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Decisão jurídica e abertura à repercussão geral.

Críticas à dotação de realidade a um futuro imaginado

Decisão jurídica e abertura à repercussão geral. Críticas à dotação de realidade a um futuro imaginado

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1 Introdução

Cada vez mais as decisões judiciais estão estabelecendo referências àquilo que na década de oitenta se convencionou chamar de "orientação às consequências" ou "orientação aos impactos sociais da decisão" (Simioni, 2006, p. 197). Na linguagem do direito positivo brasileiro, essa técnica de fundamentação das decisões começa a aparecer, especialmente no âmbito dos tribunais superiores, sob o nome de "repercussão geral".

A análise da repercussão geral é tratada no direito mais como um mecanismo de seleção cognitiva (tecnicamente: requisito de admissibilidade) no âmbito dos tribunais superiores, para efeito de cabimento de recursos. Mas a repercussão geral serve também como referência argumentativa à fundamentação das decisões jurídicas há algum tempo. Tratam-se daquelas decisões que decidem as questões jurídicas recorrendo a argumentos econômicos, políticos, sociais, etc. De modo que nós podemos ver a repercussão geral não apenas como um requisito de admissibilidade recursal, mas também – e essa é a questão deste texto –, como uma técnica de argumentação jurídica para a justificação de decisões que produzem, potencialmente, impactos sociais não controláveis (Luhmann, 2004).

As decisões que justificam as suas conclusões com base em argumentos exteriores ao direito – impactos econômicos, políticos, sociais etc. – são decisões que ultrapassam o direito positivo para introduzir racionalidades, princípios, valores e exigências de outros contextos sociais, exteriores ao sistema jurídico. Isso porque a análise da repercussão geral na fundamentação das decisões provoca uma abertura da jurisdição para os prováveis efeitos colaterais da decisão, exigindo a introdução de referências externas, referências de outros sistemas da sociedade. E nessas condições, essa abertura pode ser vista como uma solução desejável a um suposto "problema de fechamento" da jurisdição em si mesma. Com efeito, partindo do suposto de que o "fechamento" é um problema, essa abertura logo é avaliada como algo desejável no nível da doutrina do direito. Mas nem sempre o fechamento é um problema. Pelo contrário, o fechamento é a condição de possibilidade da própria identidade do sistema de referência e, também, da sua abertura para o ambiente.

Essa técnica de justificação das decisões tem estabelecido aberturas cognitivas às exigências de outros sistemas da sociedade, em especial as exigências da economia e da política. Trata-se de um estilo de fundamentação de decisões jurídicas baseado em prognósticos de futuros efeitos colaterais da decisão. E essas consequências projetadas pela decisão podem, por si só, justificar a renovação e até mesmo a criação de novos princípios jurídicos (Magalhães, 1997, p. 246). Um decisionismo exacerbado então se torna possível, já que, orientada às consequências de si mesma, a decisão pode levar a qualquer coisa.

Várias críticas podem ser encontradas no âmbito da teoria do direito a esse estilo de fundamentação das decisões jurídicas. Sob o nome de "consequencialismo", pode-se encontrar diversos argumentos contrários à introdução de valores externos aos valores jurídicos. Entre as principais críticas, importante destacar que a racionalidade do direito é diferente da racionalidade de outros sistemas da sociedade, como a economia e a política. De modo que a introdução da racionalidade de outros sistemas para fundamentar as decisões jurídicas pode comprometer a própria racionalidade do direito.

No que segue, queremos desenvolver essa crítica à repercussão geral como técnica de argumentação e de decisão jurídica. E para tanto, utilizaremos como referencial teórico algumas categorias conceituais da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Nessa perspectiva, procuraremos observar as impossibilidades lógicas da análise de efeitos colaterais nas dimensões objetiva, temporal e social, bem como a questão dos riscos das decisões que assumem essa abertura a impactos futuros da decisão nos demais contextos da sociedade. Por fim, de modo bastante modesto, introduziremos uma questão diferenciada a respeito da legitimidade das decisões jurídicas, diante dessas pretensões de abertura ou de maior sensibilidade aos seus prováveis efeitos colaterais.


