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Da possibilidade de efetivação do direito fundamental à moradia por meio das Zonas Especiais de Interesse Social

Da possibilidade de efetivação do direito fundamental à moradia por meio das Zonas Especiais de Interesse Social

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A especulação imobiliária é um dos obstáculos à efetivação do direito à moradia. O novo Plano Diretor de Fortaleza apresenta o conceito de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS).

RESUMO

Analisa em que consiste o Direito à Moradia, e perquire acerca da problemática urbana que interfere na sua não-efetivação nas cidades brasileiras. Aborda a ilicitude da especulação imobiliária, prática que consiste em um dos obstáculos para a efetivação do direito à moradia. Como possível instrumento para a efetivação deste direito, as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS – são objeto central deste trabalho. É apresentado o conceito deste instrumento, sua origem histórica e a disposição que o novo Plano Diretor de Fortaleza traz acerca destas Zonas Especiais. Após a análise do que traz a lei, é discutida a situação atual das ZEIS, bem como alguns dos possíveis obstáculos à sua implementação.

Palavras-chave: Direito à Moradia; Plano Diretor; Zonas Especiais de Interesse Social.


SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1.O DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA. 1.1 A Questão Urbana. 1.2 O que é o Direito Fundamental à Moradia?. 1.2.1 Breves considerações acerca dos Direitos Humanos. 1.2.2 Conteúdo material do Direito Fundamental à Moradia. 1.2.3 O importante papel do Poder Judiciário no Brasil. 1.3 O problema da segregação sócio-espacial como produtor da ilegalidade urbana. 1.3.1 A especulação imobiliária como obstáculo à efetivação do direito à moradia. 2 ZONAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL. 2.1 Conceito e caracterização das ZEIS. 2.1.1 Contexto em Fortaleza. 2.1.2 A experiência do Lagamar. 2.1.3 Como as ZEIS podem realmente contribuir para a efetivação do direito à moradia? .2.2 Breve relato da experiência de Recife. 2.3 O novo Plano Diretor Participativo de Fortaleza e as ZEIS. 2.3.2. A IMPLEMENTAÇÃO DAS ZEIS E OS OBSTÁCULOS À EFETIVAÇÃO 3.DO DIREITO À MORADIA. 3.1. Medidas Urbanísticas em Fortaleza. 3.2 Possíveis obstáculos à implementação das ZEIS. 3.3 O risco de impacto das grandes obras. 3.3.1 O Estaleiro. 3.3.1.1 A divergência inicial dos posicionamentos do Governo do Estado e da Prefeitura de Fortaleza. 3.3.1.2 A opinião dos técnicos e estudiosos da área. 3.3.1.3 A resistência do Serviluz e as audiências públicas. 3.3.1.4 A mudança de postura da Prefeitura de Fortaleza e um novo impasse. 3.3.2 A Copa de 2014. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS. ANEXO A. ANEXO B.


INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objeto as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS [01], e as contribuições que este instrumento pode dar para a efetivação do direito à moradia, que no Brasil é um dos mais desrespeitados e constitui um dos direitos fundamentais sem os quais é impossível que se possa viver com dignidade. Além disso, o direito à moradia está relacionado diretamente com outros direitos também fundamentais, razão pela qual a sua negativa normalmente implica a de vários outros direitos, aprofundando assim a situação de extrema pobreza em que vivem milhares de pessoas em Fortaleza.

Observa-se que de acordo com a legislação brasileira, em especial a Constituição Federal de 1988, há um direito de igualdade genérico segundo o qual "todos são iguais perante a lei". Entende-se que essa propalada igualdade nos termos da Constituição deve ser sobretudo uma isonomia de possibilidades, garantindo-se minimamente que aos brasileiros em geral sejam dadas iguais chances de estudar, trabalhar e morar, por exemplo.

Muito embora, segundo a Constituição, todos tenham direito à saúde, moradia, trabalho, educação, lazer - dentre outros -, a grande maioria da população nacional sofre da ausência dos elementos mínimos necessários para sua própria subsistência. Não é difícil perceber o descompasso da legislação com a realidade brasileira em um contexto de desigualdade social gritante, principalmente no que diz respeito ao direito à moradia.

No contexto da cidade, muito se tem dito que a maior parte dos problemas decorre de uma falta de planejamento urbano, ou mesmo da completa ausência estatal. Não se nega que este é um dos fatores relevantes – o absenteísmo do Estado -, mas neste trabalho se pretende analisar que as origens e as razões desta ausência e ineficiência das políticas públicas vão muito além de simples inércia dos governantes.

O mercado imobiliário e os interesses privados têm um poder muito forte na correlação de forças exercida na disputa pelo espaço urbano. O modelo de desenvolvimento excludente, individualista, patrimonialista – que se diz "desenvolvimentista" e põe índices de crescimento puramente econômicos acima do desenvolvimento da qualidade de vida das pessoas – é um dos maiores obstáculos à real efetivação de direitos fundamentais por parte da maioria da população na cidade. Um dos reflexos mais visíveis deste modelo de desenvolvimento, no contexto da cidade, é a especulação imobiliária, da qual falaremos amiúde neste trabalho.

A concretização do direito à moradia constitui uma garantia básica para que se possa viver de forma digna. O direito à moradia, é importante que se diga, não expressa apenas a necessidade de um teto para se morar, de uma casa simplesmente. O abrigo seguro, em condições de saúde e habitabilidade adequadas é um dos pontos centrais inseridos neste direito, mas não é o único.

Diante da mais basilar noção do que seja este direito, facilmente se conclui que é abissal a distância entre o discurso legal e a realidade nas cidades. Apesar da notoriedade deste descompasso e da relevância do tema, poucos são os estudos que a Academia produz sobre o direito à moradia, sobretudo em nível de graduação. A necessidade de produção de conhecimento acerca da temática é inegável, sobretudo um conhecimento que não se pretenda isolado da realidade social ou que se apresente como supostamente neutro.

O tema sobre o qual discorrerá o presente trabalho revela sua importância por ser o direito à moradia uma garantia essencial para o respeito à dignidade da pessoa humana e também por guardar relação com outros direitos fundamentais que via de regra são desrespeitados em virtude da não-efetivação do direito à moradia.

Dessa forma, as contribuições a que se pretende este trabalho consistem na reflexão acerca da necessidade premente de efetivação do direito à moradia; na instigação a que o Direito seja visto como fenômeno social que é, importante instrumento para manutenção ou alteração das estruturas sociais; bem como a produção de conhecimento crítico sobre o que podem realmente alterar na problemática urbana os novos instrumentos urbanísticos a exemplo das Zonas Especiais de Interesse Social.

A realização do trabalho se deu por meio de levantamento bibliográfico de obras relacionadas ao direito à moradia e o urbanismo no Brasil, em especial alguns estudos recentes sobre a cidade de Fortaleza, realizados pelo Observatório das Metrópoles. Além da metodologia bibliográfica, utilizou-se como referência a recente legislação urbanística municipal em Fortaleza, para estudar de forma esmiuçada as ZEIS.

No primeiro capítulo, foi feito um sinótico panorama sobre a Questão Urbana brasileira, e em seguida foi apresentado o direito à moradia, sua conceituação e as normas que o instituem e regulamentam, tanto em âmbito internacional quanto nacional. Ainda neste capítulo discorreu-se sobre a segregação sócio-espacial observada nas cidades em virtude da atuação da especulação imobiliária, por compreender-se que a especulação é um dos obstáculos centrais à efetivação do direito à moradia no Brasil.

No segundo capítulo, foram abordadas a importância do planejamento urbanístico e a inovação do instrumento das Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS, sua origem histórica e sua significação. Neste capítulo estudou-se de forma detalhada o que o Novo Plano Diretor dispôs com relação às ZEIS, expondo os avanços à legislação e ainda tecendo algumas críticas com relação aos retrocessos.

No terceiro e último capítulo deste trabalho foi feito um breve histórico do urbanismo em Fortaleza, bem como foram expostos alguns possíveis obstáculos à implementação das ZEIS. Por derradeiro, foi dado enfoque sobre os possíveis impactos negativos de duas das grandes obras previstas para serem realizadas em Fortaleza, quais sejam: o Estaleiro e as intervenções para a Copa de 2014.


1.O DIREITO À MORADIA

1.1.A Questão Urbana

Na análise a que se pretende este trabalho monográfico, qual seja a de compreender a realidade de efetivação ou não do direito à moradia, é primordial que se entenda as origens da problemática habitacional das cidades brasileiras.

Neste contexto, é preciso considerar fatores como: o crescimento acelerado e desorganizado das cidades; as desigualdades sociais, econômicas e políticas existentes entre as classes sociais; e a insuficiência de políticas públicas que tenham por finalidade a diminuição destas desigualdades e o fornecimento de moradia adequada para boa parte da população brasileira, impossibilitada de acessar o mercado formal de habitação.

Inicialmente, parte-se do pressuposto de que é impossível se pensar e analisar a questão da moradia nas cidades sem compreender o que seja a chamada Questão Urbana, esclarecendo que não é pretensão desta monografia esgotar o tema.

Impende destacar que por "questão" se entende um problema de dimensão prática e teórica para o qual a busca por uma solução é premente, pois, diante da continuação daquele problema, é impossível a manutenção da existência nas mesmas bases em que ela se dava anteriormente. Conforme nos lembra Pádua (1988), trata-se de um problema de tal modo crucial que inviabiliza qualquer tentativa de recusa ao enfrentamento.

Assim, a Questão Urbana assume uma importância central nos dias atuais, tendo em vista que não se nos afigura possível ignorar os dilemas e as perguntas acerca da problemática urbana que clamam por soluções profundas, a exemplo da questão habitacional no Brasil.

Um dos principais fatores em cena na Questão Urbana é a chamada urbanização, que hodiernamente se observa em âmbito mundial. Urbanização, segundo define Silva (2006, p. 26), é "o processo pelo qual a população urbana cresce em proporção superior à população rural. Não se trata de mero crescimento das cidades, mas de um fenômeno de concentração urbana."

A realidade da concentração de grandes contingentes populacionais nas áreas urbanas é um acontecimento complexo, com causas variadas e que acarreta uma série de problemas sociais. Os motivos que levam à urbanização e ao pico populacional das grandes cidades são diversos, destacadamente as migrações decorrentes do êxodo rural e da busca de emprego e melhores condições de vida por parte de pessoas oriundas do campo, mas não são as únicas variáveis a serem consideradas.

Além da expulsão das populações do campo por motivos sócio-econômicos (a concentração de terras, por exemplo) e também climáticos (as secas, no caso do Ceará), a industrialização e a implantação de ferrovias e rodovias como facilitador do contato entre as regiões podem ser apontados como fatores que favoreceram a urbanização no Brasil. Impende destacar que a atração que exercem as "cidades grandes" a exemplo de Fortaleza muitas vezes se deve à ausência de dinamismo nos núcleos do interior.

Apesar da importância de maior detalhamento acerca dos fatores que levaram à urbanização, sobretudo em Fortaleza, esclarecemos que estes fatores, per si, em virtude do espaço limitado desta pesquisa, não serão objeto central do presente trabalho. No entanto, apesar deste estudo não se deter nas causas da urbanização, é importante compreender a sua dimensão.

Destacam-se os esclarecimentos de Milton Santos acerca desta mudança da configuração habitacional em termos mundiais. Conforme o célebre geógrafo, em seu livro "Metamorfoses do espaço habitado":

A aceleração da expansão demográfica é cumulativa. Entre a época neolítica, quando houve a grande revolução que gerou o homo sapiens, até os inícios da cristandade, um período que se conta em milênios (três? cinco?), a população do planeta apenas dobra, passando de cem ou 120 milhões a 250 milhões de habitantes. Para que a população dobrasse outra vez, foram necessários quase quinze séculos, entre a época romana e o reinado de Luís XIV, quando os efetivos humanos somavam quinhentos milhões, para alcançar 545 milhões em 1750. (...). Desde a fase em que Bismarck e Cavour constroem a unidade da Alemanha e da Itália até o fim da Segunda Guerra, a população mundial duplica de novo, chegando a dois bilhões e quatrocentos milhões em 1950. Daí para cá, a aceleração se torna prodigiosa. Quinze anos depois, em 1965, contamos três bilhões e meio de criaturas sobre a face da terra. Somos, hoje, quase cinco bilhões e admite-se que na virada do século a sociedade humana estará formada por quase seis bilhões e quinhentos milhões de viventes. (SANTOS, 2008, p. 35)

As expectativas numéricas estavam corretas. Dessa forma, observa-se que a população mundial vem crescendo em números espantosos, e a concentração urbana é uma realidade paralela a esta. De fato a população mundial já ultrapassou o número de 6 bilhões prognosticados por Milton Santos. Ainda segundo ele, a porcentagem da população urbana mundial no início do século XIX era por volta de 1,7%. Já em 1950, o percentual era de 21%. Apenas dez anos depois, em 1960, o número era de 25% e em 1980 alcançou 45%.

