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Procuradoria entende que regime de cotas na UnB é impossível, por ausência de critério científico

Procuradoria entende que regime de cotas na UnB é impossível, por ausência de critério científico

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Em resposta a consulta da UnB sobre como proceder para análise de requisitos para enquadramento no sistema de cotas raciais, a Procuradoria Federal concluiu pela impossibilidade científica de estabelecer critérios fenotípicos.

Advocacia-Geral Da União

Procuradoria-Geral Federal

Procuradoria Federal Junto À FUB

PARECER/SRMJ/PF/UnB N. /2010

Processo UnBDoc n. 131.055/2009

Assunto: Consulta sobre como proceder para análise de requisitos para enquadramento no sistema de cotas "raciais".

Interessado: Centro de Seleção e Promoção de Eventos (CESPE)


EMENTA: COTAS – AUSÊNCIA DE CRITÉRIO – IMPOSSIBILIDADE CIENTÍFICA DE ESTABELECER O FENÓTIPO BUSCADO.

1. O Sistema de cotas "raciais" estabelecido pela UnB não pode prevalecer porque não há critério científico que permita sua aplicação.

2. A escolha por aspectos fenotípicos é falha, o que autoriza dizer ser imperiosa a necessidade de estabelecer critérios seguros, abandonando a tentativa de criar um país bicolor: preto e branco.


Senhora Coordenadora de Consultivo,

O presente procedimento veio a esta Procuradoria Federal junto à Fundação Universidade de Brasília para solicitar parecer sobre os critérios a serem adotados para o sistema de cotas para negros no vestibular e PAS, sendo oportunas as seguintes considerações.


Aspectos preliminares

2. Aspecto fundamental a ser enfrentado é o relativo às atribuições desta Procuradoria Federal junto à FUB, uma vez que a Constituição Federal, na organização dos Poderes (Tít. IV) destacou as funções essenciais à Justiça (Cap. IV), em relação aos três Poderes constantes do seu art. 2º e constitucionalmente agasalhados nos Cap. I-III do mesmo Tít. IV.

3. É indubitável a natureza executiva do Ministério Público, bem como a da advocacia-pública. No entanto, a autonomia institucional do MP está prevista na própria CF (art. 127, § 1º), enquanto não há previsão da mesma autonomia da Advocacia-Geral da União e dos seus órgãos vinculados.

4. Em artigo jurídico que publiquei, sustentei:

"O advogado público tem dois princípios básicos a serem seguidos: a) da legalidade; b) da supremacia do interesse público sobre o particular. Os demais princípios são corolários destes dois. Destarte, quando a CF enuncia que são princípios da administração pública a moralidade, a impessoalidade, a eficiência e a publicidade (art. 37, caput), tem em vista a legalidade estrita e a supremacia do interesse público sobre o particular.

Tenho defendido a inexistência da discricionariedade na administração pública, visto que é necessário que toda decisão se dê em conformidade com a legalidade e o interesse público a que se destina, ou seja, a decisão estará sempre vinculada ao melhor resultado possível. A possibilidade de escolha entre duas ou mais opções não deixa o agente público livre para fazê-la sem antes analisar qual a que melhor se apresenta do ponto de vista da probabilidade, devendo optar pela mais plausível.

Ao advogado público já foi imposto o dever de recorrer indiscriminadamente, cultura que vem se modificando dia-a-dia. No Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), órgão em que trabalhei de 1996 a 2003, sempre defendi que a atuação pública não deve ser feita em prol de um governante, mas do interesse público. Hoje, defendo a necessidade imperiosa de criar economia para o Estado, ela é possível por meio do acordo e da aceitação da sentença condenatória, uma vez que o recurso poderá elevar os ônus da sucumbência, isso sem falar das possíveis multas decorrentes da litigância de má-fé, caracterizada pela interposição de recurso temerário.

O advogado público não pode defender a imoralidade. Ainda que ele seja Defensor Público, sua defesa deve ser feita na forma da lei. Chicanas são incompatíveis com sua atuação. É comum um governante pretenderem atrasar o pagamento das dívidas públicas, lançando o problema ao sucessor. Isso é irresponsável, mormente quando o descumprimento da obrigação gera astreintes e outras evoluções significativas na dívida, superiores aos juros de mercado". [01]

5. O exposto é oportuno porque o sistema de cotas está sendo questionado perante o Supremo Tribunal Federal, em face de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186, proposta, em 20.7.2009, pelo Partido Político Democratas (DEM).

6. A vontade institucional da FUB é a de manutenção do sistema de cotas, até porque ter sido pioneira na implantação do sistema no território nacional lhe deu alguma repercussão no cenário, o que é notório, prescindindo, portanto, de provas. Ademais, há pedido do Reitor da Universidade de Brasília, protocolado em 28.7.2009, para o indeferimento da liminar pleiteada, bem como improcedência da arguição.

7. Acompanhando parecer do Procurador-Geral da República, o Presidente do STF, em 7.8.2009, fez publicar a seguinte decisão:

DECISÃO: "Trata-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental, proposta pelo partido político DEMOCRATAS (DEM), contra atos administrativos da Universidade de Brasília que instituíram o programa de cotas raciais para ingresso naquela universidade.

Alega-se ofensa aos artigos 1º, caput e inciso III; 3º, inciso IV; 4º, inciso VIII; 5º, incisos I, II, XXXIII, XLII, LIV; 37, caput; 205; 207, caput; e 208, inciso V, da Constituição de 1988.

A peça inicial defende, em síntese, que ‘(...) na presente hipótese, sucessivos atos estatais oriundos da Universidade de Brasília atingiram preceitos fundamentais diversos, na medida em que estipularam a criação da reserva de vagas de 20% para negros no acesso às vagas universais e instituíram verdadeiro ‘Tribunal Racial’, composto por pessoas não-identificadas e por meio do qual os direitos dos indivíduos ficariam, sorrateiramente, à mercê da discricionariedade dos componentes, (...)’(f. 9).

O autor esclarece, inicialmente, que a presente arguição não visa a questionar a constitucionalidade de ações afirmativas como políticas necessárias para a inclusão de minorias, ou mesmo a adoção do modelo de Estado Social pelo Brasil e a existência de racismo, preconceito e discriminação na sociedade brasileira. Acentua, dessa forma, que a ação impugna, especificamente, a adoção de políticas afirmativas ‘racialistas’, nos moldes da adotada pela UnB, que entende inadequada para as especificidades brasileiras.

Assim, a petição traz trechos em que se questiona se "a raça, isoladamente, pode ser considerada no Brasil um critério válido, legítimo, razoável, constitucional, de diferenciação entre o exercício de direitos dos cidadãos" (fl. 28). Defende o partido político, com isso, que o acesso aos direitos fundamentais no Brasil não é negado aos negros, mas aos pobres e que o problema econômico está atrelado à questão racial.

Alega que o sistema de cotas da UnB pode agravar o preconceito racial, uma vez que institui a consciência estatal da raça, promove ofensa arbitrária ao princípio da igualdade, gera discriminação reversa em relação aos brancos pobres, além de favorecer a classe média negra (fl. 29).

Afirma que o item 7 e os subitens do Edital nº 02/2009 do CESPE/UNB violam o princípio da igualdade e da dignidade humana, na medida em que ressuscitam a crença de que é possível identificar a que raça pertence uma pessoa (fl. 29). Assim, indaga a respeito da constitucionalidade dos critérios utilizados pela comissão designada pelo CESPE para definir a ‘raça’ do candidato, afirmando que saber quem é ou não negro vai muito além do fenótipo.

A petição ressalta, ainda, que a aparência de uma pessoa diz muito pouco sobre a sua ancestralidade (fl. 30). Refere, com isso, que a ‘teoria compensatória’, que visa à reparação do dano causado pela escravidão, não pode ser aplicada num país miscigenado como o Brasil.

Na inicial, é frisado que, nos últimos 30 anos, estabeleceu-se um consenso entre os geneticistas segundo o qual os seres humanos são todos iguais (fl. 37) e que as características fenotípicas representam apenas 0,035% do genoma humano. Aponta-se, dessa forma, o perigo da importação de modelos como o de Ruanda e o dos Estados Unidos da América (fls. 41-43).

Sustenta-se, ademais, que os dados estatísticos referentes aos indicadores sociais são manipulados e que a pobreza no Brasil tem ‘todas as cores’ (fls. 54-58).

Especificamente quanto ao sistema de classificação racial da UnB, o arguente enfatiza que todos os censos brasileiros sempre utilizaram o critério da autoclassificação (fl. 61).

Expõe que, no Brasil, ‘a existência de valores nacionais, comuns a todas as raças, parece quebrar o estigma da classificação racial maniqueísta’ (fl. 67).

Conclui, assim, que as cotas raciais instituídas pela UnB violam o princípio constitucional da proporcionalidade, por ofensa ao subprincípio da adequação, no que concerne à utilização da raça como critério diferenciador de direitos entre indivíduos, uma vez que é a pobreza que impede o acesso ao ensino superior (fl. 74). Sugere que um modelo que levasse em conta a renda em vez da cor da pele seria menos lesivo aos direitos fundamentais e também atingiria a finalidade pretendida de integrar os negros (fl. 75).

Quanto ao periculum in mora, afirma o partido político que o resultado do 2º Vestibular 2009 da Universidade de Brasília, o qual foi realizado de acordo com o sistema de acesso por meio de cotas raciais, foi publicado no dia 17 de julho de 2009, e o registro dos estudantes aprovados, cotistas e não cotistas, está previsto para os dias 23 e 24 de julho de 2009 (fl. 76).

O pedido final da arguição de descumprimento de preceito fundamental está assim formulado:

‘(...)seja a ação julgada procedente para o fim de que esta Egrégia Corte Constitucional declare a inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes, efeitos ex tunc e vinculantes dos seguintes atos administrativos e normativos: (i) Ata da Reunião Extraordinária do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (CEPE), realizada no dia 6 de junho de 2003; (ii) Resolução nº 38, de 18 de junho de 2003, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (CEPE); (iii) Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial da Universidade de Brasília – UnB, especificamente os pontos I (‘Objetivo’), II (‘Ações para alcançar o objetivo’), l (‘Acesso’), alínea ‘a’; II (‘Ações para alcançar o objetivo"’), II (‘Permanência’), ‘l’, ‘2’ e ‘3, a, b, c’; e III (‘Caminhos para a implementação’), itens 1, 2 e 3. As impugnações aqui referidas tomam por base o texto literal do Plano de Metas, apesar da evidente confusão na distribuição entre itens, alíneas e subitens; e (iv) Item 2, subitens 2.2., 2.2.1, 2.3, item 3, subitem 3.9.8 e item 7 e subitens, do Edital nº 2, de 20 de abril de 2009, do 2º Vestibular de 2009 – CESPE/UnB, por ofensa descarada e manifesta ao artigo 1º, ‘caput’ (princípio republicano) e inciso III (dignidade da pessoa humana); ao artigo 3º, inciso IV (veda o preconceito de cor e a discriminação); o artigo 4º, inciso III (repúdio ao racismo); o artigo 5º, incisos I (igualdade), II (legalidade), XXXIII (direito à informação dos órgãos públicos), XLII (vedação ao racismo) e LIV (devido processo legal e princípio da proporcionalidade), o artigo 37, ‘caput’ (princípios da legalidade, da impessoalidade, da razoabilidade, da publicidade, da moralidade, corolários do princípio republicano), além dos artigos 205 (direito universal de educação), 206, ‘caput’ e inciso I (igualdade nas condições de acesso ao ensino), 207 (autonomia universitária) e 208, inciso V (princípio do acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística segundo a capacidade de cada um), todos da Constituição Federal.’ (fl. 79)

Em despacho de 21 de julho de 2009 (fl. 613), requisitei as informações dos arguidos e as manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República (art. 5º, § 2º, da Lei n° 9.882/99).

O Reitor da Universidade de Brasília, o Diretor do Centro de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília e o Presidente do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília prestaram informações (fls. 628-668), alegando a impossibilidade da propositura de arguição de descumprimento de preceito fundamental, por ser cabível o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade (fl. 636). Asseveraram, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, a constitucionalidade dos atos impugnados (fls. 636-640). Sustentaram que ‘não é possível ignorar, face à análise de abundantes dados estatísticos, que cidadãos brasileiros de cor negra partem, em sua imensa maioria, de condições sócio-econômicas muito desfavoráveis comparativamente aos de cor branca’ (fl. 643). Alegaram, ainda, que a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil, prevê ações afirmativas como forma de rechaçar a discriminação racial (fl. 645). Esclarecem, assim, que o critério utilizado pela Universidade não é o genético, mas o da análise do fenótipo do candidato (fl. 664). Ressaltam, por fim, que já foram realizados 10 vestibulares utilizando-se o sistema de cotas, não havendo periculum in mora a justificar a concessão da medida liminar requerida (fl. 667).

