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A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.

Mínima intervenção do direito penal ou concretização de sua seletividade?

A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. Mínima intervenção do direito penal ou concretização de sua seletividade?

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Ao contrário de configurar manifestação da intervenção mínima do Direito Penal, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo expressa a concretização da seletividade penal.

RESUMO

Evidencia algumas das temáticas componentes da Criminologia Crítica, a teor da seletividade do sistema penal, da vulnerabilidade social e penal das classes subalternas, além dos discursos reais e aparentes do Direito Penal tradicional. Descreve a evolução do saber penal até os dias de hoje, com destaque para teoria crítica do etiquetamento (labelling approach), apresentando, de modo panorâmico, a estrutura normativa dos crimes contra a ordem tributária, definidos na Lei n° 8.137/90, apontando, ao final, a distinção entre elisão, evasão e sonegação fiscal. No tocante ao bem jurídico, enfatiza a necessidade de incriminação das condutas lesivas ao sistema tributário, de valoração constitucional (bem transindividual). Expõem, em síntese, as teorias legitimadoras do Direito Penal, ressaltando as teorias relativas da prevenção geral e especial, inclusive com posicionamento crítico. Discute matéria procedimental, no âmbito da legislação penal tributária, relacionada ao pagamento do tributo como causa extintiva da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária, à luz de argumentos da Criminologia Crítica. Informa os reveses legislativos envolvendo essa previsão normativa da causa liberatória da punição, aludindo também à crítica em torna da quebra da isonomia (pois inexiste mesmo tratamento quanto à reparação do dano nos delitos contra o patrimônio individual), além do mais, o tratamento privilegiado conferido aos sonegadores de tributo frustra as finalidades preventivas da pena. Demonstra, enfim, que são válidos os fundamentos da teoria crítica a indicar que, ao contrário de configurar manifestação da intervenção mínima do Direito Penal, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo expressa a concretização da seletividade penal.

Palavras-chave: Criminologia crítica. Direito penal - seletividade. Extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.


ABSTRACT

It evidences some of the thematic components of the Critical Criminology, the example of the selectivity of the criminal system, and social and criminal vulnerability of the subordinate classrooms, beyond the real and apparent speeches the traditional Criminal law, describes the evolution of criminal knowing until the present, with prominence for critical theory of the labelling approach. It presents, in panoramic way, the normative structure of the crimes against the order tax, defined in the Law n° 8.137/90, pointing, to the end, the distinction between elimination, evasion and fiscal tax evasion. In the moving one to the legally protected interest, it emphasizes the necessity of accusation of the harmful behaviors to the system tributary, of constitutional valuation. It displays, in synthesis, the theories legislators of the Criminal law, standing out the relative theories of the general and special prevention, also with critical positioning. Procedural substance argues, in the scope of the criminal legislation tax, related to the payment of the tribute as extinctive cause of the punishment in the crimes against the order tax, to the light of arguments of the Critical Criminology. It informs the legislative overturn involving this normative forecast (of the tending to set free cause of the punishment), also alluding to the critical one in becomes of the isonomy in addition (therefore treatment how much to the repairing of the damage in the delicts against the individual patrimony inexists exactly), in addition, the privileged treatment conferred to the tax evaders of tribute annuls the preventive purpose of the penalty. It demonstrates, at last, that the beddings of the critical theory to indicate that are valid, in contrast to configuring manifestation of the minimum intervention of the Criminal law, the extinguishing of the punishment for the payment of the tribute express the concretion of the criminal selectivity.

Keywords: Critical criminology. Criminal law - selectivity. Extinguishing of the punishment for the payment of the tribute.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA. 2.1 Conceitos2.2 A Escola Clássica. 2.3 A Escola Positivista (paradigma etiológico). 2.4 Evolução do saber criminológico. 2.5 Fundamentos da Criminologia Crítica. 2.6 A seletividade do Sistema Penal. 2.7 Estigmatização x imunização. 2.8 Crimes de "colarinho branco". 2.9 Funções declaradas e reais do Sistema Penal. 3 DO DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO. 3.1 Sistema constitucional tributário: breves notas. 3.2 Elementos de Direito Tributário. 3.3 O Direito Penal Econômico. 3.4 O Direito Penal Tributário. 3.5 Os crimes definidos na lei nº 8.137/90. 3.6 Conceitos de elisão, evasão, fraude fiscal e sonegação fiscal. 4 A TUTELA PENAL DA ORDEM TRIBUTÁRIA. 4.1 Teorias legitimadoras do direito estatal de punir. 4.2 O Direito Penal mínimo. 4.3 O bem jurídico tutelado. A tutela penal de direitos difusos. 4.4 Sanções administrativas x sanções criminais. 4.5 A extinção da punibilidade nos crimes fiscais. 4.5.1 Da extinção de punibilidade .4.5.2 A reparação do dano: seus efeitos e formas no Direito Penal. .4.5.3 Lei n° 9.249/95: ofensa à isonomia e anulação dos fins da pena. 4.5.4 Reveses legislativos. 4.5.5 Jurisprudência. 5 CONCLUSÃO REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

Uma rápida incursão na história brasileira revela que a preocupação com as condutas ofensivas às finanças ou à economia do Estado remonta às antigas Ordenações Filipinas.

Contudo, é a partir da vigência da Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, que o Direito Penal brasileiro passa a dispor de uma legislação especial que trata dos chamados crimes de "sonegação fiscal" e, posteriormente, da Lei nº. 8.137/90, de 27 de dezembro de 1990, que incrimina as condutas lesivas à ordem tributária.

Sabe-se que no cumprimento de suas atribuições, o Estado brasileiro imprescinde de recursos, parte dos quais advindos da instituição e cobrança de tributos de pessoas físicas e jurídicas, conforme regras e princípios delineados no Capítulo do Sistema Tributário Nacional (art. 145 e ss.) da Constituição Federal de 1988.

Dentre as várias finalidades inerentes ao sistema tributário ressalta-se o seu papel social, ao propiciar ao Estado recursos indispensáveis para a realização de serviços, que buscam atender aos interesses e às necessidades da coletividade.

No âmbito da Dogmática Penal, de acordo com orientação dos princípios especiais do Direito Penal e, sobretudo, dos valores e interesses insculpidos na Constituição Federal, afirma-se que a incriminação das condutas humanas na ordem jurídica em vigor encontra respaldo determinante na relevância do bem jurídico a ser tutelado.

Enfim, entende-se que o legislador resolveu não só prevenir e reprimir a lesão à Fazenda Pública, mas também tutelar a ordem tributária (proteção de direitos difusos), pois, em essência, esta representa o interesse público, quer na garantia dos recursos devidos e necessários à manutenção do Estado, quer na promoção da livre concorrência e da justiça fiscal.

Entretanto, no tocante à punibilidade dos crimes fiscais definidos na Lei nº. 8.137/90, a previsão legal de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo (conforme estabelece o art. 34 da Lei nº. 9.249/95), destoa da regra geral no ordenamento penal em vigor.

Na esteira do escólio da Criminologia Critica, surgem argumentos consistentes para se reconhecer nessa modalidade elisiva do jus puniendi um traço característico de um Sistema Penal seletivo que, em regra, reserva as agruras do cárcere a uma determinada "clientela".

A compreensão da existência de singular benefício legal outorgado a certos delinqüentes não pode desconsiderar que o Direito Penal assume um papel diferente daquele declarado, pois, em vez de se voltar para a pacificação social, representa, na realidade, um autêntico instrumento de manutenção e reprodução da desigualdade inerente ao sistema de produção e distribuição capitalista.

Ao prever a extinção da punibilidade nos crimes fiscais, através do pagamento do tributo ("reparando-se" o dano causado à coletividade), não faz outra coisa o legislador penal senão engendrar o processo primário de seleção, no qual se pauta o Sistema Repressivo, editando norma tendente a assegurar a imunização dos indivíduos privilegiados na participação do poder social, econômico ou político.

Nesse jaez, é bastante plausível o questionamento dessa exclusiva modalidade de extinção punitiva existente em nosso ordenamento jurídico.

Mesmo no campo da Dogmática Penal, carecem de coerência e solidez os argumentos que amparam tal previsão.

As críticas envolvem desde a ofensa ao princípio da igualdade - já que inexiste hipótese legal análoga aplicável aos delitos praticados contra o patrimônio individual - até a vulgarização do Direito Penal, pois este estaria servindo ao Estado unicamente na "cobrança de tributos", anulando-se dessa forma os fins da sanção penal.

A questão trazida ao debate, portanto, revela-se producente e útil, na medida em que se busca compreender as motivações e as circunstâncias da formulação das normas penais em questão, assim como os efeitos para a persecução e punição estatal daqueles que incidem nos denominados "crimes de colarinho branco".

Assim, sob o aspecto da relevância social, resta evidenciada a potencial (ainda que singela) contribuição da pesquisa em tela.

Tendo em vista a utilidade deste trabalho monográfico para a ciência jurídica, e com o intuito de ampliar o conhecimento e a discussão do tema, propõe-se exame crítico do modelo normativo penal vigente, especificamente da legislação atinente aos crimes definidos na Lei nº 8.137/90, assim como do art. 34 da Lei nº 9.249/95, em que se destaca a causa de extinção da punibilidade já referida.

A problematização elaborada consiste em saber se o pagamento do tributo como causa de extinção da punibilidade – efetivo reparador –, nos crimes fiscais, constitui previsão legal casuística.

A hipótese principal sugere que essa causa liberatória da punibilidade coaduna-se com a seletividade do Sistema Penal.

Assim, tem-se que o objetivo geral desta pesquisa abrange a análise da legislação especial relativa aos crimes contra a ordem tributária, a partir da interpretação doutrinária e jurisprudencial de norma que autoriza a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, seus consectários e relações com demais institutos do Direito Penal.

Especificamente, propõe-se a analisar a punibilidade nos crimes tributários, através do resgate de alguns dos fundamentos teóricos das penas previstas no ordenamento jurídico penal, assim como a opção legislativa pela disciplina normativa atual.

Finalmente, aponta-se como objetivo específico conhecer a jurisprudência no Estado do Maranhão, referente à punição desses delitos, especialmente quanto à aplicação da legislação tributária local determinante da extinção ou suspensão da pretensão punitiva.

Assinala-se que os pressupostos teóricos que se colocam para a feitura deste trabalho perpassam inicialmente por uma mudança de foco metodológico.

Pretende-se evitar uma aproximação estritamente dogmática, possibilitando uma nova abordagem do tema, desta feita sob inspiração das idéias trazidas pela Criminologia Crítica.

No tocante à metodologia a ser utilizada, a abordagem normativa proposta consistirá no exame crítico da legislação atinente aos crimes fiscais (tutela de direitos difusos), realizando-se contraponto com normas incriminadoras que tutelam o patrimônio individual, insertas no Código Penal brasileiro.

Assim sendo, impõe-se a adoção do método hipotético-dedutivo na realização da pesquisa proposta, elegendo-se ainda o método de procedimento monográfico com preponderância da pesquisa bibliográfica.

Para tanto, são evidenciadas algumas contradições existentes no próprio modo de funcionamento do Sistema Penal, ao tempo em que são colhidas as impressões da Criminologia e Direito Penal Críticos acerca do sistema vigente.

No primeiro capítulo da monografia, após breves notas sobre as escolas clássica e positivista, seguem noções acerca da evolução do saber criminológico e penal, com ênfase no atual estágio, que corresponde às teorias do paradigma da reação social.

Neste contexto, têm lugar especial os fatores que se relacionam não com a criminalidade, mas com a "criminalização" de determinadas pessoas, desvelando o processo de definição e de seleção desde sempre engendrado pelo Sistema Penal.

Maior atenção é dispensada à seletividade do Sistema Penal, haja vista que a problematização gira em torno desta temática. Demais aspectos correlatos tratados pela Criminologia Crítica, como a estigmatização e a imunização de certos delinqüentes, são também expostos, associando-os ao tema principal.

Cumpre ainda tecer alguns comentários sobre os chamados crimes de "colarinho branco" e sua relação com as teorias da Criminologia, tendo em vista a imunização daqueles que incidem nos delitos fiscais.

Finalmente, o Sistema Penal assume alguns discursos declarados e outros reais, todos eles, no entanto, relacionados à função seletiva que, essencialmente, exerce.

Diversamente do que é declarado, o Direito Penal não se destina à pacificação social; antes, tem como missão latente a manutenção e reprodução do status quo.

No segundo capítulo, optou-se por uma breve abordagem do Direito Penal Econômico, dadas as peculiaridades desse novel ramo do Direito e a sua influência sobre o denominado Direito Penal Tributário, este relacionado às normas de incriminação de certas infrações fiscais.

Até o advento da Lei nº. 8.137/90, os crimes de sonegação fiscal no país estavam definidos na Lei nº 4.729/65. Em seu art. 1º, esta lei definia como crimes praticamente as mesmas condutas ora tipificadas na Lei nº. 8.137/90, de modo que com a entrada em vigor da lei especial de 1990, entende-se que restou parcialmente revogada a Lei nº 4.729/65.

Avançou-se no sentido de examinar alguns aspectos da estrutura desses delitos fiscais, fazendo valer a idéia de que o elemento fraude está presente na caracterização de tais práticas criminosas, o que tornou oportuna a distinção entre as noções de elisão, evasão, fraude fiscal e sonegação fiscal.

No âmbito da Dogmática Penal, destaca-se o papel subsidiário do Direito Penal na solução dos conflitos sociais. Dado o rigor e a gravidade das sanções preconizadas nas normas penais, esse ramo do Direito adquire o caráter de ultima ratio como instrumento jurídico de pacificação.

Entretanto, a falácia desse discurso revela-se na forma em que atua o Sistema Penal, se levarmos em conta seu caráter essencialmente seletivo. Para alguns, o "Direito Penal mínimo" serve tão-somente para justificar, em alguns casos, a imunização de indivíduos mais privilegiados.

No capítulo subseqüente, perquire-se acerca da legitimação do Estado no controle social por meio do Direito Penal (teoria da pena), em que duas correntes doutrinárias se destacam: uma, que concebe a legitimação pelos mais diversos fundamentos, e outra, que, ao contrário, propugna pela desnecessidade de tal legitimação, defendendo até a abolição da pretensão estatal quanto ao poder punitivo.

Procede-se ainda ao exame do bem jurídico, assunto relevante quando se trata de delitos contra bens transindividuais. Considerando-se que o sistema tributário nacional possui a finalidade social de arrecadar os recursos necessários à manutenção do Estado, tem-se firme que a ordem tributária é bem jurídico a ser protegido, conforme valoração constitucional.

A teoria do Direito Penal, este como disciplina tendente à proteção de bens jurídicos fundamentais, recebe algumas considerações neste capítulo, ressaltando-se as dificuldades no tratamento de delitos que ofendem os bens difusos, a exemplo dos crimes fiscais.

A discussão verte-se também para os limites da aplicação de sanções penais e administrativas, não sendo poucas as vozes a defender maior atuação do poder sancionador administrativo, em detrimento da tutela penal da ordem tributária.

Na última etapa do trabalho, parte-se para o teste da hipótese lançada na pesquisa. A questão central tem fulcro no possível entendimento de que norma que prevê a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo não somente é casuística, mas também traduz a materialização normativa da seletividade do Direito Penal.

A lei prevê nos crimes contra a ordem tributária modalidade específica de extinção da punibilidade - fora do rol a que alude o art. 107 do Código Penal.

Trata-se da hipótese de "o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive, acessórios antes do recebimento da denúncia", conforme dispõe o art. 34 da Lei nº. 9.249, de 26 de dezembro de 1995.

Ocorre que a Lei nº. 8.137/90, originalmente, trazia em seu art. 14 a mencionada causa extintiva, fustigada, porém, com a edição da Lei nº. 8.383/91, que expressamente revogou aquele dispositivo.

Esses reveses legislativos em torno da norma do art. 34 da Lei nº. 9.249/95, contudo, vêm suscitando inúmeras críticas, originadas nos mais diversos setores da ciência do Direito.

Se, por um lado, formulam-se interpretações para justificar a impropriedade do dispositivo legal, pois serviria como um severo meio de coação ao contribuinte faltoso, ao se estabelecer um marco temporal ao desinteresse estatal de punição, por outro, não faltam reservas à aludida norma penal, tendo em vista que tal tratamento legal inexiste nos crimes cometidos em desfavor do patrimônio individual.

Enfim, frisa-se o posicionamento colhido na jurisprudência - da Corte Suprema e do tribunal local -, com interpretações várias acerca da citada norma e de seus consectários, no sentido de concretizar a seletividade da resposta penal.


2

PENAL E CRIMINOLOGIA

Por força da tradição do positivismo, o estudo do Direito Penal vem sendo regido pela Dogmática Jurídica.

