escala, 2008.

REIS, Nazareno César Moreira. Primeiras Impressões sobre a Lei nº 11.690/2008. A Prova no Processo Penal. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11414>.Acesso em 25/06/2008.

TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do Direito. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.


Notas

  1. Existe a Lei nº 9.807/1999 que estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas e que instituiu o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, mas tal legislação não atende por completo aos interesses das vítimas, pois trata apenas daqueles que são ameaçadas, nada tratando sobre aquelas vítimas que sofrem danos materiais e psicológicos decorrentes do próprio crime, sem serem posteriormente ameaçadas.
  2. Em reportagem veiculada no Jornal "O Globo", de 27/05/2008, foi noticiado que uma jovem, após ser ameaçada com uma faca, teve sua bicicleta roubada enquanto trafegada às 22:00 horas pelo calçadão de uma das praias do Rio de Janeiro. A vítima foi a delegacia registrar ocorrência e ouviu do policial que a culpa do crime era da própria vítima, pois não deveria andar de bicicleta aquela hora da noite e que nada poderia fazer em relação ao caso. A jovem foi embora, sem registrar a ocorrência.
  3. O auxílio-reclusão está previsto nos seguintes dispositivos: art.201,IV, da CF, art.13 da EC nº 20/98; art.80 do Plano de Benefícios da Previdência Social, art.2º da Lei nº 10.666/2003 e arts.116 a 119 do Regulamento da Previdência Social.
  4. Apenas de forma complementar.
  5. Está em tramitação no Congresso Nacional o PL nº 3.503/2004 que cria o Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos (FUNAV), cuja proposta é parecida a exposta no presente artigo.
  6. Forma de equilibrar o discurso – correto, diga-se –, de "humanização da pena" (do criminoso).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Sandro Carvalho Lobato de; LOBATO, Joaquim Henrique de Carvalho. Vitimização e processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1937, 20 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11854. Acesso em: 26 abr. 2024.