A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela admissibilidade da ADPF e pelo indeferimento da medida cautelar postulada, ‘seja pela ausência de plausibilidade do direito invocado, em vista da constitucionalidade das políticas de ação afirmativa impugnadas, seja pela presença do periculum in mora inverso’ (fl. 709-733).

Na petição de fls. 735-765, o Advogado-Geral da União manifestou-se pela denegação da medida cautelar pleiteada, por ausência dos requisitos necessários à sua concessão.

Passo a decidir tão-somente o pedido de medida cautelar.

O art. 5º, § 1º, da Lei n° 9.882/99 permite que, no período de recesso, o pedido de medida cautelar seja apreciado em decisão monocrática do Presidente do STF – a quem compete decidir sobre questões urgentes no período de recesso ou de férias, conforme o art. 13, VIII, do Regimento Interno do Tribunal –, a qual posteriormente deverá ser levada ao referendo do Plenário da Corte.

A presente arguição de descumprimento de preceito fundamental traz a esta Corte uma das questões constitucionais mais fascinantes de nosso tempo – acertadamente cunhado por Bobbio como o ‘tempo dos direitos’ (BOBBIO, Norberto, L' età dei diritti. Einaudi editore, Torino, 1990) – e que, desde meados do século passado, tem sido o centro de infindáveis debates em muitos países e, no Brasil, atinge atualmente seu auge. Trata-se do difícil problema quanto à legitimidade constitucional dos programas de ação afirmativa que implementam mecanismos de discriminação positiva para inclusão de minorias e determinados segmentos sociais.

O tema causa polêmica, tornando-se objeto de discussão, e a razão para tanto está no fato de que ele toca nas mais profundas concepções individuais e coletivas a respeito dos valores fundamentais da liberdade e da igualdade.

Liberdade e igualdade constituem os valores sobre os quais está fundado o Estado constitucional. A história do constitucionalismo se confunde com a história da afirmação desses dois fundamentos da ordem jurídica. Não há como negar, portanto, a simbiose existente entre liberdade e igualdade e o Estado Democrático de Direito. Isso é algo que a ninguém soa estranho – pelo menos em sociedades construídas sobre valores democráticos – e, neste momento, deixo claro que não pretendo rememorar ou reexaminar o tema sob esse prisma.

Não posso deixar de levar em conta, no contexto dessa temática, as assertivas do Mestre e amigo Professor Peter Häberle, o qual muito bem constatou que, na dogmática constitucional, muito já se tratou e muito já se falou sobre liberdade e igualdade, mas pouca coisa se encontra sobre o terceiro valor fundamental da Revolução Francesa de 1789: a fraternidade (HÄBERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado constitucional. Madrid: Trotta; 1998). E é dessa perspectiva que parto para as análises que faço a seguir.

No limiar deste século XXI, liberdade e igualdade devem ser (re)pensadas segundo o valor fundamental da fraternidade. Com isso quero dizer que a fraternidade pode constituir a chave por meio da qual podemos abrir várias portas para a solução dos principais problemas hoje vividos pela humanidade em tema de liberdade e igualdade.

Vivemos, atualmente, as consequências dos acontecimentos do dia 11 de setembro de 2001 e sabemos muito bem o que significam os fundamentalismosde todo tipo para os pilares da liberdade e igualdade. Fazemos parte de sociedades multiculturais e complexas e tentamos ainda compreender a real dimensão das manifestações racistas, segregacionistas e nacionalistas, que representam graves ameaças à liberdade e à igualdade.

Nesse contexto, a tolerância nas sociedades multiculturais é o cerne das questões a que este século nos convidou a enfrentar em tema de liberdade e igualdade.

Pensar a igualdade segundo o valor da fraternidade significa ter em mente as diferenças e as particularidades humanas em todos os seus aspectos. A tolerância em tema de igualdade, nesse sentido, impõe a igual consideração do outro em suas peculiaridades e idiossincrasias. Numa sociedade marcada pelo pluralismo, a igualdade só pode ser igualdade com igual respeito às diferenças. Enfim, no Estado democrático, a conjugação dos valores da igualdade e da fraternidade expressa uma normatividade constitucional no sentido de reconhecimento e proteção das minorias.

A questão da constitucionalidade de ações afirmativas voltadas ao objetivo de remediar desigualdades históricas entre grupos étnicos e sociais, com o intuito de promover a justiça social, representa um ponto de inflexão do próprio valor da igualdade. Diante desse tema, somos chamados a refletir sobre até que ponto, em sociedades pluralistas, a manutenção do status quo não significa a perpetuação de tais desigualdades.

Se, por um lado, a clássica concepção liberal de igualdade como um valor meramente formal há muito foi superada, em vista do seu potencial de ser um meio de legitimação da manutenção de iniquidades, por outro o objetivo de se garantir uma efetiva igualdade material deve sempre levar em consideração a necessidade de se respeitar os demais valores constitucionais.

Não se deve esquecer, nesse ponto, o que Alexy trata como o paradoxo da igualdade, no sentido de que toda igualdade de direito tem por consequência uma desigualdade de fato, e toda desigualdade de fato tem como pressuposto uma desigualdade de direito (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales; 2001). Assim, o mandamento constitucional de reconhecimento e proteção igual das diferenças impõe um tratamento desigual por parte da lei. O paradoxo da igualdade, portanto, suscita problemas dos mais complexos para o exame da constitucionalidade das ações afirmativas em sociedades plurais.

Cortes constitucionais de diversos Estados têm sido chamadas a se pronunciar sobre a constitucionalidade de programas de ações afirmativas nas últimas décadas. No entanto, é importante salientar que essa temática – que até certo ponto pode ser tida como universal – tem contornos específicos conforme as particularidades históricas e culturais de cada sociedade.

O tema não pode deixar de ser abordado desde uma reflexão mais aprofundada sobre o conceito do que chamamos de ‘raça’. Nunca é demais esclarecer que a ciência contemporânea, por meio de pesquisas genéticas, comprovou a inexistência de ‘raças’ humanas. Os estudos do genoma humano comprovam a existência de uma única espécie dividida em bilhões de indivíduos únicos: ‘somos todos muito parecidos e, ao mesmo tempo, muito diferentes’ (Cfr.: PENA, Sérgio D. J. Humanidade Sem Raças? Série 21, Publifolha, p. 11.).

Este Supremo Tribunal Federal, inclusive, no histórico julgamento do Habeas Corpus n. 82.424-2/RS, frisou a inexistência de subdivisões raciais entre indivíduos.

A noção de ‘raça’, que insiste em dividir e classificar os seres humanos em ‘categorias’, resulta de um processo político-social que, ao longo da história, originou o racismo, a discriminação e o preconceito segregacionista. Como explica Joaze Bernardino, ‘a categoria raça é uma construção sociológica, que por esse motivo sofrerá variações de acordo com a realidade histórica em que ela for utilizada’. Em razão disso, uma pessoa pode ser considerada branca num contexto social e negra em outro, como ocorre com ‘alguns brasileiros brancos que são tratados como negros nos Estados Unidos’ (BERNARDINO, Joaze. Levando a raça a sério: ação afirmativa e correto reconhecimento, In: Levando a raça a sério: ação afirmativa e universidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 19-20).

De toda forma, é preciso enfatizar que, enquanto em muitos países o preconceito sempre foi uma questão étnica, no Brasil o problema vem associado a outros vários fatores, dentre os quais sobressai a posição ou o status cultural, social e econômico do indivíduo. Como já escrevia nos idos da década de 40 do século passado Caio Prado Júnior, célebre historiador brasileiro, ‘a classificação étnica do indivíduo se faz no Brasil muito mais pela sua posição social; e a raça, pelo menos nas classes superiores, é mais função daquela posição que dos caracteres somáticos’ (PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; 2006, p. 109).

Isso não quer dizer que não haja problemas ‘raciais’ no Brasil. O preconceito está em toda parte. Como dizia Bobbio, ‘não existe preconceito pior do que o acreditar não ter preconceitos’ (BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Unesp; 2002, p. 122).

No debate sobre o tema, somos também levados a analisar a diferença existente entre a discriminação promovida pelo Estado e a discriminação praticada pelos particulares.

Desde a abolição da escravatura – um dos fatos mais importantes da história de afirmação e efetivação dos direitos fundamentais no Brasil –, não há notícia de que o Estado brasileiro tenha se utilizado do critério racial para realizar diferenciação legal entre seus cidadãos. Esse é um fator de relevo que distingue o debate sobre o tema no Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, existiu um sistema institucionalizado de discriminação racial estimulado pela sociedade e pelo próprio Estado, por seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em seus diferentes níveis. A segregação entre negros e brancos foi amplamente implementada pelo denominado sistema Jim Crow e legitimada durante várias décadas pela doutrina do ‘separados mas iguais’ (separate but equal), criada pela famosa decisão da Suprema Corte nos caso Plessy vs. Ferguson (163 U.S 537 1896). Com base nesse sistema legal segregacionista, os negros foram proibidos de frequentar as mesmas escolas que os brancos, comer nos mesmos restaurantes e lanchonetes, morar em determinados bairros, serem proprietários ou locatários de imóveis pertencentes a brancos, utilizar os mesmos transportes públicos, teatros, banheiros etc., casar com brancos, votar e serem votados e, enfim, de serem cidadãos dos Estados Unidos da América. Foi nesse específico contexto de cruel discriminação contra os negros que surgiram as ações afirmativas como uma espécie de mecanismo emergencial de inclusão e integração social dos grupos minoritários e de solução para os conflitos sociais que se alastravam por todo o país na década de 60.

Assim, não se pode deixar de considerar que o preconceito racial existente no Brasil nunca chegou a se transformar numa espécie de ódio racial coletivo, tampouco ensejou o surgimento de organizações contrárias aos negros, como a Ku Klux Klan e os Conselhos de Cidadãos Brancos, tal como ocorrido nos Estados Unidos. Na República Brasileira, nunca houve formas de segregação racial legitimadas pelo próprio Estado.

No Brasil, a análise do tema das ações afirmativas deve basear-se, sobretudo, em estudos históricos, sociológicos e antropológicos sobre as relações raciais em nosso país.

Durante muito tempo, os sociólogos, antropólogos e historiadores identificaram no processo de miscigenação que formou a sociedade brasileira uma forma de democracia racial. O apogeu da tese da ‘democracia racial brasileira’ se deu na década de 30, com o trabalho de Gilberto Freyre (Casa grande & Senzala).

Na década de 50, a crença na democracia racial levou os representantes brasileiros na UNESCO (Artur Ramos e Luiz Aguiar Costa Pinto), após a 2ª Guerra Mundial, a propor o Brasil como exemplo de uma experiência bem-sucedida de relações raciais.

A partir da década de 60, pesquisas financiadas pela UNESCO, e desenvolvidas por sociólogos brasileiros (Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Oracy Nogueira, por exemplo), começaram a questionar a existência dessa dita democracia. Concluíram que, no fundo, o Brasil desenvolvera uma forma de discriminação ‘racial’ escondida atrás do mito da ‘democracia racial’. Apontaram que, enquanto nos Estados Unidos desenvolveu-se o preconceito com base na origem do indivíduo (ancestralidade), no Brasil existia o preconceito com base na cor da pele da pessoa (fenótipo).

Na década de 70, pesquisadores como Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva afirmaram que o preconceito e a discriminação não estavam apenas fundados nas sequelas da escravatura, mas assumiram novas formas e significados a partir da abolição, estando relacionadas aos ‘benefícios simbólicos adquiridos pelos brancos no processo de competição e desqualificação dos negros’. Simultaneamente, os movimentos negros passaram a questionar a visão integracionista das lideranças negras brasileiras das décadas de 30, 40, 50 e 60.

Foi na década de 90, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que o tema das ações afirmativas entrou na agenda do governo brasileiro, com a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra em 1995, as propostas do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) em 1996, e a participação do Brasil na Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em 2001, na África do Sul.

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva aprofundou esse processo. Criou a Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial, modificou o Sistema de Financiamento ao Estudante e criou o Programa Universidade para Todos, prevendo bolsas e vagas específicas para ‘negros’. Em 2003, o Conselho Nacional de Educação exarou as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira.