A realidade brasileira segue essa tendência e pode-se constatar esse dado, por exemplo, observando-se que a população urbana no Brasil em 1940 era de 31% e em 2000 passou para 81,2%. Ou seja, em 60 anos, o percentual de pessoas vivendo em cidades mais que duplicou, quase triplicou. Uma mudança vertiginosa e, consideradas as realidades históricas, num espaço de tempo muito curto. E, é claro, este crescimento dificilmente foi acompanhado do correto planejamento urbano, na tentativa de evitar as grandes desigualdades e as mazelas sociais.

Já Fortaleza, entre os anos 1940 e 1950, cresceu em contingente populacional o percentual de 49,9%. Na década seguinte, o crescimento foi ainda maior, acima de 90%. Dessa forma, a população fortalezense quase dobrou nos anos 50. Este crescimento em específico de Fortaleza não se deveu a nenhum pico industrial, que geralmente foi fator importante na urbanização de outros grandes municípios brasileiros.

Na verdade, a urbanização em Fortaleza esteve bastante relacionada ao êxodo rural provocado pelas secas no interior do estado. Bessa (2003) aponta que a todo grave período de seca no Ceará seguiu-se um aumento significativo do êxodo rural para Fortaleza, fator que influenciou diretamente o aumento das ocupações ilegais na capital.

Houve um salto populacional urbano, e em poucas décadas a população brasileira mudou vertiginosamente de predominância rural para urbana. Este configurou, conforme assevera Rolnik (2007), um dos movimentos sócio-territoriais mais rápidos e intensos da história da humanidade. A face mais cruel deste crescimento é que ele ocorreu sob a égide de um modelo de desenvolvimento urbano que, de acordo com a autora, privou as classes de menor renda da urbanidade, ou seja, da inserção efetiva na cidade.

A autora aponta ainda que o referido modelo de urbanização brasileiro além de excludente foi também concentrador: 60% da população urbana vive em 224 municípios com mais de 100 mil habitantes, dos quais 94 pertencem a aglomerados urbanos e regiões metropolitanas com mais de 1 milhão de habitantes.

Sobre a concentração do crescimento urbano em algumas cidades específicas, sabe-se que em geral a urbanização se dá de forma mais expressiva ainda nas áreas que já correspondem às maiores cidades. Comprovando tal realidade, Pequeno (2009) verifica a situação de macrocefalia da Região Metropolitana de Fortaleza - RMF: dos 184 municípios, apenas 6 apresentam população superior a 100 mil habitantes, e três destes são da RMF, quais sejam Fortaleza, Caucaia e Maracanaú. Somente Fortaleza concentra 71% do total da população da RMF, o que demonstra a concentração a que se referiram Rolnik e Pequeno.

Neste sentido, na maioria das cidades brasileiras, o que se observou foi um crescimento acelerado e sem contrapartida dos governos, que pouco ou nada fizeram para garantir que, paralelamente à urbanização acelerada, fossem tomadas medidas que amenizassem os impactos deste supercrescimento.

Conforme dados do IBGE de 2007, no Brasil cerca de 17 milhões de pessoas viviam em domicílios superlotados e 35% da população total não possuíam tratamento de esgoto. Acresce-se a isso o número assustador do déficit habitacional brasileiro, à época de 7,2 milhões de moradias .

Paralelamente ao crescimento das cidades individualmente consideradas, Segawa (2000) mostra-nos que surgiram e se fortaleceram as regiões metropolitanas enquanto realidade de concentração urbana:

(...) A população brasileira vem tendendo a se concentrar nas aglomerações de maior porte – regiões metropolitanas, metrópoles regionais e cidades médias- enquanto as cidades de menor porte permanecem praticamente inalteradas. Em 1960 apenas duas metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo, possuíam mais de um milhão de habitantes (contavam então com mais de três milhões). Em 1970 tínhamos cinco e em 1980 nove regiões metropolitanas e Brasília com mais de um milhão que, em conjunto, acolhiam mais de 35 milhões de habitantes. Nos mesmos intervalos, o número de cidades com mais de 100 mil habitantes passou de 31 para 60 e 95, respectivamente, e as com mais de 50 mil, de 68 para 115 e 198. Em 1980 as nove regiões metropolitanas (excluindo-se Brasília, portanto) absorviam 29% da população total do país e 42% de sua população urbana. [SEGAWA, 2000, p.23]

O grande número de pessoas morando em zona urbana gerou um gigantesco movimento de construção da cidade, nos dizeres de Maricato (1997, p.16). E embora a cidade não tenha oferecido a satisfação a todas as necessidades dessas pessoas, "o território foi ocupado e foram construídas as condições para viver nesse espaço. Bem ou mal, de algum modo, improvisado ou não, todos os 138 milhões de habitantes moram em cidades".

De acordo com as pesquisas referenciadas neste estudo, bem como autores como Milton Santos, não resta dúvidas que o fator da urbanização como crescimento desenfreado das cidades é primordial para se entender a segregação e a exclusão de milhares de pessoas do direito à moradia. Não se entenda, no entanto, que essa urbanização é o único dos fatores da exclusão ora estudada.

Ainda sobre a Questão Urbana, um problema transversal que deve perpassar toda a discussão sobre os problemas da cidade é a desigualdade social gritante no Brasil. A desigualdade é fator que não pode ser desconsiderado de forma alguma, haja vista que a própria formação das cidades denuncia a existência de espaços para os ricos e espaços (que sobram) para os pobres.

Sobre a desigualdade social no Brasil, Costa (2009b) lembra os dados do PNAD de 2003, que concluíram que o grupo de 10% dos trabalhadores de melhor remuneração concentrava 45,3% da total dos salários, chamado de massa salarial. Em contraponto, os 10% de salários mais baixos recebiam, juntos, menos de 1% desta mesma totalidade da massa salarial. Estes dados são bastante representativos no que concerne à concentração de renda no Brasil, e certamente esta desigualdade é refletida na organização do espaço urbano.

A concentração desigual de renda é comprovada também na Região Metropolitana de Fortaleza – RMF, em que a autora aponta que, em 2000, da totalidade das 805.133 famílias, 206.157 tinham renda familiar mensal per capita de meio a um salário mínimo, o que correspondia a 25% das famílias. No outro extremo estavam apenas 65.179 famílias, cuja renda familiar ultrapassava 10 salários mínimos. (COSTA, 2009b, p. 148)

No Brasil, o desenvolvimento socioeconômico desigual, a forte concentração da renda e da posse da terra, o gradual empobrecimento da população e a fragilidade da regulação da expansão das metrópoles brasileiras favoreceram a formação de espaços contraditórios, que se expressam na paisagem. A paisagem urbana é marcada não só pela desigualdade econômica como também pela diversidade natural e cultural. (COSTA, 2009b, p. 143)

A autora afirma ainda que a Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) é um exemplo clássico de desenvolvimento concentrador e excludente, o que se demonstra pela existência de algumas áreas com elevadíssimo padrão de vida, ao lado de outras que coexistem em situação de pobreza extrema. Obviamente este tipo de "desenvolvimento da desigualdade" gera a deterioração das condições de vida desta parte da população que se encontra à margem, em especial no que diz respeito à situação da moradia destas famílias.

Ainda que as origens da desigualdade social no Brasil remontem ao início da colonização e a repartição do país em sesmarias, o marco histórico e legal que consolidou e possibilitou a perpetuação da desigualdade foi a promulgação da Lei de Terras em 1850. A privatização da terra por conta da citada lei deu início a um processo de expulsão dos habitantes do campo, pois só poderia ser proprietário aquele que tivesse como adquirir a terra.

De acordo com Ermínia Maricato, é em virtude da decretação da Lei de Terras em 1850 que ocorre a instituição da propriedade fundiária no Brasil, tendo reflexos no campo e na cidade, haja vista que a terra passa a ser mercadoria, que somente pode ser adquirida mediante compra e venda.

Foi ainda neste momento histórico que a Inglaterra pressionou pelo fim do tráfico negreiro, para que pudesse ter início o "trabalho livre" no Brasil.

As conseqüências disso logo se mostrariam, ao inserir no mercado um grande número de trabalhadores, ex-escravos e imigrantes, eventualmente interessados em adquirir terras para produzir. Os grandes latifundiários do país dividiram a propriedade de terra entre aqueles que já as detinham ou eram suficientemente afortunados para comprá-las. (MARICATO apud FERREIRA, 2007, p.38)

Desde 1850, portanto, o acesso à terra passa a ser fechado para todos aqueles que não possuem meios de adquirir a mercadoria-terra. Somente pode ser proprietário aquele que tiver como comprar a terra e, desta forma, a partir da promulgação da Lei de Terras, a posse deixou de ter a importância que anteriormente tinha, conforme aponta Miguel Baldez (1986).

Trata-se de uma contradição apontada por Baldez, pois, com a instituição deste novo marco legal, a propriedade privada da terra passa a ser protegida contra as ocupações, e até aquele momento, de 1822 a 1850, a posse por meio de ocupação era o meio legítimo para obter as terras. Bruscamente, portanto, o paradigma passa a ser outro, com a finalidade clara de privilegiar quem já possuía bens e fechar o acesso aos demais habitantes do país.

A Lei de Terras foi, de fato, a decretação da concentração de terras no Brasil, concentração esta que se mantém até hoje, com conseqüências cruéis de manutenção do status quo e das desigualdades sociais.

O problema da concentração de terras é observado não só no Brasil, mas em muitos países da América Latina. Conforme nos alerta Letícia Osório, destacam-se na América Latina os altíssimos percentuais de concentração de renda por meio da desigual distribuição de terras. A concentração de renda, assim, constitui um dos maiores problemas dos países latino-americanos e importante fator gerador da crise urbana atual.

De acordo com autora:

a desigual distribuição de terras na América Latina é um dos fatores responsáveis pelo exacerbamento da marginalização dos segmentos mais vulneráveis da população. Nas regiões não urbanizadas, a desigualdade no acesso à terra e aos serviços essenciais de infra-estrutura tem contribuído para a proliferação dos assentamentos precários e irregulares em áreas inadequadas ou impróprias à moradia. (OSÓRIO, 2006, p.18)

Sob esta perspectiva, compreende-se ser impossível analisar a questão do direito à moradia de forma dissociada da falta de acesso à terra pelas populações pobres da América Latina, resultado da concentração de renda, da especulação imobiliária e da ausência das reformas agrária e urbana na maioria dos países, como é o caso do Brasil.

As mazelas sociais, dentre elas a existência de milhares de brasileiros sem ter onde morar, são conseqüências de um modelo de desenvolvimento que não se preocupa com a maioria da população. As diretrizes econômicas e políticas dos governos brasileiros, conforme observou-se na História, poucas vezes foram formuladas para a efetivação dos direitos fundamentais dos menos favorecidos, que constituem a maioria da população brasileira.

Neste sentido, em recente monografia sobre o tema, afirma Maria Gabriela Sá Lima:

A desigualdade no acesso à terra urbana e, conseqüentemente, à moradia não é por acaso ou simples decorrência da desorganização causada pelo crescimento desenfreado das cidades. Faz parte de um modelo econômico e político que se volta para o beneficio das elites em detrimento das necessidades básicas da maioria da população, que reflete também a exacerbada proteção à propriedade privada, como se direito absoluto fosse, sobrepondo-se, muitas vezes, ao direito à moradia. (LIMA, 2009, p. 13)

Quer-se com isso dizer que seria reducionista entender que a questão determinante da problemática urbana é a falta de planejamento urbanístico atento ao fato da urbanização. O considerável déficit habitacional brasileiro sem dúvida guarda correlação com a urbanização, mas não se deve somente a isto, como aduzido acima.