No mesmo compasso, a Criminologia causal-explicativa, de índole positivista, desenvolveu-se acriticamente, não passando de um apêndice em relação ao Direito Penal, em boa parte por ter se ocupado com o exame das causas e dos efeitos da "criminalidade" sob a estreita ótica do saber dogmático penal.

Nada obstante a extraordinária influência que o saber dogmático irradia até os dias de hoje, vislumbra-se uma notável mudança de paradigma.

Em outras palavras, pugna-se pela compreensão do que vem a ser crime, de uma forma dialética – interacionista –, deixando-se de lado dogmas ou noções pré-constituídas – características da Dogmática Penal –, lançando mão de uma abordagem que transcende o objeto dado, qual seja, a criminalidade.

Há fortes razões para se supor que o crime não seja mero resultado de condições sociais ou, sobretudo, biológicas inerentes a determinados indivíduos, que estariam, por isso, mais propensos a delinqüir – tese esposada pelo positivismo.

Muito além dessa conclusão, um horizonte científico promissor nos faz pensar que os fatores responsáveis pela criminalidade estão inelutavelmente ligados à realidade social.

Não se imagina que o caminho aberto pelas teorias críticas da criminologia e do direito penal seja o único a ser percorrido, porém, é, no mínimo, um flagrante sinal de comodismo continuar com o entendimento estreito e ilusório de que as verdadeiras causas do fenômeno criminoso e suas eventuais conseqüências estejam satisfatoriamente explicadas e/ou controladas pela Dogmática.

Ao formular um conceito próprio para "teoria crítica", Antonio Carlos Wolkmer diz ser esta um:

[...] instrumento pedagógico operante (teórico-prático) que permite a sujeitos inertes e mitificados uma tomada histórica de consciência, desencadeando processos que conduzem à formação de agentes sociais possuidores de uma concepção de mundo racionalizada, antidogmática, participativa e transformadora. [01]

Constitui, pois, um equívoco desprezar as experiências e as contribuições de outras disciplinas que objetivam a compreensão da criminalidade em todas as suas dimensões.

Ademais, apesar de o Direito Penal e seu formidável aparato estar mais "presente" em nosso cotidiano, há muito que não se assistia a uma escalada tão duradoura da violência urbana.

Noutro giro: se o discurso oficial oferece como soluções, entre outras, o recrudescimento das leis penais e o aumento do contingente estatal destinado ao combate da criminalidade, por que, então, não se experimenta uma diminuição dessa mesma violência?

As considerações aqui em curso representam uma tentativa de aproximação dos saberes do Direito Penal e da Criminologia.

Cabe ainda destacar que, embora tortuosa, é alentadora a vereda percorrida desde os primórdios da Criminologia positivista até as idéias que permeiam hoje as teorias da Criminologia.

2.1 Conceitos

Da tradicional doutrina, extraem-se alguns conceitos que, sem maior prejuízo terminológico à exposição em curso, exprimem concepções usuais de Direito Penal, Criminologia, Política Criminal e Sistema Penal.

A depender do contexto em que se inserir, o Direito Penal, aqui tratado, ora corresponderá à Dogmática Jurídica – ciência do Direito –, ora significará o conjunto de normas jurídicas que prevêem infrações penais e respectivas sanções, inclusive normas que disciplinam a execução destas, sem olvidar das normas procedimentais que constituem o Direito Processual Penal. [02]

A Criminologia é a ciência que tem como objeto o comportamento desviante (crime) e o indivíduo que nele incide. Constitui também objeto de investigação desta ciência criminal o processo de elaboração da lei penal – motivação, conteúdo e efeitos – em face de uma determinada realidade social.

Na opinião de Paulo Queiroz:

O objeto, portanto, da criminologia já há algum tempo se ampliou sensivelmente, para nele se incluir, além do delito e do delinqüente, suas causas – paradigma causal-explicativo (ou etiológico-explicativo), próprio da criminologia positiva -, o estudo da vítima e, em especial, da reação e do controle social mesmo. Diferentemente, portanto, do direito penal, que é uma ciência do dever-ser (normativa), a criminologia é uma ciência do ser, empírica, baseada na análise e na investigação da realidade [...] [03]

Por sua vez, o Sistema Penal corresponde às normas reguladoras da atuação dos órgãos policiais, do Ministério Público, do Judiciário (o Estado-Juiz) e de administração penitenciária. O Sistema Penal aglutina as ações estatais que vão desde a investigação policial até a execução da pena.

Finalmente, a Política Criminal "constitui a sistematização das estratégias, táticas e meios de controle social da criminalidade, penais e não penais.". [04]

No tópico seguinte, passa-se a conhecer, em breves linhas, a relação entre a Dogmática Jurídica Penal e a Criminologia, pautando-se na exposição das Escolas que reuniram as teorias, pensamentos e ideologias mais significativos desses dois saberes, até os fundamentos das consideradas teorias críticas.

2.2 A Escola Clássica

A Escola Clássica tem sua base filosófica vinculada ao Direito Natural. Para Luiz Regis Prado, essa Escola tem os seguintes postulados basilares:

a) o Direito tem uma natureza transcendente, segue a ordem imutável da lei natural: O Direito é congênito ao homem porque foi dado por Deus à humanidade desde o primeiro momento de sua criação, para que ela pudesse cumprir seus deveres na vida terrena. O Direito é a liberdade. Portanto, a ciência criminal é o supremo código da liberdade, que tem por objeto subtrair o homem da tirania dos demais, e ajudá-lo a livrar-se da tirania de si mesmo e de suas paixões. O Direito Penal tem sua gênese e fundamento na lei eterna da harmonia universal; b) o delito é um ente jurídico, já que constitui a violação de um direito. É dizer: o delito é definido como infração. Nada mais é que a relação de contradição entre o fato humano e a lei. [05]

O crime passa a ser observado com maior objetividade. No que se refere ao jus puniendi, ou direito de punir, a ideologia regente assentava-se na racionalização, buscando propiciar, em última instância, "garantias" ao indivíduo perante o poder absoluto até então vigente.

Por outro lado, aos indivíduos, independente de serem "normais" cabia a escolha de delinqüir, ou não. A responsabilidade por seus atos, por conseguinte, passaria a depender da violação consciente e voluntária da norma penal.

Em sua narrativa, Alessandro Baratta assim comenta essa fase, sob o aspecto da finalidade do direito penal e da cominação da pena:

Como comportamento, o delito surgia da livre vontade do indivíduo, não de causas patológicas, e por isso, do ponto de vista da liberdade e da responsabilidade moral pelas próprias ações, o delinqüente não era diferente, segundo a Escola clássica, do indivíduo normal. Em conseqüência, o direito penal e a pena eram considerados pela Escola Clássica não tanto como meio para intervir sobre o sujeito delinqüente, modificando-o, mas sobretudo como instrumento legal para defender a sociedade do crime, criando, onde fosse necessário, um dissuasivo, ou seja, uma contramotivação em face do crime. Os limites da cominação e da aplicação da sanção penal, assim como as modalidades de exercício do poder punitivo do Estado, eram assinalados pela necessidade ou utilidade da pena e pelo princípio da legalidade. [06]

Como se sabe, Cesare Bonesana (Marquês de Beccaria) e Francesco Carrara se notabilizaram como dois dos mais representativos teóricos do Classicismo.

Beccaria, com a sua obra-prima "dos delitos e das penas", foi o grande responsável pela idealização das bases humanitárias do denominado moderno Direito Penal Liberal.

Da idéia da divisão de poderes e dos princípios humanitários iluministas, de que é expressão o livro de Beccaria, derivam, pois, a negação da justiça de gabinete, própria do processo inquisitório, da prática da tortura, assim como a afirmação da exigência de salvaguardar os direitos do imputado por meio da atuação de um juiz obediente,não ao executivo, mas à lei. [07]

Quanto à contribuição de Carrara, frisa-se a análise lógico-formal do delito, além da formulação teórica relativa ao surgimento do paradigma da defesa social.

Esse pensamento tem importantes reflexos na teorização da finalidade da pena, conforme a narrativa de Alessandro Baratta:

A distinção entre consideração jurídica do delito e consideração ética do indivíduo torna-se, pois, a base da qual parte Carrara para proceder a uma nova afirmação da tese de que a função da pena é, essencialmente, a defesa social. O fim da pena não é a retribuição - afirma Carrara - nem a emenda, mas a eliminação do perigo social que sobreviria da impunidade do delito. A emenda, a reeducação do condenado, pode ser um resultado acessório e desejável da pena, mas não sua função social, nem o critério para sua medida. [08]

Nas ciências, o período clássico do saber penal foi marcado pelo predominíno do método lógico-abstrato ou dedutivo.

Ressalta-se que o momento histórico no qual se insere a Escola Clássica indicava a transição da ordem feudal do Estado absolutista para o Estado de Direito Liberal, cuja orientação econômica, posteriormente, será ditada pelo sistema capitalista de produção e distribuição.

2.3 A Escola Positivista (paradigma etiológico)

O momento histórico marcante desse movimento está relacionado à passagem do Estado Liberal para o Estado intervencionista na ordem econômica e social.

No que concerne às formulações teóricas ocorridas naquele período, tem-se que o crime passa a ser definido como fato natural e social.

Em contraponto à Escola Clássica, o criminoso não é aquele que, voluntária e livremente, viola a norma penal, mas, sobretudo, é o indivíduo que possui personalidade perigosa.

Na visão daqueles que se filiavam às idéias da Escola positivista, o crime é determinado por fatores biológicos, psíquicos, físicos e sociais que caracterizam uma minoria perigosa – delinqüente –, em contraste com uma maioria "normal".

No tocante às idéias que distanciavam os pensadores positivistas dos clássicos, pontifica Baratta:

O delito é, também para a Escola positiva, um ente jurídico, mas o direito que qualifica este fato humano não deve isolar a ação do indivíduo da totalidade natural e social.

A reação ao conceito abstrato de indivíduo leva a Escola positiva a afirmar a exigência de uma compreensão do delito que não se prenda à tese indemonstrável de uma causação espontânea mediante um ato de livre vontade, mas procure encontrar todo o complexo das causas na totalidade biológica e psicológica do indivíduo, e na totalidade social que determina a vida do indivíduo. [09]

Destarte, o paradigma etiológico é também considerado como o paradigma da defesa social.

Para os positivistas, a responsabilidade penal assume, pois, uma dimensão de responsabilidade social.

Relativamente às ciências criminais, anota-se o predomínio do método indutivo (experimental), baseado na medição, neutralidade e causalidade.

No período assinalado como positivista, têm proeminência as obras de Cesare Lombroso (Do Criminoso Nato) e de Enrico Ferri, com sua antropologia criminal – multifatorialismo causal (físico, biológico e social) do crime.

Eis o comentário de Vera Regina Pereira de Andrade:

Desenvolvendo a Antropologia lombrosiana numa perspectiva sociológica, Ferri admitiu, por sua vez, uma tríplice série de causas ligadas à etiologia do crime: individuais (orgânicas e psíquicas), físicas (ambiente telúrico) e sociais (ambiente social) e, com elas, ampliou a originária tipificação lombrosiana da criminalidade. [10]

Em paralelo à Escola Clássica, os positivistas acabaram expondo o antagonismo entre os elementos individual e o social; a razão e a realidade (racionalismo x empirismo).

A cominação e a aplicação da pena se constituem instrumentos de defesa social. Logo, de acordo com os princípios dessa Escola, o direito estatal de punir encontra fundamento na responsabilidade social do delinqüente.

No tocante ao paradigma etiológico, é importante gizar que a Criminologia é considerada ciência causal-explicativa do fenômeno da criminalidade.

Ademais, partindo da premissa de que as teorias críticas não estariam livres de aperfeiçoamento e considerando-se algumas soluções isoladas – compartimentadas – por ela oferecidas, Alessandro Baratta reconhece outro importante estágio na evolução das ciências criminais, que denomina fase neoclássica.

São suas palavras:

[...] no âmbito da práxis teórica penal pode surgir somente um novo modelo, em que a relação entre ciência social e discurso dos juristas não é mais a relação entre duas ciências, mas uma relação entre ciência e técnica. Por técnica jurídica se entende, com efeito, a preparação de instrumentos legislativos (técnica legislativa), interpretativos e dogmáticos em vista de finalidades e de opções político-criminais conscientemente perseguidas no âmbito da correção lógico-argumentativa e da discricionariedade valorativa atribuída ao jurista, nestes diversos níveis da própria atividade, pelo sistema jurídico-político. [11]

Na atual fase de desenvolvimento da sociedade capitalista, o interesse das classes subalternas é o ponto de vista a partir do qual se coloca uma teoria social comprometida, não na conservação, mas na transformação positiva, ou seja, emancipadora da realidade social. O interesse das classes subalternas e a força que elas são capazes de desenvolver são, de fato, o momento dinâmico material do movimento da realidade. [12]

Portanto, lado a lado, seguiriam o jurista e o cientista social conciliando teoria e práxis social, tudo em prol de uma nova visão emancipadora para a teoria penal.

2.4 Evolução do saber criminológico

Tendo em vista que a presente monografia tem como premissas os fundamentos que dão suporte à Criminologia Crítica, buscar-se-á trazer à colação algumas das idéias desenvolvidas pelo pensamento filiado àquele movimento, cotejando-as com os objetivos formulados nesta pesquisa.

Antes, porém, será feita uma descrição panorâmica dos paradigmas mais influentes desse saber, iniciando-se pelo modelo etiológico ou biopsicológico (teoria causal-explicativa ou positivista).

A Criminologia positivista incorpora a projeção do determinismo biopsicológico e social na realização do delito, isto é, o comportamento desviante seria determinado pelas condições biopsicológicas e sociais do indivíduo. Daí, portanto, o conceito da Criminologia como ciência causal-explicativa.

Consoante explicação de Vera Andrade:

O pressuposto, pois, de que parte a Criminologia positivista é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. Sendo a criminalidade esta realidade ontológica, preconstituída ao Direito Penal (crimes "naturais") que, com exceção dos chamados crimes "artificiais", não faz mais do que reconhecê-la e positivá-la, seria possível descobrir as suas causas e colocar a ciência destas a serviço do seu combate em defesa da sociedade. [13]

Registre-se que o paradigma etiológico corresponde ao esplendor da Antropologia Criminal e da Sociologia Criminal, desenvolvidas por Cesare Lombroso e Enrico Ferri.

Vale a pena anotar o ensinamento de Vera Andrade. Diz a autora, ipsis litteris:

A primeira e célebre resposta sobre as causas do crime foi dada pelo médico italiano Lombroso, que sustenta, inicialmente, a tese do criminoso nato: a causa do crime é identificada no próprio criminoso. Partindo do determinismo biológico (anatômico-fisiológico) e psíquico do crime e valendo-se do método de investigação e análise próprio das ciências naturais (observação e experimentação), procurou comprovar sua hipótese através da confrontação de grupos não-criminosos com criminosos dos hospitais psiquiátricos e prisões, sobretudo do sul da Itália, pesquisa na qual contou com o auxílio de Ferri, que sugeriu, inclusive, a denominação "criminoso nato". [14]

A partir dessas teorias, amplia-se, então, no meio científico e também no imaginário do senso comum, a concepção maniqueísta: de um lado, a sociedade formada por homens de bem, de outro, uma minoria constituída por homens maus, os criminosos.

Ressalte-se que, no âmbito da concepção positivista, a função da pena suplantaria o caráter retributivo, constituindo um verdadeiro meio de "defesa social" visando à recuperação do indivíduo criminoso – ressocialização.

A partir desta noção, são desenvolvidas as teorias legitimadoras do jus puniendi, que ocupam ainda hoje posição de destaque no roteiro dogmático, notadamente as chamadas teorias relativas da prevenção especial.

A defesa social, portanto, passa a ser ponto nuclear para a ciência positivista.

Neste jaez, repita-se, as idéias gestadas na Dogmática Jurídica Penal eram transportadas diretamente para a Criminologia, que acabava por reproduzir o modo de pensar próprio do Direito Penal positivo.

Por conseguinte, possuíam no seu campo de observação as causas e os efeitos do evento criminoso, mas com uma característica emblemática, qual seja, o objeto é dado, pré-constituído, revelado pelo próprio Sistema Penal.

É como registra Vera Andrade no seguinte comentário:

As representações do determinismo / criminalidade ontológica / periculosidade / anormalidade / tratamento / ressocialização se complementam num círculo extraordinariamente fechado, conformando uma percepção da criminalidade que se encontra, há um século, profundamente enraizada nas agências do sistema penal e senso comum da sociedade. E porque revestida de todas as representações que permitiriam consolidar uma visão profundamente estereotipada do criminoso - associada à clientela da prisão e, portanto, aos baixos estratos sociais – serviu para consolidar, muito mais do que um conceito, um verdadeiro (pre) conceito sobre a criminalidade. [15]

Com efeito, o paradigma etiológico – da defesa social – vem sendo alvo de intensos questionamentos, notadamente pelas contradições estruturais que envolvem o Sistema Penal dogmático, no qual se apóia.