Em 2005, o Senado aprovou o ‘Estatuto da Igualdade Racial’, projeto do Senador Paulo Paim, ainda não aprovado pela Câmara dos Deputados. O projeto visa a estabelecer direitos para a população brasileira que chama de ‘afro-brasileiros’, definida no artigo 1º, parágrafo 3º, como aqueles que ‘se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga’.

A análise dessas considerações históricas e do que se produziu no âmbito da sociologia e da antropologia no Brasil nos leva até mesmo a questionar se o Estado Brasileiro não estaria passando por um processo de abandono da idéia, muito difundida, de um país miscigenado e, aos poucos, adotando uma nova concepção de nação bicolor.

Em 2005, o jogador de futebol Ronaldo – ‘O Fenômeno’ –, presenciando as agressões racistas que jogadores negros estavam sofrendo nos gramados espanhóis, deu a seguinte declaração: ‘Eu, que sou branco, sofro com tamanha ignorância. A solução é educar as pessoas’. Tal declaração gerou grande repercussão no Brasil e obrigou Ronaldo a explicar o que ele quis dizer: ‘Eu quis dizer que tenho pele mais clara, só isso, e mesmo assim sou vítima de racismo. Meu pai é negro. Não sou branco, não sou negro, sou humano. Sou contra qualquer tipo de discriminação’. Ali Kamel utiliza esse acontecimento como exemplo das mudanças que estariam ocorrendo na mentalidade brasileira. Alerta, dessa forma, que a crise gerada pela declaração do jogador é a prova de que estamos aceitando a tese da ‘nação bicolor’; que antes o discurso predominante era favorável à autodeclaração e que agora achamos que temos o direito de classificar as pessoas (KAMEL, Ali. Não Somos Racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 139-140).

Por mais que se questione a existência de uma ‘Democracia Racial’ no Brasil, é fato que a sociedade brasileira vivenciou um processo de miscigenação singular. Nesse sentido, elucida Carlos Lessa que ‘O Brasil não tem cor. Tem todo um mosaico de combinações possíveis’ (LESSA, Carlos. ‘O Brasil não é bicolor’, In: FRY, Peter e outros (org.) Divisões Perigosas: Políticas raciais no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 123).

Na Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD), em 1976, os brasileiros se autoatribuíram 135 cores distintas. Tal fato demonstra cabalmente a dificuldade dos brasileiros de identificarem a sua cor de pele.

Para Fátima Oliveira, ‘ser negro é, essencialmente, um posicionamento político, onde se assume a identidade racial negra. Identidade racial-étnica é o sentimento de pertencimento a um grupo racial ou étnico, decorrente de construção social, cultural e política’ (OLIVEIRA, Fátima. Ser negro no Brasil: alcances e limites, In: Revista de Estudos Avançados, vol. 18, nº 50. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. São Paulo: IEA. Janeiro/abril de 2004, p. 57-58.)

As preocupações com as consequências da adoção de cotas raciais para o acesso à Universidade levaram cento e treze intelectuais brasileiros (antropólogos, sociólogos, historiadores, juristas, jornalistas, escritores, dramaturgos, artistas, ativistas e políticos) a redigir uma carta contra as leis raciais no Brasil. No documento, os subscritores alertam que ‘o racismo contamina profundamente as sociedades quando a lei sinaliza às pessoas que elas pertencem a determinado grupo racial – e que seus direitos são afetados por esse critério de pertinência de raça". Sustentam que "as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada’. Defendem que existem outras formas de superar as desigualdades brasileiras, proporcionando um verdadeiro acesso universal ao ensino superior, menos gravosas para a identidade nacional, como a oferta de cursos preparatórios gratuitos e a eliminação das taxas de inscrição nos exames vestibulares (‘Cento e Treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais’, assinado por cento e treze intelectuais brasileiros, entre eles, Ana Maria Machado, Caetano Veloso, Demétrio Magnoli, Ferreira Gullar, José Ubaldo Ribeiro, Lya Luft e Ruth Cardoso).

A Universidade de Brasília foi a primeira instituição de ensino superior federal a adotar um sistema de cotas raciais para ingresso por meio do vestibular. A iniciativa, baseada na autonomia universitária, adotou, segundo as informações prestadas pela UnB, o critério da análise do fenótipo do candidato: ‘os critérios utilizados são os do fenótipo, ou seja, se a pessoa é negra (preto ou pardo), uma vez que, como já suscitado na presente peça, é essa característica que leva à discriminação ou ao preconceito’ (fl. 664).

O critério utilizado para deferir ou não ao candidato o direito a concorrer dentro da reserva de cotas raciais gera alguns questionamentos importantes. Afinal, qual é o fenótipo dos ‘negros’ (‘pretos’ e ‘pardos’) brasileiros? Quem está técnica e legitimamente capacitado a definir o fenótipo de um cidadão brasileiro? Essas indagações não são despropositadas se considerarmos alguns incidentes ocorridos na história da política de cotas raciais da UnB.

Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos relatam que o procedimento adotado pela UnB gerou constrangimentos e dilemas de identidade entre os candidatos:

‘Os responsáveis pelo vestibular da UnB por diversas ocasiões reiteram que a meta da comissão era o de analisar as características físicas, visando identificar traços da raça negra. Esse objetivo gerou constrangimentos diversos e dilemas identitários de não pouca monta entre os candidatos ao vestibular, devido às dúvidas de se os critérios seriam mesmo o de aparência física (negra) ou de (afro-)descendência. A candidata Ana Paula Leão Paim, a princípio na dúvida sobre se se declararia ‘negra’, foi convencida pelo argumento da mãe, que lhe disse que sua ‘tataravó era escrava’. Contudo, ainda assim, Ana Paula estava preocupada pois, segundo ela, ‘pela fotografia não dá para analisar a descendência’. Outra candidata, Elizabete Braga, que ‘não se intimidou com a fotografia’, comentou: ‘Minha irmã não seria considerada negra, por exemplo. Ela é filha de outro pai, tem a pele mais clara e o cabelo mais liso’ (Borges, 2004). Ricardo Zanchet, um candidato que se declarou ‘negro’, ainda que ‘com a pele clara, cabelo liso e castanho... nem de longe lembra[ndo] um negro’, e cuja classificação não foi aceita pela comissão, afirmou: ‘Vou levar a certidão de nascimento de meu avô e mostrar a eles... Se meu avô e minha bisavó eram negros, eu sou fruto de miscigenação e tenho direito’ (Paraguassú, 2004).

(...)

Se a primeira etapa do trabalho de identificação racial da UnB foi conduzido pela equipe da ‘anatomia racial’, a segunda foi conduzida por um comitê de ‘psicologia racial’. Trinta e quatro dos 212 candidatos com inscrições negadas na primeira etapa entraram com recurso junto à UnB. Uma nova comissão foi formada ‘por professores da UnB e membros de ONGs’, que exigiu dos candidatos um documento oficial para comprovar a cor. Foram ainda submetidos à entrevista (gravada, transcrita e registrada em ata) na qual, entre outros tópicos, foram questionados acerca de seus valores e percepções: ‘Você tem ou já teve alguma ligação com o movimento negro? Já se sentiu discriminado por causa da sua cor? Antes de se inscrever no vestibular, já tinha pensado em você como um negro?’ (Cruz, 2004). O candidato Alex Fabiany José Muniz, de 23 anos, um dos beneficiários da nova rodada da seleção das cotas, conseguiu um certificado comprovando que era pardo ao levar a certidão de nascimento e uma foto dos pais. Conforme seu depoimento, ‘a entrevista tem um cunho altamente político... perguntaram se eu havia participado de algum movimento negro ou se tinha namorado alguma vez com alguma mulata’ (Darse Júnior, 2004).’ (MAIO, Marcos Chor; e SANTOS, Ricardo Ventura. Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília [UNB]. Documento juntado à fls. 219-221 dos autos)

Em 2004, o irmão da candidata Fernanda Souza de Oliveira, filho do mesmo pai e da mesma mãe, foi considerado ‘negro’, mas ela não. Em 2007, os gêmeos idênticos Alex e Alan Teixeira da Cunha foram considerados de ‘cores diferentes’ pela comissão da UnB. Em 2008, Joel Carvalho de Aguiar foi considerado ‘branco’ pela Comissão, enquanto sua filha Luá Resende Aguiar foi considerada ‘negra’, mesmo, segundo Joel, a mãe de Luá sendo ‘branca’.

A adoção do critério de análise do fenótipo para a confirmação da veracidade da informação prestada pelo vestibulando pode suscitar alguns problemas. De fato, a maioria das universidades brasileiras que adotaram o sistema de cotas ‘raciais’ seguiram o critério da autodeclaração associado ao critério de renda.

A Comissão de Relações Étnicas e Raciais da Associação Brasileira de Antropologia (Crer-ABA), em junho de 2004, manifestou-se contrária ao critério adotado pela UnB, nos seguintes termos:

‘A pretensa objetividade dos mecanismos adotados pela UnB constitui, de fato, um constrangimento ao direito individual, notadamente ao da livre autoidentificação. Além disso, desconsidera o arcabouço conceitual das ciências sociais, e, em particular, da antropologia social e antropologia biológica. A Crer-ABA entende que a adoção do sistema de cotas raciais nas Universidades públicas é uma medida de caráter político que não deve se submeter, tampouco submeter aqueles aos quais visa beneficiar, a critérios autoritários, sob pena de se abrir caminho para novas modalidades de exceção atentatória à livre manifestação das pessoas.’ (MAIO, Marcos Chor; e SANTOS, Ricardo Ventura. Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília [UNB]. Documento juntado à fls. 228 dos autos)

Defendendo a adoção do critério da autodeclaração no lugar da análise do fenótipo, Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos concluem que:

‘A comissão de identificação racial da UnB operou uma ruptura com uma espécie de ‘acordo tácito’ que vinha vigorando no processo de implantação do sistema de cotas no país, qual seja, o respeito à auto-atribuição de raça no plano das relações sociais. A valorização desse critério, próprio das sociedades modernas e imprescindível em face da fluidez racial existente no Brasil, cai por terra a partir das normas estabelecidas pela UnB.’ (MAIO, Marcos Chor; e SANTOS, Ricardo Ventura. Política de Cotas Raciais, os ‘Olhos da Sociedade’ e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília [UNB]. Documento juntado à fls. 231 dos autos.)

Ademais, parece haver certo consenso quanto à necessidade de que os programas de ações afirmativas sejam limitados no tempo, devendo passar por avaliações empíricas rigorosas e constantes. Nesse sentido, inclusive, o ‘Plano de Metas para a integração social, étnica e racial da Universidade de Brasília’ é exemplar, ao prever a disponibilidade da reserva de vagas pelo período de 10 anos apenas (fl. 98).

Na qualidade de medidas de emergência ante a premência e urgência de solução dos problemas de discriminação racial, as ações afirmativas não constituem subterfúgio e, portanto, não excluem a adoção de medidas de longo prazo, como a necessária melhora das condições do ensino fundamental no Brasil.

Outro importante aspecto a ser considerado diz respeito às dificuldades de acesso ao ensino superior no Brasil. Sabemos que a universidade pública é altamente excludente. De um lado, é preciso alargar a reflexão, para que não esqueçamos que a análise do acesso à universidade é fundamental, mas é apenas uma parcela do debate de uma democracia inclusiva. O que se quer destacar é que devemos pensar a questão em face do modelo de educação brasileiro como um todo, para não buscar soluções apenas na etapa universitária. A valorização e fomento de políticas públicas prioritárias e inclusivas voltadas às etapas anteriores (educação básica) e alternativas (cursos técnicos) são fundamentais, para que não assumamos a universidade como único caminho possível para o sucesso profissional e intelectual.

Ademais, ressalte-se que nosso ensino superior também é excludente, em razão do modelo restrito de vagas ofertadas por quase todos os cursos. Nós, que militamos na universidade pública, podemos verificar a presença de pouquíssimos alunos nas salas de aula, existindo um gasto excessivo com professores em relação ao número de alunos. É o caso da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Recebia 50 alunos por semestre, apenas 100 por ano. Aumentou-se para 60 alunos a cada semestre, não mais do que 120 alunos por ano, com a ampliação do número de professores pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), mantendo-se, assim, a proporção entre o número de vagas e o número de professores. Se considerarmos as vagas do Programa de Avaliação Seriada (PAS) e do Sistema de Cotas para Negros, restam apenas 72 vagas no concurso universal por ano. Por que não aumentarmos o número de vagas por professor? Um número tão reduzido de vagas em universidades públicas é, por si só, um fator de exclusão.