Endossando o entendimento de que o problema das cidades brasileiras não se resume à falta de planejamento está Maricato:

Apesar da histórica comprovada falta de respeito, durante décadas, em relação aos Planos Diretores Municipais, esse tema retorna em grande estilo no texto da Constituição de 1988, que estabelece a obrigatoriedade de sua execução em todas as cidades com mais de 20.000 habitantes, restabelecendo seu prestígio e fortalecendo a idéia, muito comum na imprensa, de que nossas cidades são um caos porque não têm planejamento urbano, o que não é verdade. Especialmente nos anos 1970, a produção de Planos Municipais foi muito significativa. (MARICATO, 2000, p. 144)

Compreende-se que o planejamento se revela imprescindível e se apresenta como um instrumento que pode auxiliar e muito a efetivação do direito à moradia, se corretamente instituído e sobretudo concretizado. No entanto, entende-se que no cenário principal está a disputa política pelo espaço urbano e a opção consciente ou omissa dos governos brasileiros em privilegiar o mercado imobiliário em detrimento da maioria da população.

1.2 O que é o Direito Fundamental à Moradia?

Apesar do reconhecimento formal do Direito à Moradia no âmbito internacional ter se dado há bastante tempo, a inclusão expressa deste direito no rol dos direitos fundamentais elencados pela Constituição se deu apenas em 2000, quando da Emenda Constitucional nº 26. Muito embora nos anos 80 a reivindicação de muitos dos movimentos sociais urbanos em torno da Reforma Urbana tenha sido bastante forte, o direito à moradia não foi incluído a princípio na Constituição Federal de 1988.

O não-reconhecimento deste direito enquanto direito social (ou seja, um Direito Fundamental a exigir a prestação positiva do Estado) à época da promulgação da Constituição não se deu por acaso, e sim por uma forte resistência à positivação deste direito no Brasil. Os setores conservadores estavam receosos do que a inclusão do direito à moradia na Constituição pudesse acarretar, apesar de ser notório que há um grande caminho a percorrer entre a positivação e a efetivação de direitos no Brasil – sobretudo os direitos dos menos favorecidos.

No âmbito nacional, portanto, o reconhecimento do direito à moradia como direito fundamental se deu apenas em 2000, muito tempo depois da previsão em legislação internacional. Neste sentido, várias Declarações e Convenções internacionais já haviam expressamente declarado o direito à moradia enquanto direito fundamental, e a primeira delas foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esta reconheceu um núcleo de direitos do homem que, posteriormente, foram dispostos com maior especificidade e força nos tratados internacionais sobre direitos humanos supervenientes.

Sobre a vigência dos direitos humanos independentemente de sua declaração em normas, assevera Comparato:

Reconhece-se hoje, em toda parte, que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não. (COMPARATO, 2005, p. 227)

Assim, ainda que inexistisse tratados e constituições garantindo o direito à moradia, ele não deixaria de ser um direito humano vigente, por constituir uma exigência básica para a existência humana digna. Trata-se de um entendimento com o qual concordamos, mas ressalte-se que quanto a isto não é necessário maiores polêmicas, uma vez que o direito à moradia já está formalmente positivado no Brasil.

Dentre as diversas declarações e tratados internacionais que versam sobre o direito à moradia e das quais o Brasil é signatário podemos destacar: o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais - PIDESC (1966); a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver (1976); a Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) e a Agenda Habitat (1996). Por exemplo, pelo artigo 11 do PIDESC o Estado Brasileiro se compromete a "utilizar todos os meios apropriados para promover e defender o direito à moradia e proteger contra os despejos forçados".

Na legislação nacional, conforme já observado, foi com a Emenda Constitucional nº 26/2000 que houve o reconhecimento expresso do direito à moradia como Direito Social, o que importa não apenas dizer que se trata de um direito fundamental, mas implicar ao Estado um papel importante na sua efetivação. O direito à moradia, assim, está inserido no rol de direitos sociais fundamentais do artigo 6º, tendo, portanto, natureza constitucional.

A natureza constitucional do direito à moradia gera, não só para o Estado, a obrigatoriedade do reconhecimento da sua importância e mesmo da sua primazia quando em situações de conflitos com outros direitos. Não só para o Estado justamente porque este deve ser o principal garantidor da efetivação deste direito, mas não o único, pois os particulares também estão sujeitos à obediência da primazia dos direitos fundamentais.

Uma vez que o direito à moradia compõe o núcleo dos direitos fundamentais garantidores do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana – um dos princípios fundamentais da República Brasileira -, este direito é dotado de uma exigibilidade muito maior, haja vista que é corolário do princípio da dignidade. Ressalte-se que a busca por dignidade passa pela efetivação de uma série de direitos fundamentais, boa parte deles expressos na Carta Constitucional.

O primeiro passo para a garantia de um direito é o reconhecimento legal, é a positivação das necessidades básicas das pessoas, razão pela qual a disposição expressa em normas é considerada fundamental para a efetivação de direitos. No caso do direito à moradia, a normatização constitucional foi uma grande conquista, mas não realizou de pronto as necessidades de moradia da população. É necessário garantir a aplicabilidade das normas fundamentais, exigindo-se do Estado os meios que possibilitem a efetivação dos direitos fundamentais, a exemplo do direito à moradia.

Além das previsões internacionais, nos tratados e declarações supracitados, este direito constitucionalmente assegurado no artigo 6º da Constituição Federal é ainda referido em diversos dispositivos esparsos na Carta Magna.

Assim, pode-se apontar o artigo 7º, inciso IV, em que é disposto que o salário mínimo deverá atender às necessidades vitais básicas do trabalhador, dentre elas a moradia. A Constituição, desta forma, antes mesmo da promulgação da Emenda Constitucional nº 26, reconhecia a moradia enquanto necessidade vital. Não poderia ser diferente, sobretudo considerando-se os vários documentos internacionais de que o Brasil é signatário, onde se reconhece há várias décadas o direito à moradia como direito humano fundamental.

Além do artigo 7º, a declaração no artigo 3º de que um dos objetivos fundamentais da República Brasileira é a erradicação da pobreza e da marginalização também gera para o Brasil a obrigatoriedade de políticas que visem construir, de fato, uma sociedade livre, justa e solidária. Para a construção desta sociedade preconizada no citado artigo, é fundamental o reconhecimento e a efetividade do direito à moradia para a população nacional.

1.2.1 Breves considerações acerca dos Direitos Humanos

Inicialmente, cabe fazer algumas considerações sobre a conceituação do direito à moradia. Nas pesquisas para elaboração deste trabalho, foram encontrados vários livros e artigos em que os autores, ao conceituar este direito, basicamente elencavam o rol de Declarações, Convenções e demais normas em que o direito à moradia foi positivado.

Entende-se que o conhecimento dos instrumentos que dispõem sobre o direito é deveras importante para a cobrança da efetivação do mesmo, no entanto não se pode confundir o objeto a ser protegido com o instrumento (norma) que o protege. Conforme preconiza Joaquin Herrera Flores, em seu livro "A reinvenção dos direitos humanos":

Apesar da enorme importância das normas que buscam garantir a efetividade dos direitos no âmbito internacional, os direitos não podem reduzir-se às normas. Tal redução supõe, em primeiro lugar, uma falsa concepção da natureza do jurídico e, em segundo lugar, uma tautologia lógica de graves conseqüências sociais, econômicas, culturais e políticas. O direito, nacional ou internacional, não é mais que uma técnica procedimental que estabelece formas para ter acesso aos bens por parte da sociedade. É óbvio que essas formas não são neutras nem assépticas. Os sistemas de valores dominantes e os processos de divisão do fazer humano (que colocam indivíduos e grupos em situações de desigualdade em relação a tais acessos) impõem "condições" às normas jurídicas, sacralizando ou deslegitimando as posições que uns e outros ocupam nos sistemas sociais. O direito não é, conseqüentemente, uma técnica neutra que funciona por si mesma. (HERRERA FLORES, 2009, p.23)

De acordo com o citado autor, compreende-se que os direitos humanos estão previstos em várias normas internacionais, mas com ele não são coincidentes. Sob este ponto de vista, os direitos humanos são uma realidade fora do âmbito do direito internacional, pois existem numa esfera anterior à normatização. A norma que os regula, no entanto, não perde importância por conta disto. O que não é possível, de maneira alguma, é compreender que as normas preconizadoras dos direitos humanos coincidem com estes mesmos direitos.

O seguinte trecho de Herrera Flores sintetiza o alerta que nos faz o autor:

(...) se não sabemos distinguir entre os sistemas de garantias e aquilo que deve ser garantido, o objeto das normas jurídicas internacionais desaparece e a única coisa que parece existir são essas normas. Se tal perspectiva se generaliza, tais normas podem ser submetidas a análises lógico/formais cada vez mais sistemáticas, mas, ao mesmo tempo, cada vez mais abstraídas dos contextos e das finalidades que, em teoria, deveriam assumir. (HERRERA FLORES, 2009, p. 25)

Trata-se de uma análise interessante e indispensável aos que se dedicam ao estudo e à efetivação dos direitos humanos a compreensão de que estes não existem em função das normas, e sim que as normas existiram e existem em função dos direitos: para garanti-los e possibilitar a sua implementação.

Herrera Flores, no trecho supracitado, alerta para o fato de que as normas possuem contextos e finalidades, e estes não podem ser esquecidos em análises puramente formais. Esse tipo de interpretação e aplicação normativa pode acontecer quando se entende como coincidentes a norma sobre direito à moradia e o direito em si. Feito o esclarecimento, passa-se à análise do conceito do Direito à Moradia.

1.2.2 Conteúdo material do Direito Fundamental à Moradia

Na tentativa da elaboração de um conceito próprio, entende-se que existem algumas condições mínimas para a concretização do direito à moradia. Neste sentido, destaca-se que o direito à moradia é também um dos direitos correlatos ao direito à cidade, e quer-se com isso dizer que para a concretização do direito à moradia, ao contrário do que muitos pensam, não basta somente ter acesso a uma casa.

É necessário que esta casa seja dotada de condições reais de ser habitada, respeitada a salubridade de suas instalações internas, mas não somente internas. Compreende-se, assim, a necessidade da inserção da moradia em um contexto de acesso aos serviços básicos como água, energia, coleta de lixo, acesso à saúde e transporte.

Importante esclarecimento nos faz Raquel Rolnik [02] (informação verbal) ao dizer que a nomenclatura correta deste direito não é "direito à moradia", e sim "direito fundamental à moradia adequada como condição da dignidade humana". Assim, não se reporta somente à obtenção de uma casa. Moradia, dessa forma, não pode ser entendida como produto imobiliário, e nem ser assunto para a indústria de construção civil, conforme alerta da própria Raquel Rolnik, ora Relatora Especial da ONU para o Direito à Moradia.

Em continuidade ao que foi disposto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais elaborou dois relevantes Comentários Gerais a respeito do direito à moradia adequada, quais sejam o Comentário Geral nº 4 (de 1991) e nº 7 (de 1997), que se concentra mais no tema dos despejos forçados.

Nestes Comentários Gerais, foram reconhecidos alguns dos elementos que caracterizam o direito fundamental à moradia. Dentre eles destacam-se:

a) Segurança jurídica da posse, que corresponde à garantia de morar em um lugar sem ameaça de remoção, despejos e ameaças as mais variadas com relação à posse da habitação;

b) Acesso à educação, saúde, lazer, transporte público, emprego e vários outros serviços básicos, que corresponde à acessibilidade;

c) Disponibilidade de serviços coletivos e de infra-estrutura;

d) Habitabilidade, ou seja, proteção contra frio, calor, chuva, vento, incêndio ou inundações, de forma que se possa viver com salubridade, sem riscos à saúde e à vida, dentro de um meio-ambiente saudável;

e) Por fim, outro elemento caracterizador do direito à moradia é a adequação cultural, que significa que a moradia para ser adequada deve estar de acordo com os padrões culturais locais, respeitando assim a diversidade cultural.

A moradia, desta forma, é um ponto de acesso aos meios de subsistência: acesso ao emprego, saúde, educação, transporte e sociabilidade. Não tem nada a ver com depósito de gente em áreas periféricas, longínquas, isoladas, sem a menor infra-estrutura, conforme nos alerta Rolnik.

O acesso à infra-estrutura é extremamente necessário, uma vez que não se compreende respeitada a dignidade de uma família quando esta, apesar de possuir uma casa onde morar, tem uma habitação desprovida de saneamento básico, por exemplo. Ou é localizada na encosta de um morro sempre sujeito a desmoronamento, ou às margens de um rio, realidade bastante comum em Fortaleza.

Para além disto, das condições internas e externas como saneamento, drenagem e pavimentação das vias de acesso, o direito à moradia congrega ainda a existência de um sistema acessível de transporte público. Pode-se falar ainda de energia elétrica, acesso à saúde próximo da população, educação, emprego e renda, etc. Como afirmado acima, entende-se o direito à moradia como corolário do direito à cidade.

