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Ação civil pública contra doação de bem de uso comum do povo a entidade civil

Ação civil pública contra doação de bem de uso comum do povo a entidade civil

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O Município de São Paulo doou a uma entidade civil um terreno público, destinado a uso comum do povo, que estava destinado à construção de praças e vias públicas. Na seguinte ação civil pública, diversas associações de moradores ingressam com ação civil pública contra o Município e a entidade beneficiada, para anulação do ato. A peça foi enviada pelo advogado Marcus Vinícius Gramegna ([email protected]), de São Paulo.

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA _ VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA CAPITAL:

          SOCIEDADE AMIGOS DO JARDIM PETRÓPOLIS – SAJAPE, entidade civil sem fins lucrativos, legalmente constituída desde 03 de fevereiro de 1999, com sede nesta Capital, à Av. Vicente Rao, 776 (doc. 1), neste ato representada por sua presidente, Sra. Maria Cristina Almeida Antunes (doc. 2); SOCIEDADE AMIGOS DO BROKLIN VELHO – SABROVE, entidade civil sem fins lucrativos, legalmente constituída desde 12 de abril de 1994, com sede à Al. Barão de Triunfo, 550, cj. 61 (doc. 3), neste ato representada por seu Presidente, Sr. Fernando de Moura Campos (doc. 4); ASSOCIAÇÃO AMIGOS DO BROKLIN NOVO, entidade civil sem fins lucrativos, legalmente constituída desde 30 de setembro de 1998, com sede à rua Furnas, 128 (doc. 5), neste ato representada por sua presidente, Sra. Odete de Oliveira Battiferro (doc. 6); ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS E MORADORES DE MOEMA – AMAM, entidade civil sem fins lucrativos, legalmente constituída desde 23 de fevereiro de 1997, com sede à Av. Ceci, 1.070 (doc. 7), neste ato representada por sua presidente, Sra. Ligia V. F. Horta (doc. 8); SOCIEDADE AMIGOS DO ALTO DA BOA VISTA, entidade civil sem fins lucrativos, legalmente constituída desde 3 de novembro de 1980, com sede à Av. Adolfo Pinheiro, 2464, conj. 103 (doc. 9) neste ato representada por seu presidente, Sr. Johann Joerges (doc. 10); ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA GRANJA JULIETA E IMEDIAÇÕES, entidade civil sem fins lucrativos, legalmente constituída desde 20 de maio de 1996, com sede à rua Madre Rita Amada de Jesus, nº 155 (doc. 11), neste ato representado por seu Presidente, Sr. Walter Paciullo (doc. 12); todas por seu advogado infra assinado (docs. 13/18), vem à presença de V. Exa. para, com fulcro nos dispositivos da Lei 7.347/85, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, com pedido urgente de ordem liminar, contra o CONSELHO SUPERIOR PARA ASSUNTOS ISLÂMICOS NO BRASIL - CONSAIB, com sede à rua Barão de Jaguara nº 632, 2º andar, inscrito no CNPJ sob o nº 74.077.520/0001-39 e contra a PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, cujos procuradores, com poderes para receber citação, encontram-se á Av. Liberdade, 113, pelas razões de fato e de direito que passam a expor:


DOS FATOS

          A presente demanda versa sobre uma área de 37.000 m2 (trinta e sete mil metros quadrados), dividida em três áreas. A área I tem cerca de 8.120,00 m2 e situa-se entre a Rua Tombadouro e Breves e a Avenida Prof. Rubens Gomes de Souza; a área II tem cerca de 11.830,00 m2 e é delimitada pelas Avenida Prof. Gomes de Souza e Vicente Rao, Rua Breves, Praça Martin Luther King e viela sanitária; já a área III fica entre a Rua Breves e a Rua Tombadouro, entre a viela e a área de rua não-aberta. Existem ainda mais duas áreas previstas, uma com perímetro de 1.740 m2 que serviria de área destinada à viela e outra de 2.400 m2 destinada ao leito de rua não-aberto.

O parcelamento do solo que gerou a área em questão data de 1957 e formalizou-se com a concessão do alvará nº 10.436, datada do dia 17 de setembro do mesmo ano. A área objeto da presente demanda foi descrita em referido loteamento como "área livre", conforme cópia da planta oficial devidamente arquivada no competente registro de imóveis, cuja cópia segue em anexo (doc. 19).

Portanto, com a implantação do loteamento supra citado os espaços livres de uso comum (áreas verdes e institucionais – praças e parques, sistemas de circulação, ruas, equipamentos urbanos e comunitários) passaram a integrar o domínio público do Município de São Paulo na categoria de bens de uso comum do povo, sendo legalmente inalienáveis.

Com o passar dos anos a Prefeitura não se interessou em cuidar desta área pública. Apenas algumas árvores foram plantadas, mas há algum tempo nenhuma providência é tomada. A área encontra-se em péssimo estado de conservação, praticamente abandonada, conforme pode-se perceber pelas fotos tiradas do local (doc. 20), com a exceção de uma pequena área onde há vegetação original praticamente intocada. Trata-se uma grande extensão de terra não administrada que acaba por não servir ao interesse público ao qual se destina. A omissão da Municipalidade mostra-se clara, tanto na vigilância e no cuidado do bem público quanto na falta de planejamento associado a medidas eficazes que dessem uma real finalidade coletiva ao local.

Dentro do quadro descrito, algumas das Associações autoras, defensoras da preservação dos bairros circundantes, bem como da qualidade de vida de seus moradores, começaram a preocupar-se com a utilização deste domínio público, buscando o cumprimento do destino comunitário da gleba, para que a área pudesse servir melhor a sua finalidade pública e ser usufruída pela coletividade local, dentro da destinação para a qual foi originalmente criada, de acordo com o memorial descritivo do loteamento supra mencionado.

