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A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.

Mínima intervenção do direito penal ou concretização de sua seletividade?

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14/10/2009 às 00:00
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Ao contrário de configurar manifestação da intervenção mínima do Direito Penal, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo expressa a concretização da seletividade penal.

RESUMO

Evidencia algumas das temáticas componentes da Criminologia Crítica, a teor da seletividade do sistema penal, da vulnerabilidade social e penal das classes subalternas, além dos discursos reais e aparentes do Direito Penal tradicional. Descreve a evolução do saber penal até os dias de hoje, com destaque para teoria crítica do etiquetamento (labelling approach), apresentando, de modo panorâmico, a estrutura normativa dos crimes contra a ordem tributária, definidos na Lei n° 8.137/90, apontando, ao final, a distinção entre elisão, evasão e sonegação fiscal. No tocante ao bem jurídico, enfatiza a necessidade de incriminação das condutas lesivas ao sistema tributário, de valoração constitucional (bem transindividual). Expõem, em síntese, as teorias legitimadoras do Direito Penal, ressaltando as teorias relativas da prevenção geral e especial, inclusive com posicionamento crítico. Discute matéria procedimental, no âmbito da legislação penal tributária, relacionada ao pagamento do tributo como causa extintiva da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária, à luz de argumentos da Criminologia Crítica. Informa os reveses legislativos envolvendo essa previsão normativa da causa liberatória da punição, aludindo também à crítica em torna da quebra da isonomia (pois inexiste mesmo tratamento quanto à reparação do dano nos delitos contra o patrimônio individual), além do mais, o tratamento privilegiado conferido aos sonegadores de tributo frustra as finalidades preventivas da pena. Demonstra, enfim, que são válidos os fundamentos da teoria crítica a indicar que, ao contrário de configurar manifestação da intervenção mínima do Direito Penal, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo expressa a concretização da seletividade penal.

Palavras-chave: Criminologia crítica. Direito penal - seletividade. Extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.


ABSTRACT

It evidences some of the thematic components of the Critical Criminology, the example of the selectivity of the criminal system, and social and criminal vulnerability of the subordinate classrooms, beyond the real and apparent speeches the traditional Criminal law, describes the evolution of criminal knowing until the present, with prominence for critical theory of the labelling approach. It presents, in panoramic way, the normative structure of the crimes against the order tax, defined in the Law n° 8.137/90, pointing, to the end, the distinction between elimination, evasion and fiscal tax evasion. In the moving one to the legally protected interest, it emphasizes the necessity of accusation of the harmful behaviors to the system tributary, of constitutional valuation. It displays, in synthesis, the theories legislators of the Criminal law, standing out the relative theories of the general and special prevention, also with critical positioning. Procedural substance argues, in the scope of the criminal legislation tax, related to the payment of the tribute as extinctive cause of the punishment in the crimes against the order tax, to the light of arguments of the Critical Criminology. It informs the legislative overturn involving this normative forecast (of the tending to set free cause of the punishment), also alluding to the critical one in becomes of the isonomy in addition (therefore treatment how much to the repairing of the damage in the delicts against the individual patrimony inexists exactly), in addition, the privileged treatment conferred to the tax evaders of tribute annuls the preventive purpose of the penalty. It demonstrates, at last, that the beddings of the critical theory to indicate that are valid, in contrast to configuring manifestation of the minimum intervention of the Criminal law, the extinguishing of the punishment for the payment of the tribute express the concretion of the criminal selectivity.

Keywords: Critical criminology. Criminal law - selectivity. Extinguishing of the punishment for the payment of the tribute.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA. 2.1 Conceitos2.2 A Escola Clássica. 2.3 A Escola Positivista (paradigma etiológico). 2.4 Evolução do saber criminológico. 2.5 Fundamentos da Criminologia Crítica. 2.6 A seletividade do Sistema Penal. 2.7 Estigmatização x imunização. 2.8 Crimes de "colarinho branco". 2.9 Funções declaradas e reais do Sistema Penal. 3 DO DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO. 3.1 Sistema constitucional tributário: breves notas. 3.2 Elementos de Direito Tributário. 3.3 O Direito Penal Econômico. 3.4 O Direito Penal Tributário. 3.5 Os crimes definidos na lei nº 8.137/90. 3.6 Conceitos de elisão, evasão, fraude fiscal e sonegação fiscal. 4 A TUTELA PENAL DA ORDEM TRIBUTÁRIA. 4.1 Teorias legitimadoras do direito estatal de punir. 4.2 O Direito Penal mínimo. 4.3 O bem jurídico tutelado. A tutela penal de direitos difusos. 4.4 Sanções administrativas x sanções criminais. 4.5 A extinção da punibilidade nos crimes fiscais. 4.5.1 Da extinção de punibilidade .4.5.2 A reparação do dano: seus efeitos e formas no Direito Penal. .4.5.3 Lei n° 9.249/95: ofensa à isonomia e anulação dos fins da pena. 4.5.4 Reveses legislativos. 4.5.5 Jurisprudência. 5 CONCLUSÃO REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

Uma rápida incursão na história brasileira revela que a preocupação com as condutas ofensivas às finanças ou à economia do Estado remonta às antigas Ordenações Filipinas.

Contudo, é a partir da vigência da Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, que o Direito Penal brasileiro passa a dispor de uma legislação especial que trata dos chamados crimes de "sonegação fiscal" e, posteriormente, da Lei nº. 8.137/90, de 27 de dezembro de 1990, que incrimina as condutas lesivas à ordem tributária.

Sabe-se que no cumprimento de suas atribuições, o Estado brasileiro imprescinde de recursos, parte dos quais advindos da instituição e cobrança de tributos de pessoas físicas e jurídicas, conforme regras e princípios delineados no Capítulo do Sistema Tributário Nacional (art. 145 e ss.) da Constituição Federal de 1988.

Dentre as várias finalidades inerentes ao sistema tributário ressalta-se o seu papel social, ao propiciar ao Estado recursos indispensáveis para a realização de serviços, que buscam atender aos interesses e às necessidades da coletividade.

No âmbito da Dogmática Penal, de acordo com orientação dos princípios especiais do Direito Penal e, sobretudo, dos valores e interesses insculpidos na Constituição Federal, afirma-se que a incriminação das condutas humanas na ordem jurídica em vigor encontra respaldo determinante na relevância do bem jurídico a ser tutelado.

Enfim, entende-se que o legislador resolveu não só prevenir e reprimir a lesão à Fazenda Pública, mas também tutelar a ordem tributária (proteção de direitos difusos), pois, em essência, esta representa o interesse público, quer na garantia dos recursos devidos e necessários à manutenção do Estado, quer na promoção da livre concorrência e da justiça fiscal.

Entretanto, no tocante à punibilidade dos crimes fiscais definidos na Lei nº. 8.137/90, a previsão legal de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo (conforme estabelece o art. 34 da Lei nº. 9.249/95), destoa da regra geral no ordenamento penal em vigor.

Na esteira do escólio da Criminologia Critica, surgem argumentos consistentes para se reconhecer nessa modalidade elisiva do jus puniendi um traço característico de um Sistema Penal seletivo que, em regra, reserva as agruras do cárcere a uma determinada "clientela".

A compreensão da existência de singular benefício legal outorgado a certos delinqüentes não pode desconsiderar que o Direito Penal assume um papel diferente daquele declarado, pois, em vez de se voltar para a pacificação social, representa, na realidade, um autêntico instrumento de manutenção e reprodução da desigualdade inerente ao sistema de produção e distribuição capitalista.