A discussão sobre a efetivação da moradia, portanto, passa por bem mais exigências do que somente a obtenção de casas por famílias consideradas hipossuficientes. Além disso, importa dizer que quando se luta pela efetivação do direito à moradia, intenta-se conseguir muito mais do que somente o direito de morar. Consideradas as condições infra-estruturais necessárias, há ainda os direitos conexos: segurança, saúde, emprego, etc. O direito à moradia ou o direito à terra é considerado, assim, um direito primeiro, cuja efetivação é necessária para a garantia dos demais direitos fundamentais.

Guardadas as devidas proporções, cite-se a questão do Movimento Indígena no Brasil, cuja reivindicação principal é o direito à terra, pelo reconhecimento de seus territórios. O acesso à terra não é a única necessidade vital dos milhares de indígenas brasileiros, mas é das mais basilares. Há necessidade de educação e saúde diferenciadas, por exemplo, mas que serão implementadas de forma bem mais adequada se forem realizadas no território indígena, reconhecido enquanto tal.

Além disso, para efetivação destes outros direitos pelo Poder Público, a própria Administração cobra que haja reconhecimento dos territórios, como se, ao não terem um reconhecimento formal (judicial), não fossem de fato uma população indígena verdadeira. Dessa forma, o direito à terra assume uma configuração central tanto em termos de necessidade básica primeira, quanto em termos políticos para a efetivação dos demais direitos fundamentais daquela população.

Para boa parte dos cidadãos de Fortaleza, por exemplo, que não tem acesso ao mercado formal de habitação, o direito à moradia adequada é por óbvio uma das maiores necessidades, que também configura uma necessidade correlata a outros direitos, conforme explanado anteriormente.

1.2.3 O importante papel do Poder Judiciário no Brasil

Para a tão almejada efetivação do direito à moradia, é imprescindível a atuação forte e contínua do Poder Público, sobretudo da Administração, mas também do Judiciário, que desempenha um papel importante tanto no reconhecimento de direitos e na cobrança pela realização dos mesmos, quanto na manutenção de situações de desigualdade de acesso ao direito à moradia.

O papel do Judiciário é algo que necessita ser bastante discutido junto à sociedade civil, para que se compreenda a importância deste Poder na estrutura social brasileira. Mostra-se mais que necessário a sociedade discutir o Judiciário com os próprios juízes, pois é preciso que se diga que as instituições judiciárias não são nem podem ser neutras, mas devem ser imparciais. O que tem sido observado é que muitas vezes o Judiciário claramente defende interesses das classes dominantes, e é sabido que quem deve advogar pelos próprios interesses são as partes, não os juízes.

A este respeito, recentemente, no dia 9 de fevereiro de 2010 [03], o Conselho Nacional de Justiça – CNJ - celebrou um acordo com a Confederação Nacional de Agricultura - CNA. Já de início a mera existência de um acordo entre essas instituições causa estranhamento, tendo em vista que a CNA está relacionada às questões agrárias que, via de regra, abarrotam o Judiciário. A CNA, desta forma, representa alguns dos maiores "movedores de processos" no Brasil, quais sejam os latifundiários. Estranho, portanto, o CNJ (órgão do Judiciário, obrigado que está à imparcialidade ínsita ao Poder Público) celebrar qualquer acordo com a Confederação Nacional de Agricultura.

Trata o referido acordo da instituição do "Observatório das Inseguranças Jurídicas no Campo", que faz parte do Núcleo de Pesquisas Estratégicas do Instituto CNA. Este observatório realizará um mapeamento das chamadas "ameaças ao direito de propriedade". O intuito da realização do acordo é aproximar o Conselho Nacional de Justiça da Confederação Nacional de Agricultura, vez que atuarão cada vez mais conjuntamente na perspectiva de dirimir as "ameaças à propriedade".

O absurdo é flagrante, sobretudo tendo em vista que a CNA é parte litigante em inúmeros processos que tramitam no STF, e quem presidia à época o CNJ era também o então presidente do Supremo, Gilmar Mendes. Não há como se negar que este acordo fere os princípios da independência e da imparcialidade do Judiciário, e mesmo o senso comum ficou assustado diante desta notícia.

A parcialidade do Judiciário foi alvo de recente estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA -, que constatou que a maioria das decisões judiciais envolvendo grandes grupos econômicos são decididas em favor destes mesmos grupos. A citada pesquisa concluiu pela inverdade de um discurso midiático que construiu a imagem de um Judiciário que protege os movimentos sociais, muitas vezes até de forma contrária à lei. Em verdade, o que ocorre muitas vezes é o peso econômico de grandes empresários que, mesmo desrespeitando a lei, contam com um Judiciário conservador que decide usualmente em favor deles, contribuindo assim para a manutenção das desigualdades sociais.

O citado estudo [04] discute duas hipóteses, quais sejam: a da incerteza jurisdicional, que sugere que os juízes brasileiros apresentam uma certa tendência a decidir em prol das partes mais fracas; e a de que existe algum direcionamento das instituições legais, políticas e regulatórias pelos ricos e possuidores de influência política. Para discutir essas hipóteses, o IPEA analisou decisões judiciais prolatadas em 16 estados do Brasil. Algumas das conclusões da pesquisa foram:

a) Os juízes favorecem a parte mais poderosa. Uma parte com poder econômico ou político tem entre 34% e 41% mais chances de que um contrato que lhe é favorável seja mantido do que uma parte sem poder;

b) Uma parte com poder apenas local tem cerca de 38% mais chances de que uma cláusula contratual que lhe é favorável seja mantida e entre 26% e 38% mais chances de ser favorecido pela Justiça do que uma grande empresa nacional ou multinacional, um efeito batizado de subversão paroquial da justiça.

c) Nos Estados Brasileiros onde existe maior desigualdade social há também uma maior probabilidade de que uma cláusula contratual não seja mantida pelo judiciário. Passando-se, por exemplo, do grau de desigualdade de Alagoas (GINI de 0,691) para o de Santa Catarina (0,56) tem-se uma chance 210% maior de que o contrato seja mantido."

Não se defende, de forma alguma, que o Judiciário não deva adotar posturas firmes diante da sociedade, não se trata disto. O que escandaliza é o posicionamento manifesto do Judiciário a favor das elites, sem considerar o processo político que se desenvolve, as contradições sociais, a imanência dos direitos fundamentais, enfim. Sobre o novo papel a ser desenvolvido pelo Judiciário, acerca da necessidade de o juiz se afirmar enquanto sujeito ativo do processo político para a concretização de direitos fundamentais, afirma Campilongo:

(...) é no campo do Direito Constitucional que as combinações entre o interesse público e o interesse privado (...) irão consolidar a nova imagem do juiz: o sujeito ativo do processo político. Esse papel exige do julgador posturas incompatíveis com o rigor formalista. Entretanto, esse novo direito apresenta um desafio ao jurista: retomar os conceitos jurídicos num grau de abstração correspondente ao grau de abstração correspondente ao grau de complexidade alcançado pelas funções e prestações do sistema jurídico. (CAMPILONGO, 2005, p. 35, grifo nosso)

É imprescindível a atuação consciente dos juízes para a efetivação do direito à moradia, atentando para as disposições normativas que o prevêem, bem como para o contexto de grave desrespeito a este direito no Brasil.

1.3 O problema da segregação sócio-espacial como produtor da ilegalidade urbana:

Por óbvio, o crescimento sem planejamento e sem contrapartida do Poder Público faz com que todos os problemas urbanos assumam dimensões grandiosas e cada vez mais difíceis de serem contornadas. Assim, observa-se que o inchaço populacional urbano é bastante cruel na realidade brasileira, uma vez que os que mais sofrem com esta configuração habitacional são os mais pobres.

É claro que a segregação dos mais pobres dentro da cidade não ocorre somente no Brasil, e tampouco se revela uma questão gerada nos tempos atuais. Em interessante dissertação de mestrado acerca do tema, Eli Meneses Bessa assim expõe:

A problemática da existência e da segregação de partes do território urbano ocupado por moradias inadequadas de pessoas de baixa renda não é nova, e não é exclusiva do Brasil. Na realidade, as cidades sempre foram ocupadas por população pobre. No entanto, a origem do problema tal qual hoje se apresenta está na formação e desenvolvimento do sistema capitalista de produção de bens e serviços. (BESSA, 2003, p.05)

Na verdade, o autor aponta que não é de hoje que a população pobre enfrenta problemas com relação às cidades e à moradia. O que ocorre é que, hodiernamente, em função da urbanização desenfreada, a problemática enfrenta dimensões maiores, e apresenta, por óbvio, conseqüências diferenciadas e mais profundas.

No início do século XIX, com a industrialização, foi que as primeiras cidades industriais européias viram a "proliferação de moradias impróprias". Em verdade, essa proliferação configurou uma verdadeira exigência da industrialização, pois era necessário um contingente cada vez maior de mão-de-obra, e quanto mais gente em busca de emprego (de preferência a baixos custos, formando um verdadeiro exército de reserva), melhor "para o mercado". Paralelamente, o que ocorreu também foi a vinda de um contingente grande de pessoas do campo para a cidade. Dessa forma, sem planejamento urbano, a precariedade das moradias foi se observando cada vez de forma mais forte.

A localização bastante afastada e periférica das moradias dos operários data também dessa época, sobretudo porque era economicamente inviável para os operários ocupar as áreas centrais, dotadas de infra-estrutura, que eram habitadas pelas classes ricas. Essas áreas centrais e vedadas aos mais pobres possuíam alguns dos equipamentos urbanos básicos existentes à época, o que para os operários era um luxo inatingível. Foi em virtude da industrialização que tiveram origem os primeiros cortiços, típica moradia destinada a pessoas de baixa renda.

No Brasil também se observou que uma das primeiras formas populares de moradia irregular foi o cortiço, inicialmente surgindo em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em seguida, com a realização das reformas higienistas, houve a expulsão das classes populares para outras áreas, tendo em vista que os antigos cortiços não atendiam às condições higiênicas mínimas apontadas pelos governos.

Desta forma, a população foi expulsa para as áreas periféricas da cidade, e começaram a surgir, assim, as favelas. É interessante notar que muitas das favelas cariocas, por exemplo, surgiram diretamente em virtude da atuação estatal de expulsar as classes populares dos cortiços. O nascimento das favelas nestes casos está intrinsecamente ligado a um processo de segregação desencadeado pelo próprio Estado.

A lógica da ordenação das cidades, hoje, não é exatamente a mesma do período inicial da industrialização, mas se observa que o resultado é sempre o mesmo: gerando uma espécie de "segregação sócio-espacial", definida por Yves Grafmeyer como "oportunidades desiguais de acesso aos bens materiais e simbólicos oferecidos pela cidade", citado por Meneses Bessa. (GRAFMEYER apud BESSA, p. 07)

Maricato (1997) define segregação sócio-espacial como sendo a concentração espacial homogênea de pessoas de uma determinada classe social, o que ocorre geralmente com os mais pobres dentro da cidade. Observa-se a situação deste tipo de segregação na análise da maioria das cidades brasileiras, em que a concentração das moradias pobres se dá nas periferias, distantes dos centros da cidade. É criado um "anel periférico", que a depender do porte das cidades pode possuir várias camadas, e é pra onde vão as famílias que chegam nas cidades, por não terem acesso à chamada "cidade formal".

Em Fortaleza, esse processo de segregação sócio-espacial começou a ficar mais visível a partir de 1930. Por conta das várias secas que ocorreram neste período, bem como do aprofundamento das desigualdades sociais em virtude da questão agrária, as migrações do interior para Fortaleza foram bastante expressivas. A população recém-chegada à cidade buscava abrigo onde podia, na maioria das vezes na faixa litorânea e nas áreas de duna, que não eram interesse das elites. Datam desta época as primeiras favelas de Fortaleza, a exemplo do Pirambu e do Mucuripe.

Assim, começava a ficar mais visível, a partir da década de trinta, o processo de diferenciação espacial e segregação residencial. A distribuição da população no espaço urbano de Fortaleza fica nitidamente determinada pelo nível de renda. (COSTA, 2009a, p. 153)

Silva (2009) lembra ainda que em Fortaleza o crescimento urbano ocorre tradicionalmente por meio da ocupação progressiva dos loteamentos existentes na periferia, por parte da população de baixa renda. A localização distante acarreta as baixas densidades destes locais, o que conseqüentemente dificulta o atendimento dos serviços básicos. A segregação é bastante nítida quando se observa que estas classes sociais, correspondentes aos estratos de renda mais baixos, geralmente estão concentradas em alguns bairros da cidade.