A título de registro, no Brasil se gasta 58,6% da renda per capita/ano por aluno. Na Alemanha, 41,2%; na Austrália, 25,4%; na Coréia, 7,3%; na Irlanda, 27,2%; na Espanha, 22,4%; na Argentina, 17,8%; no Chile, 17,7%; no México, 35% (Cfr.: KAMEL, Ali. Não Somos Racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 136.).

De outro lado, o modelo do concurso universal demanda uma rediscussão. Há uma grande ironia no nosso modelo: somente aqueles que eventualmente passaram por todas as escolas privadas é que lograrão, depois, acesso via vestibular e poderão, então, chegar à escola pública superior, dotadas de conceito de excelência.

Assim, somos levados a acreditar que a exclusão no acesso às universidades públicas é determinada pela condição financeira. Nesse ponto, parece não haver distinção entre ‘brancos’ e ‘negros’, mas entre ricos e pobres. Como apontam alguns estudos, os pobres no Brasil têm todas as ‘cores’ de pele. Dessa forma, não podemos deixar de nos perguntar quais serão as consequências das políticas de cotas raciais para a diminuição do preconceito. Será justo, aqui, tratar de forma desigual pessoas que se encontram em situações iguais, apenas em razão de suas características fenotípicas? E que medidas ajudarão na inclusão daqueles que não se autoclassificam como ‘negros’? Com a ampla adoção de programas de cotas raciais, como ficará, do ponto de vista do direito à igualdade, a situação do ‘branco’ pobre? A adoção do critério da renda não seria mais adequada para a democratização do acesso ao ensino superior no Brasil? Por outro lado, até que ponto podemos realmente afirmar que a discriminação pode ser reduzida a um fenômeno meramente econômico? Podemos questionar, ainda, até que ponto a existência de uma dívida histórica em relação a determinado segmento social justificaria o tratamento desigual.

A despeito de não convivermos com legislações racistas como a dos Estados Unidos, estudos estatísticos apontam para um padrão de vida dos negros muito inferior aos dos brancos. Até que ponto essas informações corroboram a ação afirmativa com base na cor da pele? Quais os critérios utilizados no levantamento de tais dados? Esses estudos poderiam ser questionados?

A petição da Universidade de Brasília (fl. 650) noticia que, segundo a ‘Síntese de Indicadores Sociais – 2006’, realizada pelo IBGE, as informações coletadas convergem para indicar que o critério de pertencimento étnico-racial é altamente determinante no processo de diferenciação e exclusão social. Indicam que ‘a taxa de analfabetismo de pretos (14,6%) e de pardos (15,6%) continua sendo em 2005 mais de o dobro que a de brancos (7,0%)’.

A manifestação do Advogado-Geral da União faz referência à ‘Síntese de Indicadores Sociais – 2008’, também realizada pelo IBGE, segundo a qual ‘em números absolutos, em 2007, dos pouco mais de 14 milhões de analfabetos brasileiros, quase 9 milhões são pretos e pardos, demonstrando que para este setor da população a situação continua muito grave. Em termos relativos, a taxa de analfabetismo da população branca é de 6,1% para as pessoas de 15 anos ou mais de idade, sendo que estas mesmas taxas para pretos e pardos superam 14%, ou seja, mais que o dobro que a de brancos’(fl. 748).

Enquanto muitos se apegam aos dados estatísticos para comprovar a existência de racismo no Brasil, outros, como Ali Kamel, Simon Schwartzman e José Murilo de Carvalho, questionam essas conclusões. Ali Kamel, em obra realizada em 2006, afirma que alguns estudos, muitas vezes, manipulam os dados referentes aos ‘pardos’, ora incluídos entre os ‘negros’, ora considerados à parte. Refere que, segundo o IBGE, os ‘negros’ são 5,9%; os ‘brancos’, 51,4% e os ‘pardos’ 42% dos brasileiros. Afirma que, segundo os dados do PNUD, entre 1982 a 2001, o percentual de ‘negros’ e ‘pardos’ pobres caiu de 58% para 47%, enquanto o de ‘brancos’ pobres se manteve praticamente estável, de 21% para 22%. Comparados esses percentuais com o aumento da população brasileira no período, conclui que ‘a pobreza caiu muito mais acentuadamente entre os negros e pardos do que entre os brancos’. (KAMEL, Ali. Não Somos Racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 49 e 67).

É certo que o Brasil caminha para a adoção de um modelo próprio de ações afirmativas de inclusão social, em virtude das peculiaridades culturais e sociais da sociedade brasileira, que impedem o acesso do indivíduo a bens fundamentais, como a educação e o emprego.

No entanto, é importante ter em mente que a solução para tais problemas não está na importação acrítica de modelos construídos em momentos históricos específicos tendo em vista realidades culturais, sociais e políticas totalmente diversas das quais vivenciamos atualmente no Brasil, mas na interpretação do texto constitucional considerando-se as especificidades históricas e culturais da sociedade brasileira.

Thomas Sowell, PhD em economia pela Chigago University e Professor das universidades de Cornell, Amherst e University of California Los Angeles - UCLA, examinou a aplicação de ações afirmativas em diversos países do mundo e concluiu o seguinte:

‘Inúmeros princípios, teorias, hipóteses e assertivas têm-se utilizados para justificar os programas de ação afirmativa - alguns comuns a vários países do mundo, outros peculiares a determinados países ou comunidades. Notável é o fato de que raramente essas noções são empiricamente testadas, ou mesmo claramente definidas ou logicamente examinadas, muito menos pesadas em relação aos dolorosos custos que muitas vezes impõem. Apesar das afirmativas abrangentes feitas em prol dos programas de ação afirmativa, um exame de suas conseqüências reais torna difícil o apoio a tais programas ou mesmo dizer-se que esses programas foram benéficos ao cômputo geral - a menos que se esteja disposto a dizer que qualquer quantidade de reparação social, por menor que seja, vale o vulto dos custos e dos perigos, por maiores que sejam.’ (SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao redor do mundo: estudo empírico. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. 2ª ed. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, p. 198, 2004)

Infelizmente, no Brasil, o debate sobre ações afirmativas iniciou-se de forma equivocada e deturpada. Confundem-se ações afirmativas com política de cotas, sem se atentar para o fato de que as cotas representam apenas uma das formas de políticas positivas de inclusão social. Na verdade, as ações afirmativas são o gênero do qual as cotas são a espécie. E, ao contrário do que muitos pensam, mesmo nos Estados Unidos o sistema de cotas sofre sérias restrições doutrinárias e jurisprudenciais, como se pode depreender da análise da série de casos julgados pela Suprema Corte, dentre os quais sobressaem o famoso Caso Bakke (Regents of the University of California vs. Bakke; 438 U.S 265, 1978).

Em recentes julgados, a Suprema Corte norte-americana voltou a restringir a adoção de políticas raciais. No caso Parents Involved in Community Schools vs. Seattle School District N. 1. (28 de junho de 2007), no qual se discutiu a possibilidade de o distrito escolar adotar critérios raciais (classificando os estudantes em brancos e não brancos ou negros e não negros) como forma de alocá-los nas escolas públicas, os juízes, por maioria, entenderam desarrazoado o critério e salientaram que "a maneira de acabar com a discriminação com base na raça é parar de discriminar com base na raça". O Justice Kennedy afirmou que, "quando o governo classifica um indivíduo por raça, ele precisa primeiro definir o que ele entende por raça. Quem, exatamente, é branco ou não branco? Ser forçado a viver com um rótulo racial definido pelo governo é inconsistente com a dignidade dos indivíduos em nossa sociedade. É um rótulo que os indivíduos não têm o poder de mudar. Classificações governamentais que obrigam pessoas a marchar em diferentes direções de acordo com tipologias raciais podem causar novas divisões". No caso Ricci et al. vs. DeStefano et. al. (29 de junho de 2009), a Corte, por maioria, entendeu que decisões que tomam como base a questão da raça violam o comando do Título VII do Civil Rights Act de 1964, o qual prevê que o empregador não pode agir de forma diversa por causa da raça do indivíduo.

A matéria atrai, ainda, a análise sobre a noção de reserva da administração e a de reserva de lei. Sabe-se que a reserva de lei, em sua acepção de "reserva de Parlamento", exige que certos temas, dada a sua relevância, sejam objeto de deliberação democrática, num ambiente de publicidade e discussão próprio das casas legislativas. Busca-se assegurar, com isso, a legitimidade democrática para a regulação normativa de assuntos que sensibilizem a comunidade.

A reserva de lei tem especial significado na conformação e na restrição dos direitos fundamentais. A Constituição autoriza a intervenção legislativa no âmbito de proteção dos direitos e garantias fundamentais. O conteúdo da autorização para intervenção legislativa e a sua formulação podem assumir significado transcendental para a maior ou menor efetividade das garantias fundamentais.

Se não bastasse a complexidade que o tema ‘ação afirmativa como mecanismo de inclusão social’ atrai, a definição dos critérios a serem implementados em universidades públicas para definir quem faz jus ao benefício constitui matéria que amplia direitos de uns com imediata repercussão na vida de outros. Ao reservar 20% (vinte por cento) das vagas para determinado segmento da sociedade, outra parcela estará privada desse percentual de vagas.

Todas as ações que visem a estabelecer e a aprimorar a igualdade entre nós são dignas de apreço. É importante, no entanto, refletir sobre as possíveis consequências da adoção de políticas públicas que levem em consideração apenas o critério racial. Não podemos deixar que o combate ao preconceito e à discriminação em razão da cor da pele, fundamental para a construção de uma verdadeira democracia, reforce as crenças perversas do racismo e divida nossa sociedade em dois pólos antagônicos: ‘brancos’ e ‘não brancos’ ou ‘negros’ e ‘não negros’.

Todas essas questões deverão ser objeto de apreciação pelo Plenário desta Corte, que se pronunciará, em momento oportuno, sobre o inteiro teor do pedido de medida cautelar. Deverá o Tribunal, ainda, analisar o cabimento desta ação e a eventual possibilidade de seu conhecimento como ADI, em razão da peculiar natureza jurídica de seu objeto.

O questionamento feito pelo Partido Democratas (DEM) é de suma importância para o fortalecimento da democracia no Brasil. As questões e dúvidas levantadas são muito sérias, estão ligadas à identidade nacional, envolvem o próprio conceito que o brasileiro tem de si mesmo e demonstram a necessidade de promovermos a justiça social. Somos ou não um país racista? Qual a forma mais adequada de combatermos o preconceito e a discriminação no Brasil? Desistimos da ‘Democracia Racial’ ou podemos lutar para, por meio da eliminação do preconceito, torná-la uma realidade? Precisamos nos tornar uma ‘nação bicolor’ para vencermos as ‘chagas’ da escravidão? Até que ponto a exclusão social gera preconceito? O preconceito em razão da cor da pele está ligado ou não ao preconceito em razão da renda? Como tornar a Universidade Pública um espaço aberto a todos os brasileiros? Será a educação básica o verdadeiro instrumento apto a realizar a inclusão social que queremos: um país livre e igual, no qual as pessoas não sejam discriminadas pela cor de sua pele, pelo dinheiro em sua conta bancária, pelo seu gênero, pela sua opção sexual, pela sua idade, pela sua opção política, pela sua orientação religiosa, pela região do país onde moram etc.?

Mas, enquanto essa mudança não vem, como alcançar essa amplitude democrática? Devemos nos perguntar, desde agora, como fazer para aproximar a atuação social, judicial, administrativa e legislativa às determinações constitucionais que concretizam os direitos fundamentais da liberdade, da igualdade e da fraternidade, nas suas mais diversas concretizações.

Em relação ao ensino superior, o sistema de cotas raciais se apresenta como o mais adequado ao fim pretendido? As ações afirmativas raciais, que conjuguem o critério econômico, serão mais eficazes? Cotas baseadas unicamente na renda familiar ou apenas para os egressos do ensino público atingiriam o mesmo fim de forma mais igualitária? Quais os critérios mais adequados para as peculiaridades da realidade brasileira?

Embora a importância dos temas em debate mereça a apreciação célere desta Suprema Corte, neste momento não há urgência a justificar a concessão da medida liminar.

O sistema de cotas raciais da UnB tem sido adotado desde o vestibular de 2004, renovando-se a cada semestre. A interposição da presente arguição ocorreu após a divulgação do resultado final do vestibular 2/2009, quando já encerrados os trabalhos da comissão avaliadora do sistema de cotas.