Ao prever a extinção da punibilidade nos crimes fiscais, através do pagamento do tributo ("reparando-se" o dano causado à coletividade), não faz outra coisa o legislador penal senão engendrar o processo primário de seleção, no qual se pauta o Sistema Repressivo, editando norma tendente a assegurar a imunização dos indivíduos privilegiados na participação do poder social, econômico ou político.

Nesse jaez, é bastante plausível o questionamento dessa exclusiva modalidade de extinção punitiva existente em nosso ordenamento jurídico.

Mesmo no campo da Dogmática Penal, carecem de coerência e solidez os argumentos que amparam tal previsão.

As críticas envolvem desde a ofensa ao princípio da igualdade - já que inexiste hipótese legal análoga aplicável aos delitos praticados contra o patrimônio individual - até a vulgarização do Direito Penal, pois este estaria servindo ao Estado unicamente na "cobrança de tributos", anulando-se dessa forma os fins da sanção penal.

A questão trazida ao debate, portanto, revela-se producente e útil, na medida em que se busca compreender as motivações e as circunstâncias da formulação das normas penais em questão, assim como os efeitos para a persecução e punição estatal daqueles que incidem nos denominados "crimes de colarinho branco".

Assim, sob o aspecto da relevância social, resta evidenciada a potencial (ainda que singela) contribuição da pesquisa em tela.

Tendo em vista a utilidade deste trabalho monográfico para a ciência jurídica, e com o intuito de ampliar o conhecimento e a discussão do tema, propõe-se exame crítico do modelo normativo penal vigente, especificamente da legislação atinente aos crimes definidos na Lei nº 8.137/90, assim como do art. 34 da Lei nº 9.249/95, em que se destaca a causa de extinção da punibilidade já referida.

A problematização elaborada consiste em saber se o pagamento do tributo como causa de extinção da punibilidade – efetivo reparador –, nos crimes fiscais, constitui previsão legal casuística.

A hipótese principal sugere que essa causa liberatória da punibilidade coaduna-se com a seletividade do Sistema Penal.

Assim, tem-se que o objetivo geral desta pesquisa abrange a análise da legislação especial relativa aos crimes contra a ordem tributária, a partir da interpretação doutrinária e jurisprudencial de norma que autoriza a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, seus consectários e relações com demais institutos do Direito Penal.

Especificamente, propõe-se a analisar a punibilidade nos crimes tributários, através do resgate de alguns dos fundamentos teóricos das penas previstas no ordenamento jurídico penal, assim como a opção legislativa pela disciplina normativa atual.

Finalmente, aponta-se como objetivo específico conhecer a jurisprudência no Estado do Maranhão, referente à punição desses delitos, especialmente quanto à aplicação da legislação tributária local determinante da extinção ou suspensão da pretensão punitiva.

Assinala-se que os pressupostos teóricos que se colocam para a feitura deste trabalho perpassam inicialmente por uma mudança de foco metodológico.

Pretende-se evitar uma aproximação estritamente dogmática, possibilitando uma nova abordagem do tema, desta feita sob inspiração das idéias trazidas pela Criminologia Crítica.

No tocante à metodologia a ser utilizada, a abordagem normativa proposta consistirá no exame crítico da legislação atinente aos crimes fiscais (tutela de direitos difusos), realizando-se contraponto com normas incriminadoras que tutelam o patrimônio individual, insertas no Código Penal brasileiro.

Assim sendo, impõe-se a adoção do método hipotético-dedutivo na realização da pesquisa proposta, elegendo-se ainda o método de procedimento monográfico com preponderância da pesquisa bibliográfica.

Para tanto, são evidenciadas algumas contradições existentes no próprio modo de funcionamento do Sistema Penal, ao tempo em que são colhidas as impressões da Criminologia e Direito Penal Críticos acerca do sistema vigente.

No primeiro capítulo da monografia, após breves notas sobre as escolas clássica e positivista, seguem noções acerca da evolução do saber criminológico e penal, com ênfase no atual estágio, que corresponde às teorias do paradigma da reação social.

Neste contexto, têm lugar especial os fatores que se relacionam não com a criminalidade, mas com a "criminalização" de determinadas pessoas, desvelando o processo de definição e de seleção desde sempre engendrado pelo Sistema Penal.

Maior atenção é dispensada à seletividade do Sistema Penal, haja vista que a problematização gira em torno desta temática. Demais aspectos correlatos tratados pela Criminologia Crítica, como a estigmatização e a imunização de certos delinqüentes, são também expostos, associando-os ao tema principal.

Cumpre ainda tecer alguns comentários sobre os chamados crimes de "colarinho branco" e sua relação com as teorias da Criminologia, tendo em vista a imunização daqueles que incidem nos delitos fiscais.

Finalmente, o Sistema Penal assume alguns discursos declarados e outros reais, todos eles, no entanto, relacionados à função seletiva que, essencialmente, exerce.

Diversamente do que é declarado, o Direito Penal não se destina à pacificação social; antes, tem como missão latente a manutenção e reprodução do status quo.

No segundo capítulo, optou-se por uma breve abordagem do Direito Penal Econômico, dadas as peculiaridades desse novel ramo do Direito e a sua influência sobre o denominado Direito Penal Tributário, este relacionado às normas de incriminação de certas infrações fiscais.

Até o advento da Lei nº. 8.137/90, os crimes de sonegação fiscal no país estavam definidos na Lei nº 4.729/65. Em seu art. 1º, esta lei definia como crimes praticamente as mesmas condutas ora tipificadas na Lei nº. 8.137/90, de modo que com a entrada em vigor da lei especial de 1990, entende-se que restou parcialmente revogada a Lei nº 4.729/65.

Avançou-se no sentido de examinar alguns aspectos da estrutura desses delitos fiscais, fazendo valer a idéia de que o elemento fraude está presente na caracterização de tais práticas criminosas, o que tornou oportuna a distinção entre as noções de elisão, evasão, fraude fiscal e sonegação fiscal.

No âmbito da Dogmática Penal, destaca-se o papel subsidiário do Direito Penal na solução dos conflitos sociais. Dado o rigor e a gravidade das sanções preconizadas nas normas penais, esse ramo do Direito adquire o caráter de ultima ratio como instrumento jurídico de pacificação.

Entretanto, a falácia desse discurso revela-se na forma em que atua o Sistema Penal, se levarmos em conta seu caráter essencialmente seletivo. Para alguns, o "Direito Penal mínimo" serve tão-somente para justificar, em alguns casos, a imunização de indivíduos mais privilegiados.

No capítulo subseqüente, perquire-se acerca da legitimação do Estado no controle social por meio do Direito Penal (teoria da pena), em que duas correntes doutrinárias se destacam: uma, que concebe a legitimação pelos mais diversos fundamentos, e outra, que, ao contrário, propugna pela desnecessidade de tal legitimação, defendendo até a abolição da pretensão estatal quanto ao poder punitivo.

Procede-se ainda ao exame do bem jurídico, assunto relevante quando se trata de delitos contra bens transindividuais. Considerando-se que o sistema tributário nacional possui a finalidade social de arrecadar os recursos necessários à manutenção do Estado, tem-se firme que a ordem tributária é bem jurídico a ser protegido, conforme valoração constitucional.