A formação das periferias ocorre porque a ocupação do espaço urbano encontra-se em constante disputa pelas classes sociais existentes, conforme afirma Villaça (1997). A disputa ocorre pelas localizações entendidas como as mais valiosas, em virtude dos equipamentos públicos presentes nas áreas urbanas.

Nesse sentido, a tendência das cidades brasileiras hoje é estabelecer um centro de crescimento, e nele concentrar os investimentos, deixando à margem a maior parte da cidade, que continua crescendo em direção das periferias. Villaça (1997) nos lembra as considerações de Castells:

As classes disputam a apropriação diferenciada do próprio produto do trabalho. Quanto mais centrais as localizações (dependendo aí do que se entenda por "centro") maior seu valor de uso, ou seja, melhores condições tem ela de se relacionar com o restante da cidade. (CASTELLS apud VILLAÇA, 1997)

Segundo Villaça, a segregação sócio-espacial é um processo por meio do qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em regiões gerais ou conjunto de bairros da cidade. A segregação, entretanto, não impede a presença nem o crescimento de outras classes no mesmo espaço.

A segregação sócio-espacial gera ainda a existência de "várias cidades dentro da mesma cidade": a cidade dita formal, contraposta à cidade informal ou ilegal. Uma consiste no perímetro em que existem investimentos públicos e privados para melhoramento da qualidade de vida das pessoas (e por conta destes investimentos, o valor da terra é aumentado, fazendo com que a ela só alguns possam ter acesso); e outra, a cidade ilegal, manifestada no resto da cidade (que geralmente é a maior parte da cidade, localizada à margem, nas periferias), em que se concentra a maioria da população que não possui meios de habitar na cidade formal.

A divisão da "cidade legal" em contraponto à "cidade ilegal" se dá em virtude da própria observação da dinâmica de ocupação e melhoramento dos espaços urbanos, no entanto não se diga que esta pesquisa endossa o entendimento do mito da "cidade partida em duas". Estudos recentes comprovam que esta contraposição da cidade legal à cidade ilegal não é simples nem meramente dual, na verdade a cidade encontra-se dividida em várias, conforme estudo realizado pelo Observatório das Metrópoles bastante esclarecido por Pequeno (2009).

Apesar de serem diversos os espaços observados em Fortaleza, por exemplo, é sabido que continua havendo a cidade formal e a cidade informal, decerto que distribuídos nas diversas tipologias sócio-espaciais identificadas pelos estudos acima citados.

Por conta desta segregação sócio-espacial, por meio da qual é formada a cidade "legal" - onde são realizados quase todos os investimentos em infra-estrutura e serviços públicos de qualidade -, as pessoas que não tem possibilidade de ingressarem no mercado dito formal de habitação buscam as soluções alternativas.

Assim, restam para a população de baixa renda as situações habitacionais irregulares e quase sempre muito precárias, a exemplo dos cortiços, loteamentos irregulares e áreas sócio-ambientalmente instáveis. É desta forma que cresce a chamada cidade informal ou "ilegal", que existe paralelamente à cidade legal, mas em que o Poder Público pouco ou nada investe, aprofundando progressivamente as diferenciações entre ricos e pobres. Neste sentido, a ilegalidade é um subproduto da regulação tradicional e das violações contra os direitos à terra e à moradia.

Da incapacidade de atender à demanda, decorreu a proliferação de áreas de ocupação como resposta da população excluída à redução da oferta de moradias. Assumindo a condição de verdadeiros corredores de degradação socioambiental, os rios e córregos urbanos passaram a orientar o processo de favelização, cada vez mais vistos como signos da ausência de controle urbano. (PEQUENO, 2009, p.62)

Como características da segregação sócio-espacial existem, portanto, as barreiras "reais" - a exemplo do preço da terra -, e as barreiras simbólicas. Estas simbólicas não menos reais que as outras, constituindo a negativa das elites a que os mais pobres tenham acesso aos bairros ditos nobres, por exemplo, e aos equipamentos sociais públicos e privados que entendem não serem destinados a população menos favorecida.

A existência de um grande número de imóveis sendo utilizados unicamente para valorização imobiliária e enriquecimento de seus proprietários faz com que as áreas livres na cidade fiquem cada vez mais escassas. Os terrenos que não estão ocupados efetivamente sofrem um aumento gradativo de preço, impedindo que a maioria da população possa acessá-los para fins de moradia.

Compreende-se, assim, que a urbanização no Brasil ocorreu obedecendo à lógica do mercado: os investimentos, tanto do setor privado quanto do Poder Público, se deram inicialmente em áreas centrais da cidade, com a finalidade de gerar acesso às classes média e alta. As políticas públicas de infra-estrutura e melhorias urbanas serviram para aumentar o preço das terras dotadas de serviços e bens, o que conseqüentemente gerou o enriquecimento de quem detém a propriedade, e exclusão progressiva de quem não possui meios de acessar a terra.

É imprescindível a compreensão de que o processo de segregação sócio-espacial não ocorre por acaso, e nem por conta simplesmente da expansão das cidades. A segregação sócio-espacial ocorre para dar espaço e vez ao mercado imobiliário, possibilitando a existência de áreas de enriquecimento, e para tanto é necessário garantir que os pobres não estejam nessas áreas valorizadas. Dessa forma, a segregação é um meio de manutenção das estruturas sociais e da desigualdade econômica no Brasil, que não pode ser vista como uma fatalidade ou um fato passageiro em direção ao "desenvolvimento futuro".

Villaça (1997), em seu estudo "Efeitos do espaço sobre o social na metrópole brasileira", aponta a segregação sócio-espacial como sendo uma das formas de possibilitar o controle da produção e do consumo do espaço urbano pelas classes dominantes. Para o autor, são as classes dominantes que comandam o processo de apropriação diferenciada das vantagens do espaço. Interessante é que o autor aponta que uma das vantagens centrais em disputa é a diminuição dos gastos de tempo despendido nos deslocamentos das pessoas, ou seja, a acessibilidade às diversas localizações urbanas, sobretudo o centro da cidade.

Esclarece ainda Villaça que, para realizar estes objetivos, o controle das classes dominantes por meio da segregação sócio-espacial é exercido através de três esferas:

a) Na esfera econômica: realiza-se aqui o controle do mercado imobiliário, que produz os bairros da classe dominante nos locais onde elas desejam;

b) Na esfera política: através do controle dos organismos do Estado, por meio da determinação das localizações da infra-estrutura urbana (concentrada na "cidade formal") e dos órgãos públicos (isolando-os da população pobre), bem como controlando as leis de uso e ocupação do solo;

c) Na esfera ideológica: é criada uma ideologia para facilitar a dominação na cidade, gerando a aceitação dos dominados.

É por meio destes campos que as elites e o Estado mantém o status quo, reproduzindo a segregação na cidade diariamente e tornando cada vez mais difícil quaisquer alterações nas rígidas estruturas sociais brasileiras.

Osório nos alerta ainda para o fato de que

A informalidade habitacional na América Latina tem aumentado significativamente nos últimos anos, a ponto de a taxa de crescimento da população que reside em assentamentos irregulares representar quase o dobro da taxa de crescimento total da respectiva cidade. (OSÓRIO, 2006, p. 23)

Estes dados são alarmantes e reveladores, para que se vislumbre que a problemática da ilegalidade urbana assume proporções consideráveis e não somente no Brasil.

A segregação sócio-espacial, que conforme dito trata-se de um processo notadamente não-natural, é diretamente causadora da ilegalidade urbana na exata medida em que os únicos espaços que sobram para a população mais pobre habitar são as áreas sócio-ambientalmente mais frágeis.

Assim, muitas favelas se concentram em áreas de proteção ambiental ou áreas de risco, e a "ilegalidade urbana" começa na "escolha" do lugar onde morar por parte destas famílias. É preciso destacar, no entanto, que os ricos também ocupam áreas de proteção ambiental, e em Fortaleza essa situação é muito nítida na região do entorno do Rio Cocó, por exemplo. A ocupação das classes abastadas nestas áreas conta com a omissão e permissão governamental, numa clara dualidade de discursos: para os pobres nestas áreas de proteção, a repressão e a remoção; para os ricos, a permissividade do Poder Público, perpetuando as desigualdades ora apontadas.

A ilegalidade urbana de que falamos diz respeito ao local das habitações, mas também ao tipo de construção, a existência ou não de licenciamento da Prefeitura e da regularização fundiária.

Esclareça-se que a "escolha do lugar onde morar", para boa parte da população brasileira, obviamente, não é escolha alguma, haja vista que não existem opções a serem ponderadas. As áreas ocupadas pela população mais pobre são, de fato, as que a ela ficam disponíveis, ou seja: as únicas que não são interesse (ainda) do mercado imobiliário.

Trata-se da "lógica da necessidade", a respeito da qual Alfonsin (2006) se refere. A população pobre, que não encontra espaço no mercado formal de habitação, dá início às ocupações irregulares unicamente por conta da necessidade, que é a lógica que a move. É por conta dos preços excessivamente altos da terra urbana que estas pessoas não têm acesso à moradia, constituindo uma parcela considerável da população que se encontra, inegavelmente, sem opção. A informalidade é inelutável, pois é a única possibilidade de habitar destas pessoas, daí porque se diz que a motivação das ocupações irregulares é a lógica da necessidade.

Recentemente Fortaleza tem sido palco de várias destas ocupações irregulares organizadas por movimentos populares reivindicando a efetivação do direito à moradia. Reitera-se que a prática das ocupações se dá por conta da necessidade de habitação, que, conforme vimos, é demonstrada em larga escala pelo déficit habitacional brasileiro. Dentre alguns casos recentes, pode-se citar a emblemática ocupação a um prédio público realizada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) em 2009.

A ocupação citada se deu em um imóvel público inutilizado, descumpridor, portanto, de sua função social. Na ocupação organizada pelo MLB, cerca de 200 famílias permaneceram meses em protesto no prédio público no centro da cidade. As famílias, oriundas de várias áreas de risco da cidade, reivindicavam a entrega de um conjunto habitacional, o Bárbara de Alencar II, que estava prometido pela Prefeitura desde 2006. O prédio ocupado foi escolhido de forma simbólica, também porque seria a nova sede do HABITAFOR, autarquia municipal responsável pela habitação popular.

A ocupação realizada em abril de 2009 foi no intuito da garantia da moradia destas famílias, pressionando o Poder Público pela entrega do conjunto habitacional que há muito estava previsto. Neste caso, não era o objetivo da ocupação permanecer habitando no prédio, sobretudo porque inexistiam condições para tanto. O objetivo era, portanto, unicamente forçar a resposta da Administração Municipal, que tardava a ocorrer. Neste sentido, esta ocupação foi um tanto quanto diferente, pois normalmente as ocupações, espontâneas ou organizadas, ocorrem visando a habitação no local ocupado.

O Município ingressou com uma Ação de Reintegração de Posse (posse, aliás, que não havia, uma vez que o imóvel há muito estava abandonado) e conseguiu uma liminar de reintegração. Apesar das inúmeras ameaças de remoção inclusive com violência policial, as famílias conseguiram judicialmente, com assessoria do Escritório Frei Tito de Alencar de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, a prorrogação do prazo para que ficassem lá, até a entrega oficial do conjunto habitacional.

Neste caso, observou-se tanto a importância da pressão popular para a efetivação de um direito fundamental, quanto a relevância da atuação consciente do Judiciário para que se concretizem direitos no Brasil.

1.3.1 Da especulação imobiliária como obstáculo à efetivação do direito à moradia

Uma das maiores causas da segregação sócio-espacial urbana consiste na especulação imobiliária nas cidades. Para citar Fortaleza, ocorre que um número considerável de imóveis permanece inutilizado, vez que neles não é assegurada moradia de ninguém, nem tampouco se desenvolvem atividades comerciais, por exemplo. A única finalidade destes imóveis é agregar valor e, no futuro, serem vendidos a preços muito maiores do que o preço de aquisição, gerando assim enriquecimento a seus proprietários.

Estes terrenos vazios, que, conforme dissemos acima, são utilizados apenas com finalidade de agregar valor, poderiam suprir a demanda por moradias se fossem utilizados em políticas habitacionais, haja vista que em algumas cidades o número de terrenos inutilizados ou subutilizados muitas vezes é maior que o déficit habitacional.