Diante dessa preocupação com a área, em conversações com os órgãos responsáveis pela manutenção do local, as autoras foram informadas pelo DEPAVE (Departamento de Áreas Verdes), órgão da própria Prefeitura do Município de São Paulo, que a empresa PBK – EMPREENDIMENTOS IMOBLIÁRIOS LTDA. havia se obrigado, em termo de ajustamento de conduta lavrado com o Ministério Público e homologado por sentença judicial, a realizar obras compensatórias dos danos ambientais que tal empresa teria ocasionado, razão pela qual respondeu o processo nº 1296/97 perante a 23º Vara Cível do Foro Central da Capital, processo esse no qual o termo de ajustamento de conduta foi homologado por sentença.

Tais danos ocasionados pela PBK, todavia, não guardam relação com a presente demanda. Aqui importa apenas que referido termo de ajustamento de conduta, cuja cópia segue em anexo (doc. 21), determinou a realização das obras de compensação ambiental e designou o DEPAVE para coordenar a execução da sentença judicial em questão, indicando, inclusive, o local em que tal compensação ambiental deveria ocorrer.

Diante dessa informação, as autoras vislumbraram uma solução para a correta ocupação da área, qual seja, a recuperação da mesma e construção de um parque lazer de acesso público e gratuito às expensas da empresa PBK, que atenderia dessa forma o cumprimento da decisão judicial em questão, bem como a destinação da área de acordo com o registrado no plano de loteamento. Além disso, a área atenderia uma carência de áreas verdes naquela região da cidade e serviria também para a implantação de um posto policial dentro do programa de policiamento comunitário desenvolvido pelo Governo Estadual, já que a Polícia Militar considerou o local como adequado para a implantação de referido posto. Parecia ser a solução perfeita.

Para que isso ocorresse, bastaria apenas a concordância do DEPAVE, que viu com bons olhos a idéia, mas informou às autoras a necessidade de aprovação da Administração Regional de Santo Amaro. Referida consulta, bem como o requerimento para que tal solução ocorresse, foi encaminhada por duas das associações autoras à Administração Regional de Santo Amaro (doc. 22).

Para espanto das autoras, todavia, em resposta a esse requerimento as mesmas foram informadas pelo Sr. Administrador Regional de Santo Amaro que tal pleito não poderia ser atendido em virtude da área ser utilizada como depósito de materiais pesados pela Administração Regional (doc. 23).

Constata-se aí mais um uso ilegal de áreas públicas pela Prefeitura, já que o local deve ser destinado para fins institucionais pela população indiscriminadamente, e não pela Municipalidade e seu corpo administrativo para fins diversos do estabelecido no plano original de loteamento. Não é plausível que uma área que deveria ser utilizada para o lazer da população e para o equilíbrio urbano e sua boa ambiência possa ser indevidamente apropriada pela Municipalidade. Todavia, como veremos adiante, há ilegalidades muito mais graves do que essa a serem reparadas na presente demanda, que chegam a beirar o incrível!!!!!

De fato, as autoras consideraram o motivo do indeferimento de seu requerimento um tanto quanto inusitado, pois desde o início das conversações sabia-se que uma pequena parte da área (lembre-se, a área possui 32.000 m2) era utilizada como depósito de materiais e esse fato nunca havia sido citado como obstáculo para que a área fosse transformada num parque de lazer com acesso público e gratuito. Assim, diligenciando por conta própria, algumas das associações que integram o pólo ativo da presente demanda dedicaram-se a investigar se haveria outros motivos para tal indeferimento, já que em princípio a idéia do parque parecia conveniente a todas as partes envolvidas (associações de bairro, Prefeitura e PBK). O que descobriram foi estarrecedor e constitui-se numa das maiores afrontas aos mais comezinhos princípios legais e jurídicos que se possa imaginar.

Com efeito, o que descobriram as autoras foi que duas das três áreas em que se subdivide o local foram "doadas" ao Conselho Superior para Assuntos Islâmicos no Brasil, através da Lei Municipal nº 11.799, de 9 de junho de 1995. (doc. 24). O artigo primeiro de tal diploma legal, pelo seu absurdo e inusitado teor, merece ser transcrito:

"art. 1º - Fica o executivo autorizado a ceder ao Conselho superior para Assuntos Islâmicos no Brasil – CONSAIB, independentemente de concorrência pública e pelo prazo de 50 (cinquenta) anos, o uso de áreas de propriedade municipal, situadas na Administração Regional de Santo Amaro, para o fim específico de neles edificar prédio, onde serão desenvolvidas atividades culturais, educacionais e assistenciais"

Portanto, o "presente" que se pretende ceder ao réu, sem concorrência pública e por cinquenta anos não é, ao contrário do que afirma o parágrafo primeiro da famigerada lei em questão, de propriedade municipal, e sim bem de uso comum do povo, que apenas é administrado pela Municipalidade. Deve-se notar, ainda, que o Sr. Administrador Regional de Santo Amaro em nenhum momento, na missiva que enviou às autoras, menciona tal fato e, pior ainda, a justificativa por ele utilizada para indeferir o pleito das autoras é absolutamente inconsistente, já que, se não poderia ser edificado um parque de lazer público no local por causa do depósito de carga pesada ali existente, muito menos poderia ser a área dada de presente para a ré. Em outros termos, porque o depósito serviria de empecilho para a instalação de um parque público de lazer e não serve de empecilho para que a área seja doada para a ré?

Mas não é só.

Percebendo a notória ilegalidade que havia sido cometida, já que não há como transferir um bem de uso comum do povo para um particular, editou-se a Lei 12.267 de 18 de dezembro de 1996 (doc. 25), que deu nova redação ao art. 2º da Lei anterior, cujo "caput" assim ficou redigido, por mais absurdo que tal redação possa parecer:

"art. 2º - As áreas referidas no artigo anterior, situadas entre as ruas Tombadouro e Breves e as Avenidas Professor Rubens Gomes de Souza, Vicente Rao e Praça Martim Luter King, em Santo Amaro, ficam desincorporadas da classe dos bens de uso comum do povo e transferidas para a de bens dominiais"

Como se não bastasse, na mesma lei novas áreas foram incluídas no presente que a Municipalidade graciosamente ofertou à ré. Em relação à Lei Municipal anterior, foram acrescidas as áreas denominadas "III", "IV" e "V", que estão descritas no corpo do diploma legal em comento. O mais absurdo é que, se observarmos o mapa oficial do local, já mencionado, as áreas "IV" e "V" foram previstas para a construção de uma viela e de uma rua, que jamais existiram de fato. Portanto, pasme V. Exa., além de presentear a ré com áreas livres para servir de bem de uso comum do povo, a Municipalidade presenteou a ré com uma área destinada à instalação de um equipamento público essencial para a infra estrutura urbana (uma viela) e com uma área destinada à abertura de uma rua!!!!!!!!!!! Custa a crer que tais fatos possam ocorrer em plena vigência do estado de direito.