A teoria do Direito Penal, este como disciplina tendente à proteção de bens jurídicos fundamentais, recebe algumas considerações neste capítulo, ressaltando-se as dificuldades no tratamento de delitos que ofendem os bens difusos, a exemplo dos crimes fiscais.

A discussão verte-se também para os limites da aplicação de sanções penais e administrativas, não sendo poucas as vozes a defender maior atuação do poder sancionador administrativo, em detrimento da tutela penal da ordem tributária.

Na última etapa do trabalho, parte-se para o teste da hipótese lançada na pesquisa. A questão central tem fulcro no possível entendimento de que norma que prevê a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo não somente é casuística, mas também traduz a materialização normativa da seletividade do Direito Penal.

A lei prevê nos crimes contra a ordem tributária modalidade específica de extinção da punibilidade - fora do rol a que alude o art. 107 do Código Penal.

Trata-se da hipótese de "o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive, acessórios antes do recebimento da denúncia", conforme dispõe o art. 34 da Lei nº. 9.249, de 26 de dezembro de 1995.

Ocorre que a Lei nº. 8.137/90, originalmente, trazia em seu art. 14 a mencionada causa extintiva, fustigada, porém, com a edição da Lei nº. 8.383/91, que expressamente revogou aquele dispositivo.

Esses reveses legislativos em torno da norma do art. 34 da Lei nº. 9.249/95, contudo, vêm suscitando inúmeras críticas, originadas nos mais diversos setores da ciência do Direito.

Se, por um lado, formulam-se interpretações para justificar a impropriedade do dispositivo legal, pois serviria como um severo meio de coação ao contribuinte faltoso, ao se estabelecer um marco temporal ao desinteresse estatal de punição, por outro, não faltam reservas à aludida norma penal, tendo em vista que tal tratamento legal inexiste nos crimes cometidos em desfavor do patrimônio individual.

Enfim, frisa-se o posicionamento colhido na jurisprudência - da Corte Suprema e do tribunal local -, com interpretações várias acerca da citada norma e de seus consectários, no sentido de concretizar a seletividade da resposta penal.


2

PENAL E CRIMINOLOGIA

Por força da tradição do positivismo, o estudo do Direito Penal vem sendo regido pela Dogmática Jurídica.

No mesmo compasso, a Criminologia causal-explicativa, de índole positivista, desenvolveu-se acriticamente, não passando de um apêndice em relação ao Direito Penal, em boa parte por ter se ocupado com o exame das causas e dos efeitos da "criminalidade" sob a estreita ótica do saber dogmático penal.

Nada obstante a extraordinária influência que o saber dogmático irradia até os dias de hoje, vislumbra-se uma notável mudança de paradigma.

Em outras palavras, pugna-se pela compreensão do que vem a ser crime, de uma forma dialética – interacionista –, deixando-se de lado dogmas ou noções pré-constituídas – características da Dogmática Penal –, lançando mão de uma abordagem que transcende o objeto dado, qual seja, a criminalidade.

Há fortes razões para se supor que o crime não seja mero resultado de condições sociais ou, sobretudo, biológicas inerentes a determinados indivíduos, que estariam, por isso, mais propensos a delinqüir – tese esposada pelo positivismo.

Muito além dessa conclusão, um horizonte científico promissor nos faz pensar que os fatores responsáveis pela criminalidade estão inelutavelmente ligados à realidade social.

Não se imagina que o caminho aberto pelas teorias críticas da criminologia e do direito penal seja o único a ser percorrido, porém, é, no mínimo, um flagrante sinal de comodismo continuar com o entendimento estreito e ilusório de que as verdadeiras causas do fenômeno criminoso e suas eventuais conseqüências estejam satisfatoriamente explicadas e/ou controladas pela Dogmática.

Ao formular um conceito próprio para "teoria crítica", Antonio Carlos Wolkmer diz ser esta um:

[...] instrumento pedagógico operante (teórico-prático) que permite a sujeitos inertes e mitificados uma tomada histórica de consciência, desencadeando processos que conduzem à formação de agentes sociais possuidores de uma concepção de mundo racionalizada, antidogmática, participativa e transformadora. [01]

Constitui, pois, um equívoco desprezar as experiências e as contribuições de outras disciplinas que objetivam a compreensão da criminalidade em todas as suas dimensões.

Ademais, apesar de o Direito Penal e seu formidável aparato estar mais "presente" em nosso cotidiano, há muito que não se assistia a uma escalada tão duradoura da violência urbana.

Noutro giro: se o discurso oficial oferece como soluções, entre outras, o recrudescimento das leis penais e o aumento do contingente estatal destinado ao combate da criminalidade, por que, então, não se experimenta uma diminuição dessa mesma violência?

As considerações aqui em curso representam uma tentativa de aproximação dos saberes do Direito Penal e da Criminologia.

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Cabe ainda destacar que, embora tortuosa, é alentadora a vereda percorrida desde os primórdios da Criminologia positivista até as idéias que permeiam hoje as teorias da Criminologia.

2.1 Conceitos

Da tradicional doutrina, extraem-se alguns conceitos que, sem maior prejuízo terminológico à exposição em curso, exprimem concepções usuais de Direito Penal, Criminologia, Política Criminal e Sistema Penal.

A depender do contexto em que se inserir, o Direito Penal, aqui tratado, ora corresponderá à Dogmática Jurídica – ciência do Direito –, ora significará o conjunto de normas jurídicas que prevêem infrações penais e respectivas sanções, inclusive normas que disciplinam a execução destas, sem olvidar das normas procedimentais que constituem o Direito Processual Penal. [02]

A Criminologia é a ciência que tem como objeto o comportamento desviante (crime) e o indivíduo que nele incide. Constitui também objeto de investigação desta ciência criminal o processo de elaboração da lei penal – motivação, conteúdo e efeitos – em face de uma determinada realidade social.

Na opinião de Paulo Queiroz:

O objeto, portanto, da criminologia já há algum tempo se ampliou sensivelmente, para nele se incluir, além do delito e do delinqüente, suas causas – paradigma causal-explicativo (ou etiológico-explicativo), próprio da criminologia positiva -, o estudo da vítima e, em especial, da reação e do controle social mesmo. Diferentemente, portanto, do direito penal, que é uma ciência do dever-ser (normativa), a criminologia é uma ciência do ser, empírica, baseada na análise e na investigação da realidade [...] [03]

Por sua vez, o Sistema Penal corresponde às normas reguladoras da atuação dos órgãos policiais, do Ministério Público, do Judiciário (o Estado-Juiz) e de administração penitenciária. O Sistema Penal aglutina as ações estatais que vão desde a investigação policial até a execução da pena.

Finalmente, a Política Criminal "constitui a sistematização das estratégias, táticas e meios de controle social da criminalidade, penais e não penais.". [04]

No tópico seguinte, passa-se a conhecer, em breves linhas, a relação entre a Dogmática Jurídica Penal e a Criminologia, pautando-se na exposição das Escolas que reuniram as teorias, pensamentos e ideologias mais significativos desses dois saberes, até os fundamentos das consideradas teorias críticas.