Conforme pesquisa da Fundação João Pinheiro, em 2000 era de 77.615 unidades o déficit habitacional de Fortaleza, em contraponto ao número de 69.995 imóveis vazios na cidade. Assim, a quantidade de terrenos vazios é muitas vezes proporcional ou até maior do que a necessidade por moradias, fato que demonstra de forma cabal que a falta de moradias não é decorrente de uma escassez real de terras, e sim da concentração das mesmas.

Por meio da especulação imobiliária, os espaços vazios na cidade vão sendo ocupados por pessoas de grande poder econômico que, com a propriedade daqueles terrenos, geram cada vez mais concentração de renda e de poder. Com os espaços da cidade diminuindo por conta desta "escassez criada", da necessidade cada vez maior de terrenos que é agravada e muito pela especulação, aos pobres não sobra onde morar senão nas áreas sócio-ambientalmente frágeis.

A segregação sócio-espacial, desta forma, vai progressivamente afastando a maioria da população para as poucas áreas que não interessam ao capital imobiliário: as áreas públicas ou de proteção ambiental, onde os "empreendedores" não poderiam especular ou construir, em virtude de leis ou mesmo de impossibilidades físicas, como é o caso de encostas de morros ou margens de rios.

Ocorre que a valorização que é atribuída aos terrenos que permanecem unicamente sendo "especulados" é gerada sobretudo por conta de investimentos públicos, uma vez que o preço dos espaços aumenta conforme a área em que eles se inserem recebe equipamentos e serviços públicos. Assim, os serviços de saneamento básico e asfaltamento, por exemplo, fazem com que os terrenos em torno sejam valorizados, e tal acréscimo de valor se deu diretamente em virtude do gasto de dinheiro público. Ou seja: por meio do investimento dos tributos de todos os munícipes, algumas pessoas enriquecem simplesmente por serem donas de terrenos.

Kowarick (1979) descreve de uma maneira bastante clara o mecanismo de que se utiliza a especulação imobiliária nas cidades, de forma que vale a pena transcrever a longa citação:

A especulação imobiliária (...) adotou um método, próprio, para parcelar a terra da cidade. Tal método consistia (e consiste) no seguinte: o novo loteamento nunca era feito em continuidade imediata ao anterior, já provido de serviços públicos. Ao contrário, entre o novo e o último já equipado, deixava-se uma área de terra vazia, sem lotear. Completado o novo loteamento, a linha de ônibus que o serviria seria, necessariamente, um prolongamento a partir do último centro equipado. Quando estendida, a linha de ônibus passa pela área não loteada, trazendo-lhe imediata valorização. O mesmo ocorreria (e ocorre) com os demais serviços públicos. (KOWARICK, 1979, p. 33, grifo nosso)

Dessa forma, as imobiliárias e construtoras sabem que os terrenos intermediários serão valorizados muitas vezes de forma exorbitante e às vezes em muito pouco tempo, o que faz com que o lucro seja certo e em certa medida rápido. O processo de especulação, portanto, é deliberado e posto em prática segundo critérios lógicos do mercado imobiliário, visando o lucro crescente de poucos e nada se importando com as necessidades coletivas da maioria da população da cidade.

Esta prática, a retenção especulativa dos imóveis urbanos, é uma forma muito clara de transferir para o valor do terreno a benfeitoria pública, e, conforme dissemos, de forma rápida e antecipada. Pode-se compreender, assim, que a realização de rodovias ou quaisquer outras melhorias urbanas irá influenciar diretamente a valorização dos terrenos do entorno, fazendo com que estes fiquem cada vez mais inacessíveis às classes populares.

É desta maneira que a tendência do crescimento das cidades é a expulsão da população pobre para as "periferias" à margem da cidade. A especulação imobiliária, assim, é um dos fatores mais relevantes na questão da segregação sócio-espacial e na periferização da cidade.

Na prática, conforme nos lembra Rolnik, a especulação é uma "enorme transferência de recursos públicos para o mercado imobiliário"(informação verbal) [05]. Este fato é mais grave ainda em razão de que essa concentração de terrenos inutilizados não é, sob nenhum aspecto, benéfica para a cidade e os cidadãos. Mesmo assim, os donos dos terrenos, sujeitos ativos da especulação, são premiados com a valorização de suas propriedades, que é gerada pelo dinheiro público.

Quer-se com isso dizer que a especulação imobiliária configura enriquecimento ilícito dos proprietários destes terrenos, e o que é pior: enriquecimento ilícito à custa dos tributos, das receitas públicas. Com a especulação imobiliária a cidade perde, portanto, em várias frentes:

a) Em termos do investimento sem retorno (porque o lucro da venda dos terrenos valorizados fica somente para os particulares);

b) Em termos da "escassez criada" de territórios, gerando assim a concentração de terras nas mãos de poucos;

c) Na falta de moradia para a maioria da população.

A visão da terra e da habitação como simples mercadorias iguais a quaisquer outras ignora que as duas estão relacionadas ao direito à moradia enquanto Direito Fundamental. A especulação imobiliária é um sistema por meio do qual a terra é vista e vendida como bem particular independente das necessidades sociais, o que é completamente desarrazoado e hoje não encontra sequer suporte legal. A propriedade é condicionada à função social, que não é um atributo da propriedade, mas sim um de seus elementos estruturantes, ou seja, necessários.

Ignorar o valor da terra enquanto possibilidade de vida é um despropósito de que nos alerta Alfonsin:

O que não se pode deixar de considerar, entretanto, é que o suporte físico de ambos, a terra, contém potencialidades indispensáveis a vida, e à vida de todas as pessoas, não somente a dos proprietários, coisa que freqüentemente escapa à cogitação dos intérpretes das leis e dos fatos.

O solo é incomensurável em seu valor, tanto para os particulares como para o povo em seu conjunto. Nele se radicam a fonte de alimentação das gentes, as riquezas criadoras dos instrumentos elementares para a satisfação das incontáveis necessidades vitais, e todo o sistema habitacional dos seres humanos. Dele se extraem as substâncias curativas e de fortalecimento, as possibilidades inesgotáveis de recreio e lazer e, sobretudo, nele se exerce, basicamente, a liberdade essencial do homem de ir e vir. O solo é toda a hipótese e possibilidade de vida. (ALFONSIN, 2003, p. 88, grifo nosso)

É para evitar o desvirtuamento da propriedade em puro benefício particular de poucos, que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXIII, determina que a propriedade atenda a sua função social. Desta forma, a Constituição assevera que é obrigação do proprietário providenciar para que a propriedade atenda sua função social, ou seja: não se trata de uma faculdade, e sim de um dever do dono do imóvel.

Além do supracitado artigo 5º, ainda sobre a função social da propriedade, está o artigo 170 da Constituição, que a traz como princípio:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

III - função social da propriedade;

Desta forma, a função social da propriedade é expressamente prevista na Constituição ao mesmo tempo como uma garantia fundamental no artigo 5º e também como princípio central da ordem econômica brasileira, no artigo 170. Não se olvida, assim, que constitui a função social em uma das instituições mais importantes do ordenamento pátrio, sem a qual a propriedade não pode existir.

Descumprida a função social, a propriedade deixa de ser resguardada pelo Direito, tendo em vista que se descaracteriza enquanto direito fundamental. O direito fundamental à propriedade está condicionado ao exercício da função social, de forma que não se pode, sob hipótese alguma, deixar de exercê-la, sob pena de estar deslegitimada a propriedade, e ser plenamente possível a desapropriação.

Sobre a política urbana brasileira, dispõe o artigo 182 da Constituição Federal:

Art. 182 - A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei,tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

(...)

§ - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor

(grifo nosso)

Neste artigo, a Constituição diz que as diretrizes gerais da política de desenvolvimento urbano serão fixadas em lei. Esta lei referida na Constituição foi promulgada em 2001 com a alcunha de "Estatuto da Cidade", trata-se Lei Federal 10.257/ 2001. Depreende-se ainda do supracitado artigo que caberá ao plano diretor especificar quais as exigências para cumprimento da função social da propriedade.

Não foi à toa que o Estatuto da Cidade estabeleceu como uma das diretrizes da Política Urbana Nacional o combate à especulação imobiliária. O Estatuto da Cidade regulamenta o artigo 182, e complementa, portanto, o que a Constituição Federal diz no capítulo de Política Urbana. No artigo 2º do Estatuto se observa claramente a intenção da lei em coibir essa prática.

Dessa forma, se a lei federal que complementa a Política Urbana nacional entende que a especulação imobiliária deve ser coibida, não se entende porque esta deva ser tolerada. Além disto, no Plano Diretor Participativo de Fortaleza- PDPFOR também está disposto que é um dos objetivos a diminuição da especulação imobiliária.

Facilmente se observa, portanto, que a especulação imobiliária é trazida como prática ilícita de forma implícita pela Constituição, e de forma expressa pelo Estatuto da Cidade e ainda pelo Plano Diretor de Fortaleza.

De forma implícita, na Constituição, porque a Carta Magna não se refere diretamente à especulação, mas ao mesmo tempo diz que a propriedade deverá cumprir sua função social. Compreende-se que privar milhares de pessoas de moradia, enquanto o terreno permanece inutilizado e unicamente valorizando, beneficiando somente o especulador, é indubitavelmente descumprir a função social da propriedade. Além disso, a Constituição diz que a função social será determinada nos planos diretores, e o PDPFOR traz expressamente sobre a função social, in verbis:

Art. 3º São princípios da Política Urbana:

(...)

§ 2º A função social da propriedade é cumprida mediante o pleno desenvolvimento da sua função socioambiental.

§ 3° A propriedade cumpre sua função socioambiental quando, cumulativamente:

I — for utilizada em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental;

VI — não for utilizada para a retenção especulativa de imóvel.

(grifos nossos)

Ou seja, o Plano Diretor de Fortaleza, que, conforme a Constituição é quem define o que seja a função social para o município de Fortaleza, diz que a retenção especulativa do imóvel corresponde ao não-cumprimento da função socioambiental da propriedade.

Reitera-se, assim, que a especulação imobiliária configura uma prática a ser combatida, vez que constitui enriquecimento ilícito. Conforme exposto, tanto a Constituição, quanto o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor de Fortaleza são normas em que a especulação é tida como prática ilícita, devendo, portanto, ser coibida.

Para enfrentamento real do déficit habitacional brasileiro, que é sobretudo urbano, é necessária a proibição efetiva da especulação imobiliária, pois, como vimos, é a retenção especulativa que gera a escassez criada de terras, elevando os preços e impossibilitando o acesso da população à moradia. Não parece ser suficiente construir conjuntos habitacionais ou criar programas que financiem ou subsidiem as casas para a população.

A simples obtenção da casa por uma ou centenas de famílias, como asseveram Rolnik e Maricato, não irá combater o problema, uma vez que gerará solução para aquelas questões específicas, mas o déficit habitacional continuará. As soluções reais para a crise habitacional brasileira estão no cumprimento à legislação que já existe (a exemplo da desapropriação-sanção para os proprietários que não cumprem a função social), e no repensar a cidade de uma forma que não exclua as pessoas, independentemente de classe social.


2 ZONAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL

Inicialmente cabe indagar se, para a resolução do déficit habitacional urbano, o investimento massivo do Estado na construção de habitações populares seria suficiente. Esta pergunta não se faz ao acaso, e sim considerando que durante décadas a principal atividade governamental nesta seara da Questão Urbana foi no sentido da construção de conjuntos habitacionais.

Exemplo deste direcionamento estatal foi a criação do Banco Nacional de Habitação – BNH, na década de 1960. O que se observou, no entanto, para além do número insuficiente de unidades habitacionais disponibilizadas, foi que boa parte destas obras não chegou a ser concluída. Ademais, as obras que foram terminadas não eram dotadas de formas de integração à urbe, de modo que ficaram um tanto quanto à margem da cidade.

No Brasil o Estado sempre foi bastante tímido com relação ao que poderia ser realizado de fato em prol da efetivação do direito à moradia. Sobretudo porque é habitual se pensar que política pública para moradia é apenas a instituição de conjuntos habitacionais, convênios e parcerias público-privadas para financiamento de casas. Tal ideário característico do senso comum permeava e permeia ainda o pensamento de muitos dos administradores públicos, responsáveis por executar estas políticas.