2 Três dimensões de sentido na análise dos efeitos colaterais

A questão é que os efeitos colaterais ou os impactos futuros podem ser pensados em pelo menos três dimensões que se dão de modo simultâneo para a decisão: a) uma dimensão material, que se conecta à diferença entre sistema de referência e ambiente; b) uma dimensão temporal, que trabalha sob a diferença entre passado e futuro; e c) uma dimensão social, que leva em consideração a diferença entre quem decide e quem é afetado pela decisão [01].

Na dimensão material, a argumentação baseada nos efeitos colaterais pode estabelecer referências aos impactos da decisão na economia, na política, na ciência, na moral, na religião etc. Quer dizer, os prováveis efeitos colaterais da decisão podem ser conjecturados transitando argumentativamente entre um sistema de referência e outro. Pode-se decidir, por exemplo, em não garantir o direito à saúde previsto na Constituição em razão do impacto econômico da decisão no orçamento público. Mas se pode igualmente argumentar a garantia do direito à saúde em razão do impacto político da decisão que nega esse direito fundamental etc.

Mais interessante nesse aspecto é que, geralmente, o uso dos efeitos colaterais como suplemento argumentativo das decisões recorre mais a argumentos baseados na comunicação econômica do que nas formas de comunicação política, científica, religiosa, moral etc. E o fato é interessante porque revela a sutileza que a comunicação econômica tem em dotar de racionalidade as decisões jurídicas que recorrem a ela. A sensibilidade da economia, hoje, exerce a mesma influência que antes exercia a comunicação política sobre a ordem social e a segurança nacional. Se antes o valor "segurança nacional" justificava a própria suspensão dos direitos fundamentais para a instituição do Estado de Exceção, hoje a economia constitui um valor igualmente de segurança nacional, que justifica um Estado de Exceção permanente [02].

Há, contudo, uma série de impossibilidades lógicas nesse tipo de suplemento econômico na argumentação da decisão jurídica. Uma dessas impossibilidades está no fato de que não há uma escala de valor ou uma graduação entre as diversas referências sistêmicas possíveis. Bastaria perguntar, por exemplo, por que os argumentos econômicos devem preponderar sobre os argumentos políticos, morais, religiosos, científicos etc.? E posto que essas diversas referências sistêmicas se apresentam à decisão de modo simultâneo, não é difícil ver que elas são reciprocamente contingentes entre si, quer dizer, os argumentos econômicos podem colidir com argumentos políticos, morais, religiosos etc. Como também podem, às vezes, reforçar-se reciprocamente. São reciprocamente contingentes: às vezes colidem, às vezes não. Precisamente porque contingente é tudo aquilo que não é nem necessário, tampouco impossível.

Na dimensão temporal, a decisão estabelece referências à diferença entre passado e futuro. O passado já aconteceu. É fato. Está nos autos dos processos judiciais ou nas informações da consultoria jurídica. O futuro, no entanto, ainda não aconteceu. E exatamente por isso ele sempre tem a liberdade de acontecer de um modo diferente do que foi previsto. Por esse motivo, a referência aos efeitos colaterais ou aos impactos futuros da decisão, na dimensão temporal, significa o estabelecimento de uma referência a algo que ainda não aconteceu. Significa, portanto, a dotação de normatividade a uma imagem idealizada de um cenário futuro. Em última análise, significa a introdução de um imaginário na decisão como fundamento da própria decisão.

O problema dessa referência ao futuro é que, quando a decisão introduz um fundamento baseado em uma imagem prognosticada de um cenário futuro, esse cenário – que ainda não aconteceu na ocasião da decisão – pode servir de referência a outras decisões, tanto jurídicas quanto decisões baseadas em outros sistemas de referência: economia, política, ciência etc. Quer dizer, diante de uma decisão jurídica – de um precedente sobre um cenário futuro –, os demais sistemas da sociedade podem reagir a isso como se aquele cenário imaginado fosse já um fato diante do qual algo deve ser feito [03].