2.2 A Escola Clássica

A Escola Clássica tem sua base filosófica vinculada ao Direito Natural. Para Luiz Regis Prado, essa Escola tem os seguintes postulados basilares:

a) o Direito tem uma natureza transcendente, segue a ordem imutável da lei natural: O Direito é congênito ao homem porque foi dado por Deus à humanidade desde o primeiro momento de sua criação, para que ela pudesse cumprir seus deveres na vida terrena. O Direito é a liberdade. Portanto, a ciência criminal é o supremo código da liberdade, que tem por objeto subtrair o homem da tirania dos demais, e ajudá-lo a livrar-se da tirania de si mesmo e de suas paixões. O Direito Penal tem sua gênese e fundamento na lei eterna da harmonia universal; b) o delito é um ente jurídico, já que constitui a violação de um direito. É dizer: o delito é definido como infração. Nada mais é que a relação de contradição entre o fato humano e a lei. [05]

O crime passa a ser observado com maior objetividade. No que se refere ao jus puniendi, ou direito de punir, a ideologia regente assentava-se na racionalização, buscando propiciar, em última instância, "garantias" ao indivíduo perante o poder absoluto até então vigente.

Por outro lado, aos indivíduos, independente de serem "normais" cabia a escolha de delinqüir, ou não. A responsabilidade por seus atos, por conseguinte, passaria a depender da violação consciente e voluntária da norma penal.

Em sua narrativa, Alessandro Baratta assim comenta essa fase, sob o aspecto da finalidade do direito penal e da cominação da pena:

Como comportamento, o delito surgia da livre vontade do indivíduo, não de causas patológicas, e por isso, do ponto de vista da liberdade e da responsabilidade moral pelas próprias ações, o delinqüente não era diferente, segundo a Escola clássica, do indivíduo normal. Em conseqüência, o direito penal e a pena eram considerados pela Escola Clássica não tanto como meio para intervir sobre o sujeito delinqüente, modificando-o, mas sobretudo como instrumento legal para defender a sociedade do crime, criando, onde fosse necessário, um dissuasivo, ou seja, uma contramotivação em face do crime. Os limites da cominação e da aplicação da sanção penal, assim como as modalidades de exercício do poder punitivo do Estado, eram assinalados pela necessidade ou utilidade da pena e pelo princípio da legalidade. [06]

Como se sabe, Cesare Bonesana (Marquês de Beccaria) e Francesco Carrara se notabilizaram como dois dos mais representativos teóricos do Classicismo.

Beccaria, com a sua obra-prima "dos delitos e das penas", foi o grande responsável pela idealização das bases humanitárias do denominado moderno Direito Penal Liberal.

Da idéia da divisão de poderes e dos princípios humanitários iluministas, de que é expressão o livro de Beccaria, derivam, pois, a negação da justiça de gabinete, própria do processo inquisitório, da prática da tortura, assim como a afirmação da exigência de salvaguardar os direitos do imputado por meio da atuação de um juiz obediente,não ao executivo, mas à lei. [07]

Quanto à contribuição de Carrara, frisa-se a análise lógico-formal do delito, além da formulação teórica relativa ao surgimento do paradigma da defesa social.

Esse pensamento tem importantes reflexos na teorização da finalidade da pena, conforme a narrativa de Alessandro Baratta:

A distinção entre consideração jurídica do delito e consideração ética do indivíduo torna-se, pois, a base da qual parte Carrara para proceder a uma nova afirmação da tese de que a função da pena é, essencialmente, a defesa social. O fim da pena não é a retribuição - afirma Carrara - nem a emenda, mas a eliminação do perigo social que sobreviria da impunidade do delito. A emenda, a reeducação do condenado, pode ser um resultado acessório e desejável da pena, mas não sua função social, nem o critério para sua medida. [08]

Nas ciências, o período clássico do saber penal foi marcado pelo predominíno do método lógico-abstrato ou dedutivo.

Ressalta-se que o momento histórico no qual se insere a Escola Clássica indicava a transição da ordem feudal do Estado absolutista para o Estado de Direito Liberal, cuja orientação econômica, posteriormente, será ditada pelo sistema capitalista de produção e distribuição.

2.3 A Escola Positivista (paradigma etiológico)

O momento histórico marcante desse movimento está relacionado à passagem do Estado Liberal para o Estado intervencionista na ordem econômica e social.

No que concerne às formulações teóricas ocorridas naquele período, tem-se que o crime passa a ser definido como fato natural e social.

Em contraponto à Escola Clássica, o criminoso não é aquele que, voluntária e livremente, viola a norma penal, mas, sobretudo, é o indivíduo que possui personalidade perigosa.

Na visão daqueles que se filiavam às idéias da Escola positivista, o crime é determinado por fatores biológicos, psíquicos, físicos e sociais que caracterizam uma minoria perigosa – delinqüente –, em contraste com uma maioria "normal".

No tocante às idéias que distanciavam os pensadores positivistas dos clássicos, pontifica Baratta:

O delito é, também para a Escola positiva, um ente jurídico, mas o direito que qualifica este fato humano não deve isolar a ação do indivíduo da totalidade natural e social.

A reação ao conceito abstrato de indivíduo leva a Escola positiva a afirmar a exigência de uma compreensão do delito que não se prenda à tese indemonstrável de uma causação espontânea mediante um ato de livre vontade, mas procure encontrar todo o complexo das causas na totalidade biológica e psicológica do indivíduo, e na totalidade social que determina a vida do indivíduo. [09]

Destarte, o paradigma etiológico é também considerado como o paradigma da defesa social.

Para os positivistas, a responsabilidade penal assume, pois, uma dimensão de responsabilidade social.

Relativamente às ciências criminais, anota-se o predomínio do método indutivo (experimental), baseado na medição, neutralidade e causalidade.

No período assinalado como positivista, têm proeminência as obras de Cesare Lombroso (Do Criminoso Nato) e de Enrico Ferri, com sua antropologia criminal – multifatorialismo causal (físico, biológico e social) do crime.

Eis o comentário de Vera Regina Pereira de Andrade:

Desenvolvendo a Antropologia lombrosiana numa perspectiva sociológica, Ferri admitiu, por sua vez, uma tríplice série de causas ligadas à etiologia do crime: individuais (orgânicas e psíquicas), físicas (ambiente telúrico) e sociais (ambiente social) e, com elas, ampliou a originária tipificação lombrosiana da criminalidade. [10]

Em paralelo à Escola Clássica, os positivistas acabaram expondo o antagonismo entre os elementos individual e o social; a razão e a realidade (racionalismo x empirismo).

A cominação e a aplicação da pena se constituem instrumentos de defesa social. Logo, de acordo com os princípios dessa Escola, o direito estatal de punir encontra fundamento na responsabilidade social do delinqüente.

No tocante ao paradigma etiológico, é importante gizar que a Criminologia é considerada ciência causal-explicativa do fenômeno da criminalidade.

Ademais, partindo da premissa de que as teorias críticas não estariam livres de aperfeiçoamento e considerando-se algumas soluções isoladas – compartimentadas – por ela oferecidas, Alessandro Baratta reconhece outro importante estágio na evolução das ciências criminais, que denomina fase neoclássica.

São suas palavras:

[...] no âmbito da práxis teórica penal pode surgir somente um novo modelo, em que a relação entre ciência social e discurso dos juristas não é mais a relação entre duas ciências, mas uma relação entre ciência e técnica. Por técnica jurídica se entende, com efeito, a preparação de instrumentos legislativos (técnica legislativa), interpretativos e dogmáticos em vista de finalidades e de opções político-criminais conscientemente perseguidas no âmbito da correção lógico-argumentativa e da discricionariedade valorativa atribuída ao jurista, nestes diversos níveis da própria atividade, pelo sistema jurídico-político. [11]

Na atual fase de desenvolvimento da sociedade capitalista, o interesse das classes subalternas é o ponto de vista a partir do qual se coloca uma teoria social comprometida, não na conservação, mas na transformação positiva, ou seja, emancipadora da realidade social. O interesse das classes subalternas e a força que elas são capazes de desenvolver são, de fato, o momento dinâmico material do movimento da realidade. [12]

Portanto, lado a lado, seguiriam o jurista e o cientista social conciliando teoria e práxis social, tudo em prol de uma nova visão emancipadora para a teoria penal.