Assim, por ora, não vislumbro qualquer razão para a medida cautelar de suspensão do registro (matrícula) dos alunos que foram aprovados no último vestibular da UnB ou para qualquer interferência no andamento dos trabalhos na universidade.

Com essas breves considerações sobre o tema, indefiro o pedido de medida cautelar, ad referendum do Plenário.

Publique-se.

Comunique-se.

Ante o término do período de férias do Tribunal, proceda-se à livre distribuição do processo.

Brasília, 31 de julho de 2009.

Ministro GILMAR MENDES

Presidente

(art. 13, VIII, RI-STF)" [02]

5. Não há posição firmada da AGU acerca do sistema de cotas e, embora a Lei Complementar n. 73, de 10.2.1993, tenha inserido nas atribuições da AGU a assessoria ao Presidente da República (art. 4º), bem como a Lei n. 10.480, de 2.7.2002, remeta a PGF às atividades das Consultorias Jurídicas (art. 10, § 1º), a atuação do advogado público deve ser feita atendendo à legalidade e à supremacia do interesse público sobre o particular. Por isso, as razões da decisão transcrita, por si só, trazem questionamentos e fundamentos suficientes para adotar postura diversa daquela inicialmente pretendida pela FUB, isso em prol do Estado e do povo brasileiro.

6. Não posso deixar de ter em vista a supremacia do interesse público sobre o particular, bem como inúmeras críticas que são feitas ao sistema de cotas raciais e, mais ainda, à forma de acesso às universidades públicas.


Independentemente da decisão, a ser proferida nos autos ADP 186, a discussão sobre a matéria ali contida não pode ser afastada

7. Autoridades que prestaram Informações articularam defesa indireta, a fim de manter o ato impugnado. Todavia, o simples fato de se considerar a arguição de descumprimento de preceito fundamental subsidiária não é suficiente para elidir toda discussão de mérito a ser travada.

8. Cândido Rangel Dinamarco deixou evidente a instrumentalidade do processo, sendo que o seu fim maior, a pacificação social, não pode dar azo à busca incessante de fazer prevalecer a forma em prejuízo da discussão de mérito subjacente, [03] eis que é esta quem efetivamente afeta a ordem jurídica e a paz social. De qualquer modo, o CESPE indaga sobre como proceder para adotar critérios juridicamente seguros para seleção dos candidatos que pretendem ser incluidos no sistema de cotas, razão do meu parecer não poder ficar adstrito unicamente às razões processuais invocadas pelo Presidente da FUB (Reitor da UnB), Diretor do CESPE e Presidente do CEPE.

9. Esclareça-se que o Presidente da FUB é quem deve representá-la em juízo, sendo desnecessário fazer referência às outras autoridades que prestaram informações, até porque está pacificado que as informações sobre os atos dos órgãos colegiados não dependerão das manifestações de todos seus membros, mas apenas do Presidente ou, conforme o caso, Diretor-Geral.

10. Corrobora o fato de estar em curso a ADPF n. 186, sob a relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, com parecer da Procuradoria-Geral da República no sentido de rejeitar a preliminar de não cabimento da ADPF, por ser hipótese de ADI, suscitada pelo Presidente da FUB. Destarte, não poderá este órgão jurídico ficar a mercê da decisão judicial que se operará futuramente.


Não é adequada uma política de "cotas raciais" na Universidade de Brasília

11. Esclareça-se, inicialmente, que a discussão sobre a igualdade é inquietante, assunto que me interessa à luz do pensamento garantista, sobre a qual expus alhures:

"Em primeiro sentido, igualdade representa um valor atribuido a cada diferente pessoa ‘sem distinção’, permitindo que cada pessoa seja diversa e, ao mesmo tempo, como todas as outras. É igualdade formal ou política. Aqui adentra a importância da tolerância, que obriga o respeito às diferenças, tornando intolerável a violação ao respeito das diferenças que formam as diversas identidades das pessoas.

O segundo sentido de igualdade é denominada por Luigi Ferrajoli de substancial ou social. Importa em desvalor associado às diferenças econômicas e sociais. Tais diferenças impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana porque deformam deformam a identidade e determinam a desigualdade. Daí serem intoleráveis. Porém, somente as desigualdades jurídicas que obstam a vida, a liberdade, a sobrevivência serão intoleráveis, cujos limites quantitativos e qualitativos tem análise dificílima na filosofia jurídica e política.

Igualdade, em qualquer dos sentidos, não é uma tese descritiva, mas um princípio normativo, até porque e um juízo de valor ou, mais simplesmente, apenas valor. No primeiro, deve-se reconhecer que os homens são iguais, apesar das diferenças específicas, enquanto que, no segundo sentido, as desigualdades serão reconhecidas, mas com limites de intolerabilidade.

Em todos os casos de igualdade, pode-se falar em igualdade de direitos fundamentais porque as técnicas para assegurar ou perseguir a igualdades, tem em vista a proteção de direitos fundamentais. Ocorre que, no primeiro caso, estar-se-á diante do direito de ver respeitadas suas diferenças, enquanto no segundo de compensação pelas desigualdades". [04]

12. O Exmo. Min. Gilmar Mendes, na decisão transcrita no item 4 deste parecer deixou evidente que a preocupação com a igualdade racial é objeto de discussões políticas, inclusive no plano legislativo. Com efeito, o Projeto do Estatuto da Igualdade Racial, proposto por Senador Paulo Paim, está em evidência porque, em 18.6.2010, foi aprovado um parecer do Senador Demóstenes Torres, o qual exclui as cotas raciais. Observe-se o que há de notícia sobre ele:

"Por acordo partidário, com votação simbólica dos líderes, o Plenário do Senado aprovou no início da noite, em sessão extraordinária, o Estatuto da Igualdade Racial. O projeto, que tramitou por sete anos no Congresso, será enviado imediatamente à sanção do presidente da República. O Senado suprimiu um artigo que previa cotas para negros nas universidades federais e escolas técnicas públicas.

O projeto havia sido votado no início da tarde pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde também houve acordo. A proposta (PLS 213/03) foi apresentada em 2003 pelo senador Paulo Paim (PT-RS). No Plenário, apenas o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), relator da matéria na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, explicou as mudanças que fez na proposta, por meio de supressão, fruto inclusive de negociação com o senador Paulo Paim (PT-RS), representando os movimentos raciais e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Com a supressão de trechos, a matéria não precisa retornar ao exame dos deputados.

Demóstenes Torres, que relatou a matéria na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), foi indicado pelo presidente do Senado, José Sarney, para apresentar parecer em nome das outras comissões por onde a matéria tramitou. No seu parecer, a palavra ‘raça’ foi substituída por ‘etnia’. Demóstenes ponderou que a ciência já mostrou que não há raça negra, branca ou amarela, mas sim raça humana. ‘A diferença entre dois homens de cor diferente, conforme a ciência, não chega a 0,005 por cento’, disse. Demóstenes informou ainda que decidiu suprimir as expressões ‘cotas raciais’, por entender que devem existir cotas sociais. A questão está sendo tratada em outro projeto.

Demóstenes informou ainda ao Plenário a supressão de um artigo inteiro que previa incentivos fiscais para as empresas que mantivessem em seus quadros até 20% de negros. Para ele, o incentivo acabaria se tornando inócuo, pois todas as companhias acabariam reivindicando o benefício. ‘Assim, poderíamos provocar atrito entre a população negra e a branca pobre’, opinou. Ele também recusou um item que previa a inscrição, nos partidos políticos, de 10% de candidatos negros.

Demóstenes Torres disse acreditar que o Estatuto da Igualdade Racial contenta os movimentos sociais e mantém todas as possibilidades de adoção de ações afirmativas em favor da população negra. Para ele, tais ações devem ser tomadas de forma pontual, "e não de maneira genérica, como estava no projeto", e sua adoção ‘poderia acirrar a questão racial no Brasil’.

A senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) disse que pretendia, pela votação de destaques em separado, manter o texto que previa tratamento específico, na saúde pública, para negros, especialmente gestantes negras. Mas, em função do acordo, abriu mão dessa ideia. Já a senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO) anunciou que, apesar do acordo, iria se abster na votação, pois defende as cotas para negros". [05]

13. A Redação final do Projeto de Lei do Senado n. 213, de 2003 (n. 6.264, de 2005, na Câmara dos Deputados), foi dada pelo Parecer n. 923 da Comissão Diretora do Senado Federal, datado de 23.6.2010, o qual exclui cotas raciais, mas as ações são mantidas, in verbis:

"Art. 4º A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:

I – inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social;

II – adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;

III – modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica;

IV – promoção de ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação étnica e às desigualdades étnicas em todas as suas manifestações individuais, institucionais e estruturais;

V – eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada;

VI – estímulo, apoio e fortalecimento de iniciativas oriundas da sociedade civil direcionadas à promoção da igualdade de oportunidades e ao combate às desigualdades étnicas, inclusive mediante a implementação de incentivos e critérios de condicionamento e prioridade no acesso aos recursos públicos;

VII – implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante a educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso a terra, à Justiça, e outros.

Parágrafo único. Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País". [06]

14. É interessante que a universidade, em face do ambiente acadêmico, seja percussora de debates sobre políticas. No entanto, entendo que o pensamento científico deve preponderar. Não sou o único a pensar assim. Nesse sentido: "A ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. É apenas o melhor que temos". [07] Corrobora Bertrand Russel expondo: "A ciência, em nenhum momento, está inteiramente certa, mas é raro estar inteiramente errada e, normalmente, tem maior chance de estar certa que as teorias não-científicas. Portanto, é racional aceitá-la hipoteticamente". [08]

15. A razão de não admitir políticas públicas distantes do anseio acadêmico científico é simples, mormente quando a vontade política deve ser exprimida por órgãos políticos e a vontade legislativa, é evidente, é a de evitar cotas puramente raciais e evitar a instituição de uma nação bicolor, até porque, consta do referido parecer:

"Geneticamente, raças não existem. Na medida em que o Estado brasileiro institui o Estatuto da Igualdade Racial, parte-se do mito da raça. Deste modo, em vez de incentivar na sociedade brasileira a desconstrução da falsa idéia de que raças existem, por meio do Estatuto referido o Estado passa a fomentá-la, institucionalizando um conceito que deve ser combatido, para fins de acabar com o preconceito e com a discriminação.

O genoma humano é composto de 20 mil genes. As diferenças mais aparentes (cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz) são determinadas por um conjunto de genes insignificantemente pequeno se comparado a todos os genes humanos. Para sermos exatos, as diferenças entre um branco nórdico e um negro africano compreendem apenas uma fração de 0,005 do genoma humano. Em outras palavras, toda a discussão racial gravita em torno de apenas 0,035% do genoma, de maneira que não faz qualquer sentido atualmente a crença em raças. Por tal motivo, rejeito qualquer menção à raça no Substitutivo, mantendo apenas menções a cor.

No parágrafo único do art. 4º, rejeitam-se as expressões ‘derivadas da escravidão’, porque, ao aprovar este Projeto de Lei, o Estado brasileiro está olhando para o futuro, vislumbrando horizontes melhores para todos os seus. Sem esquecer os erros cometidos, e esta proposição é prova desse firme propósito, devemos voltar nosso esforço para o futuro e buscar a justiça social para todos os injustiçados, sem qualquer forma de limitação. Pelos mesmos motivos que se excluem as referências a raças, rejeita-se o inciso I do art. 7º.

Do inciso IV do art. 7º, rejeitam-se as expressões ‘fortalecer a identidade negra e’, porquanto não existe no Brasil uma ‘identidade negra’, paralela a uma ‘identidade branca’. O que existe é uma identidade brasileira. Apesar de existentes, o preconceito e a discriminação no País não serviram para impedir a formação de uma sociedade plural, diversa e miscigenada, na qual os valores nacionais são vivenciados pelos negros e pelos brancos.

No Brasil, a existência de valores nacionais, comuns a todas as cores quebra o estigma da classificação identitária maniqueísta. Encontram-se elementos da cultura africana em praticamente todos os ícones do orgulho nacional, seja na identidade que o brasileiro tenta construir, seja na imagem do País difundida no exterior, como samba, carnaval, futebol, capoeira, pagode, chorinho, mulata e molejo. Desse modo, existem valores nacionais brasileiros que são comuns a todos os tipos e cores que formam o povo. Por nunca ter havido a segregação das pessoas por causa da cor, foi possível criar um sentimento de nação que não distingue a cultura própria dos brancos da cultura dos negros. A unidade do Brasil não depende da pureza das cores, mas antes da lealdade de todas elas a certos valores essencialmente panbrasileiros, de importância comum a todos.