Atualmente, vem conquistando relevo científico o paradigma da reação social, escudado pela teoria do labelling approach.

No dizer de Alessandro Baratta:

Os criminólogos tradicionais examinam problemas do tipo "quem é criminoso?", "como se torna desviante?", "com que meios se pode exercer controle sobre o criminoso? Ao contrário, os interacionistas, como em geral os autores que se inspiram no labelling approach, se perguntam: "quem é definido como desviante?", "que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?", "em que condições este indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?" e, enfim, "quem define quem?". [16]

Em contraste com o paradigma da defesa social, de caráter positivista, a teoria do labelling approach é também referida como teoria do etiquetamento, ou como paradigma da reação social, ou da "definição". [17]

De acordo com a teoria do etiquetamento, a definição de crime (desvio) se afasta do determinismo, que caracteriza o modelo eminentemente etiológico, para relacionar-se a um duplo processo de definição e de seleção.

Vera Andrade explica:

[...] o labelling parte dos conceitos de "conduta desviada" e "reação social", como termos reciprocamente interdependentes, para formular sua tese central: a de que o desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e seleção. [18] (grifo nosso).

Para Alessandro Baratta:

Esta direção de pesquisa parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de delinqüente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como "delinqüente". Neste sentido, o labeling approach tem se ocupado principalmente com as reações das instâncias oficiais de controle social, consideradas na sua função constitutiva em face da criminalidade. [19] (grifo do autor).

Acentuando um dos aspectos distintivos inerentes à metodologia científica da teoria do etiquetamento, pontifica Vera Andrade:

Ao afirmar que a criminalidade não tem natureza ontológica, mas social e definitorial e acentuar o papel constitutivo do controle social na sua construção seletiva, o labelling desloca o interesse cognoscitivo e a investigação das "causas" do crime e, pois, da pessoa do autor e seu meio e mesmo do fato-crime, para a reação social da conduta desviada, em especial para o Sistema Penal. [20]

Portanto, sob a égide do paradigma da reação social, ocorre o deslocamento do objeto de estudo da Criminologia: do indivíduo criminoso para o indivíduo "criminalizado", "etiquetado" pelo Sistema Penal.

2.5 Fundamentos da Criminologia Crítica

Como já observado, transcendendo os limites impostos pelo paradigma positivista, a Criminologia Crítica, precipuamente através do paradigma da reação social, passa a ter objeto próprio, cuja investigação evidencia a contradição de dogmas capitais erigidos, ao longo de séculos, pelo Direito Penal positivado.

No que tange à compreensão da criminalidade e à descoberta de soluções para o seu controle, esse novel modelo surge a partir do esgotamento do paradigma etiológico.

De outro modo, pode-se dizer que se passou a construir, em bases científicas sólidas, um novo arcabouço teórico que buscasse conhecer, sem escamoteamento, os reais fatores da criminalidade, desfazendo, então, o círculo vicioso gerado pela Dogmática.

Assim sendo, começa-se a questionar, entre outros, o dogma da aplicação "igualitária" da lei penal, bastante caro à ciência do Direito Penal.

Outra incoerência constatada no âmbito do Sistema Penal brasileiro refere-se ao rompimento da legalidade pelas respectivas agências estatais. Como conseqüência da arbitrariedade cometida pelo Sistema Penal, as prisões, em particular, oferecem-nos um cenário do grotesco desrespeito aos direitos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e nas próprias normas atinentes ao direito material e processual penal.

Eugenio Raúl Zaffaroni afirma:

O sistema penal não respeita a legalidade porque, para o verdadeiro e fundamental exercício de poder (o exercício de poder positivo configurador disciplinante), a própria lei se ocupa de renunciar à legalidade, concedendo amplíssima margem de arbitrariedade a suas agências. [21]

O que existe, na realidade, é um intransponível fosso entre aquilo que é apregoado pelo sistema e o que, de fato, ele pratica. Conforme veremos, adiante, o Direito Penal adota discursos aparentes e discursos reais.

Assim, é razoável, desde logo, inferir-se que, em parelha com a falácia da "igualdade", segue a falácia do "cumprimento da lei" relativamente à cominação e à aplicação da pena.

Nesse contexto, para a Criminologia Crítica, surge a representação de que o Sistema Penal em vigor é essencialmente seletivo.

Tal seletividade desponta como aspecto fundamental, que explica sua singular estrutura lógica, operacional e ideológica.

Por esta e outras razões, vêm sendo reconhecidas as contribuições das denominadas teorias críticas, em especial, da teoria do etiquetamento (labelling approach).

Observa Alessandro Baratta, ao considerar a "irreversibilidade do ‘labelling approach’ na teoria e no método da sociologia criminal":

[...] é certo que as teorias da criminalidade baseadas no labelling approach conduziram a resultados que, em certo sentido, são irreversíveis. De fato, em certos aspectos, estas teorias sacudiram os fundamentos da ideologia penal tradicional. Desta ideologia, colocaram em discussão, principalmente, o elemento que, no capítulo II, denominamos princípio de igualdade, posto que demonstraram que a criminalidade, segundo a sua definição legal, não é o comportamento de uma minoria, mas da maioria dos cidadãos e que, além disso, segundo a sua definição sociológica, é um status atribuído a determinados indivíduos por parte daqueles que detêm o poder de criar e de aplicar a lei penal, mediante mecanismos seletivos, sobre cuja estrutura e funcionamento a estratificação e o antagonismo dos grupos sociais têm uma influência fundamental. [22] (grifo nosso).

No dizer de Vera Andrade:

A criminologia crítica recupera, portanto, a análise das condições objetivas, estruturais e funcionais que originam, na sociedade capitalista, os fenômenos de desvio, interpretando-os separadamente, conforme se tratem de condutas das classes subalternas ou condutas das classes dominantes (a chamada criminalidade de colarinho branco, dos detentores do poder econômico e político, a criminalidade organizada etc.). [23]

2.6 A seletividade do Sistema Penal

No âmbito da Dogmática Penal, proclama-se que a atuação do Sistema Penal está moldada para reprimir toda e qualquer criminalidade.

Entretanto, não é difícil entender, conforme alertam os críticos, que esse propósito é inteiramente utópico, porque impossível a persecução e aplicação de pena a todos aqueles que incidem nas condutas ilícitas tipificadas na lei.

Para Zaffaroni:

Se o sistema penal tivesse realmente o poder criminalizante programado ‘provocaria uma catástrofe social’.

Diante da absurda suposição - não desejada por ninguém absolutamente - de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis. [24](grifo do autor).

Portanto, com fulcro nos argumentos da Criminologia Crítica, principalmente aqueles coerentes com o paradigma da reação social, já se pode constatar que, do universo de delitos efetivamente alcançado pelo Sistema Penal, apenas uma parcela criteriosamente selecionada, será alvo do programado tratamento repressivo e punitivo do Estado.

Refutando o discurso oficial da Dogmática Penal, pode-se afirmar com Vera Andrade que:

A correção fundamental desta distribuição estatística e explicação etiológica da criminalidade é a de que a criminalidade, além de ser uma conduta majoritária, é ubíqua, ou seja, presente em todos os estratos sociais. O que ocorre é que a criminalização é, com regularidade, desigual ou seletivamente distribuída pelo sistema penal. Desta forma, os pobres não têm uma maior tendência a delinqüir, mas sim a serem criminalizados. De modo que à minoria criminal da Criminologia positivista opõe-se a equação maioria criminal x minoria pobre regularmente criminalizada. [25]

Em conformidade com as teorias críticas, a doutrina traz várias classificações, quando leva em conta o caráter seletivo de definição e de aplicação da lei penal.

Assim, tem-se que a seletividade primária se dá na fase de edição e de aprovação da lei criminal a cargo do órgão legislador.

Em outra ponta, a seletividade secundária do Sistema Penal atua na determinação, em geral, das ações promovidas pelas agências estatais incumbidas da repressão e da aplicação da lei incriminadora, que são os órgãos policiais (inclusive penitenciários), o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Relativamente à seletividade primária (ou formal), acrescenta-se a benfazeja opinião de Alessandro Baratta, para quem:

No que se refere ao direito penal abstrato (isto é, à criminalização primária), isto tem a ver com os conteúdos, mas também com os "não-conteúdos" da lei penal. O sistema de valores que neles se exprime reflete, predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa – individualista, dando a máxima ênfase à proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados. Basta pensar na enorme incidência de delitos contra o patrimônio na massa da criminalidade, tal como resulta da estatística judiciária, especialmente se se prescinde dos delitos de trânsito. Mas a seleção criminalizadora ocorre já mediante a diversa formulação técnica dos tipos penais e a espécie de conexão que eles determinam com o mecanismo das agravantes e das atenuantes (é difícil, como se sabe, que se realize um furto não "agravado"). [26] (grifo nosso).

Os critérios que influenciam a seleção criminal são de natureza estrutural e seguem a lógica de distribuição de bens utilizada nos sistemas econômicos fundeados no modelo capitalista. Entretanto, de forma paradoxal, a divisão dos bens e privilégios se dá de modo "inversamente" proporcional ao status de delinqüente – bens negativos.

Afirma Vera Andrade:

Em suma, como conclui Sack, a criminalidade (a etiqueta de criminoso) é um "bem negativo" que a sociedade (controle social) reparte com o mesmo critério de distribuição de outros bens positivos (o status social e o papel das pessoas: fama, patrimônio, privilégios, etc.), mas em relação inversa e em prejuízo das classes sociais menos favorecidas. Criminalidade é o exato oposto dos bens positivos (do privilégio). E, como tal, é submetida a mecanismos de distribuição análogos, porém em sentido inverso à distribuição destes. [27]

Outro aspecto a realçar é ocorrência das chamadas cifras "negras" da criminalidade, a par do processo seletivo engendrado pelo Sistema Penal. Tais cifras, não contempladas nas estatísticas criminais tradicionalmente produzidas, dizem respeito aos delitos – em termos quantitativos ou qualitativos – que o Sistema não consegue alcançar.

2.7 Estigmatização x imunização

À luz da Criminologia Crítica, é certo que o fenômeno da seletividade, na prática, acarreta conseqüências desastrosas aos indivíduos alcançados pela repressão penal. Isto se evidencia, em particular, na estigmatização provocada pela criminalização.

Em nosso país, secularmente imerso em profundas desigualdades sociais, os indivíduos dos estratos sociais inferiores compõem a parcela mais vulnerável. Por outro lado, o sistema não esconde a imunização que promove e que privilegia a parcela mais favorável – diga-se de passagem, com elogiável eficiência.

Portanto, se o Sistema Penal não consegue ou não pode cumprir com aquilo a que se propõe, ou seja, a repressão, por igual, das condutas humanas penalmente relevantes, ofensivas dos bens jurídicos fundamentais, vislumbra-se, por conseguinte, uma exuberante vulnerabilidade de indivíduos pertencentes às classes sociais subalternas – em geral, indivíduos do sexo masculino, "não brancos", analfabetos ou com baixa instrução escolar. [28]

Em contraposição, constata-se uma extraordinária imunização de determinados indivíduos, detentores, em regra, de poderio político, econômico ou mesmo científico; em resumo, os mais bem situados na escala social.

Opondo-se ao mito da igualdade do Direito Penal, Alessandro Baratta, relaciona as seguintes proposições:

a)o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário;

b)a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos;

c)o grau efetivo de tutela e de distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade. [29]

Com efeito, na seara da Criminologia Crítica, criminalidade e criminalização, encerram conceitos distintos. A primeira corresponde a uma realidade genérica. Quem, por exemplo, nunca cometeu um furto, um ato ofensivo aos costumes, uma fraude de qualquer tipo, inclusive fiscal? Já a criminalização resulta de um orquestrado processo de seleção entre os indivíduos integrantes especialmente das classes destituídas de privilégios, sejam estes quais forem.

Nas precisas palavras de Vera Andrade:

A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a "definição" legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal, e a "seleção" que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas. [30]

A clientela do sistema penal é constituída de pobres (minoria criminal) não porque tenha uma maior tendência a delinqüir, mais precisamente porque tem maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinqüentes. [31]

Em outras palavras, mas convergente com a idéia ora exposta, é o que se dessume da seguinte declaração de Michel Foucault, ao estremar os fenômenos da ilegalidade e da delinqüência, evidenciando a função estratégica do cárcere. Diz o autor:

A lei e a justiça não hesitam em proclamar sua necessária dissimetria de classe.

Se tal é a situação, a prisão, ao aparentemente "fracassar", não erra seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade, que ela permite separar, pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável. Ela contribui para estabelecer uma ilegalidade, visível, marcada, irredutível a um certo nível e secretamente útil – rebelde e dócil ao mesmo tempo; ela desenha, isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras, mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar. Essa forma é a delinqüência propriamente dita. Não devemos ver nesta a forma mais intensa e mais nociva da ilegalidade, aquela que o aparelho penal deve mesmo tentar reduzir pela prisão por causa do perigo que representa; ela é antes um efeito da penalidade (e da penalidade de detenção) que permite diferenciar, arrumar e controlar as ilegalidades. Sem dúvida a delinqüência é uma das formas da ilegalidade; em todo caso, tem suas raízes nela; mas é uma ilegalidade que o "sistema carcerário", com todas as suas ramificações, investiu, recortou, penetrou, fechou num meio definido e ao qual deu um papel instrumental, em relação às outras ilegalidades. [32] (grifo nosso).

Ainda atinente à problemática da criminalização x criminalidade, encontra-se uma outra análise, na obra de Alessandro Baratta, na qual o autor faz referência a um second code (segundo código) - que "regula" a aplicação da lei penal pelos órgãos oficiais de persecução.

Vera Andrade afirma:

Os conceitos de second code e basic rules conectam precisamente a seleção operada pelo controle penal formal com o controle social informal, mostrando como os mecanismos seletivos presentes na sociedade colonizam e condicionam a seletividade decisória dos agentes do sistema penal num processo interativo de poder entre controladores e controlados (público), perante o qual a assepsia da Dogmática Penal para exorcizá-los assume toda a extensão do seu artificialismo, pois, reconduzido ao controle social global, o sistema penal aparece como filtro último e uma fase avançada de um processo de seleção que tem lugar no controle informal (família, escola, mercado de trabalho), mas os mecanismos deste atuam também paralelamente e por dentro do controle penal. [33]

Outrossim, conforme conclui Alessandro Baratta, vige uma relação direta entre estigmatização e "reincidência penal" originando autênticas "carreiras criminosas".

São suas palavras:

A particular expectativa de criminalidade que dirige a atenção e a ação das instâncias oficiais especialmente sobre certas zonas sociais já marginalizadas faz com que, em igualdade de percentual de comportamentos ilegais, se encontre nelas um percentual enormemente maior de comportamentos ilegais, em relação a outras zonas sociais. Um número desproporcionado de sanções estigmatizantes (penas detentivas), que comportam a aplicação de definições criminais e uma drástica redução do status social se concentra, assim, nos grupos mais débeis e marginalizados da população. [34]

Enfim, a estigmatização se revela como o verso da "moeda" da seletividade, na qual a outra face estampa a imunização penal. Aliás, o status da imunização é bastante peculiar aos denominados criminosos de "colarinho branco", entre os quais comumente se enquadram aqueles que sonegam tributos. É o que se verá a seguir.

2.8 Crimes de "colarinho branco"

A conhecida expressão, normalmente atribuída aos ilícitos cometidos por pessoas de elevada posição social, econômica ou política, tem sua origem nos estudos realizados pelo sociólogo Edwin H. Sutherland. [35]

Em sua teoria, Sutherland se utiliza de argumentos que contrariam as conclusões/implicações da teoria funcionalista elaborada anteriormente por Robert Merton.

Por sua vez, ao tentar explicar a criminalidade vicejante nos estratos sociais mais baixos, Merton esboça, em linhas gerais, que o desvio está associado às oportunidades (e metas) atribuídas aos indivíduos no sentido de ascender na escala social. [36]

Em outras palavras, o esforço daqueles que estivessem em degrau socialmente inferior seria muito maior, a fim de alcançar um status mais elevado, por conseguinte, seria aceitável o desvio por parte desses indivíduos, porém, dentro de certos limites (delinqüência inovadora).

Acerca do assunto, explana Alessandro Baratta:

O modelo de explicação funcionalista proposto por Merton, portanto, consiste em reportar o desvio a uma possível contradição entre estrutura social e cultura: a cultura, em determinado momento do desenvolvimento de uma sociedade, propõe ao indivíduo determinadas metas, as quais constituem motivações fundamentais do seu comportamento (por exemplo, um certo nível de bem-estar e de sucesso econômico). Proporciona, também, modelos de comportamento institucionalizados, que resguardam as modalidades e os meios legítimos para alcançar aquelas metas. Por outro lado, todavia, a estrutura econômico-social oferece aos indivíduos, em graus diversos, especialmente com base em sua posição nos diversos estratos sociais, a possibilidade de acesso às modalidades e aos meios legítimos para alcançar as metas. [37]

Quanto aos desvios perpetrados pelos indivíduos situados nas camadas sociais mais elevadas, a teoria de Merton não é conclusiva, já que em relação a esses aspectos é falha a teoria da delinqüência inovadora.