Quando a decisão jurídica usa um cenário futuro prognosticado como referência argumentativa, os demais sistemas reagem a isso do mesmo modo: prognosticando novos cenários futuros, que por sua vez servirão de argumento para novas decisões jurídicas. Uma relação circular então se estabelece, gerando uma perfeita self-fulfilling prophecy de Robert Merton [04], uma profecia que promove a sua própria realização. O prognóstico de um serve de fato para outro, sobre o qual se podem fazer novos prognósticos, que servirão de fato para novos prognósticos e assim sucessivamente.

E o mais difícil, segundo nossa opinião particular, é que levar isso em conta é tão arriscado quanto não levar isso em conta: os prognósticos sempre são projeções idealizadas de um futuro incerto, sempre são construções atuais a respeito de um futuro que ainda não aconteceu e que, por esse motivo, são sempre provisórias, sempre necessitam ajustes, atualizações. As projeções financeiras da economia são exemplos. Mas a despeito de serem projeções sempre provisórias e incertas, não levá-las em consideração pode ser igualmente arriscado.

Por fim, na dimensão social o suplemento argumentativo da decisão jurídica estabelece referências à diferença entre quem decide e quem é afetado pela decisão. Tratam-se dos impactos sociais da decisão, cujo prognóstico serve de referência para distinguir os riscos da decisão para quem a decide, de um lado, e os perigos da decisão para quem a ela está submetido, de outro [05]. A dimensão social coloca outra série de problemas à decisão jurídica. Dentre outras, a questão da legitimidade da decisão aparece como a mais evidente: como pode o decisor convencer os afetados pela decisão a aceitá-la como legítima?


3 Risco, perigo e a questão da legitimidade da decisão orientada ao futuro

Das sociedades antigas até o final da Idade Média, o desviante na sociedade era visto sob a forma das desgraças provocadas por magias, bruxarias ou castigos divinos. Nas sociedades medievais, a desgraça já mantém o desviante na sociedade sob o controle religioso da distinção – ao menos na tradição cristã – entre fiéis e pagãos. Sob essa distinção, eventual desgraça na vida de um fiel era atribuída aos mistérios de Deus. Enquanto a desgraça na vida dos pagãos se justificava pela distinção mesma entre fiéis e pagãos.

Nas sociedades modernas, contudo, a justificação místico-religiosa da desgraça começa a perder sentido. O desenvolvimento no campo da ciência e da tecnologia começa a reproduzir a semântica da desgraça sem a utilização de referências à religião (Luhmann, 1996, p. 2). Surgem assim conceitos como os de desordem, catástrofe, caos, sob os quais a normalidade na sociedade ocidental fica atribuída ao funcionamento da técnica e da racionalidade instrumental (Weber, 2002, p. 23).

Nesse contexto, a incerteza do futuro já não depende mais dos misteriosos desígnios de Deus, mas das decisões que se tomam no presente. Assim, tanto o normal quanto o desviante na sociedade passam a ser o resultado de decisões. O futuro depende do que fizemos hoje, diz o ditado popular. Está-se diante de uma nova forma de observação da sociedade, privada de referências religiosas (palavra-chave: secularização), na qual o desvio, a desgraça, o azar passam a ser chamados de risco (Luhmann, 1997).

Importantes pensadores das sociedades modernas, como Ulrich Beck (1998) e Anthony Giddens (1991, p. 53), procuram entender os impactos sociais que a ideia de risco provoca nas tradicionais concepções do normal e do desviante na sociedade. Luhmann (1996, p. 3), porém, vai mais longe ao colocar a questão em um nível fundamental: o que muda na concepção de sociedade a partir do momento em que o risco passa a ser um problema universal e não mais um problema específico de profissões ou de grupos submetidos a situações perigosas?

A ideia de risco, com efeito, implica transformações profundas na própria concepção de sociedade. Pois uma coisa é ver o lado desviante da sociedade como um problema atribuído aos mistérios da vontade de Deus ou aos mistérios da natureza. Outra coisa é ver que o lado desviante da sociedade faz parte, no fundo, da normalidade da sociedade. O risco já não está mais apenas na especificidade de profissões ou de modos de vida perigosos: quer dizer, o risco já não está mais só na situação de quem participa de batalhas, ou na situação de profissões perigosas como a dos antigos marinheiros, desbravadores e caçadores. O risco, hoje, atinge um nível de periculosidade universal. E a universalidade do risco significa, também, que se trata de algo que já não pode mais ser evitado, nem adiado. O risco que existe aqui e agora, em qualquer lugar do planeta pode ser previsto, no máximo, sob a distinção entre probabilidade e improbabilidade.