2.4 Evolução do saber criminológico

Tendo em vista que a presente monografia tem como premissas os fundamentos que dão suporte à Criminologia Crítica, buscar-se-á trazer à colação algumas das idéias desenvolvidas pelo pensamento filiado àquele movimento, cotejando-as com os objetivos formulados nesta pesquisa.

Antes, porém, será feita uma descrição panorâmica dos paradigmas mais influentes desse saber, iniciando-se pelo modelo etiológico ou biopsicológico (teoria causal-explicativa ou positivista).

A Criminologia positivista incorpora a projeção do determinismo biopsicológico e social na realização do delito, isto é, o comportamento desviante seria determinado pelas condições biopsicológicas e sociais do indivíduo. Daí, portanto, o conceito da Criminologia como ciência causal-explicativa.

Consoante explicação de Vera Andrade:

O pressuposto, pois, de que parte a Criminologia positivista é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. Sendo a criminalidade esta realidade ontológica, preconstituída ao Direito Penal (crimes "naturais") que, com exceção dos chamados crimes "artificiais", não faz mais do que reconhecê-la e positivá-la, seria possível descobrir as suas causas e colocar a ciência destas a serviço do seu combate em defesa da sociedade. [13]

Registre-se que o paradigma etiológico corresponde ao esplendor da Antropologia Criminal e da Sociologia Criminal, desenvolvidas por Cesare Lombroso e Enrico Ferri.

Vale a pena anotar o ensinamento de Vera Andrade. Diz a autora, ipsis litteris:

A primeira e célebre resposta sobre as causas do crime foi dada pelo médico italiano Lombroso, que sustenta, inicialmente, a tese do criminoso nato: a causa do crime é identificada no próprio criminoso. Partindo do determinismo biológico (anatômico-fisiológico) e psíquico do crime e valendo-se do método de investigação e análise próprio das ciências naturais (observação e experimentação), procurou comprovar sua hipótese através da confrontação de grupos não-criminosos com criminosos dos hospitais psiquiátricos e prisões, sobretudo do sul da Itália, pesquisa na qual contou com o auxílio de Ferri, que sugeriu, inclusive, a denominação "criminoso nato". [14]

A partir dessas teorias, amplia-se, então, no meio científico e também no imaginário do senso comum, a concepção maniqueísta: de um lado, a sociedade formada por homens de bem, de outro, uma minoria constituída por homens maus, os criminosos.

Ressalte-se que, no âmbito da concepção positivista, a função da pena suplantaria o caráter retributivo, constituindo um verdadeiro meio de "defesa social" visando à recuperação do indivíduo criminoso – ressocialização.

A partir desta noção, são desenvolvidas as teorias legitimadoras do jus puniendi, que ocupam ainda hoje posição de destaque no roteiro dogmático, notadamente as chamadas teorias relativas da prevenção especial.

A defesa social, portanto, passa a ser ponto nuclear para a ciência positivista.

Neste jaez, repita-se, as idéias gestadas na Dogmática Jurídica Penal eram transportadas diretamente para a Criminologia, que acabava por reproduzir o modo de pensar próprio do Direito Penal positivo.

Por conseguinte, possuíam no seu campo de observação as causas e os efeitos do evento criminoso, mas com uma característica emblemática, qual seja, o objeto é dado, pré-constituído, revelado pelo próprio Sistema Penal.

É como registra Vera Andrade no seguinte comentário:

As representações do determinismo / criminalidade ontológica / periculosidade / anormalidade / tratamento / ressocialização se complementam num círculo extraordinariamente fechado, conformando uma percepção da criminalidade que se encontra, há um século, profundamente enraizada nas agências do sistema penal e senso comum da sociedade. E porque revestida de todas as representações que permitiriam consolidar uma visão profundamente estereotipada do criminoso - associada à clientela da prisão e, portanto, aos baixos estratos sociais – serviu para consolidar, muito mais do que um conceito, um verdadeiro (pre) conceito sobre a criminalidade. [15]

Com efeito, o paradigma etiológico – da defesa social – vem sendo alvo de intensos questionamentos, notadamente pelas contradições estruturais que envolvem o Sistema Penal dogmático, no qual se apóia.

Atualmente, vem conquistando relevo científico o paradigma da reação social, escudado pela teoria do labelling approach.

No dizer de Alessandro Baratta:

Os criminólogos tradicionais examinam problemas do tipo "quem é criminoso?", "como se torna desviante?", "com que meios se pode exercer controle sobre o criminoso? Ao contrário, os interacionistas, como em geral os autores que se inspiram no labelling approach, se perguntam: "quem é definido como desviante?", "que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?", "em que condições este indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?" e, enfim, "quem define quem?". [16]

Em contraste com o paradigma da defesa social, de caráter positivista, a teoria do labelling approach é também referida como teoria do etiquetamento, ou como paradigma da reação social, ou da "definição". [17]

De acordo com a teoria do etiquetamento, a definição de crime (desvio) se afasta do determinismo, que caracteriza o modelo eminentemente etiológico, para relacionar-se a um duplo processo de definição e de seleção.

Vera Andrade explica:

[...] o labelling parte dos conceitos de "conduta desviada" e "reação social", como termos reciprocamente interdependentes, para formular sua tese central: a de que o desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e seleção. [18] (grifo nosso).

Para Alessandro Baratta:

Esta direção de pesquisa parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de delinqüente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como "delinqüente". Neste sentido, o labeling approach tem se ocupado principalmente com as reações das instâncias oficiais de controle social, consideradas na sua função constitutiva em face da criminalidade. [19] (grifo do autor).

Acentuando um dos aspectos distintivos inerentes à metodologia científica da teoria do etiquetamento, pontifica Vera Andrade:

Ao afirmar que a criminalidade não tem natureza ontológica, mas social e definitorial e acentuar o papel constitutivo do controle social na sua construção seletiva, o labelling desloca o interesse cognoscitivo e a investigação das "causas" do crime e, pois, da pessoa do autor e seu meio e mesmo do fato-crime, para a reação social da conduta desviada, em especial para o Sistema Penal. [20]

Portanto, sob a égide do paradigma da reação social, ocorre o deslocamento do objeto de estudo da Criminologia: do indivíduo criminoso para o indivíduo "criminalizado", "etiquetado" pelo Sistema Penal.

2.5 Fundamentos da Criminologia Crítica

Como já observado, transcendendo os limites impostos pelo paradigma positivista, a Criminologia Crítica, precipuamente através do paradigma da reação social, passa a ter objeto próprio, cuja investigação evidencia a contradição de dogmas capitais erigidos, ao longo de séculos, pelo Direito Penal positivado.

No que tange à compreensão da criminalidade e à descoberta de soluções para o seu controle, esse novel modelo surge a partir do esgotamento do paradigma etiológico.

De outro modo, pode-se dizer que se passou a construir, em bases científicas sólidas, um novo arcabouço teórico que buscasse conhecer, sem escamoteamento, os reais fatores da criminalidade, desfazendo, então, o círculo vicioso gerado pela Dogmática.