É nesse vazio, porém, que se projeta a pesquisa de Sutherland, pois, aproveitando-se dos dados colhidos por Merton, acabou por evidenciar as cifras negras da criminalidade, haja vista que, com raras exceções, os indivíduos mais abastados não fazem parte das populações carcerárias. Sutherland, então, formula sua teoria da "associação diferencial".

Explica Baratta, [38] aludindo à teoria de Merton, que "a criminalidade, como qualquer outro modelo de comportamento, se aprende – aprendizagem de fins e de técnicas –, conforme contatos específicos aos quais está exposto o sujeito no seu ambiente social e profissional."

Ainda de acordo com Alessandro Baratta pode-se dizer que:

As malhas dos tipos são, em geral, mais sutis no caso de delitos próprios dos das classes sociais mais baixas do que no caso de delitos de "colarinho branco". Estes delitos, também do ponto de vista da previsão abstrata, têm uma maior possibilidade de permanecerem imunes. [39]

Como nos faz ver a Criminologia Crítica, os criminosos de "colarinho branco", em verdade, são apenas uma faceta alegórica decorrente do processo seletivo que, de fato, imuniza certos indivíduos relativamente às agruras do cárcere.

2.9 Funções declaradas e reais do Sistema Penal

O Direito Penal, da forma em que se apresenta, notabiliza-se por suas funções declaradas – um sistema que visa proteger bens jurídicos fundamentais – e por suas funções reais ou "não" declaradas, uma configuração vista por alguns como autêntico instrumento de manutenção do status quo.

Assevera Alessandro Baratta, em reflexão acerca da manutenção do status quo (função latente do Sistema Penal):

O aprofundamento da relação entre direito penal e desigualdade conduz, em certo sentido, a inverter os termos em que esta relação aparece na superfície do fenômeno descrito. Ou seja: não só as normas do direito penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdade existentes, mas o direito penal exerce, também, uma função ativa, de reprodução e de produção, com respeito às relações de desigualdade. Em primeiro lugar, a aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, e especialmente o cárcere, é um momento superestrutural essencial para a manutenção da escala vertical da sociedade. Incidindo negativamente, sobretudo no status social dos indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais baixos, ela age de modo a impedir sua ascenção social. Em segundo lugar, e está é uma das funções simbólicas da pena, a punição de certos comportamentos ilegais serve para cobrir um número mais amplo de comportamentos ilegais, que permanecem imunes ao processo de criminalização. Desse modo, a aplicação seletiva do direito penal tem como resultado colateral a cobertura ideológica desta mesma seletividade. [40] (grifo nosso).

O debate em torno dessas funções, declaradas ou reais, inclui também a propalada função simbólica que seria exercida pelo Direito Penal, embora seja considerada aqui numa acepção diferente da que usualmente lhe é atribuída.

Segundo explica Vera Andrade:

Afirmar assim que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções latentes predominam sobre as declaradas não obstante a confirmação simbólica (e não empírica) destas. A função simbólica é assim inseparável da instrumental à qual serve de complemento e sua eficácia reside na aptidão para produzir um certo número de representações individuais ou coletivas, valorizantes ou desvalorizantes, com função de "engano". [41]

No que toca ao controle formal exercido pelo Direito Penal (Dogmática), Vera Andrade alerta que "a radiografia interna dos sistemas penais é, também, uma radiografia direta e um testemunho definitivo do profundo déficit histórico de cumprimento da função instrumental racionalizadora / garantidora prometida pela Dogmática Penal [...]". [42]

No processo de seleção desencadeado pelo sistema, a mídia exerce um papel de capital importância na difusão das idéias e do simbolismo do Direito Repressivo positivo, nos moldes em que esse vem sendo justificado pela Dogmática.

Nesse compasso, o que chega à opinião pública, é também cuidadosamente "filtrado" de modo a apresentar um Sistema Penal com "reais" possibilidades de ser justo e eficiente.

Para a opinião reinante no senso comum, pouco importa se a atuação das agências estatais é voltada, quase que exclusivamente, para determinados setores da sociedade. A festejada presença (ostensiva) da polícia nas ruas e a edição de leis penais mais severas são suficientes para satisfazer ao clamor popular por mais segurança.

A mídia, portanto, se coloca a serviço do Sistema Penal, quando exibe em programas sensacionalistas casos que envolvem, via de regra, delitos contra a vida e contra o patrimônio individual, provocando intencionalmente um falso alarma de aumento da violência, ao mesmo tempo em que contribui para tornar "legítima" a ação repressora do Estado. [43]

Por isso, é tão comum e previsível o discurso de autoridades que clamam por mais recursos humanos e materiais, sob a alegação de um eficiente combate à criminalidade.

Aliás, não se poderia esperar algo diferente, em se tratando da ligação umbilical entre burguesia e liberdade individual/propriedade, valores que remontam aos ideais iluministas da Revolução Francesa, cuja tutela, prioritária, caberia, em maior ou menor grau, ao Direito Penal.

Os meios de comunicação são igualmente parciais, quando divulgam, de preferência em horários ditos "nobres", os cada vez mais crescentes índices que medem os níveis de violência e, em conseqüência, a necessidade, sempre premente, da edição de leis penais mais "duras".

Em verdade, com esse comportamento, a mídia assume um papel preponderante, já que de caráter estrutural, no mascaramento da ação seletiva do Sistema Penal.

Indo além, Vera Andrade explica que o agigantamento da "resposta" penal serve também para encobrir o vazio de "respostas" decorrente da globalização.

Em suas argutas palavras:

A mídia encarrega-se de encenar, entre o misto do drama e do espetáculo, uma sociedade comandada pelo banditismo da criminalidade, e de construir um imaginário social amedrontado. À mídia incumbe acender os holofotes, seletivamente, sobre a expansão da criminalidade e firmar o jargão da necessidade de segurança pública como o senso mais comum do nosso tempo. Como o elo mais compulsivo que unindo Nós contra o Outro (Outsiders) agiganta por sua vez a dimensão do inimigo criminalidade. Este inimigo, tornado cenicamente maior que todos os demais, concorre para invisibilizar o enredo do poder que subjaz à força simbólica do maniqueísmo, punitivamente reapropriado, e concorre para invisibilizar, em definitivo, que quem se expande não é, propriamente, a criminalidade ( prática de fatos definidos como crimes) mas a criminalização (definições de crime e etiquetamento seletivo de criminosos pelo sistema penal), que a co-constitui e produz. [44] (grifo nosso).

Finalmente, e após a exposição de algumas das idéias trazidas pela Criminologia Crítica, pretende-se demonstrar que o tema relacionado a esta pesquisa (crimes de sonegação fiscal) pode ser analisado sob outros prismas, como uma alternativa ao "formato" proposto pela Dogmática Penal.

Propõe-se uma nova leitura da Lei nº 8.137/90 e suas especiais e polêmicas disposições normativas, que, praticamente, inviabilizam o combate da referida modalidade criminosa, ao tempo em que reafirma, no mais alto grau, o atributo da seletividade que reveste o Sistema Penal em vigor.

Nos capítulos seguintes, apresenta-se uma "exposição abrangente", em geral, dos institutos da Dogmática Jurídica atinentes a esses ilícitos e, em particular, da hipótese específica de extinção da punibilidade, através do pagamento do tributo – reparação do dano.


3 DO DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO

O Estado, na realização de sua atividade financeira, está incumbido da arrecadação, gestão e aplicação de recursos obtidos com o pagamento de tributos visando ao atendimento das despesas públicas, fundamentais, em última análise, à própria ordenação da vida em sociedade.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu art.145 e segs. (Capítulo I do Título VI), enuncia os princípios e normas jurídicas que regem a imposição tributária.

Em suma, a Lei Fundamental reúne as diretrizes do sistema tributário nacional, estabelecendo as competências tributárias, os limites ao poder de tributar e a repartição dessas receitas.

No Direito positivado, o Código Tributário Nacional (CTN), Lei Federal nº. 5.172/66), em seu art. 3º, define tributo como "toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada".

O art. 5º do mesmo diploma legal estatui: "os tributos são impostos, taxas e contribuições de melhoria". O surgimento de uma nova ordem jurídica no país com a Carta Política de 1988, porém, deixou para trás a classificação trazida pelo Código Tributário Nacional.

Expressiva parcela da doutrina reconhece, inclusive com respaldo pretoriano, que não são três, mas cinco as espécies tributárias. Além daquelas elencadas no CTN, são considerados tributos as contribuições especiais - que se dividiriam em contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais - e o empréstimo compulsório, conforme expressa previsão constitucional, aplicando-se-lhes, inclusive, os princípios relativos às demais espécies legais.

Convém assinalar que o sistema constitucional tributário possui diversas finalidades, servindo a imposição tributária, também, como importante instrumento na execução das ações governamentais no âmbito político, econômico e social.

No âmbito da Economia, contribui para restringir ou incentivar o consumo de determinados produtos e serviços, o que influencia diretamente a produção industrial e a atividade comercial no país.

Relativamente à sua função social, o sistema tributário nacional visa à arrecadação de recursos para a realização das obras e dos serviços de interesse de toda a coletividade, mediante a arrecadação de tributos de pessoas físicas e jurídicas.

De acordo com a doutrina, diz-se ainda que a tributação tem finalidade fiscal, quando, precipuamente, visa à obtenção das receitas necessárias ao oferecimento dos serviços públicos relacionados à saúde, educação, segurança pública, previdência, infra-estrutura, etc.

Além disso, o viés extrafiscal da tributação proporciona ao Estado o poder de intervir nas relações econômicas, sociais ou políticas. É parafiscal, por exemplo, quando garante o funcionamento de órgãos responsáveis pelo controle e pela fiscalização de categorias profissionais, econômicas etc.

3.2 Elementos de Direito Tributário

Na estruturação dos delitos fiscais, a lei penal vai buscar no Direito Tributário elementos integrativos de sua norma.

Em oportunidade anterior, já se pôde conhecer a definição legal de tributo, a teor do art. 3º do CTN.

Anota-se, entrementes, que a norma jurídica tributária, definida também por um juízo hipotético-condicional, pode ser compreendida em seu sentido amplo (v.g., norma relativa à fiscalização do tributo), assim como em sentido estrito, qual seja a norma que prescreve a obrigação de pagar o tributo e define a incidência fiscal.

Deflagrada a incidência da norma tributária (em sentido estrito) surge para o Estado o direito de exigir do particular o tributo, enquanto que para o particular surge o dever de entregar determinada quantia aos cofres públicos.

É como explica Sacha Calmon Navarro Coêlho, em seu magistério:

Acontecido o fato previsto na hipótese legal (de incidência), o mandamento que era abstrato, virtual in potentia, torna-se atuante e incide. Demiúrgico, ao incidir, produz efeitos no mundo real, instaurando relações jurídicas (direitos e deveres).A incidência, em Direito Tributário, é para imputar a determinadas pessoas o dever de pagar somas de dinheiro ao Estado a título de tributo. [45] (grifo do autor).

Ao se estudar a norma de incidência tributária, invariavelmente vem à tona o conceito de fato gerador tributário.

Fato gerador é denominação que tem suscitado certa confusão na doutrina, em boa parte devido ao uso indiscriminado e pouco criterioso por parte do legislador, ora se referindo ao fato descrito na lei (hipótese de incidência), ora ao fato ocorrido no mundo fenomênico (fato gerador in concreto).

Na concepção de Geraldo Ataliba [46], "a hipótese de incidência é a descrição legislativa (necessariamente hipotética) de um fato cuja ocorrência in concreto a lei atribui a força jurídica de determinar o nascimento da obrigação tributária."

Por outro lado, ainda conforme lição do ilustre tributarista, o fato gerador, quando se refere à ocorrência in concreto das situações, fatos e condutas humanas, recebe o nome de fato imponível.

Paulo de Barros Carvalho [47] adota o termo regra-matriz de incidência tributária para designar a norma tributária em sentido estrito. Em suma, para o eminente professor, o descritor - hipótese ou antecendente - da regra-matriz tributária tem a função de descrever um fato de possível ocorrência no mundo real (fenomênico), ressaltando-se, de acordo com o conceito legal (art. 3º do Código Tributário Nacional), que o tributo não se caracteriza como sanção pela prática de ato ilícito.

De acordo com o art. 114 do Código Tributário Nacional, "fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência."

Obrigação tributária principal é aquela relacionada ao dever de pagar o tributo, enquanto a obrigação acessória está ligada ao cumprimento dos chamados deveres instrumentais ou formais.

No intuito de complementar estas noções do Direito Tributário, cabe apenas gizar que, nos pólos da relação jurídico-tributária, figuram de um lado o sujeito ativo – ente tributante –, de outro, o sujeito passivo, que pode ser contribuinte ou responsável tributário. Diz o CTN, em seu art. 121 que o sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária. Ainda de acordo com o CTN, o sujeito passivo é contribuinte quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador, ou responsável quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei. (art. 121, par. único).

Como regra, as condutas tipificadas na lei especial em destaque, notadamente aquelas referidas no art. 1º, pautam-se na falsidade ideológica ou material.

Por conseguinte, relativamente a operações sujeitas a tributação, impõe-se averiguar a fraude na caracterização de tais práticas criminosas, configuradas na falsificação ou na ocultação dolosa de informações e de documentos ao Fisco, relativamente a operações sujeitas à tributação.

3.3 O Direito Penal Econômico

No que concerne à estruturação normativa dos agentes econômicos, a Constituição Federal preceitua que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]". (art. 170).

A partir de uma interpretação teleológica e sistemática do texto magno, infere-se que, apesar da opção pelo modelo capitalista de produção, com a garantia da economia de mercado, da livre iniciativa e da propriedade, firmou-se no país também compromisso com a justiça social, com base na novel ordem jurídica fundamental (o art. 3º da Constituição enuncia os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a saber: i - construir uma sociedade livre, justa e solidária; ii - garantir o desenvolvimento nacional; iii - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais).

Conclui-se, portanto, que o modelo adotado no Brasil, embora restrinja a atuação do agente econômico estatal (art. 173 da Carta Magna), não elimina a função normativa e reguladora do Estado, que se justifica, em várias ocasiões, diante de ações ilícitas e abusos cometidos pelos demais agentes econômicos.

Nos dias de hoje, é justamente nesse contexto que se explica, em boa medida, o desenvolvimento e a importância do Direito Penal Econômico para a ciência do direito.

Seguindo o mesmo raciocínio, tem-se que a preocupação com a repressão a delitos ofensivos ao sistema econômico vem aumentando em razão do aumento e da sofisticação das relações travadas no ambiente de produção e circulação de bens e serviços.

Consoante estudos desenvolvidos por Sutherland, já anteriormente citado, a expressão "crimes de colarinho branco" passou a significar também os ilícitos praticados por aqueles que ocupam elevado status social e econômico e que raramente são alcançados pelo sistema repressivo do Estado.

Entretanto, e considerando a realidade atual do país, deve-se aceitar com alguma reserva a associação entre delitos fiscais e indivíduos pertencentes às camadas sociais mais elevadas, tendo em vista a indesejável "democratização" de tais condutas.

3.4 O Direito Penal Tributário

Como corolário desse novel ramo da Dogmática Penal, destaca-se a disciplina específica atinente à prevenção e à repressão dos delitos perpetrados contra o sistema tributário nacional, ou seja, dos crimes contra a ordem tributária.

Muito se tem discutido acerca da legitimidade e do alcance de um Direito Penal voltado para os ilícitos fiscais. Debate-se até mesmo sobre a correição da nomenclatura empregada.

Alguns autores falam em Direito Penal Tributário, enquanto, para outros, o termo mais adequado seria Direito Tributário Penal. Por razões didáticas, adota-se a primeira expressão. Ressalta-se, contudo, que o Direito Tributário Penal estabelece uma melhor relação com o estudo das sanções administrativas por descumprimento de normas jurídicas fiscais.

Na opinião de Maurício Kalache [48] "o Direito Penal Fiscal é, pois, obra recente da dogmática e do direito positivo e não está cristalizado na consciência social. É uma regulamentação surgida verticalmente, do Estado para a Sociedade.".

Outrossim, não se afigura producente propor-se uma discussão sobre a validade de atribuir-se autonomia didática ou científica ao Direito Penal Tributário, já que, para respeitável parcela da doutrina, este seria um Direito Penal Secundário, derivado do Direito Penal Econômico.