Rejeita-se o art. 9º, em sua totalidade, e a quase inteireza do art. 10, remanescendo apenas o seu parágrafo único, que está sendo incorporado ao art. 8º. Tais rejeições são motivadas pelo total equívoco de o conceito de raça ser considerado relevante para indicar a predisposição a doenças ou a resposta a fármacos. Isso não corresponde à realidade.

Trata-se de posição ultrapassada que foi derrubada pelas descobertas recentes da genética. O baixo grau de variação genética entre os seres humanos e a estruturação da espécie humana são incompatíveis com a existência de raças como entidades biológicas, e indicam que considerações de cor e/ou ancestralidade geográfica pouco ou nada contribuem para a prática médica, especialmente no cuidado do paciente individual.

Mesmo doenças ditas raciais, como a anemia falciforme, decorrem de estratégias evolucionárias de populações expostas a agentes infecciosos específicos. Nada tem a ver com a cor da pele. O conceito social de raça é tóxico, contamina a sociedade como um todo e tem sido usado para oprimir e fomentar injustiças, mesmo dentro do contexto médico". [09]

16. No campo específico das "cotas raciais", o parecer é esclarecedor, in verbis:

"O inciso V do art. 15, bem como a criação da Subseção Única – Do Sistema de Cotas na Educação e as expressões ‘destinados a assegurar o preenchimento de vagas pela população negra nos cursos oferecidos pelas instituições públicas federais de educação superior e nas instituições públicas federais de ensino técnico de nível médio’ do art. 17, merecem rejeição porque o acesso à universidade e ao programa de pós-graduação, por expressa determinação constitucional, deve-se fazer de acordo com o princípio do mérito e do acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística segundo a capacidade de cada um (art. 208, inciso V, da Constituição Federal).

(...)

NO ART. 15

Rejeite-se do art. 15 do SCD n. 213, de 2003, o inciso V, ficando o referido artigo com a seguinte redação:

Art. 15. O Poder Executivo federal, por meio dos órgãos competentes, incentivará as instituições de ensino superior públicas e privadas, sem prejuízo da legislação em vigor, a:

I – resguardar os princípios da ética em pesquisa e apoiar grupos, núcleos e centros de pesquisa, nos diversos programas de pós-graduação, que desenvolvam temáticas de interesse da população negra;

II – incorporar nas matrizes curriculares dos cursos de formação de professores temas que incluam valores respeitantes à pluralidade étnico-racial e cultural da sociedade brasileira;

III – desenvolver programas de extensão universitária destinados a aproximar jovens negros de tecnologias avançadas, assegurado o princípio da proporcionalidade de gênero entre os beneficiários;

IV – estabelecer programas de cooperação técnica, nos estabelecimentos de ensino públicos, privados e comunitários, com as escolas de educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e ensino técnico para a formação docente baseada em princípios de equidade, de tolerância e de respeito às diferenças raciais.

NA SUBSEÇÃO ÚNICA – DO SISTEMA DE COTAS NA EDUCAÇÃO

Rejeite-se a criação da subseção.

NO ART. 17

Rejeite-se do art. 17 do SCD nº 213, de 2003, as expressões ‘destinados a assegurar o preenchimento de vagas pela população negra nos cursos oferecidos pelas instituições públicas federais de educação superior e nas instituições públicas federais de ensino técnico de nível médio’, ficando o referido artigo com a seguinte redação: Art. 17. O poder público adotará programas de ação afirmativa.

NO ART. 18

Rejeite-se do art. 18 do SCD nº 213, de 2003, a expressão ‘racial’, e promova-se a emenda de redação modificando a expressão ‘Subseção’ para ‘Seção’, ficando o referido artigo com a seguinte redação:

Art. 18. O Poder Executivo federal, por meio dos órgãos responsáveis pelas políticas de promoção da igualdade e de educação, acompanhará e avaliará os programas de que trata esta Seção." [10]

17. Parece-me que a UnB, juridicamente, tende a se afastar do academicismo, o que pode servir de meio para tutelar iniciativas despidas de aspectos científicos que as ampare. A política de cotas deve passar, primeiramente, por critérios científicos, sendo que a análise puramente racial não é razoável.

18. Preocupa-me a ação de governo que venha a destoar da atuação política, visto que, caso haja aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, haverá um descompasso entre a proposta defendida pela Universidade de Brasília e o ordenamento jurídico legislado, uma vez que este refuta o estabelecimento de cotas raciais e o estabelecimento de cotas sociais é objeto de análise em outro projeto de lei. Destarte, a UnB está exercendo uma atividade de vanguarda louvável, isso no tocante de provocar a discussão sobre o tema, mas a atuação dos agentes públicos deverá atender à legalidade estrita.

19. No plano das ações afirmativas, o caso mais emblemático é Regents of the University of California v. Bake, decidido em 1.978 pela Suprema Corte estadunidense e que teve como relator o Juiz Lewis Powell, nomeado para a corte no ano de 1.972, no qual se afirmou que qualquer ação afirmativa pode ser compatível com a Constituição, desde que adequadamente concebido. [11] De qualquer modo, deve-se alertar para a correta conclusão que se impõe: "Nas sociedades modernas atuais, o racismo, enquanto sistema se manifesta e exterioriza-se apenas por meio de duas situações: a pobreza e a não-cidadania". [12]

20. Pessoa merecedora de grande respeito e que tem seu mérito acadêmico indiscutível é o Prof. Dr. Eduardo Rabenhorst, o qual, acerca do conceito de raça, esclarece:

"Em 1950, a Unesco patrocinou um grande dabate com renomados cientistas, antropológos, biológos e geneticistas, acerca do conceito de raça. O consenso obtido nesse encontro foi o de que tal conceito é, na verdade, apenas um princípio meramente convencional de classificação, destituido de qualquer valor científico. Do ponto de vista genético, afirmam tais cientistas, é absolutamente impossível estabelecer uma linha demarcatória entre as raças, pois a diversidade genética é muito mais ampla no âmbito de um grupo humano do que entre os diversos grupos". [13]

21. O insigne Prof. Dr. Eduardo Rabenhorst entende que a discriminação positiva, caracterizada pelas ações afirmativas, não constitui racismo às avessas e sustenta que ver a discriminação positiva como indício de simples revanchismo é confundir a vítima com o agressor. [14] Não obstante a percuciência do jusfilósofo mencionado, devo chamar a atenção para alguns aspectos que são importantes.


A dignidade da pessoa humana é valor

22. Os fundamentos (ou princípios fundamentais) da República Federativa do Brasil incluem, dentre eles, a dignidade da pessoa humana. Esta deve ser preservada por muitas ações metajurídicas, não apenas por discriminações positivas normativas. Aliás, não me canso de citar Luís Barroso para dizer que a maioria das soluções da sociedade complexa é metajurídica. [15]

23. Não me parece que o argumento em prol da dignidade da pessoa se esgote apenas em discussões jurídicas. A dignidade da pessoa humana, após ampla pesquisa que fiz, [16] pode ser conceituada como o valor de cada pessoa humana poder se firmar com sua própria personalidade e liberdade de ser ela própria, titular de direitos e obrigações que permitam uma vida com padrões mínimos de razoabilidade e aceitabilidade em um Estado de Direito.

24. O problema é que encontramos brasileiros em situação de completa miséria, isso independe da cor da pele. Então, emerge o seguinte discurso:

"A situação de pobreza, e mesmo de indigência em que se encontra grande parte da população brasileira constitui-se, por si só, num mecanismo de inferiorização individual, e conduz a formas de dependências e subordinação pessoal, suficientes para explicar certas condutas discriminatórias. Se tais condutas podem ser observadas em relação a não-negros, isso ajuda ainda mais a dissimular o racismo, do ponto de vista das ações individuais". [17]

25. O Ministério da Educação reconhece que as ações para combate ao racismo precisam ser enfrentadas a partir de múltiplas propostas, inclusive modificação de postura no ensino fundamental, sendo inúmeras as alterações que precisam ser feitas em tal nível, não apenas pelo pretenso racialismo. [18]

26. Thales Azevedo ensina que a Bahia conserva muito da cultura africana e que podemos falar de cultura "afro-brasileira", o que não pode ser dito de "cultura afro-americana". [19] Com efeito, a apresentação feita pela Secretária de Educação Superior, Dr.ª Maria Paula Dallari Bucci, não convence, uma vez que sempre ficou ao critério dos entrevistados (nas pesquisas de campo) dizer sobre o conceito de raça e, sem exceção, os especialistas e o IBGE relatam que apenas uma pequena parcela da população se identifica como negra.


Não se tutela direito fundamental por meio da política adotada pela UnB

27. Devo esclarecer que fiquei com este processo por um ano. Fiz isso porque fiquei em dúvida e decidi fazer um esforço para tentar encontrar um critério razoável para estabelecimento de critérios seguros para dizer qual é o fenótipo do negro. A minha preocupação foi publicada na rede mundial de computadores, in verbis:

"O CESPE/UnB fez uma consulta sobre procedimento de seleção dos candidatos à reserva de cotas raciais, sendo que tenho muitas dúvidas sobre o assunto, estando pesquisando o mesmo, até porque a UnB tem critério puramente racial (as demais universidades preferem sócio-racial).

Pesquisei na página do STF, em face da consulta pública realizada ali, e fiquei surpreso ao ver que o notável Professor Dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho foi quem inaugurou a apresentação do tema. A surpresa se deve ao fato de conhecer a notoriedade do mesmo em relação ao índio, não ao negro. Isso ficou evidente na apresentação do tema, eis que o culto pesquisador tratou da inclusão de índios, pouco mencionando negros (Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico =processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa. Acesso em: 18.3.2009, às 9h).

Em uma rara referência aos negros, o referido professor disse:

‘É de se notar que atualmente não há nenhuma Universidade nacional que adote cotas para as populações indígenas, mas há muitos convênios firmados para a participação de indígenas em programas de Universidades, inclusive de pós graduação. Este fato reforça a necessidade ainda mais a necessidade de cotas para negros, tendo em vista que a busca da igualdade por meio de leis e políticas públicas, como se viu é muito mais efetiva e ampla em relação aos povos indígenas, e muito mais restritiva em relação a negros’.

Essa afirmação causa a minha inquietação, exigindo estudo, até porque não posso me contentar com o conhecimento vulgar. Somente com base em método de estudo poderei desenvolver um texto científico sobre o assunto". [20]

28. Eduardo Rabenhorst sustenta que não é razoável refutar a discriminação positiva (ação afirmativa) sob o fundamento de não ser ela científica porque pode ocorrer da ciência vir a apresentar uma real distinção entre as pessoas de origens diversas, o que esvaziará todos argumentos contrários a ela. [21] Data venia, conforme exposto anteriormente, é melhor a adoção de teoria científica do que de qualquer teoria não-científica porque esta é menos segura. Daí buscar conhecer os dados que se apresentam.

29. Acerca da minha preocupação com o tema, considero importante outro texto que disponibilizei na rede mundial de computadores, in verbis:

"Estou deveras inquieto com o assunto relativo às cotas raciais. Os argumentos do Ministério da Educação, sustentados perante o STF pela Professora Dr.ª Maria Paula Dallari Bucci, por si mesmos, não me convencem.

(...) não sei até que ponto se pode afirmar: ‘As ações afirmativas não afastam nem prejudicam o mérito estudantil e acadêmico’, ou ainda ‘Na Universidade Estadual de Londrina/UEL, estudos demonstram que os cotistas "pretos ou pardos, oriundos de escola pública tem apresentado melhores resultados no tocante a desistência/evasão’.

As ações afirmativas com cotas raciais se iniciaram neste século (a UnB foi a primeira a inserir o sistema de cotas no vestibular, em Jun/2004), mas a representante do Ministério da Educação (MEC), acima nominada, sustentou:

‘Em 1997, cerca de 3% dos jovens brancos com mais de 16 anos frequentavam o ensino superior; entre os jovens negros este percentual estava em torno de 1%;

Em 2007, 5,6% dos jovens brancos frequentavam o ensino superior, e 2,8% dos jovens negros com 16 anos ou mais estavam nesta condição’.