Evidente, todavia, que tal alteração de redação do dispositivo em questão não pode dar a aparência de legalidade que os réus pretenderam, conforme se demonstrará adiante.

O curioso é que tais fatos são comemorados efusivamente pela ré no periódico que distribuem para comunidade islâmica (docs. 26/27), chegando mesma a saudar a cessão indevida e imoral de uma área pública como "uma vitória de Deus".

          Diante de tais fatos, as autoras organizaram um abaixo assinado, que conta com mais de 2.000 (duas mil) assinaturas, o que demonstra o desejo da população de usufruir da área como bem de uso comum do povo e a rejeição ao "presente" que foi dado pela Municipalidade ré à Associação ré. (doc. 28).

Desse procedimento arbitrário e altamente irregular resultou a escritura pública em anexo, tendo como outorgante a Prefeitura do Município de São Paulo e como outorgada a co-ré!!!!!!!!! Referida escritura de concessão administrativa de uso, obviamente altamente irregular, foi lavrada perante o 26º Tabelião de Notas de São Paulo, no livro 1656 (mil seiscentos e cinquenta e seis) página 339 (trezentos e trinta e nove) à página 443 (quatrocentos e quarenta e três, no dia 9 de dezembro de 1999 (doc. 29).

As ilegalidades de que tais benesses com o patrimônio público estão revestidas são evidentes e serão adiante demonstradas, uma a uma, nos tópicos seguintes da presente vestibular.

Ressalte-se, por fim, que uma das autoras efetuou denúncia junto à Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo antes da propositura da presente demanda (doc. 30), e que essa demanda possui integral apoio da Sociedade Amigos do Jardim Marajoara (doc. 31).


DOS EFEITOS CONCRETOS DAS LEIS MUNICIPAIS
EM QUESTÃO E DA INCONSTITUCIONALIDADE DE AMBAS

Antes de adentrarmos propriamente na análise das escandalosas ilegalidades constantes na presente doação de uso de área pública, é preciso caracterizar a natureza da norma municipal em vigor, para que não reste dúvida alguma da competência das autoras de contestarem seu teor em juízo, ou, ao menos, de impedir que seus efeitos nefastos e ilegais tenham validade. Um dos princípios mais fundamentais do estudo das leis são suas características; toda norma legal que inova no mundo jurídico deve ter caráter abstrato, geral e hipotético.

          A lei 11.799/95, todavia, tem mais a "fisionomia" de um ato administrativo do que um texto legal, já que não apresenta nenhuma das características de norma jurídica a não ser sua devida promulgação por órgão competente e as devidas etapas legislativas. A lei prevê em seu objeto uma associação específica existente, uma área de uso comum do povo delimitada pelo devido loteamento da área conforme respectivo decreto. Portanto, não possui o caráter de generalidade e de abstração comum à maior parte das leis existentes. Além do que toda lei, justamente pelo seu caráter genérico, deve ter um decreto administrativo que lhe dê eficácia e regularize em que termos a norma legal será aplicada. Neste caso não há qualquer decreto promulgado pela Prefeitura que venha dar-lhe fluidez. Ora, o próprio texto legal carrega em si a sua eficácia; trata-se assim, do que a doutrina denomina de lei de efeito concreto e portanto, é passível de invalidação judicial. Este tema foi magistralmente discorrido por Hely Lopes Meirelles, que pedimos permissão para citar(1):

" Não se confunda lei auto executável com lei de efeito concreto, aquela é normativa e independente de regulamento, mas depende de ato executivo para sua atuação; esta não depende nem de ato executivo para a produção de seus efeitos, pois atua desde sua vigência, consumindo o resultado de seu mandamento. Por isso, a lei auto-executável só pode ser atacada judicialmente quando for aplicada e ensejar algum ato administrativo, ao passo que a lei de efeito concreto é passível de invalidação judicial desde sua entrada em vigência, pois já trás em si o resultado concreto de seu objetivo. Exemplificando : uma lei autorizativa é auto executável, mas não é de efeito concreto, diversamente, uma lei proibitiva de atividade individual é de efeito concreto, porque ela, por si só, impede o exercício da atividade proibida."

Ora, no caso dos autos foi justamente isso o que ocorreu. Consoante se observa na absurda escritura de concessão administrativa de uso lavrada pela Municipalidade ré em favor da co-ré, houve apenas os diplomas legais supra comentados, sem que qualquer ato administrativo fosse produzido à partir dessa leis municipais, portanto, não resta dúvidas de que estamos diante de uma lei de efeito concreto, portanto passível de impugnação judicial, como lecionado pelo eminente jurista Hely Lopes Meirelles.

Mesmo que assim não fosse, a inconstitucionalidade das leis municipais nºs. 11.799/95 e 12.267/96 salta aos olhos. Por primeiro, é preciso ressaltar que não há qualquer possibilidade de dúvida acerca da possibilidade das autoras arguirem a inconstitucionalidade de uma lei municipal, através do chamado controle difuso de constitucionalidade, previsto em nosso ordenamento jurídico. Acerca de tal controle difuso, leciona com maestria o eminente Prof. José Afonso da Silva(2):

"Em suma: à vista da Constituição vigente, temos a inconstitucionalidade por ação ou por omissão, e o controlo de constitucionalidade é o jurisdicional, combinando os critérios difuso e concentrado, este de competência do Supremo Tribunal Federal. Portanto, temos o exercício do controle por via de exceção e por ação direta de inconstitucionalidade. De acordo com o controle de exceção, qualquer interessado poderá suscitar a questão de inconstitucionalidade, em qualquer processo, seja de que natureza for, qualquer que seja o juízo."