Assim sendo, começa-se a questionar, entre outros, o dogma da aplicação "igualitária" da lei penal, bastante caro à ciência do Direito Penal.

Outra incoerência constatada no âmbito do Sistema Penal brasileiro refere-se ao rompimento da legalidade pelas respectivas agências estatais. Como conseqüência da arbitrariedade cometida pelo Sistema Penal, as prisões, em particular, oferecem-nos um cenário do grotesco desrespeito aos direitos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e nas próprias normas atinentes ao direito material e processual penal.

Eugenio Raúl Zaffaroni afirma:

O sistema penal não respeita a legalidade porque, para o verdadeiro e fundamental exercício de poder (o exercício de poder positivo configurador disciplinante), a própria lei se ocupa de renunciar à legalidade, concedendo amplíssima margem de arbitrariedade a suas agências. [21]

O que existe, na realidade, é um intransponível fosso entre aquilo que é apregoado pelo sistema e o que, de fato, ele pratica. Conforme veremos, adiante, o Direito Penal adota discursos aparentes e discursos reais.

Assim, é razoável, desde logo, inferir-se que, em parelha com a falácia da "igualdade", segue a falácia do "cumprimento da lei" relativamente à cominação e à aplicação da pena.

Nesse contexto, para a Criminologia Crítica, surge a representação de que o Sistema Penal em vigor é essencialmente seletivo.

Tal seletividade desponta como aspecto fundamental, que explica sua singular estrutura lógica, operacional e ideológica.

Por esta e outras razões, vêm sendo reconhecidas as contribuições das denominadas teorias críticas, em especial, da teoria do etiquetamento (labelling approach).

Observa Alessandro Baratta, ao considerar a "irreversibilidade do ‘labelling approach’ na teoria e no método da sociologia criminal":

[...] é certo que as teorias da criminalidade baseadas no labelling approach conduziram a resultados que, em certo sentido, são irreversíveis. De fato, em certos aspectos, estas teorias sacudiram os fundamentos da ideologia penal tradicional. Desta ideologia, colocaram em discussão, principalmente, o elemento que, no capítulo II, denominamos princípio de igualdade, posto que demonstraram que a criminalidade, segundo a sua definição legal, não é o comportamento de uma minoria, mas da maioria dos cidadãos e que, além disso, segundo a sua definição sociológica, é um status atribuído a determinados indivíduos por parte daqueles que detêm o poder de criar e de aplicar a lei penal, mediante mecanismos seletivos, sobre cuja estrutura e funcionamento a estratificação e o antagonismo dos grupos sociais têm uma influência fundamental. [22] (grifo nosso).

No dizer de Vera Andrade:

A criminologia crítica recupera, portanto, a análise das condições objetivas, estruturais e funcionais que originam, na sociedade capitalista, os fenômenos de desvio, interpretando-os separadamente, conforme se tratem de condutas das classes subalternas ou condutas das classes dominantes (a chamada criminalidade de colarinho branco, dos detentores do poder econômico e político, a criminalidade organizada etc.). [23]

2.6 A seletividade do Sistema Penal

No âmbito da Dogmática Penal, proclama-se que a atuação do Sistema Penal está moldada para reprimir toda e qualquer criminalidade.

Entretanto, não é difícil entender, conforme alertam os críticos, que esse propósito é inteiramente utópico, porque impossível a persecução e aplicação de pena a todos aqueles que incidem nas condutas ilícitas tipificadas na lei.

Para Zaffaroni:

Se o sistema penal tivesse realmente o poder criminalizante programado ‘provocaria uma catástrofe social’.

Diante da absurda suposição - não desejada por ninguém absolutamente - de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis. [24](grifo do autor).

Portanto, com fulcro nos argumentos da Criminologia Crítica, principalmente aqueles coerentes com o paradigma da reação social, já se pode constatar que, do universo de delitos efetivamente alcançado pelo Sistema Penal, apenas uma parcela criteriosamente selecionada, será alvo do programado tratamento repressivo e punitivo do Estado.

Refutando o discurso oficial da Dogmática Penal, pode-se afirmar com Vera Andrade que:

A correção fundamental desta distribuição estatística e explicação etiológica da criminalidade é a de que a criminalidade, além de ser uma conduta majoritária, é ubíqua, ou seja, presente em todos os estratos sociais. O que ocorre é que a criminalização é, com regularidade, desigual ou seletivamente distribuída pelo sistema penal. Desta forma, os pobres não têm uma maior tendência a delinqüir, mas sim a serem criminalizados. De modo que à minoria criminal da Criminologia positivista opõe-se a equação maioria criminal x minoria pobre regularmente criminalizada. [25]

Em conformidade com as teorias críticas, a doutrina traz várias classificações, quando leva em conta o caráter seletivo de definição e de aplicação da lei penal.

Assim, tem-se que a seletividade primária se dá na fase de edição e de aprovação da lei criminal a cargo do órgão legislador.

Em outra ponta, a seletividade secundária do Sistema Penal atua na determinação, em geral, das ações promovidas pelas agências estatais incumbidas da repressão e da aplicação da lei incriminadora, que são os órgãos policiais (inclusive penitenciários), o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Relativamente à seletividade primária (ou formal), acrescenta-se a benfazeja opinião de Alessandro Baratta, para quem:

No que se refere ao direito penal abstrato (isto é, à criminalização primária), isto tem a ver com os conteúdos, mas também com os "não-conteúdos" da lei penal. O sistema de valores que neles se exprime reflete, predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa – individualista, dando a máxima ênfase à proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados. Basta pensar na enorme incidência de delitos contra o patrimônio na massa da criminalidade, tal como resulta da estatística judiciária, especialmente se se prescinde dos delitos de trânsito. Mas a seleção criminalizadora ocorre já mediante a diversa formulação técnica dos tipos penais e a espécie de conexão que eles determinam com o mecanismo das agravantes e das atenuantes (é difícil, como se sabe, que se realize um furto não "agravado"). [26] (grifo nosso).

Os critérios que influenciam a seleção criminal são de natureza estrutural e seguem a lógica de distribuição de bens utilizada nos sistemas econômicos fundeados no modelo capitalista. Entretanto, de forma paradoxal, a divisão dos bens e privilégios se dá de modo "inversamente" proporcional ao status de delinqüente – bens negativos.

Afirma Vera Andrade:

Em suma, como conclui Sack, a criminalidade (a etiqueta de criminoso) é um "bem negativo" que a sociedade (controle social) reparte com o mesmo critério de distribuição de outros bens positivos (o status social e o papel das pessoas: fama, patrimônio, privilégios, etc.), mas em relação inversa e em prejuízo das classes sociais menos favorecidas. Criminalidade é o exato oposto dos bens positivos (do privilégio). E, como tal, é submetida a mecanismos de distribuição análogos, porém em sentido inverso à distribuição destes. [27]

Outro aspecto a realçar é ocorrência das chamadas cifras "negras" da criminalidade, a par do processo seletivo engendrado pelo Sistema Penal. Tais cifras, não contempladas nas estatísticas criminais tradicionalmente produzidas, dizem respeito aos delitos – em termos quantitativos ou qualitativos – que o Sistema não consegue alcançar.

2.7 Estigmatização x imunização

À luz da Criminologia Crítica, é certo que o fenômeno da seletividade, na prática, acarreta conseqüências desastrosas aos indivíduos alcançados pela repressão penal. Isto se evidencia, em particular, na estigmatização provocada pela criminalização.