A ação afirmativa não tem produzido resultado positivo? Tomando só tais dados por base, poderia afirmar que as cotas raciais não tem produzido os efeitos esperados porque o acesso de ‘pretos e pardos’ (feia a denominação usada pelo MEC. Porém, pior é ‘afrodescendente’ também utilizada na exposição pública daquele ministério), depois do início do programa de inclusão de negros no ensino superior, continua a mesma de 1.997". [22]

30. José Afonso da Silva tem razão ao demonstrar uma situação notória, visto que o Brasil tem instituições públicas de ensino superior que seleciona alunos que tem origem nas classes mais elevadas da sociedade, sendo que os mais pobres estudam em faculdades privadas. [23] O pretenso racialismo proposto pela UnB, data venia, tende a privilegiar negros e pardos de classes sociais mais elevadas, visto que desprezado qualquer outro critério.

31. Uma discussão que se faz oportuna, refere-se às distorções numéricas nas apresentações das estatísticas, sobre o que já me manifestei alhures:

"Tenho lido atentamente os textos do Prof. Dr. José Jorge de Carvalho, do Departamento de Antropologia da UnB, isso porque não estou convencido sobre o acerto da ação afirmativa tendente à reserva de cotas nas universidades, mediante critério puramente racial.

A literatura especializada afirma, à unanimidade, que as estatísticas criminais não são confiáveis, sempre haverá certa margem de insegurança porque existirão ‘as cifras negras’. No entanto, o Prof. José Jorge afirma:

‘O lado mais brutal dessa suposta cordialidade racial aparece nas nossas estatísticas oficiais: o número de negros assassinados no Brasil por serem negros (ou seja, crimes de racismo) nas últimas décadas não é menor que os assassinatos equivalentes na África do Sul e nos Estados Unidos. De 1966 para cá, assistimos a grandes transformações nas sociedades da África do Sul e dos Estados Unidos e pelo menos uma parte da violência racial que as caracterizava foi pacificada". (Dia Internacional contra a Discriminação Racial: seu significado para o Brasil em 2010.’ (Disponível em: http://www.unb.br/ noticias/unbagencia/a rtigo.php?id=245. Acesso em 21.3.2010, às 8h).

Matar por motivação racial, em que se pretenda eliminar um grupo no todo em parte, será genocídio (Lei n. 2.889, de 1.10.1956), sendo que não está demonstrada a estatística que sustente a afirmação do douto docente.

Há um texto muito mencionado na rede mundial de computadores, o qual teria sido publicado no Jornal O Globo de 27.12.2004. Pesquisei e não o localizei na página eletrônica ‘Globo’. Porém, reproduzo o texto porque extremamente coerente:

‘Está em andamento no Brasil uma tentativa de genocídio racial perpetrado com a arma da estatística. A campanha é liderada por ativistas do movimento negro, sociólogos, economistas, demógrafos, organizações não-governamentais, órgãos federais de pesquisa. A tática é muito simples. O IBGE decidiu desde 1940 que o Brasil se divide racialmente em pretos, brancos, pardos, amarelos e indígenas. Os genocidas somam pretos e pardos e decretam que todos são negros, afro-descendentes. Pronto. De uma penada, ou de uma somada, excluem do mapa demográfico brasileiro toda a população descendente de indígenas, todos os caboclos e curibocas. Escravizada e vitimada por práticas genocidas nas mãos de portugueses e bandeirantes, a população indígena é objeto de um segundo genocídio, agora estatístico. A não ser pelos trezentos e tantos mil índios, a América desaparece de nossa composição étnica. Restam Europa e África.

O problema da cor ou raça persegue nossos demógrafos e estatísticos desde 1849. Haddock Lobo, organizador do censo do Rio de Janeiro desse ano, rejeitou o item cor por considerar essa classificação odiosa, além de inconfiável pela ‘infidelidade com que cada indivíduo faria de si próprio a necessária declaração’. O primeiro censo nacional, feito em 1872, enfrentou o problema e dividiu as raças (não se diferenciava raça de cor) em branca, preta, parda e cabocla (indígena). Os responsáveis pelo censo de 1890 substituíram pardo por mestiço, argumentando, corretamente, que a cor parda ‘só exprime o produto do casamento do branco com o preto’. O censo de 1920 eliminou o item raça porque ‘as respostas ocultavam em grande parte a verdade’, sobretudo as respostas dos mestiços. O registro de cor foi reintroduzido no censo em 1940, quando voltaram os pardos e se estabeleceu o padrão atual, com a única diferença que hoje se separam amarelos (asiáticos) e indígenas.

Retrocedeu-se a 1872, ignorado o alerta feito em 1890. Os descendentes de indígenas ficaram embutidos na classificação de pardos, da qual são agora definitivamente enxotados. Ora, é óbvio para qualquer um que os 39% de pardos do censo de 2000 se compõem em boa parte de descendentes de indígenas. Aí está, aliás, a razão de ser do tribunal racial da Universidade de Brasília, destinado a apontar entre os pardos os afro-descendentes. A Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE, de 1998, mostrou que as pessoas classificadas como pardas pelos critérios impostos, quando deixadas livres para se autoclassificarem se disseram morenas e morenas claras em 60% dos casos. Apenas 34% dos pardos concordaram com essa classificação e apenas 2% se disseram mulatos. Pesquisa feita na Região Metropolitana do Rio de Janeiro em 1997 revelou que 50% dos que foram classificados de pardos pelos entrevistadores se disseram morenos ou brancos. Outra pesquisa no Rio, de 2000, mostrou que 48% dos pardos diziam ter antecedentes indígenas. Nos estados do Norte, onde foi fraca a presença da escravidão africana, os descendentes de indígenas formam sem dúvida a grande maioria dos pardos.

A inspiração do genocídio vem naturalmente dos Estados Unidos. Mas a operação é falaciosa. Para corrigir os males de uma sociedade em preto e branco, os americanos começaram a valorizar todas as etnias. Como se sabe, não existem mais americanos. Lá, as pessoas são euro, afro, latino, nativo, asiático-americanas. Professores brasileiros quando vão dar aulas por lá têm que se autoclassificar racialmente. Eu sou latino. Importou-se essa valorização das etnias. A falácia consiste em ter sido ela importada não para acabar com a polarização, mas para implantá-la num país em que ela não existia. Valorizam-se duas cores, raças, etnias, seja lá o que for, com exclusão das outras. Viramos um país em preto e branco, ou melhor, em negro e branco.

Deixados livres para definir sua cor, os brasileiros exibem enorme variedade e grande ambigüidade. Essa riqueza foi aprisionada no leito de Procusto das cinco categorias pré-codificadas do IBGE. Os americanizantes querem mutilá-la ainda mais, reduzindo-a a polarização branco-negro. Se for para valorizar as etnias, vamos copiar direito os americanos. Vamos incluir todas as etnias, sem esquecer a dos primitivos habitantes do país, instaurando entre nós a sociedade hifenizada. Para isso, nenhuma das opções dos censos, de 1872 a 2000, é satisfatória’. (Genocídio racial estatístico. Disponível em: http://www.academia.org.brabl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm? infoid=1493&sid=396&tpl=printerview. Acesso em: 21.3.2010, às 8h30).

No meu Execução Criminal: Teoria e Prática (6. ed. São Paulo: Atlas, 2010) procuro destruir certos mitos, dentre eles a idéia de que prisão é lugar dos ‘Três P's’, até porque as estatísticas prisionais vem apresentando maior número de brancos.

O assunto precisa ser examinado de forma mais profunda, bem como devemos ter maior cuidado com estatísticas. Não vejo acusações no foro por genocídio racial de branco contra negro, o que me leva a ver com certo cuidado a afirmação do docente que mais defende as cotas raciais na UnB." [24]

32. As "cifras negras" constituem a criminalidade não elucidada ou não revelada. [25] Elas nos dão uma falsa percepção da efetiva criminalidade, sendo que fico perplexo ao verificar acadêmicos renomados, docentes experientes, tratando de estatísticas criminais com certezas profundas, mormente sem uma expertise no assunto.

33. A criminologia tem associado a maior criminalidade entre as pessoas de pele preta ou parda, em face de uma tradição cultural, de aspectos sociais e educacionais. Aliás, em Alessandro Baratta encontraremos o próprio sistema punitivo estatal contribuindo para o crescimento da criminalidade. [26] De qualquer modo, posso afirmar que os presídios brasileiros não são dotados, dominantemente, de pessoas negras (pretas e pardas). [27]

34. Diz-se que os números apresentados em favor do sistema de cotas raciais não são falseados. Todavia, Thales Azevedo ensina que a Bahia conserva muito da cultura africana e que podemos falar de cultura "afro-brasileira", o que não pode ser dito de "cultura afro-americana". [28] Isso evidencia que há uma diferença suficiente para rechaçar modelos e teorias provindas dos Estados Unidos da América em favor do estabelecimento de um racialismo tendente a estabelecer uma cultura bicolor, em pretos e brancos.

35. O exposto me leva a não admitir a exposição da Secretária de Educação Superior (item 24), baseada em equivocadas premissas, dados não comprovados, até porque, ratifica-se, sempre foram os entrevistados quem disseram as suas cores, havendo notória preferência pela declaração de que não é preto ou pardo.

36. Devo concordar com a Professora Yvonne Maggie, que expõe:

"Fica evidente que o movimento pró-cotas raciais não está interessado em promover a justiça social e muito menos em diminuir as desigualdades. Seu objetivo é produzir identidades raciais bem delimitadas fazendo os brasileiros optarem pelo mesmo sistema dos países que adotaram leis raciais como os EUA, Ruanda e África do Sul. E não se iludam os que pensam que as leis raciais serão temporárias. Elas virão para ficar e irão se espalhar, como erva daninha, em todas as instituições, na mente e no coração dos brasileiros transformados em cidadãos diversos e legalmente definidos pela cor de sua pele". [29]

37. Conforme exposto anteriormente, toda igualdade material tenderá a equivaler situações desiguais, tornar efetiva a igualdade formal, mas isso não importa em discriminar positivamente pretos e pardos ricos em desfavor de brancos pobres. Esse racialismo não tenderá à igualdade, mas em uma insuportável distinção violadora do art. 5º, caput, da Constituição Federal.

38. A idéia de que o valor fundamental da fraternidade é essencial para equiparar forças diferentes, precisa ser examinada cientificamente. Com efeito, as incoerências mencionadas pelo Min. Gilmar Ferreira Mendes em sua decisão interlocutória (item 4), evidenciam a ausência de critério seguro para o que se propõe.

39. Boaventura de Sousa Santos fez um artigo sucinto em defesa das cotas raciais, instituidas pela UnB, mencionando, inclusive a questão judicializada pelo DEM. [30] Não me parece ser o momento adequado para nos quedarmos ao argumento de autoridade, nem à idéia de um revanchismo ou de dívida com os descendentes de escravos. Correta é a proposição da Comissão Diretora do Senado Federal, que em seu Parecer n. 923 propôs um olhar para frente, pois um projeto ou programa a ser instituido pode examinar o passado, mas deve ter em vista o futuro.

40. Seria mais fácil defender o sistema de cotas da UnB se ela apresentasse critérios mais seguros. A UERJ, por exemplo, apresenta o seguinte histórico em seu sistema de cotas:

"A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi a primeira instituição de ensino superior brasileira a reservar vagas em seu vestibular. A iniciativa foi do então Governador do Estado, Anthony Garotinho, que em 2002 estabeleceu reserva de 50% das vagas nos vestibulares das universidades estaduais — UERJ e Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), em Campos — para alunos egressos de escolas públicas do estado.

Na ocasião, o vestibular 2003 já estava em curso e teve que acontecer dividido em dois: o SADE (Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes do Ensino Médio), para a reserva de vagas, e o chamado vestibular estadual, sem cotas. Foram dois vestibulares distintos, com grau de dificuldade similar.

No mesmo ano, a Assembléia Legislativa (Alerj) aprovou uma lei estabelecendo 40% das vagas das universidades estaduais para negros, com o critério da autodeclaração. Tal percentual era aplicado primeiro sobre a cota de 50% para escolas públicas (SADE) e em seguida sobre as vagas não reservadas do vestibular estadual.

No ano seguinte, a UERJ propôs sugestões ao projeto, como a unificação das duas modalidades de cotas. O vestibular 2004, então, reservou 20% das vagas para alunos de escolas públicas, 20% para negros e 5% para deficientes físicos e minorias étnicas. Os candidatos às cotas só concorriam por uma das modalidades e tinham que comprovar carência financeira: renda máxima de R$ 300,00 líquidos por pessoa da família.

Em 2004, a Universidade manteve os mesmos percentuais para o vestibular 2005 mas reformulou o critério da carência financeira, que passou para R$ 520,00 brutos por pessoa da família.