Assim, diante da universalidade do risco de efeitos colaterais, tanto no nível dos sistemas sociais quanto no nível das organizações e consciências individuais, não faz sentido pensar na problemática da repercussão geral das decisões jurídicas como uma oposição entre interesses arriscados e interesses seguros, nem mesmo pensar a problemática dos prováveis efeitos colaterais da decisão jurídica na forma da oposição entre decisões arriscadas e decisões seguras.

Essa alternativa entre segurança e risco não é uma alternativa segura. Não existe nenhuma segurança na escolha entre risco e segurança. Pois inexiste segurança capaz de ser oposta ao risco. Todas as alternativas são igualmente arriscadas, como também a própria colocação das alternativas é igualmente arriscada. E inclusive a não-decisão, o diferimento, a espera cautelosa carregam consigo o risco de perder a oportunidade de evitar situações perigosas. Uma decisão que decide pela segurança, por exemplo, também corre o risco de perder oportunidades. Uma decisão que escolhe uma entre várias alternativas decisórias também corre o risco de não ter consideradas todas as variáveis possíveis do repertório decisional (Luhmann, 1996, p. 31).

Em outras palavras, a universalidade do risco aparece tanto sob a forma da inexistência de segurança absoluta, na escolha de uma ou de algumas entre todas as alternativas da decisão, quanto sob a forma da inexistência de segurança na própria colocação das alternativas da decisão. Dependendo do contexto sistêmico no qual a organização está atrelada, sempre será possível ver mais alternativas do que aquelas consideradas na decisão. Quer dizer, sempre será possível deslocar a perspectiva da decisão para outros contextos, outros pontos de vista, outros nichos nos quais o repertório das alternativas possíveis sofre variações (Maturana, 2001, p. 192).

Na medida em que o risco é inevitável, e que a segurança é uma ilusão que cumpre a função social de valor de reflexão às decisões, Luhmann (1996, p. 30) sugere substituir a forma risco/segurança pela forma risco/perigo, referida à incerteza a respeito de danos futuros. Assim, sob o pano de fundo da incerteza a respeito da ocorrência de danos futuros, os eventuais danos podem tanto ser atribuídos às consequências da decisão como também a fatores externos à decisão, quer dizer, fatores do ambiente. No caso dos eventuais danos serem atribuídos à decisão, fala-se de risco. E, no caso dos eventuais danos serem atribuídos ao ambiente, fala-se de perigo (Luhmann, 1996, p. 32).

Essa distinção entre risco e perigo produz uma separação importante no esquema de atribuição de danos futuros: o risco de danos futuros passa a ser um problema da decisão, enquanto o perigo de danos futuros passa a ser um problema a que se está submetido. A vantagem dessa distinção em relação à forma risco/segurança é que aqui, a distinção entre risco e segurança serve apenas como uma medida para valorar alternativas que na realidade são igualmente arriscadas, sem a capacidade de atribuir os eventuais danos à decisão mesma.

Em outras palavras, sob a distinção risco/segurança, os danos futuros já não podem ser atribuídos à decisão, porque eles sempre aparecerão na forma de efeitos colaterais não previstos pela decisão, quer dizer, os efeitos colaterais sempre poderão ser desculpados sob a forma de caso fortuito ou força maior ou outra coisa. Já sob a distinção entre risco e perigo, a orientação às consequências na decisão não distingue entre êxito e fracasso, pois cede lugar para a atribuição dos efeitos colaterais segundo os danos futuros sejam atribuídos às próprias consequências da decisão (risco) ou a consequências de outras decisões do ambiente (perigo). Em síntese, com a distinção entre risco e perigo sugerida por Luhmann, marca-se uma diferença irredutível entre correr riscos e estar sujeito a perigos.