Em nosso país, secularmente imerso em profundas desigualdades sociais, os indivíduos dos estratos sociais inferiores compõem a parcela mais vulnerável. Por outro lado, o sistema não esconde a imunização que promove e que privilegia a parcela mais favorável – diga-se de passagem, com elogiável eficiência.

Portanto, se o Sistema Penal não consegue ou não pode cumprir com aquilo a que se propõe, ou seja, a repressão, por igual, das condutas humanas penalmente relevantes, ofensivas dos bens jurídicos fundamentais, vislumbra-se, por conseguinte, uma exuberante vulnerabilidade de indivíduos pertencentes às classes sociais subalternas – em geral, indivíduos do sexo masculino, "não brancos", analfabetos ou com baixa instrução escolar. [28]

Em contraposição, constata-se uma extraordinária imunização de determinados indivíduos, detentores, em regra, de poderio político, econômico ou mesmo científico; em resumo, os mais bem situados na escala social.

Opondo-se ao mito da igualdade do Direito Penal, Alessandro Baratta, relaciona as seguintes proposições:

a)o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário;

b)a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos;

c)o grau efetivo de tutela e de distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade. [29]

Com efeito, na seara da Criminologia Crítica, criminalidade e criminalização, encerram conceitos distintos. A primeira corresponde a uma realidade genérica. Quem, por exemplo, nunca cometeu um furto, um ato ofensivo aos costumes, uma fraude de qualquer tipo, inclusive fiscal? Já a criminalização resulta de um orquestrado processo de seleção entre os indivíduos integrantes especialmente das classes destituídas de privilégios, sejam estes quais forem.

Nas precisas palavras de Vera Andrade:

A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a "definição" legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal, e a "seleção" que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas. [30]

A clientela do sistema penal é constituída de pobres (minoria criminal) não porque tenha uma maior tendência a delinqüir, mais precisamente porque tem maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinqüentes. [31]

Em outras palavras, mas convergente com a idéia ora exposta, é o que se dessume da seguinte declaração de Michel Foucault, ao estremar os fenômenos da ilegalidade e da delinqüência, evidenciando a função estratégica do cárcere. Diz o autor:

A lei e a justiça não hesitam em proclamar sua necessária dissimetria de classe.

Se tal é a situação, a prisão, ao aparentemente "fracassar", não erra seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade, que ela permite separar, pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável. Ela contribui para estabelecer uma ilegalidade, visível, marcada, irredutível a um certo nível e secretamente útil – rebelde e dócil ao mesmo tempo; ela desenha, isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras, mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar. Essa forma é a delinqüência propriamente dita. Não devemos ver nesta a forma mais intensa e mais nociva da ilegalidade, aquela que o aparelho penal deve mesmo tentar reduzir pela prisão por causa do perigo que representa; ela é antes um efeito da penalidade (e da penalidade de detenção) que permite diferenciar, arrumar e controlar as ilegalidades. Sem dúvida a delinqüência é uma das formas da ilegalidade; em todo caso, tem suas raízes nela; mas é uma ilegalidade que o "sistema carcerário", com todas as suas ramificações, investiu, recortou, penetrou, fechou num meio definido e ao qual deu um papel instrumental, em relação às outras ilegalidades. [32] (grifo nosso).

Ainda atinente à problemática da criminalização x criminalidade, encontra-se uma outra análise, na obra de Alessandro Baratta, na qual o autor faz referência a um second code (segundo código) - que "regula" a aplicação da lei penal pelos órgãos oficiais de persecução.

Vera Andrade afirma:

Os conceitos de second code e basic rules conectam precisamente a seleção operada pelo controle penal formal com o controle social informal, mostrando como os mecanismos seletivos presentes na sociedade colonizam e condicionam a seletividade decisória dos agentes do sistema penal num processo interativo de poder entre controladores e controlados (público), perante o qual a assepsia da Dogmática Penal para exorcizá-los assume toda a extensão do seu artificialismo, pois, reconduzido ao controle social global, o sistema penal aparece como filtro último e uma fase avançada de um processo de seleção que tem lugar no controle informal (família, escola, mercado de trabalho), mas os mecanismos deste atuam também paralelamente e por dentro do controle penal. [33]

Outrossim, conforme conclui Alessandro Baratta, vige uma relação direta entre estigmatização e "reincidência penal" originando autênticas "carreiras criminosas".

São suas palavras:

A particular expectativa de criminalidade que dirige a atenção e a ação das instâncias oficiais especialmente sobre certas zonas sociais já marginalizadas faz com que, em igualdade de percentual de comportamentos ilegais, se encontre nelas um percentual enormemente maior de comportamentos ilegais, em relação a outras zonas sociais. Um número desproporcionado de sanções estigmatizantes (penas detentivas), que comportam a aplicação de definições criminais e uma drástica redução do status social se concentra, assim, nos grupos mais débeis e marginalizados da população. [34]

Enfim, a estigmatização se revela como o verso da "moeda" da seletividade, na qual a outra face estampa a imunização penal. Aliás, o status da imunização é bastante peculiar aos denominados criminosos de "colarinho branco", entre os quais comumente se enquadram aqueles que sonegam tributos. É o que se verá a seguir.

2.8 Crimes de "colarinho branco"

A conhecida expressão, normalmente atribuída aos ilícitos cometidos por pessoas de elevada posição social, econômica ou política, tem sua origem nos estudos realizados pelo sociólogo Edwin H. Sutherland. [35]

Em sua teoria, Sutherland se utiliza de argumentos que contrariam as conclusões/implicações da teoria funcionalista elaborada anteriormente por Robert Merton.

Por sua vez, ao tentar explicar a criminalidade vicejante nos estratos sociais mais baixos, Merton esboça, em linhas gerais, que o desvio está associado às oportunidades (e metas) atribuídas aos indivíduos no sentido de ascender na escala social. [36]

Em outras palavras, o esforço daqueles que estivessem em degrau socialmente inferior seria muito maior, a fim de alcançar um status mais elevado, por conseguinte, seria aceitável o desvio por parte desses indivíduos, porém, dentro de certos limites (delinqüência inovadora).

Acerca do assunto, explana Alessandro Baratta:

O modelo de explicação funcionalista proposto por Merton, portanto, consiste em reportar o desvio a uma possível contradição entre estrutura social e cultura: a cultura, em determinado momento do desenvolvimento de uma sociedade, propõe ao indivíduo determinadas metas, as quais constituem motivações fundamentais do seu comportamento (por exemplo, um certo nível de bem-estar e de sucesso econômico). Proporciona, também, modelos de comportamento institucionalizados, que resguardam as modalidades e os meios legítimos para alcançar aquelas metas. Por outro lado, todavia, a estrutura econômico-social oferece aos indivíduos, em graus diversos, especialmente com base em sua posição nos diversos estratos sociais, a possibilidade de acesso às modalidades e aos meios legítimos para alcançar as metas. [37]

Quanto aos desvios perpetrados pelos indivíduos situados nas camadas sociais mais elevadas, a teoria de Merton não é conclusiva, já que em relação a esses aspectos é falha a teoria da delinqüência inovadora.

É nesse vazio, porém, que se projeta a pesquisa de Sutherland, pois, aproveitando-se dos dados colhidos por Merton, acabou por evidenciar as cifras negras da criminalidade, haja vista que, com raras exceções, os indivíduos mais abastados não fazem parte das populações carcerárias. Sutherland, então, formula sua teoria da "associação diferencial".