Em 2005, as alterações votadas pelo Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão da UERJ para o vestibular 2006 foram: estabelecimento de nota mínima de 20 pontos em 100 pontos e, na segunda fase, supressão de uma das três provas discursivas sobre matérias específicas para cada carreira, sendo Língua Portuguesa obrigatória para todas as áreas. Tais modificações são válidas para todos os candidatos do vestibular, cotistas e não cotistas.

No ano de 2007, o Governador do Estado, Sérgio Cabral Filho, sancionou lei que incluiu os filhos de policiais, bombeiros e agentes penitenciários mortos em serviço, no percentual de 5% das vagas já reservadas para deficientes físicos e minorias étnicas.

Atualmente, a UERJ possui cerca de nove mil alunos cotistas.

O limite de renda em vigor para estudantes que pretendem concorrer às vagas de cotas é de R$ 630,00 brutos por pessoa da família". [31]

41. A declaração racial é livre, tanto na UERJ quanto na UnB. Complicado é dizer qual é o critério fenotípico a ser adotado pela comissão de seleção, a fim de admitir ou rejeitar os candidatos que optarem pelo sistema de cotas, sendo que não me parece razoável a simples entrevista pessoal, visto que não é razoável estabelecer quais são os traços que autorizam dizer o fenótipo do negro, eis que, conforme enuncia o Parecer n. 923, apenas um mínimo percentual dos gens humanos se referem às cores da pele, dos cabelos e dos olhos.

42. Desmascarado o conceito de raça, é mister verificar se a fraternidade tendente à igualdade não deve passar por critérios sociais mais seguros, antes da análise da "raça" (esta inexistente, visto que só há uma raça humana) ou da cor da pele e outros traços fenotípicos, próprios do conhecimento vulgar e alheios ao científico.

43. A margem de possibilidade de parcialidade na escolha do candidato, em face da entrevista pessoal, será presente como em toda prova oral, sendo que somente este risco não será causa de nulidade do certame. O problema é anterior, visto que a isonomia constitucional exigirá mecanismos seguros e científicos para a igualdade material.

44. Ainda que refutemos a idéia da democracia racial, temos de concordar com Thales de Azevedo, anteriormente citado, no sentido de que o Brasil não vive sequer um ambiente próximo do norte americano, não se podendo pretender dizer que não há preservação da cultura oriunda dos povos africanos que vieram para o Brasil, eis que há o axé, a capoeira e a arte africana em todas as regiões brasileiras, mais acentuadamente na Bahia.

45. Yvonne Maggie também expõe sua experiência educacional, em que as escolhas de parceiros e amigos não passa por uma seleção prévia de cor da pele, o que evidencia ser necessário repensar o critério puramente "racial", até porque não há como definir quem é negro ou pardo apenas pelo fenótipo.

46. A decisão interlocutória do Min. Gilmar Mendes não pode ser interpretada de maneira equivocada. Ela não induz a um mérito favorável ao sistema de cotas instituido pela UnB, sendo que o indeferimento da liminar se deu, fundamentalmente porque a ação foi proposta após as inscrições para o vestibular que procurava impugnar, mas apresenta elementos consistentes para julgar procedente ou improcedente o pedido.

47. Não há como falar cientificamente em preconceito racial se o conceito de "raça" é vago e decorrente do conhecimento vulgar, uma vez que a ciência já o destruiu. O racialismo pretendido pela UnB esbarra na ausência de critérios seguros para estabelecimento dos fenótipos a serem identificados.

48. Não se pretende aqui dizer que ser desnecessária e inoportuna a discriminação positiva. O que se pretende é ver critérios seguros, sendo que ser afro-descendente, ter cútis preta ou parda, não serão elementos suficientes para propiciar igualdade material. Com efeito, as ações afirmativas estão previstas na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (art. 4º, § 1º), bem como no Projeto de Lei n. 213/2003, aprovado pelo Senado Federal para constituir o Estatuto da Igualdade Racial. Não se olvide, no entanto, que este último retirou a previsão do estabelecimento de cotas raciais.

49. É oportuno lembrar que, conforme expôs o Min. Gilmar Mendes em sua decisão interlocutória, as cotas em universidades não são as únicas formas de discriminação positiva, mas apenas uma delas.

50. O simbolismo das cotas raciais é notório. Com efeito, os números contidos na ADPF n. 186 evidenciam que o Brasil tem pequeno percentual que concluiu curso superior. Esse percentual é muito menor, se considerados apenas os graduados em universidades públicas. Portanto, um percentual mínimo, considerado o universo de alunos universitários brasileiros, será admitido pelo sistema de cotas raciais (20% dos ingressos na UnB), representando um privilégio para uns poucos candidatos de pele preta ou parda que tenham bom nível social, uma vez que o sistema de cotas da UnB desconsidera qualquer origem social dos candidatos.

51. O percentual de 20% é singelo, mas equivocado porque não está atendo para desigualdades materiais entre pretos e pardos ricos e "brancos" pobres. Destarte, ao contrário de fomentar a igualdade, o sistema de cotas da UnB a desequilibra ainda mais.

52. Não tenho como dizer quais são os traços fenotípicos dos candidatos a serem considerados pelos membros da comissão de seleção, eis que quaisquer critérios "racialistas" não seriam científicos e, portanto, falhos.

53. Sobre o artigo de Boaventura de Sousa Santos, anteriormente citado, devo dizer que se trata de texto evidentemente encomendado e que não apresenta dados ou fundamentos concretos que lhe sustente. É uma construção teórica desenvolvida após a proposição da ADPF 186, servindo de puro argumento de autoridade, sobre o qual é oportuno expor:

"Sempre se usou nas lides judiciárias, com excessiva frequência, bombardear o adversário com as letras de arestos e nomes de autores, como se foram argumentos.

O Direito é ciência de raciocínio; curvando-se ante a razão, não perante o prestígio profissional de quem quer que seja. O dever do jurisconsulto é submeter a exame os conceitos de qualquer autoridade, tanto a dos grandes nomes que ilustram a ciência, como as altas corporações judiciárias. Estas e aqueles mudam frequentemente de parecer, e alguns tem a nobre coragem de o confessar; logo seria insânia acompanhá-los sem inquirir dos fundamentos dos seus assertos, como se ele foram infalíveis. Nullius addictus jurare in verba magistri (ninguém está obrigado a jurar nas palavras de mestre algum)". [32]

54. Esclareça-se que os números estatísticos não são críveis. Os estudos estipulam claramente uma categoria de "negros", quando se verifica que poucos brasileiros se classificam como tais perante o censo do IBGE. Outrossim, deve-se levar em conta o art. 208, inc. V, da Constituição Federal, que consagra o mérito como critério para acesso aos níveis mais elevados de ensino.

55. Há certos modismos que incomodam, dentre eles, a vasta divulgação do pensamento de Ronald Dworkin, como se plenamente válido e plenamente aplicável à situação jurídica brasileira. Todavia, não se pode negar ser o referido jurisconsulto partidário de tese extremamente conformista, o qual, tratando das polêmicas raciais e o sistema de cotas nos Estados Unidos da América, afirma que "o leitor deve reservar seus julgamentos políticos gerais às carreiras dos juízes que conhece melhor". [33]

56. Ali Kamel, ao meu sentir, tem total razão ao dizer que as políticas que se tentam instituir desde o governo Fernando Henrique Cardoso, as quais retratam o pensamento do político em questão, tendem a instituir um país bicolor, deturpando um ambiente social que não guarda racismo. [34]

57. Ainda que haja alguma rejeição em função da cor, não há comprovação científica da sua ocorrência, visto que a análise empírica feita por algumas autoridades não são suficientes para efetiva comprovação de que a rejeição não decorre de outros fatores, notadamente os relativos à pobreza e ao baixo nível educacional (este último pode resultar de uma cultura tendente a não buscar o desenvolvimento intelectual).

58. Neste momento, é razoável verificar que vários aspectos estão a impossibilitar uma resposta positiva ao CESPE, uma vez que não há como estabelecer critérios científicos para seleção de candidatos ao sistema de cota "racial", unicamente com base no fenótipo, a ser verificado pela história étnica a ser consignada com traços físicos.


Conclusão

Ante o exposto, opino para que a consulta seja devolvida ao CESPE com informação de que não há critério científico que permita defesa jurídica racional em prol do sistema de cotas raciais instituido pela UnB. Por oportuno, para que seja encaminhada proposta ao Gabinete do Reitor para que submeta o presente parecer aos órgãos colegiados da UnB, a fim de definir qual deverá o critério científico a ser estabelecido para uma adequada ação afirmativa, em substituição ao estabelecido até o presente momento.

Brasília, 29 de junho de 2010.


Notas

  1. MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. A advocacia pública é incompatível com a inscrição do profissional na Ordem dos Advogados do Brasil . Teresina: Jus Navigandi, ano 12, n. 1599, 17.11.2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10671>. Acesso em: 22.6.2010, às 8h.
  2. STF. ADPF n. 186. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/ listarJurisprudencia.asp?s1=(ADPF$.SCLA. E 186.NUME.)&base=baseMonocraticas. Acesso em: 10.9.2009, às 15h30.
  3. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2.000. passim.
  4. MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Garantismo, igualdade e tutela de direitos fundamentais. Teresina: Jus Navigandi, ano 14, n. 2434, 1.3.2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/14425>. Acesso em: 18.3.2010, 9h45.
  5. A IMPRENSA. Senado aprova Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em: http://imprensadobrasil.com.br/portal/?p=899. Acesso em: 26.6.2010, às 10h10.
  6. SENADO FEDERAL. Parecer n. 923, de 23.6.2010. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=80150. Acesso em: 26.6.2010, às 10h50.
  7. SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia de Letras, 1.996. p. 38.
  8. RUSSELL, Bertrand. Meu desenvolvimento filosófico. Rio de Janeiro: Zahar, 1.980. p. 12.
  9. SENADO FEDERAL. Parecer n. 923. Disponível: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/79440.pdf. Acesso em: 26.6.2010, às 11h25.
  10. SENADO FEDERAL. Parecer n. 923, de 23.6.2010. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=80150. Acesso em: 26.6.2010, às 10h50.
  11. GOMES. Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2.001.103-116.
  12. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1.999. p.202.
  13. RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2.001. p. 98.
  14. Ibidem. p. 109.
  15. BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2.002. p. 76.
  16. Dentre os livros que consultei, cito: BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1.998; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2.000; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2.004; MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2.006; MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2.005; PEZZI, Alexandra Cristiana Giacomet.Dignidade da Pessoa Humana: Mínimo Existencial e Limites à Tributação no Estado Democrático de Direito. Curitiba: Juruá, 2.008; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005; TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2.001.
  17. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1.999. p. 206.
  18. MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, 2001. passim.
  19. AZEVEDO, Thales de. Democracia racial: ideologia e realidade. Petrópolis: Vozes, 1.975. passim.
  20. MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Cotas raciais. Disponível em: http://sidiojunior.blogspot.com/2010/03/cotas-raciais.html. Acesso em: 16.6.2010, às 23h.
  21. RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2.001. p. 105-107.
  22. MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Cotas raciais (I). Disponível em: http://sidiojunior.blogspot.com/2010/03/cotas-raciais-i.html. Acesso em: 16.6.2010, às 23h30.
  23. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 840-842.
  24. MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Cotas raciais (II). Disponível em: http://sidiojunior.blogspot.com/2010/03/cotas-raciais-ii-estatisticas-nao.html. Acesso em: 17.6.2010, às 2h10.
  25. FARIAS JÚNIOR, João. Manual de criminologia. 2. ed. Curitiba: Juruá, 1.993. p. 68.
  26. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1.999.
  27. Vide números do sistema penitenciário pátrio em: MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução criminal: teoria e prática. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2.010. passim.
  28. AZEVEDO, Thales de. Democracia racial: ideologia e realidade. Petrópolis: Vozes, 1.975. passim.
  29. MAGGIE, Yvonne. Um ideal de democracia. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa. Acesso em: 26.3.2010, às 3h25.
  30. SANTOS, Boaventura de Sousa. Justiça social e justiça histórica. Disponível em: http://www.andifes.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2161:justica-social-e-justica-historica-artigo-de-boaventura-de-sousa-santos&catid=50&Itemid= 100017. Acesso em: 26.3.2010, às 4h50.
  31. UERJ. Sobre a universidade: sistema de cotas. Disponível em: http:// www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915. Acesso em: 25.6.2010, às 10h.
  32. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2.000. p. 272-273.
  33. DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2.007. p. 476.
  34. KAMEL, Ali. Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. passim.

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MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Procuradoria entende que regime de cotas na UnB é impossível, por ausência de critério científico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2585, 30 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17073. Acesso em: 26 abr. 2024.