É inconteste, todavia, que se vislumbram elementos relevantes a justificar um tratamento especial aos delitos econômicos, nos quais estariam enquadrados os ilícitos fiscais, adotando-se como critérios, entre outros, a intrincada e peculiar forma de perpetração de tais infrações e os efeitos por eles produzidos.

Segundo adverte Roberto dos Santos Ferreira:

O delito econômico destaca-se dos delitos comuns, principalmente por sua escassa visibilidade e pela volatilização da qualidade da vítima, bem como por apresentar aspectos multiformes, podendo assumir formas mercantis e de operações financeiras, ou mesmo a forma de uma prática negocial comum, a fim de aparentar normalidade própria do complexo mundo dos negócios. A atividade, em si, apesar de ser potencialmente mais lesiva, não se apresenta como repugnante para a maioria da sociedade, como acontece nos crimes de homicídio, furto, roubo ou outras figuras típicas tradicionais. [49]

Em rigor, os ilícitos penais tributários são ilícitos penais no âmbito do Direito Tributário, isto é, a incidência de norma definidora de crimes fiscais ocorre em hipóteses legais de descumprimento da legislação tributária.

Quanto ao Direito Penal Tributário, então, pode-se dizer que tem como objeto a abordagem sistemática das infrações penais cometidas no âmbito do Direito Tributário.

3.5 Os crimes definidos na Lei nº 8.137/90

Um breve resgate histórico nos mostra que, desde as Ordenações Filipinas, o legislador vem-se preocupando com as condutas ofensivas às finanças ou à economia do Estado.

O Código Penal de 1940 incorporou no seu texto os crimes de descaminho ou contrabando (art. 334), que refletiam a preocupação do Estado com os danos causados à Fazenda Pública.

Com a Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, passou-se a tipificar outras possíveis condutas que culminassem na ofensa à Fazenda Pública. A partir da elaboração daquele diploma legal difunde-se a noção dos crimes de sonegação fiscal.

Mais recentemente, a prática de condutas fraudulentas ou dolosamente perpetradas que frustrem a arrecadação tributária, comprometendo as funções do sistema tributário nacional, mereceu tratamento repressivo por parte do legislador com a inserção de nova norma especial no ordenamento jurídico. Trata-se da Lei nº. 8.137, de 27 de dezembro de 1990.

Nota-se que as condutas tipificadas como crimes de sonegação fiscal, previstas no art. 1º da lei de 1965, foram, na sua essência, reproduzidas pelo legislador de 1990, que nelas manteve a característica preponderante de serem consubstanciadas na falsidade material ou ideológica.

Portanto, com a vigência da lei especial nº 8.137/90, restou parcialmente revogada a Lei nº 4.729/65. Desta última, estão em vigor apenas as normas introduzidas no art. 334 do Código Penal, atinentes ao crime de contrabando e descaminho.

Neste sentido, assim se manifestam Alexandre de Moraes e Gianpaolo Poggio Smanio:

A Lei nº 8.137/90 reproduziu as normas típicas da Lei nº 4.729/65, regulando matéria tratada na lei anterior, razão pela qual considera-se revogada parcialmente a Lei nº 4.729/65, com exceção do art. 5º, em substituição aos §§ 1º e 2º, do art. 334 do Código Penal, que tipifica o crime de contrabando e descaminho, que permaneceu inalterado. [50]

Cabe aqui salientar que, apesar de ser medida destinada à prevenção e repressão dos delitos fiscais, a Lei nº 8.137/90, de igual modo, criminaliza condutas lesivas à ordem econômica e que atentem contra as relações de consumo.

Precisamente em seus artigos 1º a 3º, a norma especial prevê os tipos penais relativos à ofensa à ordem tributária.

No tocante aos crimes fiscais, além de multa, a lei prevê a cominação das seguintes penas: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, nos delitos previstos no art. 1°; detenção de 6(seis) meses a 2(dois) anos, nos delitos do art. 2°, e reclusão de 1(um) a 4(quatro) anos nos crimes do art. 3º.

Nos dois primeiros dispositivos estão tipificadas as condutas que podem ser realizadas por qualquer particular, enquanto no art. 3º estão definidos os chamados crimes próprios, no caso, aqueles cometidos por funcionário público vinculado à Fazenda Pública.

As condutas tipificadas na Lei nº 8.137/90 são punidas a título de dolo, sem o qual não há que falar em crime tributário.

Nesse ponto, faz-se necessária uma breve análise dos tipos penais definidos na norma especial, à luz das teorias aplicadas à Parte Geral do Código Penal brasileiro.

Inicialmente, insta afirmar que o exame dos elementos objetivos do tipo penal trazido pela referida lei indica que as condutas arroladas nos incisos I a V do art. 1º devem ser classificados como crimes materiais ou de resultado.

Assim, para que ocorra a consumação do referido delito exige-se o resultado de suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social. Dispõe o art. 1º da lei sob comento, verbis:

Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Já no art. 2º do mesmo diploma legal, os tipos penais revelam elementos característicos dos crimes formais, em que a consumação se realiza antecipadamente, não importando o resultado naturalístico, senão vejamos:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:

I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;

IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;

V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.

Convém também observar que as normas veiculadas pela Lei nº. 8.137/90 são normas penais em branco, ou seja, as definições de elementos integrativos do tipo, tais como tributo, contribuição social, sujeito passivo, contribuinte e obrigação tributária, são extraídas de outro ramo do Direito (reenvio).

Na lição de Luiz Regis Prado:

A lei penal em branco pode ser conceituada como aquela em que a descrição da conduta punível se mostra incompleta ou lacunosa, necessitando de outro dispositivo legal para a sua integração ou complementação. Isso vale dizer: a hipótese ou prótase é formulada de maneira genérica ou indeterminada, devendo ser colmatada /determinada por ato normativo (legislativo ou administrativo), em regra, de cunho extrapenal, que fica pertencendo, para todos os efeitos, à lei penal. [51]

Assim sendo, torna-se imperativo, ainda que em notas introdutórias, conhecer alguns desses elementos, visando à abordagem adequada da estrutura dos crimes fiscais.

Em verdade, conforme exposto anteriormente, os crimes fiscais são ilícitos penais no âmbito do Direito Tributário, isto é, a incidência da norma penal tributária ocorre em hipóteses legais de descumprimento da legislação tributária.

Todavia, não é qualquer descumprimento da legislação tributária que enseja a aplicação da norma penal in casu, mas tão-somente a ação comissiva ou omissiva fraudulentamente perpetrada que provoque a supressão ou que constitua redução do tributo, a teor do disposto no artigo 1º, ou constituindo quaisquer das condutas elencadas no art. 2º da lei penal.

Neste jaez, a depender do caso concreto, pode-se estar diante de mera infração administrativa cometida pelo contribuinte, sem repercussão no Direito Penal, pois aos crimes tributários aplicam-se também as normas referentes à teoria geral do crime (acolhida no Código Penal Brasileiro) no que pertine à ocorrência do erro de tipo, erro de proibição, das eximentes ou excludentes criminais, e assim por diante.

3.6 Conceitos de elisão, evasão, fraude fiscal e sonegação fiscal

A elisão ou "planejamento fiscal" está relacionada ao meio lícito de evitar-se a ocorrência do fato gerador do tributo. Fala-se então de procedimento realizado de acordo com as normas impositivas da legislação tributária. A elisão pode servir ao contribuinte como instrumento legítimo de planejamento fiscal ou contábil capaz de reduzir ou mesmo suprimir a tributação incidente em determinada operação.

Na evasão, a prática de "escapar" à tributação resvala na ilicitude, em que o contribuinte afasta ou posterga a obrigação de pagar o tributo, após a ocorrência do respectivo fato gerador.

Vittorio Cassone, citando o XIII Simpósio Nacional de Direito Tributário, com o tema Elisão e Evasão Fiscal, em que o mesmo funcionou como relator, consigna como uma das conclusões daquele prestigiado evento:

Elidir é evitar, reduzir o montante ou retardar o pagamento do tributo por atos ou omissões lícitos do sujeito passivo anteriores à ocorrência do fato gerador.

Evadir é evitar o pagamento do tributo devido, reduzindo-lhe o montante ou postergar o momento em que se torne exigível, por atos ou omissões do sujeito passivo, posteriores à ocorrência do fato gerador. [52]

A fraude fiscal, por sua vez, consiste na ação dolosa que venha impedir parcial ou completamente a ocorrência do fato gerador, descaracterizando inclusive os elementos a ele inerentes, com o fito de reduzir ou suprimir tributo.

E finalmente, na sonegação fiscal, entende-se que ocorre o fato gerador do tributo, com respectiva obrigação tributária, mas o agente dolosamente busca ocultá-lo visando ao não pagamento, ou ao pagamento parcial, do tributo devido ao Estado.


4 TUTELA PENAL DA ORDEM TRIBUTÁRIA

Na terceira etapa deste trabalho, revisam-se algumas noções acerca do direito estatal de punir, ou seja, das teorias ditas legitimadoras do Direito Penal.

Preambularmente, reconhece-se que a concepção do monopólio do Estado quanto ao direito de punir encontra fundamento no contratualismo social, forjado nas idéias iluministas que floresceram na Europa dos séculos XVI e XVII.

Em Beccaria, a reunião das parcelas de liberdade de cada homem constituía o fundamento estatal do direito de punir. Enunciava-se então:

O homem, diante da necessidade de proteger-se do outro, se viu obrigado a ceder parte de sua liberdade, pois a tendência do homem é tão forte para o despotismo, que ele procura, incessantemente, não só retirar da massa comum a sua parte de liberdade, como também usurpar a dos outros. [53]

Algum tempo depois, os contornos racionais e liberais do Estado de Direito marcariam inevitavelmente e para sempre o Direito Penal.

Passou-se a conjugar a primazia da lei – dogma do positivismo jurídico – com o direito de infligir penas, o que levaria ao prenúncio de um princípio muito caro ao Direito Penal: o da reserva legal, expressado no brocardo nullum crimen nulla poena sine lege.

A propósito, escreveu Beccaria na obra que o consagrou [54]: "apenas as leis podem indicar as penas de cada delito e que o direito de estabelecer leis penais não pode ser senão da pessoa do legislador, que representa toda a sociedade ligada por um contrato social".

Todo esse contexto recomenda algumas considerações acerca das teorias justificadoras do direito estatal punitivo, sob o aspecto da legitimação do Estado no controle social.

Em primeiro lugar, lembra-se que, além das teorias legitimadoras, existem aquelas chamadas de deslegitimadoras ou abolicionistas, que, diametralmente opostas às primeiras, não reconhecem o Direito Penal como meio de controle social.

Paulo Queiroz assim se reporta às teorias deslegitimadoras:

Recusam legitimação ao Estado para exercitar o poder punitivo, pondo em destaque, principalmente, a disparidade entre o discurso e a prática penais, bem como a circunstância de o direito penal criar mais problemas do que os resolver, sendo criminógeno, arbitrariamente seletivo e causador de sofrimentos estéreis e inúteis. [55]

Quanto às teorias legitimadoras, estas podem ser classificadas como absoluta, relativa ou eclética. A primeira e a segunda distingüir-se-iam pela finalidade da aplicação da pena.

Na teoria absoluta, a pena tem o fim em si mesma, ou seja, é mera conseqüência da prática de um delito. A crítica corrente que se faz à teoria absoluta está no fato de envolver conceitos absolutos de Justiça, de Moral e de Direito, o que se revela incompatível com as bases dos Estados modernos, guiados por limites e princípios constitucionais intransponíveis, especialmente o da dignidade humana.

A teoria relativa da legitimação apresenta um novo elemento: a função preventiva da pena, conformando-se aos princípios utilitaristas da cominação penal. As teorias relativas compreendem a prevenção geral – positiva ou negativa – e a prevenção especial.

Luiz Regis Prado assinala:

[...] a concepção preventiva geral da pena busca sua justificação na produção de efeitos inibitórios à realização de condutas delituosas, nos cidadãos em geral, de maneira que deixarão de praticar atos ilícitos em razão do temor de sofrer a aplicação de uma sanção penal. Em resumo, a prevenção geral tem como destinatária a totalidade dos indivíduos que integram a sociedade, e se orienta para o futuro, com o escopo de evitar a prática de delitos por qualquer integrante do corpo social. [56]

Com a função de prevenção geral positiva, a pena serviria para fortalecer valores ético-sociais emanados da norma penal, assegurando a estabilidade social - pela proteção de bens jurídicos -, ameaçada por frustrações decorrentes do não cumprimento das normas. Assim, a pena funcionaria de modo preventivo restabelecendo a confiança no sistema jurídico-penal, ou reparando os efeitos negativos de violação à norma. [57]

No que diz respeito à prevenção geral negativa, a própria denominação revela o caráter de abstenção que deve ter a conduta humana na prática de um delito. Já na teoria de prevenção especial, o papel relevante da pena consiste em inibir a prática de novos delitos. Por esta última, as penas teriam função de ressocialização ou saneamento social do delinqüente, via segregação provisória ou definitiva.

As falhas mais contundentes atribuídas à teoria relativa residem na prevenção em seu aspecto etiológico, ou seja, na origem da atividade criminosa. Ou ainda que é comum a norma penal dar resposta a casos pontuais de repercussão social, produzindo as chamadas cifras ocultas da criminalidade. [58]

E finalmente a teoria eclética ou mista que explica o direito punitivo ante sua complexidade e, de modo reflexivo, contesta as ditas teorias monistas.

Segundo Luiz Regis Prado, [59] essas teorias, "predominantes, na atualidade, buscam conciliar a exigência de retribuição jurídica da pena – mais ou menos acentuada – com os fins de prevenção geral e de prevenção especial."

À guisa de conclusão, afirma o autor:

A justificação da pena envolve a prevenção geral e especial, bem como a reafirmação da ordem jurídica, sem exclusivismos. Não importa exatamente a ordem de sucessão ou de importância. O que deve ficar patente é que a pena é uma necessidade social – ultima ratio legis, mas também indispensável para a real proteção de bens jurídicos, missão primordial do Direito Penal. De igual modo, deve ser a pena, sobretudo em um Estado constitucional e democrático, sempre justa, inarredavelmente adstrita à culpabilidade (princípio e categoria dogmática) do autor do fato punível. [60]

No tocante ao propalado fim de ressocialização da pena (teoria preventiva especial), vale a crítica de Francisco Munõz Conde. Diz o autor, aludindo ao fato de a legislação espanhola lançar a "reeducação e a reinserção" como meta principal de seu sistema penitenciário:

Precisamente, neste momento, se lançam vozes por todas as partes contra a idéia da ressocialização, da reeducação, da reinserção social do delinqüente. Fala-se do "mito da ressocialização", que é uma "utopia", ou um "eufemismo", uma miragem que nunca se poderá alcançar. [61]

Por sua vez, Alessandro Baratta também critica o fim preventivo da pena:

[...] a teoria do labelling approach se coloca criticamente em face do princípio da prevenção ou do fim, e em particular em relação à ideologia oficial do sistema penitenciário atual: a ideologia da ressocialização. De fato, ao recorrer à diferença entre desvio primário e desvio secundário, as teorias da criminalidade baseadas no labeling approach contribuíram para a crítica dos sistemas de tratamento, com um princípio teórico fundamental para esta crítica, que lança luz sobre os efeitos criminógenos do tratamento penal e sobre o problema não resolvido da reincidência. Estas teorias se relacionam, assim, a todo o vasto movimento do pensamento criminológico e penalógico que, das escolas liberais contemporâneas até as mais recentes contribuições da criminologia crítica, mostrou a grande distância entre a idéia da ressocialização e a função real do tratamento. [62]

Por derradeiro, conforme pôde ser visto, a Criminologia Crítica deixa patente o nó górdio que o Direito Penal tradicional não consegue desfazer, qual seja a seletividade do Sistema Penal e seus consectários, em especial a vulnerabilidade e a estigmatização dos indivíduos pertencentes às classes subalternas

4.2 O Direito Penal mínimo

Com freqüência, debate-se a (des) necessidade da incriminação das condutas de sonegação fiscal.

Tal questionamento se justifica. No âmbito da Dogmática Jurídica, a doutrina mais "progressista" atribui ao Direito Penal um papel subsidiário como meio de controle social. Em razão de suas limitações e do rigor de sua intervenção, o Direito Penal deveria ser avocado apenas quando infrutíferos os demais mecanismos de controle social - inclusive jurídicos -, como a família, a escola, as normas sancionatórias civis, administrativas (inclusive tributárias) etc.