Ora, uma vez superada qualquer dúvida acerca da possibilidade do controle difuso, também denominado incidental, de inconstitucionalidade por parte dos autores, resta analisar os diplomas legais em comento. Ora, o artigo 180, inciso VII, da Constituição do Estado de São Paulo possui a seguinte redação:

"Artigo 180 – No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

VII – as áreas definidas em projeto de loteamento como áreas verdes ou institucionais não poderão, em qualquer hipótese, ter sua destinação, fim e objetivos originalmente estabelecidos, alterados"

Ora, não resta qualquer possibilidade de controvérsia acerca da destinação original das áreas em questão. O mapa extraído do memorial descritivo do loteamento onde a área se encontra é induvidoso, e a própria Lei Municipal nº 12.267/96 trata a área como bem de uso comum do povo, transformando-o (diga-se de passagem, de maneira arbitrária e ilegal, como veremos adiante), em bem dominial. Portanto, não há dúvidas acerca dessa inconstitucionalidade.

Como se não bastasse, o artigo 24, inciso I da Constituição Federal fixa como de competência exclusiva da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre Direito Urbanístico. É verdade que o Município possui a atribuição de legislar sobre uso e ocupação do solo, assunto de interesse local, mas não pode, sob pena de flagrante inconstitucionalidade, modificar áreas cuja destinação foi estabelecida no plano original de loteamento, sob pena de afrontar o dispositivo constitucional mencionado.

De qualquer forma, a Prefeitura do Município de São Paulo não é pioneira em praticar tal favorecimento ilegal, como ocorre no caso dos autos. No tópico seguinte, os autores irão citar jurisprudência que em casos praticamente idênticos ao dos presentes autos deixou clara a inconstitucionalidade de leis municipais que realizavam a concessão de uso de áreas públicas.


DA ILEGAL TRANSFORMAÇÃO DA ÁREA
DE BEM DE USO COMUM DO POVO EM BEM DOMINIAL

Além de tais inconstitucionalidade, deve-se considerar que a área, objeto desta lide, é originalmente uma praça municipal, de uso comum do povo, que tem sua utilização reconhecida à coletividade, sem discriminação de seus usuários ou ordem especial para sua fruição. Estes bens são inalienáveis e não estão disponíveis para autorização, permissão ou concessão de uso. Para tanto, é preciso que a área seja convertida para bem dominial, como foi feito posteriormente por outra lei municipal de número 12.267 datada do dia 16 de dezembro de 1996. Mesmo assim, apesar do "remendo" legal utilizado pela Prefeitura para que o instrumento de "doação" tivesse ares de legalidade, tal artifício não pode persistir. Demonstra-se

Possui aplicação "in casu" a Lei Federal 6.766/79 que também impede a alteração ou modificação da área objeto da doação. De fato. O Decreto-Lei 58, de 10.12.1937 (anterior lei do loteamento, cujos dispositivos regeram o loteamento em questão) dispõe taxativamente:

"Art. 3º. A inscrição torna inalienáveis, por qualquer título, as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e da planta"

O art. 22 da Lei Federal 6.766/79, que atualmente rege os loteamentos urbanos, por sua vez assim deixa estatuído:

"art. 22. Desde a data do registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo"

Assim, se o loteador não podia modificar essa destinação, já que no momento em que o loteamento é registrado tais bens passa a ser bem público de uso comum do povo, a Municipalidade, por igual, também não pode fazê-lo, já que a população tem direito à sua fruição. Aliás, o titular dos direitos de uso do bem público de uso comum do povo é a comunidade, cabendo ao Poder público Municipal apenas sua guarda, administração e fiscalização, por comezinho. Para que se comprove tal assertiva, socorremo-nos novamente do magistério do saudoso Professo Hely Lopes Meirelles(3):

"Enfim, todos os locais abertos à utilização pública adquirem esse caráter de comunidade, de uso coletivo, de fruição própria do povo. Sob esse aspecto – acentua Rui Cenre Lima – pode o domínio público definir-se como a forma mais completa de participação de um bem na atividade de administração pública. São os bens de uso comum, ou do domínio público, o serviço mesmo prestado ao público pela administração, assim como as estradas, ruas e praças"

O eminente Paulo Affonso Leme Machado, um dos juristas brasileiros que mais se debruçou sobre o Direito Ambiental, assim deixou estatuído(4):

"Retirou-se de modo expresso o poder dispositivo do loteador sobre as praças, as vias e outros espaços livres de uso comum (art. 17 da Lei 6.766/79) mas, de modo implícito, vedou-se a livre disposição desses bens pelo município. Este só teria a liberdade de escolha, isto é, só poderia agir discricionariamente nas áreas do loteamento que desapropriasse e naquelas que recebeu a título gratuito. Do contrário, estaria o município se transformando em município-loteador através de verdadeiro confisco de áreas, pois receberia as áreas para uma finalidade e, depois, a seu talente as destinaria para outros fins."

Nem mesmo através da desafetação legal (o que não ocorre no caso vertente) poderia um empreendimento privado ser erigido em praça pública, como ensina o jurista Toshio Mukai(5):

"enquanto tal destinação de fato se mantiver, não pode a lei efetivar a desafetação sob pena de cometer lesão ao patrimônio público da comunidade (...) se a simples desafetação legal fosse suficiente para a alienação dos bens de uso comum do povo, seria possível, em tese, a transformação em bens dominicais de todas as ruas, praças, vielas, áreas verdes, etc. de um município e, portanto, de seu território público todo, com a consequente alienação (possível) do mesmo, o que, evidentemente, seria contra toda a lógica jurídica, sendo mesmo um disparate que ninguém, em sã consciência, poderia admitir".