Conforme afirma Maricato (1997), os governos geralmente não avançaram as políticas públicas para além da criação de conjuntos habitacionais "populares". Os conjuntos habitacionais não combatiam nem sequer colocavam em questão a problemática fundiária urbana. Além disso, boa parte dos conjuntos habitacionais privilegiou as classes médias e às vezes as classes altas, ou seja, deixando novamente à deriva as classes mais necessitadas, por conta da impossibilidade delas de arcar com as prestações de financiamento que não levavam em consideração seu poder aquisitivo.

O que se observou após alguns anos de início do BNH foi que o mercado imobiliário não se abriu e não foram criadas alternativas para a maior parte da população que buscava moradia nas cidades. O acesso das classes médias e altas foi priorizado, e hoje isto não é diferente.

Esta realidade de insuficiência e inadequação das políticas públicas brasileiras acerca do direito à moradia decorre da complexidade do problema e muitas vezes do despreparo das instituições para lidar com ele. Ora despreparo, ora desinteresse em alterar ainda que minimamente as estruturas sociais. Ocorre que, por ser mais complexo, o problema do direito à moradia não se esgota na obtenção de um teto sob o qual se viver – muito embora essa seja uma das maiores necessidades da população.

Caso não seja resolvido o problema da segregação/integração, a exclusão sócio-econômica desta parte da população será perpetuada, ainda que solucionado o problema da obtenção da casa. Boa parte desta exclusão social, é preciso que se diga, decorre da postura mínima ou inexistente dos governos com relação à segregação sócio-espacial. Hoje a necessidade de moradias é ainda maior, em virtude da crescente demanda por conta do crescimento da população, bem como das desigualdades sociais no país – que sempre dificultaram o acesso de milhares de famílias ao direito de morar dignamente.

Não se pode olvidar que a moradia, antes de um direito, é uma necessidade humana. Mesmo que não fosse direito positivado, como se poderia argumentar que uma pessoa prescinde de morar? É na realização do "morar" que as cidades se formam, ordenadamente ou não, daí a necessidade de se analisar essa questão, bem como pensar possíveis soluções para a efetivação deste direito.

É neste contexto que se impõe a necessidade de repensar a cidade, de formular soluções que de alguma forma venham a dirimir a triste realidade que é, para tantas pessoas, morar em situação de risco, ou sequer ter onde morar. Um instrumento que se apresenta como possível alternativa para dar efetividade ao direito à moradia é a Zona Especial de Interesse Social – ZEIS.

Importa destacar que uma das dificuldades encontradas para elaboração desta monografia foi o fato de existirem pouquíssimos trabalhos publicados sobre as ZEIS. As obras de Direito Urbanístico, em geral, não abordam as Zonas Especiais de Interesse Social e, se o fazem, normalmente não é de uma forma muito aprofundada.

A escassez teórica, sobretudo em virtude de ser relativamente recente a aplicação deste instituto, constituiu um dos desafios para a realização do presente estudo, razão pela qual boa parte das considerações sobre as ZEIS são extraídas da legislação e das observações da autora.

2.1. Conceito e caracterização das ZEIS

As Zonas Especiais de Interesse Social, doravante denominadas de ZEIS, estão inseridas na técnica de zoneamento urbano, que pode ser entendida como a repartição do espaço urbano em zonas ou áreas, em que cada uma delas deve obedecer a usos determinados ou a parâmetros de construção diferentes ou ainda, o que é mais comum, à combinação de usos e parâmetros diferenciados, segundo uma lei municipal de ocupação do solo.

Através do zoneamento, cada zona corresponde a uma área do Município relativamente homogênea, em que são devidos usos específicos e parâmetros próprios de construção. Por meio do novo PDPFOR, de que falaremos amiúde em momento oportuno, a legislação urbanística municipal prevê a divisão do Município de Fortaleza em várias macrozonas, que são áreas de grande extensão, com parâmetros de urbanização mais genéricos. O Plano Diretor prevê ainda a criação de zonas especiais situadas dentro das macrozonas, mas dotadas de critérios específicos, como é o caso das Zonas Especiais de Interesse Social, por exemplo.

O zoneamento é bastante relacionado ao Direito Administrativo e ao Direito Urbanístico, uma vez que estabelece por meio de normas estatais as condições em que deve ser exercido o uso da propriedade, bem como utiliza o Poder de Polícia estatal para criar deveres e obrigações para os proprietários. Segundo José Afonso da Silva:

O zoneamento constitui, pois, um procedimento urbanístico, que tem por objetivo regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas no interesse do bem-estar da população. Ele serve para encontrar lugar para todos os usos essenciais do solo e dos edifícios na comunidade e colocar cada coisa em seu lugar adequado, inclusive as atividades incômodas. (...) Não é meio de segregação racial ou social. Não terá por objetivo satisfazer interesses particulares nem de determinados grupos. Não será um sistema de realizar discriminação de qualquer tipo. Para ser legítimo, há de ter objetivos públicos, voltados para a realização da qualidade de vida das populações. (SILVA, 2008, p. 124)

A experiência pioneira de zoneamento urbano se deu em Frankfurt, na Alemanha, e logo em seguida este procedimento foi aplicado em Nova York e em outras cidades americanas. Apesar de, segundo Silva, o zoneamento não ser meio de realizar discriminação, muitas vezes foi exatamente para isso que este instituto serviu.

Em Nova York, por exemplo, a implantação do zoneamento no início do século XX foi bastante reclamada pelo comércio de luxo da Fifth Avenue, como forma de "evitar atividades indesejadas" no local, para além do uso que eles praticavam. Neste caso, a pressão dos comerciantes ricos foi para instituir o zoneamento que só permitisse que eles lá permanecessem, fazendo com que um interesse individual de uma classe tomasse ares de necessidade geral da cidade e dos cidadãos.

Desta forma, se observa que o zoneamento pode ser utilizado como instrumento das classes altas para a construção e a manutenção da segregação, na medida em que aquelas exigem a implantação de parâmetros diferenciados que só permitam a ocupação e o uso do solo valorizado para si. Este é um dos motivos que gerou muitas críticas ao zoneamento - a sua origem e potencial elitista -, mas se observa que o instituto pode ser utilizado com outras finalidades, como é o caso das Zonas Especiais de Interesse Social, das quais passaremos a falar mais especificamente.

As ZEIS foram previstas no Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257/2001, representando ao mesmo tempo o reconhecimento da multiplicidade de formas de ocupação do espaço urbano e a possibilidade de legalizar assentamentos e ocupações informais dentro da cidade.

Consistem as ZEIS em áreas onde há o reconhecimento de padrões específicos de habitação, com índices e coeficientes urbanísticos diferenciados dentro da cidade. Como questionamento central desta pesquisa, indagar-se-á sobre quais contribuições as ZEIS podem trazer para a realidade brasileira no que tange à democratização do espaço urbano, ao enfrentamento da segregação sócio-espacial e à garantia do direito à cidade aos munícipes que normalmente são excluídos simbólica e politicamente da urbe.

As ZEIS estão inseridas na realidade do planejamento urbanístico, e são dispostas no novo Plano Diretor de Fortaleza. Este plano dividiu a cidade em 20 zonas, determinando para cada parte da cidade certo grau de habitabilidade e específicos parâmetros de construção. Assim, conforme o PDPFOR, por exemplo, são estabelecidas Zonas de Ocupação Preferencial (ZOP´s) e Zonas de Ocupação Restrita (ZOR´s), e nelas serão diferentemente positivados parâmetros dispondo, respectivamente, da prioridade habitacional, e da não-habitabilidade nas áreas em que o Plano entende que inexistem condições para moradia.

Sobre o zoneamento instituído pelo novo plano diretor, pode-se dizer que o princípio que foi observado por essa nova divisão foi o crescimento da cidade em direção às áreas já dotadas de infra-estrutura. As Zonas de Ocupação Preferencial, por exemplo, são concentradas na área central da parte norte da cidade, que é dotada de infra-estrutura e onde existem muitos imóveis não utilizados.

Neste sentido, dentro de cada uma dessas zonas determinadas pelo PDPFOR, serão criados critérios de altura, permeabilidade [06] e ocupação diferenciados. As ZEIS existem para diferenciar um certo espaço - de ocupação prioritariamente de famílias baixa renda - , reconhecendo que dentro das ZEIS os parâmetros têm de ser específicos, e não os critérios gerais daquela área maior na qual se insere a ZEIS.

Este instituto permite a agilização dos processos de regularização fundiária, ao admitir no referido zoneamento especial a definição de parâmetros técnicos diferenciados, flexibilizando padrões em atendimento do interesse público, especialmente quanto à construção de habitações de interesse social.

Como objetivos das ZEIS pode-se apontar: o aumento da oferta de terrenos para a habitação popular; a inclusão social por meio do enfrentamento à segregação sócio-espacial; a ampliação do alcance da infra-estrutura urbana para além das fronteiras da cidade legal; e a vinculação de investimentos públicos em urbanização para estas áreas de habitação popular. Desta forma, ao ser reconhecida como ZEIS, a comunidade passa a ter prioridade de investimentos públicos, o que corresponde a uma das maiores conquistas advindas das ZEIS. Além disto, a instituição das ZEIS pode servir como regulador do conjunto de terras urbanas, no intuito de reduzir o preço das terras.

Conforme estudo do Ministério das Cidades, para implementação do seu Banco de Experiências:

A ZEIS cumpre, dentre outras, duas importantes funções, a primeira de permitir a flexibilização de parâmetros sem que isso signifique redução dos padrões de moradia digna. O segundo é que a ZEIS pode funcionar como um inibidor da transferência dessa unidade habitacional, construída com recursos públicos subsidiados, para uma camada da população mais abastada. (MINISTÉRIO DAS CIDADES, grifo nosso)

Com o advento do Estatuto da Cidade, as ZEIS foram pela primeira vez previstas em legislação federal, possibilitando a institucionalização de determinadas áreas como ZEIS. No Estatuto (Lei Federal nº 10.257/2001), as ZEIS estão previstas no artigo 4º:

Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:

(...)

V – institutos jurídicos e políticos:

(...)

f) instituição de zonas especiais de interesse social;

O Estatuto aponta, assim, as ZEIS como um dos institutos possíveis de serem aplicados para consecução dos objetivos da política urbana brasileira. No entanto, antes mesmo da previsão no Estatuto das Cidades, as ZEIS já podiam ser implementadas nos municípios que assim dispusessem, como foi o caso de Recife, de que falaremos em seguida.

As ZEIS são instrumentos de que há muito se tem notícia no Direito Urbanístico, mas que, contraditoriamente, poucas vezes foram realmente efetivadas. E quando o foram, tal se deu somente por pressão popular, como é o caso do Município de Recife. Nesta pesquisa, a maior parte das informações de que dispomos sobre ZEIS advém da implementação das mesmas em Recife e no Estado de São Paulo.

O reconhecimento de padrões específicos de urbanização por meio das ZEIS é bastante importante porque na cidade a distribuição dos espaços é desigual, bem como a sua ocupação, observando-se dentro do espaço urbano uma infinidade de construções e usos diferenciados. Estas diversidades se distribuem dentro da chamada "cidade legal", mas também na "cidade ilegal", não-normatizada e fora dos padrões legais e urbanísticos. Ocorre que a "cidade à margem da cidade" corresponde às habitações das classes populares, que sequer são consideradas enquanto habitação e tendem a permanecer na ilegalidade e no esquecimento.

Dessa forma, Rolnik (1997) assevera que são criadas duas cidadanias dentro da cidade: a cidadania plena, aos habitantes da legalidade, e a cidadania limitada, aos que moram na ilegalidade, na dita cidade ilegal. É justamente para combater essa segregação e negação de cidadania à maior parte dos habitantes que surgem as Zonas Especiais de Interesse Social, pois elas possibilitam a legalização de habitações que, anteriormente, não possuíam segurança alguma.

Assim, um bairro popular formado de habitações "irregulares" há várias décadas, tido como marginalizado e ilegal por conta do desrespeito às normas urbanísticas, por exemplo, se vem a ser incluído como ZEIS e passa a ser de fato Zona Especial, terá reconhecida a ocupação diferenciada, e os níveis e parâmetros de construção, ali, serão particulares àquela área.

Como é tradicional das normas urbanísticas nacionais, estas se concentram apenas em definir padrões desejáveis de ocupação para determinadas áreas da cidade, conforme nos lembra Rolnik. Ocorre que o estabelecimento destas normas gerais de habitabilidade sequer considera a maior parte da população das cidades, que não consegue acessar o mercado formal de habitação, e faz o espaço urbano se tornar cada vez mais caro e menos acessível a estas pessoas. Assim, porque não podem integrar a cidade formal e a habitação "legalizada", buscam formas alternativas de moradia, que quase sempre são loteamentos clandestinos, ocupações ou favelas.