Explica Baratta, [38] aludindo à teoria de Merton, que "a criminalidade, como qualquer outro modelo de comportamento, se aprende – aprendizagem de fins e de técnicas –, conforme contatos específicos aos quais está exposto o sujeito no seu ambiente social e profissional."

Ainda de acordo com Alessandro Baratta pode-se dizer que:

As malhas dos tipos são, em geral, mais sutis no caso de delitos próprios dos das classes sociais mais baixas do que no caso de delitos de "colarinho branco". Estes delitos, também do ponto de vista da previsão abstrata, têm uma maior possibilidade de permanecerem imunes. [39]

Como nos faz ver a Criminologia Crítica, os criminosos de "colarinho branco", em verdade, são apenas uma faceta alegórica decorrente do processo seletivo que, de fato, imuniza certos indivíduos relativamente às agruras do cárcere.

2.9 Funções declaradas e reais do Sistema Penal

O Direito Penal, da forma em que se apresenta, notabiliza-se por suas funções declaradas – um sistema que visa proteger bens jurídicos fundamentais – e por suas funções reais ou "não" declaradas, uma configuração vista por alguns como autêntico instrumento de manutenção do status quo.

Assevera Alessandro Baratta, em reflexão acerca da manutenção do status quo (função latente do Sistema Penal):

O aprofundamento da relação entre direito penal e desigualdade conduz, em certo sentido, a inverter os termos em que esta relação aparece na superfície do fenômeno descrito. Ou seja: não só as normas do direito penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdade existentes, mas o direito penal exerce, também, uma função ativa, de reprodução e de produção, com respeito às relações de desigualdade. Em primeiro lugar, a aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, e especialmente o cárcere, é um momento superestrutural essencial para a manutenção da escala vertical da sociedade. Incidindo negativamente, sobretudo no status social dos indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais baixos, ela age de modo a impedir sua ascenção social. Em segundo lugar, e está é uma das funções simbólicas da pena, a punição de certos comportamentos ilegais serve para cobrir um número mais amplo de comportamentos ilegais, que permanecem imunes ao processo de criminalização. Desse modo, a aplicação seletiva do direito penal tem como resultado colateral a cobertura ideológica desta mesma seletividade. [40] (grifo nosso).

O debate em torno dessas funções, declaradas ou reais, inclui também a propalada função simbólica que seria exercida pelo Direito Penal, embora seja considerada aqui numa acepção diferente da que usualmente lhe é atribuída.

Segundo explica Vera Andrade:

Afirmar assim que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções latentes predominam sobre as declaradas não obstante a confirmação simbólica (e não empírica) destas. A função simbólica é assim inseparável da instrumental à qual serve de complemento e sua eficácia reside na aptidão para produzir um certo número de representações individuais ou coletivas, valorizantes ou desvalorizantes, com função de "engano". [41]

No que toca ao controle formal exercido pelo Direito Penal (Dogmática), Vera Andrade alerta que "a radiografia interna dos sistemas penais é, também, uma radiografia direta e um testemunho definitivo do profundo déficit histórico de cumprimento da função instrumental racionalizadora / garantidora prometida pela Dogmática Penal [...]". [42]

No processo de seleção desencadeado pelo sistema, a mídia exerce um papel de capital importância na difusão das idéias e do simbolismo do Direito Repressivo positivo, nos moldes em que esse vem sendo justificado pela Dogmática.

Nesse compasso, o que chega à opinião pública, é também cuidadosamente "filtrado" de modo a apresentar um Sistema Penal com "reais" possibilidades de ser justo e eficiente.

Para a opinião reinante no senso comum, pouco importa se a atuação das agências estatais é voltada, quase que exclusivamente, para determinados setores da sociedade. A festejada presença (ostensiva) da polícia nas ruas e a edição de leis penais mais severas são suficientes para satisfazer ao clamor popular por mais segurança.

A mídia, portanto, se coloca a serviço do Sistema Penal, quando exibe em programas sensacionalistas casos que envolvem, via de regra, delitos contra a vida e contra o patrimônio individual, provocando intencionalmente um falso alarma de aumento da violência, ao mesmo tempo em que contribui para tornar "legítima" a ação repressora do Estado. [43]

Por isso, é tão comum e previsível o discurso de autoridades que clamam por mais recursos humanos e materiais, sob a alegação de um eficiente combate à criminalidade.

Aliás, não se poderia esperar algo diferente, em se tratando da ligação umbilical entre burguesia e liberdade individual/propriedade, valores que remontam aos ideais iluministas da Revolução Francesa, cuja tutela, prioritária, caberia, em maior ou menor grau, ao Direito Penal.

Os meios de comunicação são igualmente parciais, quando divulgam, de preferência em horários ditos "nobres", os cada vez mais crescentes índices que medem os níveis de violência e, em conseqüência, a necessidade, sempre premente, da edição de leis penais mais "duras".

Em verdade, com esse comportamento, a mídia assume um papel preponderante, já que de caráter estrutural, no mascaramento da ação seletiva do Sistema Penal.

Indo além, Vera Andrade explica que o agigantamento da "resposta" penal serve também para encobrir o vazio de "respostas" decorrente da globalização.

Em suas argutas palavras:

A mídia encarrega-se de encenar, entre o misto do drama e do espetáculo, uma sociedade comandada pelo banditismo da criminalidade, e de construir um imaginário social amedrontado. À mídia incumbe acender os holofotes, seletivamente, sobre a expansão da criminalidade e firmar o jargão da necessidade de segurança pública como o senso mais comum do nosso tempo. Como o elo mais compulsivo que unindo Nós contra o Outro (Outsiders) agiganta por sua vez a dimensão do inimigo criminalidade. Este inimigo, tornado cenicamente maior que todos os demais, concorre para invisibilizar o enredo do poder que subjaz à força simbólica do maniqueísmo, punitivamente reapropriado, e concorre para invisibilizar, em definitivo, que quem se expande não é, propriamente, a criminalidade ( prática de fatos definidos como crimes) mas a criminalização (definições de crime e etiquetamento seletivo de criminosos pelo sistema penal), que a co-constitui e produz. [44] (grifo nosso).

Finalmente, e após a exposição de algumas das idéias trazidas pela Criminologia Crítica, pretende-se demonstrar que o tema relacionado a esta pesquisa (crimes de sonegação fiscal) pode ser analisado sob outros prismas, como uma alternativa ao "formato" proposto pela Dogmática Penal.

Propõe-se uma nova leitura da Lei nº 8.137/90 e suas especiais e polêmicas disposições normativas, que, praticamente, inviabilizam o combate da referida modalidade criminosa, ao tempo em que reafirma, no mais alto grau, o atributo da seletividade que reveste o Sistema Penal em vigor.

Nos capítulos seguintes, apresenta-se uma "exposição abrangente", em geral, dos institutos da Dogmática Jurídica atinentes a esses ilícitos e, em particular, da hipótese específica de extinção da punibilidade, através do pagamento do tributo – reparação do dano.

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Sobre o autor
Nagib Abrahão Duailibe Neto

Mestrando no Programa de Mestrado e Doutorado em Ciência Jurídica da UNIVALI (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUAILIBE NETO, Nagib Abrahão. A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.: Mínima intervenção do direito penal ou concretização de sua seletividade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2296, 14 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13648. Acesso em: 25 abr. 2024.

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