A eminente Profa. Lúcia Valle Figueiredo também possui contundente magistério no mesmo sentido(6):

"Assim sendo, é dever do Município o respeito a essa destinação, não lhe cabendo dar às áreas que, por força da inscrição do loteamento no Registro de Imóveis, passaram a integrar o patrimônio municipal qualquer outra utilidade. Não se insere, pois, na competência discricionária da Administração resolver qual a melhor finalidade a ser dada a estas ruas, praças, etc. A destinação já foi previamente determinada"

Finalmente, vale citar o magistério do eminente Prof. José Afonso da Silva, pioneiro no estudo de direito urbanístico em nosso país(7):

"O que é certo é que a via urbana pública, assim como as praças, como tal, será inalienável, impenhorável e imprescritível. Tornar-se-á alienável se deixar de ser via urbana ou praça, pela desqualificação jurídica ou desafetação, com o que a área respectiva passará à qualificação de bem patrimonial e sujeitar-se-á ao seu regime jurídico, tornando-se alienável nos termos da legislação que regula a alienação de bens públicos, que, no mínimo, exige autorização legislativa, prévia avaliação e concorrência, salvo as exceções quanto a esta. É claro que, assim mesmo, há que levar-se em consideração o interesse dos usuários moradores ou não da rua. Vale dizer, a rua só pode ser desafetada de sua qualificação de bem de uso comum do povo mediante lei municipal, que somente será legítima se a rua perder, de fato, sua utilização pública, por ter-se tornado desabitada e perdido seu sentido de via de circulação pública. Sem esses pressupostos de fato, qualquer pessoa do povo pode impugnar a desafetação, porque lhe ocorre o direito subjetivo de transitar pela via e, consequentemente, o direito de exigir da Municipalidade que se abstenha de perturbar-lhe ou impedir-lhe o livre trânsito por via que venha sendo usada regularmente pelo povo, pois a livre circulação em via existente é manifestação do direito fundamental de ir, vir e ficar, em situação mais rigorosa ainda do que aquela que já referimos antes em relação à estrada pública, dada a vocação urbanística da via urbana, sempre predisposta ao interesse do povo e, particularmente, de seus moradores, tema que examinaremos depois"

Não é diferente a orientação jurisprudencial, consignada em diversos V. Acórdãos. Já em 1961 o Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo firmou a seguinte tese (RT 318/285):

"Aprovada a planta do loteamento, e inscrito este, tornam-se inalienáveis por qualquer título as vias de comunicação, praças e espaços livres. Não pode, portanto, a Municipalidade transformar uma praça, destinada ao uso comum do povo, em propriedade sua para doá-la a uma entidade particular"

O nunca assaz citado Prof. José Afonso da Silva comenta esse V. Acórdão(8):

"A forma, como a situação se apresentara, realmente tornava ilegítima a conduta da Municipalidade, pois, mal o loteamento fora inscrito, já pretendeu transformar a área em bem patrimonial para, em seguida, doá-la a uma entidade desportiva particular. Parece que, no caso, muito sinteticamente apresentado no acórdão, ocorrera verdadeiro desvia de finalidade, além da falta de motivo de interesse público que justificasse a medida, e não está indicado se a medida fora feita por prescrição de lei."

Ora, no caso dos autos, igualmente, que interesse público pode justificar a medida? Qual a motivação para a transformação da área em bem patrimonial público e posterior entrega a um particular? Evidente que no caso dos autos, assim como no caso comentado pelo Prof. José Afonso, está configurada hipótese clássica, acadêmica, de desvio de poder.

O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo já teve oportunidade de assim deixar consignado em demanda semelhante à presente (JTJ 161/130):

"MINISTÉRIO PÚBLICO – Legitimidade de parte ativa – Ação Civil Pública – Preservação do patrimônio público – artigo 129, inciso III da Constituição da República – Preliminar Rejeitada

BENS PÚBLICOS – Desafetação de área – Doação para posterior loteamento – Inadmissibilidade – Destinação prevista em lei – Ofensa à Lei Federal nº 6.766 de 1979 – Ação procedente – Recurso não provido

MUNICÍPIO – Obrigação de não fazer – Pena de preceito – Imposição – Desnecessidade – Fixação que só penalizaria os contribuintes – Recurso provido para esse fim

(Apelação Cível nº 205.577-1 – Presidente Venceslau – Recorrente: Juízo Ex Officio – Apelante: Municipalidade – Apelado: Ministério Público.

No corpo desse V. Acórdão, notamos que a hipótese versada é muito semelhante à dos presentes autos. Transcreve-se:

"A exordial dirige-se contra a pretensão da apelante no sentido de desafetar três áreas devidamente descritas na inicial, com base em lei municipal, para promover o loteamento das áreas doando-as para famílias reconhecidamente pobres. Sustenta o Ministério Público que tratando-se de áreas destinadas à implantação de equipamentos comunitários, destinado ao sistema de lazer, de modo algum podem ser objeto de alienação, nem tampouco serem dadas em comodato, resultando, portanto, ser irregular sua desafetação"

Note-se que o caso dos autos é mais grave ainda do que a hipótese enfocada na decisão supra mencionada, pois nesta a área destinava-se a uma finalidade nobre, ou seja, prover a moradia de famílias carentes, e mesmo assim a desafetação das áreas para esse fim foi considerada ilegal pelo Egrégio TJSP. No caso dos autos, doou-se a área pública para uma associação privada instalar no local uma "sede cultural".

Em outra hipótese, que se encaixa como uma luva ao caso "sub examine", decidiu novamente o E. Tribunal de Justiça de São Paulo, aclarando, inclusive, a inconstitucionalidade de lei municipal semelhante à objeto dessa demanda, conforme aduzido na presente inicial no tópico anterior (JTJ 184/78):

"INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Municipal – Declaração incidental em ação civil pública – Pedido formulado pelo Ministério Público, por seu órgão de Primeiro Grau – Legitimidade ativa – Preliminar Rejeitada.

INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Municipal – Declaração incidental em ação civil pública – Competência do Juízo de Primeira Instância para apreciar e julgar – Preliminar rejeitada.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Ato impugnado – Doação de bem público de uso comum do povo pela Municipalidade – Interesse de agir do Ministério Público – Artigo 81, inciso I, da Lei Federal n. 8.078, de 1990 – Preliminar rejeitada.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Ato Impugnado – Imóvel destinado a praça pública doado pela Municipalidade a sindicato para construção de sua sede – Inadmissibilidade – Constitucionalidade do artigo 180, inciso VII da Constituição Estadual – Interpretação, ademais, do artigo 24, inciso I, da Constituição da República – Ação Procedente – Sentença confirmada.

LOTEAMENTO – Praça Pública – Área destinada pelo loteador para tal finalidade – Doação pela Municipalidade a sindicato – Inadmissibilidade . Bem de uso comum do povo e não apenas dos proprietários dos lotes – Artigo 180, inciso VII, da Constituição Estadual e Lei Federal nº 6.766 de 1979 – Ação Civil Pública procedente – Sentença confirmada.

Apelação Cível nº 273460-1 – Pedreira – Apelantes: Municipalidade de Jaguariúna e outro – Apelado: Ministério Público.

Mencione-se, ainda, que diversos diplomas legais impõem aos loteadores uma área mínima de bens que deverão ser destinados à finalidade institucional, e regras como essa são encontradas tanto na legislação atual quanto nas leis anteriores, válidas no momento de instituição do loteamento em questão.

A Lei 6.766/79, por exemplo, em seu artigo 4º fixa esse percentual em 35%, mesmo percentual instituído pela Lei Municipal nº 9.413/81 que versa sobre o parcelamento do solo e fixa tal percentual no art. 2º, inciso III.

No caso dos autos, é bastante provável que a supressão da área de 37.000 m2 da categoria de bem de uso comum do povo tenha atingido esse percentual, de modo que o loteamento local ficaria com áreas de uso comum do povo em quantidade menor do que o mínimo exigido por lei, seja no momento atual, seja no momento de instituição do loteamento em questão.

Ora, o objetivo evidente de tais diplomas legais de parcelamento do solo, ao instituir tais percentuais, é criar espaços para o desenvolvimento de uma aceitável qualidade de vida, bem como atingir uma boa ambiência urbana. A retirada de tais áreas atinge frontalmente esses objetivos e os direitos da comunidade daí decorrentes e protegidos por lei. Evidentemente, tal situação é anômala, ilegal, e esse é mais um dos motivos pelo qual a imoral cessão de direito real de uso efetuada não pode permanecer.

Nesse sentido, o V. Acórdão novamente do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo (JTJ 160/151):

"LOTEAMENTO – Registro – Impugnação pelo Ministério Público – Legitimidade de parte – Atuação na defesa do interesse público

LOTEAMENTO – Registro – Requerimento – Área Pública na extensão mínima de 35% - Artigo 4º, § 1º, da Lei Federal nº 6.766, de 1979 – Inclusão de área destinada à preservada ambiental – Inadmissibilidade – Registro indeferido – Recurso não provido

De qualquer forma, como já exaustivamente demonstrado, ainda que tal supressão não torne o loteamento local com áreas de uso público abaixo do mínimo legal (embora seria bastante incomum e inusitado que o loteador tivesse atingido o mínimo legal de áreas de uso comum e, além disso, tivesse criado um excedente de 37.000 m2) nem por isso os atos dos réus atacados nessa lide são menos ilegais, imorais e ilegítimos.

Em suma, não resta dúvida que a pretendida desafetação da área em questão, através de sua transformação de bem de uso comum do povo em bem dominial, viola a Lei 6.766/76, bem como a Constituição Estadual em seu art. 180, VII e a Constituição Federal em seu art. 24, I, além de ferir o próprio bom senso e a própria lógica das regras de parcelamento do solo através de loteamento.


DA AUSÊNCIA DE CONCORRÊNCIA PÚBLICA NA CESSÃO DA ÁREA

Pelo exposto, verifica-se que é evidente que a área objeto da presente demanda jamais poderia ter sido transformada em bem dominial. Todavia, ainda que se admita, por inesgotável amor aos debates, a possibilidade que tal imoralidade ocorra, é evidente que no momento de doação da área deveria haver uma concorrência pública.

Aliás, essa é mais uma anomalia da lei municipal nº 11.799, que em seu artigo 1º autoriza o executivo a presentear a associação ré com a área em questão independentemente de concorrência pública!!!

Ora, mesmo que se admitisse a concessão gratuita de direito real de uso a particulares, ela deve estar precedida, necessariamente, de concorrência prévia, dispensada somente se o beneficiário for outro órgão público.

No caso dos autos uma associação foi favorecida por esta lei `sui generis`, não havendo oportunidade para que outras associações ou particulares apresentassem seu projeto de utilização desta grande área que, se não servir uso comum do povo, que tenha pelo menos uma utilização de interesse coletivo comprovado. As próprias autoras, que representam a luta pela qualidade de vida dos munícipes dos bairros estariam interessados em propor utilizações viáveis à área para que a população pudesse gozar um espaço público, de área verde, para muitas funções ainda não exploradas, às expensas da empresa PBK, tendo em vista o termo de ajustamento de conduta homologado por sentença que a mesma firmou com o Ministério Público, conforme já mencionado.

É laragamente sabido que há uma carência de áreas verdes na cidade de São Paulo, sendo que a região onde se localiza a área indevidamente doada é uma das que apresentam tal carência de forma mais crônica.

Sem qualquer desrespeito à honrada comunidade islâmica, cuja importância cultural e econômica não apenas na cidade de São Paulo, mas no país, é inquestionável, porque a doação da área pública deve lhes favorecer?