Assim, para essa mesma doutrina - que entre nós teve a forte influência de Luigi Ferrajoli - os princípios constitucionais que delineiam a atuação estritamente necessária e justa do poder estatal de punir reservam ao Direito Penal o lugar de ultima ratio na solução dos conflitos e pacificação social. [63]

No entendimento de René Ariel Dotti:

A defesa do princípio da intervenção mínima, que identifica o chamado Direito Penal mínimo, constitui uma das expressões mais vigorosas do movimento crítico que se propõe a discutir e a avaliar a crise do sistema positivo, depurando-o da insegurança jurídica e da ineficácia a que conduz o fenômeno da hipercriminalização. [64]

Costuma-se associar o princípio da intervenção mínima à subsidiariedade social e sistemática do Direito Repressivo, esta última como decorrência do princípio da unidade do ordenamento jurídico. Além disso, o Direito Penal seria fragmentário, pois não deteria com exclusividade o poder sancionador das condutas socialmente reprováveis ou ofensivas a determinados bens jurídicos. Ao contrário, seria apenas uma das formas de atuação estatal no universo de condutas antijurídicas.

Na opinião de Celso Eduardo Faria Coracini:

A eficácia do direito penal na atualidade está, sem sombra de dúvida, condicionada a que seja utilizado limitadamente, nos casos mais gravosos à sociedade (v.g., "ordem econômica"), e, ainda assim, com temperança conscienciosa. Por sua vez, a falta de eficácia do direito penal moderno se deve, em parte, à não aplicação, por quaisquer motivos, das leis vigentes sobre a matéria; e em grande medida, pela inadequação de muitos tipos penais às realidades sobre as quais deveriam voltar, quando não por sua insuficiência. [65]

A intervenção mínima do Direito Penal é pauta constante nas obras doutrinárias dogmáticas e se reproduz ao lado de outras temáticas como a descriminalização. Na prática, verifica-se a tendência, ainda que tímida, da descriminalização de certas condutas que em pouco afetam a "paz social", v.g., nos casos de abolitio criminis relativamente aos crimes de sedução (art. 217), rapto consensual (art. 220) e adultério (240), todos previstos no Código Penal brasileiro até serem revogados pela Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005.

No endosso dessa argumentação pode-se acrescentar a progressiva adoção de penas alternativas, consagrada na legislação dos juizados especiais criminais que, desde 1995, prevê a aplicação de penas alternativas à restritiva de liberdade, estimulando a reparação do dano como medida pacificadora no âmbito das infrações de menor potencial ofensivo – as Leis nº 9.099/95 e 10.259/01 disciplinam, respectivamente, os juizados especiais cíveis e criminais no âmbito estadual e federal.

Por outro lado, contudo, a propalada doutrina não resiste às contradições inerentes ao funcionamento do Sistema Penal em vigor. Para Alessandro Baratta, o discurso de um Direito Penal mínimo, fragmentário – em que se privilegia a tutela de bens jurídicos fundamentais –, é também falacioso, pois em sua avaliação:

O que se refere à seleção dos bens protegidos e dos comportamentos lesivos, o "caráter fragmentário" do direito penal perde a ingênua justificação baseada sobre a natureza da das coisas ou sobre a idoneidade técnica de certas matérias, e não de outras, para ser objeto de controle penal. Estas justificações são uma ideologia que cobre o fato de que o direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos sociais danosos típicos dos indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas. [66]

Em um modelo jurídico constitucional que contempla um robusto elenco de direitos e garantias fundamentais do homem, a legitimação do Direito Penal mínimo passa não somente pela busca da eficiência do sistema repressivo com a redução das penas restritivas de liberdade, mas também pelo exame das reais causas da criminalidade.

Contudo, o que se verifica, em verdade, é um Direito Penal estruturalmente seletivo, autêntico instrumento de manutenção do status quo.

4.3 O bem jurídico tutelado. A tutela penal de direitos difusos

Entrementes, cumpre indagar que bem é tutelado nas condutas lesivas à ordem tributária. Adianta-se que tal identificação não é tarefa das mais simples, haja vista que as complicações se iniciam na própria definição de "bem jurídico".

No escólio de Luiz Regis Prado:

O bem jurídico, como bem do direito, conjuga o individual e o social (de natureza material ou espiritual) e possui suficiente importância para manter a livre convivência social. O conceito material de bem jurídico reside na realidade ou experiência social, sobre a qual incidem juízos de valor, primeiro do constituinte, depois do legislador ordinário. Trata-se de um conceito necessariamente valorado e relativo, isto é, válido para determinado sistema social e em um dado momento histórico-cultural. [67]

Aludindo à confusão corrente na doutrina pátria, este autor faz distinção entre bem jurídico e objeto da ação delituosa. Assim pontifica:

Objeto da ação vem a ser o elemento típico sobre o qual incide o comportamento punível do sujeito ativo da infração penal. Trata-se do objeto real (da experiência) atingindo diretamente pelo atuar do agente. É a concreta realidade empírica a que se refere a conduta típica. De outro lado, o bem jurídico vem a ser um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual reputado essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem e, por isso, jurídico-penalmente protegido. [68]

Conforme lições da Dogmática, independente do conteúdo que se pretenda relacionar ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, certo é que seus fundamentos e o grau de proteção que se lhe reserva deverão ser sopesados à luz da Constituição.

Roberto dos Santos Ferreira comenta:

No Estado Democrático e Social de Direito, não está o legislador livre para incriminar qualquer conduta humana, mas somente aquela que, revestida de certa importância, lesione ou exponha a perigo um bem jurídico (valor ou interesse) consagrado na Constituição como digno de proteção, em razão de sua importância para o indivíduo e para a sociedade, a fim de assegurar o livre desenvolvimento da personalidade, em um ambiente de respeito à dignidade humana, sustentado na trilogia: liberdade, igualdade e fraternidade. [69]

No dizer de Paulo de Souza Queiroz,

O ilícito, latente ou manifesto, preexiste à sistematização do direito penal, pois tal já é, antes, objeto do direito civil, processual, tributário etc., mas sobretudo objeto do direito constitucional, porque toda a ilicitude nasce (e morre), originariamente, na Constituição Federal e só derivadamente na ordem infraconstitucional. [70]

Diz-se, outrossim, que a incriminação das condutas humanas encontra critério determinante na relevância do bem jurídico, nela atuando os princípios da subsidiariedade e fragmentariedade (corolários da intervenção mínima) na orientação do legislador infraconstitucional quando da definição de novos tipos penais.

Percebe-se também que a intensa dinâmica das relações sociais e econômicas vem provocando sensível alteração nos rumos da política criminal, de modo que o legislador penal cada vez mais opta pela incriminação da ofensa na categoria dos bens difusos, a exemplo do que ocorre na ordem econômica e tributária, na legislação pertinente ao meio-ambiente etc.

Na opinião de Maurício Kalache:

Os novos tempos apontaram outras realidades, sociais, que passaram a reclamar a atenção do Estado e, em particular, do Direito Penal. É o que se deu em torno dos fenômenos econômicos, onde certas relações repercutem não só na vida dos indivíduos diretamente vinculados, mas a todo o conjunto da sociedade. [71]

Sem mencionar a própria manutenção do pacto federativo, no que pertine ao conteúdo do bem jurídico sob exame, tem-se que a ordem tributária contemplaria desde a manutenção da boa-fé e da honestidade na relação entre o contribuinte e o fisco, passando pela higidez da livre concorrência de mercado, pela efetivação do princípio da capacidade contributiva e até pela imperiosa necessidade de se garantir a arrecadação das receitas à Fazenda Pública.

Em suma, nos crimes contra a ordem tributária, o bem jurídico, direta ou imediatamente, está plasmado no interesse da Fazenda Pública, não se olvidando, contudo, que a ordem tributária, indiretamente, implica o próprio funcionamento do sistema tributário nacional, cujos princípios e normas de ordem pública, são ditados pela Constituição da República.

Outro aspecto a destacar é que, consoante classificação sugerida por alguns autores, nos crimes econômicos ou fiscais, o bem jurídico merecedor da tutela penal tem caráter difuso, transindividual.

Roberto dos Santos Ferreira assevera [72]que "os crimes contra a ordem tributária, definidos na Lei 8.137/90, materializam a hipótese de autêntica tutela penal de interesse difuso, subjacente ao Sistema Tributário Nacional, de conformação constitucional, de caráter indivisível e transindividual."

Ao contrário do que ocorre nos delitos cometidos em desfavor de bens individuais - em que se consegue mais facilmente identificar o autor e a vítima do ilícito, mensurando-se de imediato os danos resultantes –, em geral, é diminuta a percepção que se tem dos danos causados ao Estado por ações criminosas que visam à subtração de tributos devidos.

Nada obstante, a rarefeita preocupação com a lesão aos bens difusos, no caso a ordem tributária, as conseqüências dela advindas são muito mais deletárias para toda a sociedade, se comparadas às resultantes do cometimento de crimes patrimoniais comuns.

A propósito, este tema já foi preliminarmente abordado, pois serve de base ao desenvolvimento e aferição das premissas adotadas objetivando uma adequada resposta ao problema proposto na presente pesquisa.

4.4 Sanções administrativas x sanções criminais

No âmbito da Dogmática, admite-se que a profusão de normas incriminadoras de certas condutas, perfeitamente passíveis de serem excluídas do campo de incidência de sanção criminal, acaba por vulgarizar o Direito Penal, fragilizando sua atuação nos casos mais graves de ofensa a bens jurídicos fundamentais.

Assim, outra instigante questão que se coloca diz respeito aos limites para aplicação de sanções penais e administrativas. Ressalte-se que não são poucas as vozes que defendem maior atuação do poder sancionador administrativo, em detrimento da incriminação por cometimento de infrações fiscais.

Em verdade, as diferenças entre o ilícito penal e o ilícito não penal têm natureza quantitativa (e não ontológica); ou seja, o rigor das sanções guarda relação com a política criminal vigente em determinada época e lugar.

Heloisa Estellita Salomão estabelece criteriosa distinção entre merecimento e necessidade da pena. Em suas palavras:

O merecimento da pena, ou a dignidade penal, envolve a consideração de um bem ou valor constitucional como condição essencial à garantia e implementação da dignidade e dos direitos fundamentais da pessoa humana; somente um bem ou valor dessa categoria, em nosso entender, pode ser considerado bem jurídico-penal; a necessidade de pena, ou carência de tutela penal, por sua vez, implica a comprovação da insuficiência de outras espécies de sanção na tutela do bem jurídico e a avaliação da danosidade social da conduta. [73]

A discussão não se limita, porém, apenas ao merecimento da pena. Há que se falar da necessidade de cominação de sanções criminais aos infratores da legislação tributária.

Para aqueles que defendem a aplicação de sanções criminais aos sonegadores de tributos, a ordem tributária não estaria satisfatoriamente preservada por normas administrativas do Direito Tributário que prevêem, em geral, a aplicação de penalidades pecuniárias, restrições fiscais, regimes especiais de fiscalização, etc.

Tampouco, segundo a doutrina, haveria desejável consciência ética ou cívica na reprovação das práticas delituosas que importem sonegação fiscal, ao contrário dos delitos cometidos contra a vida ou contra o patrimônio individual.

Com freqüência, afirma-se que a excessiva carga tributária, a legislação complexa e a irregular aplicação dos recursos arrecadados pelo Estado, entre outros, justificariam a falta do cumprimento voluntário das obrigações tributárias por parte dos contribuintes.

Aliado a esse discurso triunfa também o debate relacionado aos sinais visíveis de esgotamento do Estado, no tocante à execução de penas privativas de liberdade.

As freqüentes rebeliões nos presídios de todas as regiões do país, as fugas ou tentativas de fuga desses estabelecimentos apontam para inúmeras causas, desde a precariedade das instalações físicas desses presídios, passando pela conduta irregular e ilegal de agentes do Estado, até a existência de falhas jurídicas no processo criminal e na execução da pena.

A superlotação [74] dos estabelecimentos prisionais, a violação de direitos humanos fundamentais, a inadequada aplicação dos benefícios previstos na legislação, entre outros, são alguns dos fatores que revelam o quadro caótico do Sistema Penal e desafiam o Poder Público e a ciência jurídica. Entretanto, não se deve desprezar a idéia de que ultimamente o cometimento de crimes tributários aumentou de forma considerável. Não raro, essas práticas estão associadas a outras igualmente delituosas, tais como formação de bando ou quadrilha; crime contra a ordem econômica; lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores de dinheiro; corrupção ativa e passiva; roubo de cargas; "tráfico de drogas", contrabando etc.

Enfim, para aqueles que defendem a incriminação, evoca-se a relevância do bem jurídico tutelado com valor consagrado na Constituição, visto que aquele representa não somente os interesses do erário, mas a própria higidez da ordem tributária, que se trata de bem difuso, cuja tutela penal vem reforçar a atuação do Estado para consecução dos objetivos delineados no art. 3º da Carta Política.

Com a edição da Lei nº. 8.137/90, resolveu o legislador penal não simplesmente prevenir e reprimir a sonegação fiscal, mas salvaguardar o sistema tributário que, em sua essência, representa o interesse público, quer na garantia dos recursos devidos ao Estado, quer na promoção da livre concorrência e da justiça fiscal, segundo normas e princípios da Constituição Federal de 1988.

De acordo com Roberto dos Santos Ferreira:

As condutas descritas na Lei 8.137/90, assim, longe de constituírem meras infrações fiscais patrimoniais, consubstanciam violação à normalidade da ordem tributária, com reflexos em toda a coletividade, dada a natureza do interesse juridicamente tutelado, porquanto a prática de qualquer ação típica e ilícita contra a ordem tributária provoca um dano ou lesão que se difunde, necessária e inexoravelmente, por toda a sociedade. [75]

Em meio a dificuldades na persecução criminal e a na imposição da pena, torna-se razoável, contudo, nos crimes contra a ordem tributária, sustentar-se a necessidade de incriminação de tais condutas.

Vale salientar que, na lista desses obstáculos estruturais figura a legislação casuística, a exemplo da norma do art. 34 da Lei nº. 9.249/95, que prevê o pagamento do tributo como causa de extinção da punibilidade nos crimes definidos pela Lei nº. 8.137/90.

Questiona-se a existência dessa modalidade de extinção punitiva, tendo em vista, entre outras razões, a possível ofensa ao princípio da igualdade - já que inexiste hipótese análoga aplicável aos delitos praticados contra o patrimônio individual - e a vulgarização do Direito Penal, pois os fins da pena estariam sendo desvirtuados. Tal modalidade de extinção, na verdade, seria usada unicamente, como instrumento de cobrança de tributo.

Tendo em mira o pensamento emanado da Criminologia Crítica, admite-se que esse dispositivo, mais que revelar medida casuística do legislador penal, constitui autêntica manifestação da seletividade do Sistema Penal, de acordo com o qual, via de regra, as agruras do cárcere são reservadas a uma "clientela habitual".

4.5 A extinção de punibilidade nos crimes fiscais

Em nosso ordenamento jurídico, várias causas justificam a extinção da punibilidade. Nesta monografia, será enfatizada a hipótese do pagamento do tributo como causa excludente da punibilidade nos crimes fiscais, à luz das considerações feitas pela Criminologia Crítica.

Para um melhor entendimento, faz-se necessário conhecer a natureza da extinção da punibilidade, sua finalidade, os reveses legislativos que envolvem a medida legal sob exame e, sobretudo, as inconsistências encontradas na opção feita pelo legislador no tratamento penal dos ilícitos fiscais.

4.5.1 Da extinção da punibilidade

Na teoria do crime, albergada pelo ordenamento jurídico-penal pátrio, a punibilidade não integra o conceito de crime.

Para expressivo segmento da doutrina, a punibilidade é pressuposto da pena, significando a possibilidade de atuação do poder punitivo do Estado em um caso concreto.

Sob o aspecto analítico ou dogmático, Luiz Regis Prado [76] expõe que o "delito vem a ser toda ação ou omissão típica, ilícita ou antijurídica e culpável."

No tocante à possibilidade de integração da punibilidade ao conceito de crime, há dissenso, pois não são poucos aqueles que defendem idéia contrária, ou seja, o delito inexiste quando não for possível a aplicação da pena. Em outras palavras, para determinado setor do pensamento dogmático, além de típico, antijurídico e culpável, o crime seria fato punível.

Corroborando com a tese de que o conceito de crime não comporta a noção de punibilidade, Sérgio Rosenthal afirma:

Em verdade, a única hipótese, dentre as causas de extinção da punibilidade previstas no Código Penal brasileiro, em que se poderia, em tese, argumentar que o fato deixa de constituir um delito, é exatamente aquela que prevê, expressamente, a retroatividade de lei que posteriormente deixe de considerar o fato como criminoso (inciso III do dispositivo citado). Porém, é evidente, nesse caso, o reflexo sobre a tipicidade, esta sim, um dos elementos do crime. [77]

Com a ocorrência da infração penal, o poder punitivo do Estado que é abstrato, potencial, torna-se concreto, nada obstante existir esse direito (e dever) de aplicar a sanção criminal, alguns atos ou fatos, por decisão de política criminal (ou não), são capazes de fulminar a pretensão punitiva estatal ou frustrar a condenação.