Nesse contexto, a questão da legitimidade se torna algo muito mais complexo do que normalmente se tem discutido. Porque a questão não é apenas fundamentar a decisão de modo a merecer legitimidade por sua correção normativa. A questão do risco coloca em cena um operador desconstrutivo de qualquer pretensão de legitimidade. E isso, por si só, já constitui um bom motivo para se pensar nas vantagens e desvantagens de um estilo de decisão jurídica orientado às consequências extrasistêmicas da decisão.

Para quem decide, a argumentação deve levar em conta os riscos de efeitos colaterais. Enquanto que para os afetados pela decisão, a argumentação deve levar em conta os perigos desses efeitos colaterais. Na perspectiva do risco (decisores), constrói-se uma imagem favorável à assunção de riscos como oportunidades. Mas, na perspectiva do perigo (afetados), constrói-se uma imagem desfavorável à assunção de perigos para os quais não vale a pena se submeter. Em outras palavras, enquanto o risco é algo que deve ser assumido para não se perder oportunidades irreversíveis, o perigo é algo a que se está submetido e que, portanto, não apresenta nenhuma oportunidade capaz de justificar essa submissão.

Os decisores que adotam a perspectiva do risco não vêem o perigo de suas decisões. E os afetados que adotam a perspectiva do perigo não enxergam as oportunidades das decisões arriscadas.

Instaura-se, assim, um conflito entre decisores e afetados no qual, de um lado, os decisores reclamam dos afetados a perspectiva das oportunidades dos riscos e, de outro, os afetados reclamam dos decisores a perspectiva dos perigos das decisões. Assim, ao mesmo tempo em que os decisores procuram impor aos afetados a sua perspectiva (risco), os afetados procuram impor aos decisores a sua perspectiva (perigo). E tratam-se de perspectivas diferentes, irredutíveis, irreconciliáveis. Até porque cada uma dessas duas perspectivas indica apenas um lado da distinção risco/perigo, a partir da qual a indicação do lado risco coloca os perigos em segundo plano e a indicação do lado perigo coloca os riscos e suas oportunidades em segundo plano.

Em outras palavras, a disposição da decisão aos riscos permite atribuir menor importância aos perigos de danos futuros. Enquanto que a disposição da decisão em evitar os perigos, entretanto, permite à decisão atribuir menor importância às oportunidades que as decisões arriscadas oferecem.

Os decisores e os afetados indicam diferentes lados dessa mesma distinção, dispondo de modo diferente a atenção a respeito dos eventuais efeitos colaterais. Os decisores só enxergam os riscos e suas oportunidades, enquanto os afetados só enxergam os perigos das decisões. Então, ambos os lados, decisores e afetados, combatem-se uns contra os outros, cada um exigindo do outro a mesma atenção ou querendo impor ao outro a mesma atenção.


4 Procedimentos discursivos para o entendimento racional

Uma possível resposta a essa questão da legitimidade das decisões jurídicas foi dada por Habermas, através da institucionalização jurídica de um procedimento discursivo de formação livre da vontade, cujo resultado deve ser um consenso entre todos os possíveis afetados pela decisão, baseado apenas na força do melhor argumento (Habermas, 1988, 1992 e 2003). Uma conclusão que se pode chegar a partir da proposta de Habermas é que os processos judiciais, nas condições contemporâneas, não satisfazem as condições ideais da sua teoria discursiva do direito. E as reformas processuais atualmente em discussão no Brasil estão mais preocupadas com a velocidade – palavra-chave: efetividade – do que com a legitimidade da decisão.

Além disso, se essa diferença entre a perspectiva de quem decide e a de quem é afetado pela decisão tem validade empírica, então isso significa sérios problemas para uma expectativa de consenso ou de negociação entre decisores e afetados (Simioni, 2007). Se os decisores adotarem a perspectiva dos afetados, já não são mais decisores. E se os afetados adotarem a perspectiva dos decisores, já não são mais afetados. Uma atitude performativa recíproca entre esses dois pólos tão-somente deslocaria o conflito e as imagens da repercussão geral (o risco de efeitos colaterais é ao mesmo tempo um perigo para todos os demais possíveis afetados pela decisão) para novas configurações.