Do ponto de vista jurídico, ainda que se tratasse a área de um bem dominial, ou melhor dizendo, ainda que pudesse prevalecer a abusiva transformação desse bem de uso comum do povo em dominial, o que se admite apenas "ad argumentandum", jamais á área poderia ser objeto de doação sem concorrência pública, como consta expressamente no art. 1º da inconstitucional Lei Municipal nº 11.799, de 9 de junho de 1995.

Com efeito, há algumas possibilidades legais de utilização por particulares de bens públicos dominiais. O prof. Celso Antonio Bandeira de Mello enumera tais hipóteses(9):

"A utilização por particulares, em caráter exclusivo, de bens dominiais, pode resultar de diferentes atos jurídicos. A saber: locação, arredamento, comodato, permissão de uso, concessão de uso, concessão de direito real de uso e enfiteuse"

No caso em tela, em que pese a anomalia da transformação da área em bem de uso comum do povo para bem dominial, consoante argumentado no tópico anterior, a única hipótese das elencadas pelo Prof. Bandeira de Melo em que a doação da área para a Associação ré poderia se enquadrar é no instituto jurídico de "concessão de direito real de uso", e para que não reste nenhuma dúvida acerca desse enquadramento transcrevemos a definição do eminente professor Bandeira de Mello desse instituto jurídico(10):

"Concessão de direito real de uso, instituto previsto no art. 7º do Decreto-Lei 271, de 28.2.67, é o contrato pelo qual a Administração transfere, como direito real resolúvel, o uso remunerado ou gratuito de terreno público ou do espaço aéreo que o recobre, para que seja utilizado com fins específicos por tempo certo ou por prazo indeterminado"

A própria escritura lavrada perante o 26ª Tabelião de Notas, que tem como outorgante a Municipalidade ré e como outorgada a co-ré, é de "Concessão Administrativa de Uso". Assim sendo, a obrigação de realização de licitação está expressa na lei, precisamente no art. 17, I da Lei 8.666/93:

"Art. 17 – A alienação de bens da administração pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:

I – Quando imóveis, dependerá de autorização legislativa para órgãos da administração direta e entidades autárquicas e fundacionais e, para todos, inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e licitação, na modalidade de concorrência"

Portanto, a lei é clara em impor a obrigação de licitar ao Poder público no caso de cessão a particulares do direito de uso de bem público. Mais ainda, deveria ser justificado o interesse público em efetuar tal transação, o que em nenhum momento ocorreu, e haver avaliação prévia do imóvel, que também não ocorreu. Trata-se de um verdadeiro absurdo. Comentando o instituto jurídico da Concessão de Direito Real de Uso, assim deixa expresso o insigne Hely Lopes Meirelles(11):

"A concessão assim concebida substitui vantajosamente a maioria das alienações de terrenos públicos, razão pela qual deverá ser sempre preferida, principalmente nos casos de venda ou doação. A concessão de direito real de uso, tal como ocorre com a concessão comum, depende de autorização legal e de concorrência prévia, admitindo-se a dispensa dessa quando o beneficiário for outro órgão da entidade ou administração pública."

Dessa forma, frise-se novamente, mesmo que pudesse haver a transformação do bem em questão de uso comum do povo em dominial, ainda assim haveria a necessidade inquestionável e impostergável de realização de uma concorrência pública para a cessão da área, o que não ocorreu.

Se tivesse ocorrido uma licitação com a lisura devida, dificilmente o projeto do réu de construção de uma sede social e cultural teria sido o vitorioso, frente à solução muito mais justa, democrática e benéfica oferecida pelas autoras, dentre outras propostas ainda melhores que poderiam eventualmente surgir.


DA ILEGALIDADE DO CORTE DE ÁRVORES

Como visto, o Conselho Superior da Associação Islâmica pretende erigir na área em litígio sua sede social e cultural, e a área, que vem sendo ilegalmente utilizada para depósito de materiais pesados pela Municipalidade, apresenta, em uma parte, péssimo estado de conservação, e outra parte rica e extensa vegetação, que é protegida pelo Decreto Estadual 30.443, de 20 de setembro de 1989. Pedimos vênia para transcrever o art. 8º desse diploma legal:

"Art. 8º - São imunes de corte, em razão de sua localização e beleza, todas as árvores existentes nos seguintes logradouros públicos de Bairros-Jardins:

          Todas as ruas do Alto da Boa Vista, Jardins Santo Amaro, Petrópolis, Cordeiro, dos Estados e Broklin Paulista."

É induvidoso que o diploma legal supra citado abrange a área em questão. Se a associação ré pretende ilegalmente erigir uma sede social na área em questão, evidentemente não resta a menor sombra de dúvida do risco que as árvores localizadas nesse logradouro público (cuja existência está fotograficamente comprovada) correm sério risco de serem ilegalmente cortadas. Ou seja, como se já não bastasse os réus pretenderem suprimir de toda a população uma área pública de uso comum do povo, pretendem ainda suprimir uma área verde de extrema importância e beleza.

Também por estar presente mais essa ilegalidade, não pode prosperar a pretensão dos réus.


DA MEDIDA LIMINAR

Diante de todo o exposto, não resta dúvida acerca da necessidade da concessão urgente e imediata de uma medida liminar, como previsto no art. 12 da Lei 7.347/85.

Com efeito, o "fumus boni juris" presente está fartamente comprovado, bastando observar que há prova documental incontroversa de que a área destina-se a uso comunitário, de acordo com o plano original de loteamento, bem como observando-se o teor das Leis Municipais em questão, francamente inconstitucionais por contrariarem o art. 180, inciso VII da constituição Estadual, bem como o art. 24, inciso I da Constituição Federal. Foi contrariado ainda o art. 17, I da Lei 8.666/93, por ausência de concorrência pública para a área, e será violado o art. 8º do Decreto Estadual 30.443/89 se o corte de árvores tiver início.

No que tange ao "periculum em mora", o mesmo também está inquestionavelmente presente na hipótese vertente, levando-se em consideração que o início do corte de árvores tornará a situação irreversível, bem como o início das obras por parte da Associação ré tornará mais difícil e gravosa a reposição do "status quo ante".