Tais atos ou fatos constituem as denominadas causas ou hipóteses de extinção de punibilidade.

Ainda segundo Regis Prado [78], "as causas de extinção da punibilidade implicam renúncia, pelo Estado, do exercício do direito de punir, seja pela não-imposição de uma pena, seja pela não-execução ou interrupção do cumprimento daquela já aplicada."

Entre as várias classificações das causas extintivas da punibilidade, Sérgio Rosenthal [79] aduz aquela que se refere à justificativa que respaldam e fundamentam esse benefício, a saber: a impossibilidade fática, a clemência soberana, a desídia do dominus litis e a reparação do dano.

O art. 107 do Código Penal brasileiro estabelece, em rol não taxativo, as causas de extinção da punibilidade. Apesar de não figurar expressamente entre estas, a justificativa da reparação do dano se faz presente em outras normas do Codex, assim como na legislação penal especial. Contudo, no mencionado dispositivo, entende-se que a retratação do agente, nos casos em que a lei admitir (inciso VI), é um exemplo de causa extintiva de punibilidade de efeito reparador. [80]

4.5.2 A reparação do dano: seus efeitos e formas no Direito Penal

Convém mencionar que a reparação do dano, vista como causa primeira na extinção ou na redução da resposta penal, em boa parte, vem justificada em face dos graves e crônicos problemas que afligem o sistema tradicional de persecução penal, mormente no que refere à aplicação de penas restritivas de liberdade.

Entretanto, com alguma freqüência, casos de grande repercussão na mídia tendem a direcionar as atenções para o recrudescimento na cominação dessas penas, a exemplo do que ocorre com a repressão dos chamados "crimes hediondos" (Lei n° 8.072/90).

A justificativa da extinção de punibilidade pela reparação do dano, embora não esteja expressamente arrolada no art. 107 do Código Penal, faz-se presente sob formas e efeitos variados.

Em algumas situações, por exemplo, a reparação do dano tem o condão de afastar a punibilidade, em outras, implica redução da pena, ou simplesmente influencia na aplicação da pena ou no regime de cumprimento desta.

Na legislação codificada, a única hipótese em que a reparação do dano determina a extinção de punibilidade é aquela que se refere ao peculato culposo, tipificado no art. 312, §2º.

De acordo com a norma prevista no parágrafo terceiro do art. 312, "a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta."

Coexistem, portanto, dois efeitos da reparação do dano, separados apenas pela fixação de um marco temporal, isto é, se aquela ocorre antes ou depois da sentença irrecorrível. No primeiro caso, o efeito é a extinção da punibilidade; no segundo, concede-se ao agente apenas a possibilidade de redução da reprimenda.

Em outros dispositivos insertos na Lei Penal Substantiva, a reparação do dano enseja somente a redução da pena, quando configurado o arrependimento posterior.

A norma prevista no art. 16 do Código Repressivo estabelece que "nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)."

Comentando o instituto do arrependimento posterior, Zaffaroni acrescenta:

Para o reconhecimento do privilégio, que constitui uma "ponte de prata" outorgada pela lei, a reparação deve ser completa, pessoa e voluntária. A reparação completa deve abranger, além daquilo que a vítima perdeu, também o que deixou de lucrar, incluindo-se, pois, os prejuízos efetivos e os lucros cessantes [...] [81]

Anota-se que o regime de cumprimento da pena é também influenciado pela reparação do dano, quando esta, no art. 33, §4º, também da legislação codificada, representa condição para a progressão do regime, nos crimes contra a administração pública.

Além desses, frise-se, outros dispositivos legais incorporam o instituto da reparação do dano, atribuindo-lhe diversos efeitos, tanto na lei codificada, quanto em leis esparsas.

Em monografia dedicada ao tema, Sergio Rosenthal assevera que:

[...] um modelo de justiça criminal que seja resolutivo, vale dizer, que resolva o conflito oferecendo ao infrator, à vítima e à coletividade uma alternativa social construtiva. Com efeito, embora detenha o poder de punir, o Estado não deve intervir nos conflitos gerados pela prática de uma infração penal exclusivamente com essa finalidade, mas primordialmente, visando promover a paz social, pelo que, nos casos em que a não-punição decorrente da reparação se mostre a "solução" mais adequada para o conflito, não resta dúvida de que este deverá ser o caminho adotado pelo legislador penal.

No caso dos crimes contra a ordem tributária, a lei confere à reparação do dano o poder de afastar a punibilidade do agente, o que se dá com o pagamento do tributo.

Dispõe o art. 34 da Lei nº. 9.249, de 26 de dezembro de 1995:

Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.

Essa disposição legal alcança inclusive os inquéritos e processos em curso desde que não recebida a denúncia pelo juiz (art. 34 da Lei nº. 9.249/95 c/c art. 83, par. único da Lei nº. 9.430/96).

Cabe registro o fato de que a disciplina mais benéfica trazida pelo instituto da reparação do dano aos crimes de natureza fiscal não se faz presente na seara de delitos contra o patrimônio individual.

Aliás, no que diz respeito à causa extintiva da punibilidade, à exceção dos casos que comportam o arrependimento posterior (art. 16 do Código Penal), há apenas uma menção à disciplina diferenciada a esses delitos, no que diz respeito à causa extintiva da punibilidade de efeito reparador. Trata-se de interpretação contrario sensu do enunciado da Súmula 554 do Supremo Tribunal Federal, relativamente ao crime de estelionato (art. 171,§2º,V do Código Penal).

Segundo o entendimento sumulado "o pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta o prosseguimento da ação penal."

Assim, a doutrina tem defendido que o pagamento do cheque emitido sem provisão de fundos, antes do recebimento da denúncia, obsta a pretensão punitiva do Estado.

4.5.3 Lei n° 9.249/95: ofensa à isonomia e anulação dos efeitos da pena

Ainda que se queira guardar distância dos fundamentos críticos da Criminologia, que muito nos iluminam na compreensão das decisões adotadas pelo legislador penal, as inconsistências da legislação atinente aos crimes fiscais podem ser identificadas à luz de investigação eminentemente dogmática.

As críticas envolvem desde a ofensa ao princípio da igualdade - já que inexiste hipótese legal análoga aplicável aos delitos praticados contra o patrimônio individual - até a vulgarização do Direito Penal, pois este estaria servindo ao Estado unicamente na "cobrança de tributos", anulando os fins da sanção penal.

Esta última, precisamente, diz respeito aos motivos que levam o legislador penal a incorrer em grave ofensa aos postulados da teoria da pena, haja vista que o tratamento atual dispensado aos crimes tributários vem anular a finalidade de prevenção geral da pena e até mesmo a finalidade preventiva especial.

De acordo com Rodrigo Sanchez Ríos:

Da forma como está regulamentada a extinção da punibilidade no nosso sistema normativo, prevalece o fundamento político-fiscal sobre os critérios jurídico-penais vinculados aos fins da pena. Na prática, torna-se mais vantajoso esperar ser denunciado pelo Ministério Público para então realizar o pagamento, pois basta efetuá-lo para obter este privilégio. In casu, o fim da prevenção geral é desrespeitado e, perante a sociedade, torna-se uma "vantagem" direcionada para determinado estamento social, questionando a própria reafirmação social da norma penal. Idêntica situação ocorre com a prevenção especial, uma vez que não se comprove, em nenhum momento, o retorno à legalidade quando o comportamento reparador é feito coativamente e longe dos moldes exigidos para uma conduta voluntária positiva posterior ao delito. [82]

Ademais, ante a previsão legal diferenciada outorgada aos crimes fiscais, cabe a seguinte indagação: se o objetivo da Política Criminal tem sido o de estimular a reparação do dano como meio de pacificação social, satisfazendo tanto aos interesses da vítima quanto aos do agressor de um bem jurídico penal, na medida em que impõe a este punição menos severa, aliviando assim a intervenção estatal, por que não se estendem as benesses legais, com essa mesma amplitude, àqueles que venham a incidir nos delitos patrimoniais comuns?

Ao revés, o que se verifica é a tradicional e implacável repressão (seletiva) do Direito Penal direcionada aos delitos contra o patrimônio individual, fato para o qual chama atenção Alessandro Baratta quando afirma:

A seleção criminalizadora ocorre já mediante a diversa formulação técnica dos tipos penais e a espécie de conexão que eles determinam com o mecanismo das agravantes e atenuantes (é difícil, como se sabe, que se realize um furto não "agravado"). [83] (grifo no original).

Ora, sabe-se que conferir tratamento legal diferente a pessoas que estejam em igual situação constitui ofensa ao princípio constitucional da isonomia.

Acresce-se a isso o fato de que, quando o assunto se refere à definição de critérios que justificam a discriminação legal, é recomendável consultar as lições de Celso Antônio Bandeira de Melo.

Em acurada análise sobre o conteúdo jurídico do princípio da igualdade, aquele autor indica certos parâmetros que tornam a discriminação admissível pela Constituição. Para ele é necessário:

1) que a discriminação não atinja de modo atual e absoluto um só indivíduo; 2) que o fator de desigualdade consista num traço diferencial residente nas pessoas ou situações, vale dizer que não lhes seja alheio; 3) que exista um nexo lógico entre o fator de discrímen e a discriminação legal estabelecida em razão dele; e 4) que, no caso em concreto, tal vínculo de correlação seja pertinente em função dos interesses constitucionais protegidos, visando ao bem público, à luz do texto constitucional. [84]

Considerando-se seja louvável e até desejável que o legislador penal conceda, em nome de um Direito Penal mínimo, maior alcance ao instituto da reparação do dano no ordenamento penal pátrio, que o faça, porém, tanto no âmbito dos crimes de natureza fiscal quanto no dos crimes ofensivos ao patrimônio individual.

4.5.4 Reveses legislativos

Conforme visto na seção anterior, na legislação codificada nacional, a reparação do dano por ocasião do cometimento do delito, assume efeitos diversos.

Adiantou-se que, no tocante aos crimes fiscais definidos na Lei nº. 8.137/90, existe previsão legal de extinção da punibilidade pela reparação do dano; no caso, pelo pagamento do tributo, previsão que destoa da regra geral prevista no ordenamento penal em vigor, no que concerne às ofensas perpetradas contra o patrimônio individual.

Ocorre que, nos delitos contra bens individuais – furto, por exemplo –, a depender das circunstâncias, ter-se-á, no máximo, a diminuição da pena (configurado o arrependimento posterior), ou a substituição desta.

Na exposição de motivos nº. 088, de 28 de março de 1990, do então Projeto de Lei nº. 4.788, de 1990, constava a seguinte justificação atinente à previsão da medida sob comento, que se confronta com a disciplina da legislação então vigente, qual seja a Lei nº. 4.729/65:

8. Dispondo sobre a extinção da punibilidade, estabelece que a mesma somente terá lugar quando o agente promover espontaneamente o pagamento do tributo ou contribuição, inclusive adicional, antes do início da ação fiscal. Essa disposição põe fim à situação até agora vigente, que consistia em verdadeiro estímulo à prática de atos danosos ao Erário Público, eis que ocorria extinção da punibilidade quando o agente, já tendo sido iniciada a ação fiscal, recolhia o crédito tributário, antes da decisão administrativa de primeira instância. Em alguns casos, ao delinqüente era permitido realizar o pagamento até antes do início da ação penal, para beneficiar-se com a extinção da punibilidade. [85]

Percebe-se que na justificativa do então projeto da Lei nº 8.137/90, havia certa preocupação do legislador com a eficácia da lei, tanto é que resolvera premiar o contribuinte apenas quando este, "espontaneamente", resolvesse quitar sua dívida tributária com o Estado.

Por isso mesmo é que são dignos de nota os reveses legislativos relacionados à incriminação das infrações fiscais, que poderiam ser justificados tanto pelo lobby, sobretudo, o das classes empresariais, quanto pela necessidade de maior arrecadação por parte do Estado.

Originalmente, a Lei nº. 8.137/90 previa, em seu art. 14, a mencionada hipótese de extinção de punibilidade, nos seguintes termos, verbis: "Art. 14. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1º a 3º, quando o agente promover espontaneamente o pagamento do tributo ou contribuição, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia."

Logo em seguida, porém, este dispositivo foi fustigado com a edição da Lei nº. 8.383, de 30 de dezembro de 1991, que expressamente o revogou.

Assinala-se que o texto normativo hoje vigente, acabou restabelecido com a previsão do art. 34 da Lei nº. 9.249/95.

Cotejando-o com aquele constante do projeto de lei original, o texto atual traz logo uma sutil diferença, qual seja, exatamente a supressão do termo "espontaneamente", entendendo-se a partir de então que o legislador contemplou a "voluntariedade" do contribuinte faltoso.

Isto significa dizer que, com a medida legal em vigor, não se exige mais a espontaneidade do contribuinte no sentido de saldar sua dívida tributária, podendo o mesmo tranqüilamente fazê-lo, ainda que já esteja, por exemplo, sob procedimento de fiscalização, uma ocorrência muito comum.

Ademais, verifica-se dos textos legais aqui transcritos que é latente a imprecisão e vagueza do legislador ao disciplinar essa matéria, pois em várias passagens parece confundir ação penal com ação fiscal, apegando-se tão-somente a marcos temporais para determinar a aplicação do benefício penal.

4.5.5 A Jurisprudência

No início deste trabalho, quando se escreveu acerca das idéias trazidas pela Criminologia Crítica, afirmou-se que o Sistema Penal era essencialmente seletivo. Agora, deve-se acrescentar que os juízes exercem função vital na legitimação desse mesmo Sistema.

De acordo com o escólio de Vera Andrade:

[...] tem-se demonstrado que, para além de uma eficácia seletiva conformadora do conteúdo normativo da lei (cabendo-lhe suprir suas vaguezas e ambigüidades), o second code judicial tem uma eficácia seletiva conformadora, reelaboradora e recriadora dos próprios fatos a processar e a sancionar como crimes. Isto significa que a eficácia dos mecanismos de seleção se manifesta na atividade jurisdicional ao longo da multiplicidade de decisões que incumbem aos juízes e tribunais. [86]

Para Márcia Dometila Lima de Carvalho, há um casuístico "desinteresse" na repressão da criminalidade econômica, aí incluídos os delitos fiscais. São suas palavras:

[...] o Judiciário, com uma formação apropriada para o combate à criminalidade clássica, não vem revelando uma sensibilidade adequada para a captação das sutilezas inerentes à criminalidade econômica. Mostra, ao contrário, um apego exagerado a uma certa interpretação liberal, não condizente com a nova realidade do Direito, emergente de um Estado de Justiça Social, concepção atual do Estado de Direito. [87]

Nada obstante, a interpretação pretoriana acerca dos delitos fiscais merecer um acurado estudo, não se poderia deixar de comentá-la, cabendo inclusive a reprodução de alguns julgados emanados dos tribunais superiores, em particular da Suprema Corte, assim como do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão.

Encontram-se à sociedade, julgados que anulam por completo a finalidade penal das normas sancionatórias contidas na Lei n° 8. 137/90.

Com fulcro, sobretudo, nas disposições das Leis nº. 9.964/00 e 10.684/03 (instituem programas de recuperação fiscal relacionados a débitos tributários de pessoas jurídicas no âmbito da União), registre-se que o Supremo Tribunal Federal vem se posicionando pela extinção da punibilidade nos crimes fiscais mesmo que a quitação do tributo devido ocorra "após" o recebimento da denúncia.

Foi exatamente esse o entendimento firmado no acórdão paradigma referente ao julgamento do HC n 81929 RJ, que recebeu a seguinte ementa:

AÇÃO PENAL. Crime tributário. Tributo. Pagamento após o recebimento da denúncia. Extinção da punibilidade. Decretação. HC concedido de ofício para tal efeito. Aplicação retroativa do art. 9º da Lei federal nº 10.684/03, cc. art. 5º, XL, da CF, e art. 61 do CPP. O pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário. (Relator Min. Sepúlveda Pertence, Relator p/ acórdão Min. Cezar Peluso. Data julgamento: 16/12/2003. Primeira Turma. Publicação: DJ 27-02-2004 PP-00027).

Como se sabe, a lei estabelece que o pagamento do tributo, desde que realizado antes do recebimento da denúncia, enseja a extinção da punibilidade.