Outra categoria muito forte de razões é aquela que recomenda referências à moral como limite da argumentação jurídica. Encontramos essa referência nas teorias de Robert Alexy (1998 e 2002), Klaus Günther (2004), Ronald Dworkin (2002 e 2001) e o Habermas das Tunner Lectures (Habermas, s/d) – que posteriormente abandonou essa proposição ao ver que a moral não pode ser um critério de correção normativa acima do direito criado legitimamente (Habermas, 2003, p. 138). Essas teorias entendem que, no limite da argumentação jurídica, deve-se recorrer a argumentos morais: para Alexy e Günther, dentro das regras dos discursos práticos; e para Dworkin, argumentos de princípio na práxis empírica dos tribunais, do qual se aproxima também, de certo modo, Neil MacCormick (2006).

A moral funciona aqui como um suplemento de segunda ordem porque é exatamente quando não há mais justificações jurídicas suficientes à decisão que se deve recorrer a princípios morais. E logo se pode observar que a própria discussão moral também vai levantar novas necessidades de justificação – novos suplementos –, especialmente em face dos problemas do multiculturalismo da sociedade global.


5 Considerações finais

Independente da teoria adotada ou do suplemento recomendado para uma boa argumentação jurídica na decisão, na prática, uma boa argumentação é aquela que se orienta pela razão, evitando ao mesmo tempo os erros. Por isso, a negação do erro, por si só, já constitui uma boa razão para bons argumentos. O problema é que o juízo de correção ou erro dos argumentos segue, na prática das decisões jurídicas, critérios de racionalidade. Para controlar os erros, aplica-se a lógica. E para controlar a razão, aplica-se a razão mesma. E aqui está o paradoxo da argumentação jurídica: não há uma razão superior ou mais fundamental a partir da qual alguém poderia julgar se o argumento é racional ou não (Luhmann, 1995 e 2005, p. 407).

Diante desse paradoxo, as teorias da argumentação introduzem distinções para torná-lo inofensivo. Distinguindo as boas das fracas razões, as teorias da argumentação criam os critérios para essa distinção. Mas o paradoxo da argumentação continua operando, pois os próprios critérios de distinção do que pode ser considerado um bom argumento e do que pode ser considerado argumentos fracos precisam ser fundamentados, quer dizer, precisam de argumentação, precisam de sempre novos suplementos argumentativos.


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Notas

  1. Estamos utilizando uma forma de distinção que vem da sociologia de Parsons (1976 e 1968). Mas a aplicamos em consonância com a teoria da diferenciação de Luhmann (1998).
  2. Ver-se: Agamben (2004, p. 26): "Como era previsível, a ampliação dos poderes do executivo na esfera do legislativo prosseguiu depois do fim das hostilidades e é significativo que a emergência militar então desse lugar à emergência econômica por meio de uma assimilação implícita entre guerra e economia."
  3. Do mesmo modo acontece na economia, onde todos têm interesse no dinheiro porque todos têm interesse no dinheiro. Keynes demonstrou essa tautologia como um resultado da racionalidade nas decisões econômicas orientadas pela especulação financeira em situações de incerteza a respeito da "accumulation of wealth for an indefinitely postponed future" (Keynes, 1937, p. 214): "The psychology of a society of individuals each of whom is endeavoring to copy the others leads to what we may strictly term a conventional judgment". Mas Keynes torna essa tautologia inofensiva ao introduzir uma referência externa – um suplemento igualmente incerto na decisão –, à "psicologia" de uma sociedade de indivíduos onde cada um aspira imitar os outros.
  4. Para Merton (1968, p. 477): "The self-fulfilling prophecy is, in the beginning, a false definition of the situation evoking a new behaviour which makes the original false conception come ''true''. This specious validity of the self-fulfilling prophecy perpetuates a reign of error. For the prophet will cite the actual course of events as proof that he was right from the very beginning."
  5. Seguindo o referencial teórico escolhido para essa pesquisa, estamos utilizando a distinção entre riscos e perigos de Luhmann (1996, p. 31). Ver-se também: Rocha & Simioni (2008), p. 63-96.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e abertura à repercussão geral. Críticas à dotação de realidade a um futuro imaginado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2238, 17 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13323. Acesso em: 3 maio 2024.