Aliás, a presença de tais aspectos que autorizam a concessão da medida liminar pleiteada são tão evidentes que, em hipótese idêntica à presente, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao julgar uma medida cautelar, deixou assentado o seguinte V. Acórdão, de lavra do eminente Des. Antonio Eduardo F. Duarte(12):

"MEDIDA CAUTELAR. Loteamento urbano. Faixa Reservada à utilização pública. Destinação diversa pelo Município. Inadmissibilidade. Recurso Improvido.

Ementa: Nos loteamentos urbanos, o destino a ser dado à faixa de terreno reservada à utilização pública, subordina-se obrigatoriamente ao que estabelecem os arts. 4º e 5º da Lei 6.766, de 19.12.1979, que dispõe sobre o parcelamento do solo. Assim, não pode o Município, no que concerne a essas áreas que foram afetadas ao seu patrimônio por força de norma legal e com a finalidade de implantação de equipamentos públicos urbanos, de sistemas de circulação e para espaços livres, destinar parte das mesmas, mediante permissão de uso a terceiros, para construção de habitações, ainda que visando instalar programa de moradias para a população carente, sobretudo porque tais áreas, nos termos do diploma legal antes referido, integram a parcela do loteamento "non aedificandi".

(ApCiv 4.028/98 – 3ª C.C – TJRJ – j. 01.09.1998 – rel. Des. Antonio Eduardo F. Duarte)

Dessa forma, requerem os autores a concessão urgente e imediata de medida liminar, a fim de que seja determinada aos réus a proibição de qualquer alteração no local, seja para suprimir a vegetação ali existente, seja para iniciar obras de construção de sua sede social e/ou cultural no local público.


DO PEDIDO

Diante do exposto, e de tudo o mais o que dos presentes autos consta, são os termos da presente para respeitosamente requerer a V. Exa.:

a) com fulcro no art. 12 da Lei 7.347/85, a concessão urgente e imediata de medida liminar, "inaudita altera partes", nos termos supra requeridos, sob pena do pagamento de multa diária em caso de descumprimento, sugerindo-se o montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais);

b) a citação dos requeridos nos endereços supra mencionados para que, em querendo, acompanhem os termos da presente demanda;

c) a intimação do ilustre representante da Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo para que atue no presente feito na condição de "custus legis";

d) a total procedência da presente a fim de que:

- com base no controle difuso de constitucionalidade, seja declarada incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 11.799 de 9 de junho de 1995 e também da Lei Municipal 12.267 de 18 de dezembro de 1996, que deu nova redação àquela, por estarem em contradição com o art. 180, VII da Constituição Estadual e o art. 24, inciso I da Constituição Federal;

- seja declarada a nulidade de pleno direito da Escritura Pública de Concessão Administrativa de Uso lavrada perante o 26º Tabelião de Notas no livro 1656, página 339 à página 343, no dia 09 de dezembro de 1999, que possui como outorgante a Prefeitura do Município de São Paulo e como outorgado o Conselho Superior para Assuntos Islâmicos no Brasil – Consaib;

- seja determinada à Prefeitura do Município de São Paulo a desinstalação do depósito de materiais pesados que funciona no local, bem como a proibição de desenvolver qualquer outra atividade diversa da destinação original da área como bem de uso comum do povo para fins comunitários;

- seja imposta ao Conselho Superior para Assuntos Islâmicos no Brasil a obrigação de não fazer, consistente na não supressão da vegetação do local e a não construção de sua sede social e/ou cultural, ou qualquer outra construção, bem como a demolição do que vier eventualmente a ser erigido e o replantio das árvores eventualmente derrubadas, repondo-se integralmente o "status quo ante";

- na hipótese das obras virem a ser iniciadas, seja imposta a ambos os requeridos, solidariamente, a indenização por danos ambientais, cujo montante deverá ser fixado pelo prudente e elevado critério de V. Exa., sendo que o valor deverá reverter ao fundo a que faz referência o art. 13 da Lei 7.347/85 e a Lei 9.008/95, fundo esse regulamentado pelo Decreto 1.306 de 9.11.94 (Fundo de Defesa dos Interesses Difusos);

e) sejam condenados os requeridos ao pagamento de custas processuais, honorários advocatícios e demais cominações legais;

Protestando-se provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos, dá-se à causa, para efeitos fiscais, o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), asseverando que os autores estão isentos do pagamento de custas processuais, nos termos do art. 18 da Lei 7.347/85.-

Termos em que,

P. Deferimento.

São Paulo, ......

pp. Marcus Vinicius Gramegna
- OAB/SP 130.376 -


NOTAS

  1. MEIRELLES, Hely Lopes – "Direito Administrativo Brasileiro, 22ª ed., Malheiros, p. 163
  2. SILVA, José Afonso – "Curso de Direito Constitucional Positivo, 8º ed., Malheiros, p. 52
  3. MEIRELLES, Hely Lopes – op. cit. p. 418
  4. LEME MACHADO, Paulo Affonso – "Direito Ambiental Brasileiro", RT, 1989, p. 244
  5. MUKAI, Toshio - "Impossibilidade jurídica de desafetação legal dos bens de uso comum do povo na ausência de desafetação de fato", in RDP 75/246-249
  6. FIGUEIREDO, Lucia Valle – "Disciplina Urbanística da Propriedade", Editora Revista dos Tribunais, 1980, pág. 41
  7. SILVA, José Afonso – "Direito Urbanístico Brasileiro", Malheiros, 2ª ed., p. 184/185
  8. SILVA, José Afonso – ob. cit. p. 184
  9. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio – "Curso de Direito Administrativo", 11ª ed., Malheiros, p. 626
  10. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio – ob.cit. p. 626
  11. MEIRELLES, Hely Lopes – "Direito Administrativo Brasileiro", 22ª ed., Malheiros, p. 446
  12. Acórdão tirado da "Revista de Direito Ambiental", vol. 17, RT, p. 307

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

Ação civil pública contra doação de bem de uso comum do povo a entidade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16014. Acesso em: 5 maio 2024.