De técnica legislativa duvidosa, esses diplomas legais, reunindo normas tributárias e penais, inovam também ao prever a suspensão da ação penal enquanto o contribuinte faltoso se mantiver adimplente no parcelamento dos débitos fiscais. Neste sentido, transcreve-se a ementa do acórdão relativo ao julgamento do HC n 86465 / ES, verbis:

HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PARCELAMENTO DO DÉBITO. SUSPENSÃO DA AÇÃO PENAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. Nos termos do art. 9º da Lei n° 10.684/2003, o parcelamento do crédito tributário implica, automaticamente, a suspensão da sua inexigibilidade. Assim, se o crédito não é exigível, não há de se falar em sonegação ou redução de tributo, o que impede, por via de conseqüência, a persecução penal. Precedentes. 2. Existência, nos autos, de cópia de ofício da Receita Federal que informa estarem os débitos do paciente incluídos no Programa de Parcelamento Especial (PAES), bem como de documentos que comprovam estar o paciente em dia com suas obrigações. 3. Embora tramite, na Corte, ação direta de inconstitucionalidade contra o art. 9º da Lei n° 10.684/03, pesa a favor deste dispositivo presunção de constitucionalidade, razão pela qual ele deve ser aplicado até que sobrevenha a eventual declaração de inconstitucionalidade. 4. Ordem concedida para que a ação penal de origem seja suspensa, até que ocorra a quitação integral do débito, quando, então, deverá ser declarada extinta a punibilidade do paciente. (Relator Min. Joaquim Barbosa. Julgamento 06/02/2007 Segunda Turma Publicação DJ 29-06-2007 pp-00143 Ement vol.-02282-06 pp-01072).

No âmbito do Estado do Maranhão, alguns julgados expressam muito bem essa tendência da jurisprudência dos tribunais superiores do país, no sentido de obstar o processamento dos crimes fiscais, evocando-se a propalada "intervenção mínima" do Direito Penal e demais cláusulas garantistas. Vejam-se os seguintes arestos cujas ementas assim foram lavradas:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. CRIME DE QUADRILHA OU BANDO. DENÚNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. I. O Estado democrático de direito reserva a intervenção da sanção jurídico-penal, somente quando não existam outros remédios jurídicos, ou seja, quando não bastarem as sanções jurídicas do direito privado. II. O objetivo do legislador, ao acenar com a possibilidade de suspensão da pretensão punitiva referente aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 com o Programa de Recuperação Fiscal Maranhense - REFIM, instituído pela Lei Estadual nº 7.938/2003, é além o de garantir receitas ao erário, o de não privar o contribuinte da possibilidade de continuar produzindo novos recolhimentos. III. Com a adesão da empresa ao REFIM, desaparece a justa causa para o oferecimento da denúncia. IV. A finalidade lícita da empresa da qual os pacientes são sócios, em nada se coaduna com o tipo previsto no artigo 288 do Código Penal. V. Ordem concedida. (TJ-MA HC n° 287212003 Relator Mario Lima Reis Primeira Câmara Criminal Data Julgamento 19/12/03 DJE 19/4/2005).

Relativamente ao julgado acima transcrito, observa-se que houve a mera adesão do contribuinte ao então regime especial de parcelamento de débitos fiscais do ICMS, o que já foi suficiente para erigir o posicionamento no sentido de frustrar a ação penal, no nascedouro, ou seja, afastando-se uma de suas condições.

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME TRIBUTÁRIO. DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. CONFIGURAÇÃO. TRANCAMENTO. POSSIBILIDADE. I - Ainda que em se tratando de crime de natureza tributária, em se vislumbrando, cristalinamente, por parte do agente, a boa-fé e vontade de cumprir com a obrigação, consubstanciada em propostas de compensação de débitos devidamente analisada e aprovada pelo Órgão de Representação Jurídica do Estado, a revelar, assim, nítida iniciativa de, a situação de devedor, regularizar, coercitivo por demais e de descabida vexatória faz-se o instauro da instância penal. II - Ainda que de origem cogentes, o Direito Penal e o Direito Tributário, nítida distinção, em suas aplicações há que ser considerada, haja vista o primeiro, visar a proteção do bem jurídico voltado para à vida, o patrimônio e à integridade física e, este o tão-só assegurar a punibilidade por transgressão a normas típicas, quando por outro meio, que não via instauração penal, exerça o poder de reparo. III - Ordem concedida. (TJ-MA HC 195922003 Relator Antonio Fernando Bayma Araújo Paciente EMANUEL CARACAS DOS SANTOS Primeira Câmara Criminal Data julgamento 04/11/2003 DJE 13/11/2003.)

Assinala-se, neste último julgado, que a interpretação "minimalista" foi levada ao extremo, haja vista que a ação penal foi fustigada pela simples apresentação de propostas feitas pelo contribuinte, objetivando compensar os débitos fiscais que contraíra perante a Fazenda Pública do Estado, o que foi "aceito" pelo órgão colegiado daquela Corte como suficiente para afastar a justa causa para instauração da persecutio criminis.


5 CONCLUSÃO

Nada obstante a extraordinária influência irradiada pelo saber dogmático, existe espaço para reflexões que transcendam às explicações oferecidas pelo Direito Penal em vigor.

É possível a compreensão do que vem a ser crime de uma forma dialética. Para tanto, basta que se abandonem dogmas ou noções pré-constituídas, características da Dogmática Penal, tendo em vista que há fortes razões para se supor que o crime não seja mero resultado de condições sociais e biológicas de determinados indivíduos, conforme preconiza tese esposada pelo positivismo.

Carece, pois, de sustentação a idéia de que tais indivíduos seriam mais propensos a delinqüir.

A Criminologia Crítica, ao transpor os limites impostos pelo paradigma positivista, precipuamente através do paradigma da reação social, passa a ter objeto próprio, cujo estudo evidencia a contradição remanescente entre os dogmas capitais erigidos, ao longo de séculos, pelo Direito Penal positivado.

Esse novo modelo surge a partir do esgotamento do paradigma etiológico, no que concerne à compreensão da criminalidade e à descoberta de soluções para seu controle. Melhor dizendo, para as teorias críticas da Criminologia, há que se perquirir acerca da criminalização.

Com efeito, criminalidade e "criminalização" encerram conceitos distintos, na medida em que a primeira refere-se a uma realidade genérica, enquanto a segunda advêm de um processo de definição e seleção a que estão sujeitos os indivíduos não pertencentes às classes dominantes.

Mais que a repressão das condutas típicas praticadas em toda parte, outras razões levam o Sistema Penal a se interessar pelo controle desse tipo de delinqüente.

Em primeiro lugar, é utópica a possibilidade de persecução de todas as infrações penais perpetradas. Além disso, a atuação do Direito Repressivo é desigual, pois, ideológica e funcionalmente, segue o parâmetro distributivo de bens do sistema econômico capitalista, porém numa relação inversamente proporcional.

A seletividade do Sistema Penal, pois, desponta como característica preponderante, o aspecto elucidativo, inclusive de sua singular estrutura lógica, operacional e ideológica.

A "clientela" do Sistema Penal é constituída primordialmente de pobres, não porque estes sejam propensos a delinqüir, mas precisamente porque são oriundos da parcela da população mais vulnerável à criminalização e ao etiquetamento.

Esse quadro social é responsável, então, pelo reconhecimento das denominadas teorias críticas, em especial, da teoria do etiquetamento (labelling approach).

A seletividade tem seu nascedouro ainda na fase de edição e aprovação das leis criminais e se estende até as ações promovidas pelas agências estatais incumbidas da repressão e da aplicação da lei incriminadora – a Polícia, o Ministério Público e o Judiciário.

Nesse contexto, torna-se manifesto um questionamento sobre a atualidade das evidências colhidas por Sutherland, que, ao se debruçar sobre a estatística da criminalidade em seu país, verificou que os indivíduos pertencentes às classes sociais mais privilegiadas eram raramente alcançados pela repressão estatal, a tal ponto de o autor indagar se os "crimes de colarinho branco" eram, de fato, "crimes".

Igual questionamento cabe perfeitamente, no tocante aos crimes tributários definidos pela Lei n° 8.137/90.

Referida lei especial visa à prevenção e repressão das condutas fraudulentas ou dolosamente perpetradas que, em última análise, frustrem a arrecadação de tributos, comprometendo, por conseqüência, as funções do sistema tributário.

No tocante à análise da estrutura normativa dessa lei, verifica-se que se está diante de normas penais em branco, cujas definições dos elementos que integram o tipo são estabelecidas pela legislação tributária.

Esse aspecto, aliado às formas peculiares e sofisticadas da fraude fiscal, dificulta sobremaneira os procedimentos administrativos e judiciais tendentes a reprimir tais condutas.

Vale acrescentar que a pouca visibilidade dos danos causados por essas práticas criminosas contribui sensivelmente para a impunidade de seus agentes, corroborada pela inexistência de um compromisso ético na reprovação de tais condutas, já que, em se tratando de imposição tributária é até plausível a desobediência.

Apesar do exposto, no rol das dificuldades enfrentadas na punição aos crimes tributários, uma disposição normativa se sobressai. Trata-se da possibilidade legal de afastar a punibilidade pelo pagamento do tributo.

Em relação a este e a outros dispositivos legais atinentes aos crimes fiscais, parte da doutrina adota, com enorme audiência, o discurso de que o Direito Penal estaria servindo unicamente ao propósito de compelir o contribuinte ao recolhimento do tributo.

Todavia, mesmo a "progressista" doutrina dogmática, que rende homenagens à intervenção penal mínima, não consegue enxergar além dos domínios do tradicional Direito Penal, esquivando-se do questionamento quanto aos aspectos funcionais e ideológicos determinantes na seleção de "clientela" específica – sintomaticamente concentrada nas classes mais baixas, e relacionada, principalmente, com práticas ofensivas ao patrimônio privado.

Aliás, conforme pôde ser visto, é difícil que o furto cometido por um desses indivíduos não seja "agravado ou qualificado".

Os elementos desse "jogo de poder" se encaixam perfeitamente, quando se constata que, muito raramente, o processo penal relativo a crimes fiscais culmina em efetiva punição daqueles que ofendem o bem tutelado pela ordem jurídica.

Nos crimes contra a ordem tributária, o legislador, ao prever a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, em vez de prestigiar o instituto da reparação do dano, opta por tornar legítimo o "esquecimento" da fraude, do ardil, ou seja, da ofensa em desfavor do sistema tributário, bem jurídico tutelado pela norma penal especial.

Como se não bastasse, quando se sopesa o tratamento dispensado aos delitos fiscais e aos delitos praticados contra o patrimônio individual, verifica-se que a medida veiculada pela Lei n° 9.249/95 (art. 34) afronta o princípio da isonomia, pois para o mesmo ato, a reparação do dano, a lei penal confere efeitos distintos.

Ademais, é correto afirmar que o legislador penal incorre em derradeira e grave ofensa aos postulados da teoria da pena, haja vista que o tratamento dispensado atualmente aos crimes tributários vem anular a finalidade de prevenção geral e especial da pena.

Finalmente, não é absurda a conclusão de que vigora, em nosso Sistema Penal, absoluta imunidade para aqueles que incidem nos crimes de sonegação fiscal. Mesmo nas raras oportunidades em que sofrem algum tipo de constrição do Sistema Repressivo, tais indivíduos poderão ainda se verem livres das agruras do cárcere, se a qualquer tempo o dano for reparado.

Com efeito, a complexidade normativa, associada aos dispositivos casuísticos contemplados na legislação correlata aos crimes tributários e à deficiente persecução e julgamento desses ilícitos, materializam a "harmonia" ou "normalidade" exigidas pelo sistema capitalista de produção, que tem no Direito Penal o seu braço armado.


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Notas

  1. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 5.
  2. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004, p. 13.
  3. QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 7.
  4. Ibid.
  5. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 84.
  6. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. José Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Editoria Revan, 2002, p. 30.
  7. Ibid., p. 34.
  8. BARATTA, op. cit., p. 37.
  9. BARATTA, op. cit., p. 38.
  10. ANDRADE, Vera R. Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003b, p. 36.
  11. BARATTA, op. cit., p. 155.
  12. Ibid., p. 158.
  13. ANDRADE, 2003b, p. 35.
  14. Ibid., p. 36.
  15. ANDRADE, 2003b, p. 38.
  16. BARATTA, op. cit., p. 88.
  17. ANDRADE, op. cit., p. 39.
  18. ANDRADE, 2003b, p. 40.
  19. BARATTA, op. cit., p. 86.
  20. ANDRADE, op. cit., p. 42.
  21. ZAFFARONI, Raúl Eugenio. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia R. Pedrosa e Amir L. da Conceição.5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 28.
  22. BARATTA, op. cit., p.112.
  23. ANDRADE, 2003b, p. 48.
  24. ZAFFARONI, op. cit., p. 26-27.
  25. ANDRADE, Vera R, P. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003a, p. 265.
  26. BARATTA, op. cit., p. 176.
  27. ANDRADE, 2003b, p. 54.
  28. No Maranhão, por exemplo, de acordo com os dados do Ministério da Justiça (2007), dos 2.802 presos, 2.704 (96,50%) são homens; 2.274 (81,15%) são indivíduos de cor negra ou parda, ou são indígenas; enquanto que apenas 230 (8,20%) possuem o ensino médio ou superior, completo ou não.
  29. BARATTA, op. cit., p. 162.
  30. ANDRADE, 2003b, p. 41.
  31. Ibid., p. 54.
  32. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 230.
  33. ANDRADE, 2003b, p. 53.
  34. BARATTA, op. cit., p. 180.
  35. Ibid., p. 71.
  36. BARATTA, op. cit., p. 63.
  37. Ibid., p. 63.
  38. Ibid., p. 66.
  39. BARATTA, op. cit., p. 176.
  40. Ibid., p. 166.
  41. ANDRADE, 2003a, p. 293.
  42. Ibid., p. 298.
  43. Ainda de acordo com os dados do Ministério da Justiça, no Maranhão, 1.738 (62%), dos 2.802 presos, foram condenados pelos crimes de furto, roubo (simples e qualificados), receptação e homicídio (simples e qualificado).
  44. ANDRADE, 2003b, p. 24.
  45. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo e da exoneração tributária. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.130.
  46. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 76.
  47. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 238.
  48. KALACHE, Maurício. Crimes tributários. Curitiba: Juruá, 2006, p. 112.
  49. FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 14.
  50. MORAES, Alexandre de; SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação penal especial. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 82.
  51. PRADO, op. cit., p.137.
  52. CASSONE, Vittorio. Processo tributário: teoria e prática. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 531.
  53. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 19.
  54. Ibid., p. 20.
  55. QUEIROZ, op. cit., p. 60.
  56. PRADO, op. cit., p. 556.
  57. Ibid., p. 556.
  58. QUEIROZ, op. cit., p. 52.
  59. Ibid., p. 562.
  60. Ibid., p. 566.
  61. MUNÕZ CONDE, Francisco. Derecho penal y control social. 2. ed. Santa Fe de Bogotá: Editorial Temis, 1999, p. 89. Tradução livre. (grifo do autor)
  62. BARATTA, op. cit., p. 114.
  63. QUEIROZ, op. cit., p. 55.
  64. DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 37.
  65. CORACINI, Celso Eduardo Faria. Os movimentos de descriminalização: em busca de uma racionalidade para a intervenção jurídico-penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 13, n. 50, p. 263, abr./jun. 2004.
  66. BARATTA, op.cit., p. 165.
  67. PRADO, op. cit., p.139.
  68. Ibid., p. 266.
  69. FERREIRA, op. cit., p. 24.
  70. QUEIROZ, op. cit., p. 14.
  71. KALACHE, op. cit., p. 88.
  72. Ibid., p. 29.
  73. SALOMÃO, Heloisa Estellita. A tutela penal e as obrigações tributárias na constituição federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 172.
  74. No Estado do Maranhão, em 2007, havia um total de 2.924 presos/internados, para apenas 1.716 vagas, sem considerar os presos provisórios em delegacias de polícia. No mesmo período, foram informadas 15 fugas dos estabelecimentos prisionais no Estado. Dados informados pelo Ministério da Justiça.
  75. FERREIRA, op. cit., p. 30.
  76. PRADO, op. cit., p. 238. (grifo do autor).
  77. ROSENTHAL, Sérgio. A punibilidade e sua extinção pela reparação do dano. São Paulo: Dialética, 2005, p. 30.
  78. Ibid., p. 718.
  79. Ibid., op. cit., p. 47.
  80. Ibid., p. 82.
  81. ZAFFARONI, Raúl E.; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. v. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 610.
  82. RÍOS, Rodrigo Sánchez. Das causas de extinção da punibilidade nos delitos econômicos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Dialética, 2003, p. 156.
  83. BARATTA, op. cit., p. 176.
  84. MELO, Celso A. Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 37.
  85. BRASIL. Projeto de lei nº. 4.788, de 1990. Define crimes contra a administração tributária, de abuso do poder econômico e dá outras providências. Diário do Congresso Nacional (seção I), Poder Executivo, Brasília, DF, 29 de março de 1990, p. 2227.
  86. ANDRADE, 2003a, p. 272.
  87. CARVALHO, Márcia Dometila L. de. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 117.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUAILIBE NETO, Nagib Abrahão. A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. Mínima intervenção do direito penal ou concretização de sua seletividade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2296, 14 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13648. Acesso em: 4 maio 2024.