É dessa forma que avançam as habitações irregulares, e bairros inteiros que são ignorados pelas políticas públicas, por serem, desde sua formação, ilegais. Daí a importância de institutos jurídico-urbanísticos como as ZEIS, que tornem possível a legalização a essas áreas, possibilitando aos seus habitantes a segurança jurídica da posse, bem como o acesso à infra-estrutura urbana e a prioridade dos investimentos públicos naquelas áreas.

2.1.1 Contexto em Fortaleza

Com o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001), Fortaleza é obrigada a atualizar o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – PDDU - pelo menos a cada dez anos, mas somente em 2009 foi atualizado o plano anterior, que, com 16 anos de vigência, já estava bastante defasado. Desde 2002 havia a necessidade legal de revisar o plano, senão reformulá-lo completamente, mas a primeira proposta (2000-2005) foi rejeitada por dois erros óbvios: 1) não considerava a cidade em suas realidades específicas, zona a zona; 2) não houve participação popular.

Por estes motivos, outra proposta foi elaborada por técnicos e analistas contratados pela Prefeitura em conjunto com a população através da realização de várias audiências públicas. Assim, o novo Plano Diretor Participativo de Fortaleza - PDPFOR (Lei Complementar Municipal nº 62/2009) foi aprovado em dezembro de 2008, publicado no Diário Oficial do Município em 13 de março de 2009 e entrou em vigor 60 (sessenta) dias após a sua publicação.

Este Plano deverá ser respeitado para o desenvolvimento urbano de Fortaleza para os próximos dez anos, de acordo com o Estatuto da Cidade. É com o Plano Diretor que o Município define quais as áreas de ocupação mínima, ocupação prioritária, quais as zonas ambiental e culturalmente protegidas, e também quais as áreas destinadas à habitação popular. A altura dos prédios, a porcentagem de edificação dos terrenos, a especulação imobiliária, sistema de transportes, saneamento básico, tudo isso são temas do Plano Diretor e nada pode passar despercebido da população de Fortaleza, vez que as implicações do que estiver disposto no Plano são inúmeras.

No decorrer das audiências públicas para discussão e aprovação do Novo Plano Diretor, algumas das maiores polêmicas giravam em torno das ZEIS. De um lado, o Campo Popular [07], pleiteando a inclusão das zonas especiais; de outro, o mercado imobiliário representado fortemente pelas construtoras, imobiliárias e pelo Sinduscon-CE [08], tencionando a não-inclusão ou, no mínimo, a inserção de limitações que, na prática, inviabilizassem as ZEIS.

O ano de 2008 foi o mais conturbado em termos das últimas discussões para aprovação do Plano, em que várias emendas estavam sendo propostas em relação ao texto original. As propostas, importante que se esclareça, eram oriundas tanto dos movimentos populares quanto dos setores empresariais, e a disputa permaneceu, para saber quais das proposições de emendas iriam ser vitoriosas.

No final de 2008, a Câmara Municipal de Fortaleza acenou para a possibilidade de votar o Novo Plano somente em 2009. Diante disso, em 23 de Outubro de 2008 foi realizado um ato popular em frente à Câmara Municipal cujo objetivo foi sensibilizar os vereadores e a população, através da mídia, a respeito da importância de o Plano Diretor ser votado ainda em 2008. Até a realização do referido ato, a Câmara encontrava-se debatendo sobre a possibilidade ou não da votação do Plano ainda naquele ano.

O Campo Popular entendeu que quanto mais se retardasse a votação, maior o risco de que as questões polêmicas, a exemplo das ZEIS, ficassem relegadas à matéria de Lei Complementar a serem aprovadas somente após o plano diretor. Após o ato, os vereadores que chefiavam a comissão responsável pela votação do Plano deram declarações no sentido de a votação ocorrer ainda em 2008.

Para além disto, a metodologia de votação das emendas propostas foi muito questionada pelos movimentos populares. Naquele momento, a Câmara votava as propostas das emendas ditas "consensuais", tendo feito a opção de votar as emendas "polêmicas" no final dos trabalhos. O risco identificado daquela escolha foi votar como "consensual" algo que não era verdadeiramente pacífico, e sobretudo postergar as matérias mais importantes, a exemplo das ZEIS.

Ao fim, a votação ocorreu de fato em 2008 e o Novo Plano foi sancionado e publicado em 2009, contendo a previsão expressa de mais de 20 áreas de ZEIS distribuídas de forma esparsa pela cidade. Algumas áreas são bem extensas, a exemplo da ZEIS do Bom Jardim e da Praia do Futuro, por exemplo. Já outras não são tão grandes, como a do Passaré, conforme se observa do mapa constante do Anexo B.

Uma perda significativa nesse momento da aprovação do Plano foi a não-inclusão da ZEIS do Lagamar, comunidade que participou durante todo o processo de discussão do PDPFOR. O temor de que fossem necessárias leis complementares ao plano diretor se concretizou: o Lagamar só foi incluído no PDPFOR como ZEIS por conta de uma lei complementar de 2010. [09]

Sabe-se que, após a aprovação do Plano, muita coisa ainda resta por ser feita, sobretudo com relação às ZEIS. O PDPFOR trouxe a previsão de várias ZEIS, o que foi uma conquista significativa dos movimentos populares, mas ao mesmo tempo foram dispostas na nova legislação uma série de restrições que quase inviabilizam, por exemplo, as ZEIS de vazio, que são talvez as ZEIS mais importantes.

Acerca das limitações às ZEIS de vazio, bem como das especificidades do instituto jurídico das ZEIS em Fortaleza e da caracterização dos tipos de ZEIS previstos na nova legislação municipal, falaremos na seção 2.3.

Para além dos obstáculos estritamente legais, vários outros podem ser apontados, a exemplo da não delimitação do Plano Diretor acerca dos Conselhos Gestores das ZEIS. A instituição do formato destes conselhos está aguardando a elaboração de decreto previsto no PDPFOR.

Para complementar o PDPFOR os dois instrumentos legais mais aguardados até então, sobretudo pelas comunidades habitantes das ZEIS, são: o decreto que irá regulamentar o funcionamento dos Conselhos Gestores e a lei de uso e ocupação do solo, que ainda precisa ser atualizada.

Atualmente, todas as áreas previstas como ZEIS no PDPFOR aguardam a elaboração de decretos específicos que devem elaborar os planos urbanísticos próprios de cada área, conforme será explanado na seção 2.3.

Em 26 de maio de 2010 foi realizado o Encontro das Comunidades pela Efetivação das ZEIS em Fortaleza, na ONG Cearah Periferia. Neste encontro, moradores das ZEIS debateram o que este instrumento realmente significa, bem como a necessidade de articulação das várias comunidades que são ZEIS, para cobrar do Poder Público a efetivação das conquistas do PDPFOR. Uma das intenções deste encontro foi apresentar e debater propostas das áreas para a próxima audiência pública a ocorrer na Câmara Municipal de Fortaleza, em 09 de junho de 2010.

Paralelamente às audiências públicas que estão sendo realizadas e à mobilização interna de cada área, as comunidades estão tentando formar um Fórum integrado das ZEIS de Fortaleza. O Fórum seria uma forma a integrar e intensificar as lutas pelas conquistas das ZEIS, e pressionar nas próximas audiências e manifestações públicas para que os instrumentos legais tomem realidade e se afastem do mero discurso formalista.

2.1.2 A experiência do Lagamar

A comunidade do Lagamar é uma das mais antigas de Fortaleza, datando da década de 30 a chegada das primeiras famílias àquela área. Foi na década de 50, em decorrência de outra grande seca no interior do Ceará, que a população do Lagamar teve um expressivo crescimento. Por conta da antiguidade e de um histórico de mobilização popular, o Lagamar ficou conhecido em Fortaleza, sobretudo pelos setores governamentais e os demais movimentos populares.

Na década de 80, houve uma intensa mobilização pela urbanização da área do Lagamar, paralelamente à resistência das famílias às remoções que eram intentadas pelo Governo, para a construção de grandes obras como a Avenida Borges de Melo. Apesar dos vários obstáculos, a ocupação no Lagamar resistiu e permaneceu naquela área. Mais recentemente, desde 2005, a luta do Lagamar vem sendo pela sua inclusão no Plano Diretor enquanto Zona Especial de Interesse Social.

A partir de 2005, alguns moradores do Lagamar passaram a participar de várias instâncias de deliberação popular sobre a cidade, como é o caso do Orçamento Participativo. Estiveram presentes ainda desde as primeiras audiências públicas para elaboração do Plano Diretor, e compuseram a articulação do Campo Popular para discutir um a um os artigos propostos para o PDPFOR. Havia um compromisso por parte da Prefeitura de Fortaleza de que o Lagamar, quando da aprovação do PDPFOR, seria incluído como ZEIS. Diante desse compromisso firmado e da participação constante da comunidade no processo de criação e aprovação do novo Plano, havia por parte da comunidade uma convicção de que o Lagamar seria uma ZEIS reconhecida pelo Plano Diretor.

Ocorre que o conteúdo do PDPFOR que foi aprovado na Câmara Municipal de Fortaleza, ao revés do que a comunidade acreditava, não trouxe o Lagamar reconhecido como ZEIS. O Lagamar não constava no plano nem nos mapas das ZEIS, de forma que não foi reconhecido o grande empenho do Lagamar nas discussões pelo Plano Diretor. O Lagamar esteve presente nos debates e nas audiências públicas, razão por que não se compreende porque essa inclusão não aconteceu.

Diante de mais este obstáculo, foi necessária a mobilização do Lagamar para que fosse corrigido esse engano, por meio de uma Lei Complementar ao PDPFOR. Durante os meses de janeiro a junho de 2009 o Lagamar representado por alguns moradores, lideranças comunitárias e entidades não-governamentais, tentou se reunir com a Prefeitura para discutir essa questão. Durante esses meses, a comunidade também buscou apoio de outros movimentos populares e de setores da Universidade que dessem suporte à mobilização e à divulgação das demandas do Lagamar.

Ainda por conta da inércia governamental, de julho a novembro de 2009 foram realizadas várias atividades culturais e de mobilização no Lagamar, para chamar a atenção dos moradores, sobretudo dos jovens, a respeito da necessidade da inclusão da área como ZEIS. Um papel importante nesse momento foi realizado pela Fundação Marcos de Brüin, organização não-governamental existente no Lagamar, com a participação de três projetos de extensão da UFC: o Núcleo de Psicologia Comunitária – NUCOM -, o Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária – NAJUC – e o Centro de Assessoria Jurídica Universitária - CAJU.

Houve a divisão do bairro em 8 grandes quarteirões, e durante quatro meses foram desenvolvidas as atividades, que por meio do teatro, da música e do cinema propiciaram o debate sobre a cidade e especificamente sobre o Lagamar, para fomentar a participação dos moradores na discussão e na pressão política pelas ZEIS. Foram elaborados pela comunidade poemas e hinos sobre o Lagamar, a exemplo deste:

Com um dos objetivos dessas atividades estava a realização de uma Grande Marcha a se realizar em 17 de novembro de 2009, com destino à Câmara Municipal de Fortaleza, para cobrar a elaboração da Lei Complementar que incluiria a ZEIS do Lagamar no PDPFOR. Esse esforço da comunidade resultou numa caminhada de quase quinhentas pessoas, entre moradores e apoiadores, indo à Câmara para pressionar que o processo de inclusão fosse agilizado.

O projeto de Lei Complementar foi elaborado, mas nele a Prefeitura quis incluir, no artigo 5º, um dispositivo que autorizava que qualquer obra com relação à Copa de 2014 fosse realizada, a despeito de a área ser ZEIS. Houve resistência do Lagamar, por meio de reuniões com a Prefeitura e também da realização de uma nova marcha, desta vez em direção ao Gabinete da Prefeita, em 17 de dezembro de 2009.

A intenção do Lagamar era retirar o artigo 5º do Projeto de Lei. No entanto isso não ocorreu, tendo sido acordado somente que tais obras referentes à Copa terão de ser aprovadas pelo Conselho Gestor, de acordo com o artigo 4º do mesmo projeto de lei. Apesar de terem requerido a exclusão do artigo 5º, a Prefeitura não aceitou, e o aprovado foi essa aparente proposta conciliadora. Assim, a comunidade do Lagamar tem alguma segurança porque haverá participação popular (obrigatória) no Conselho Gestor, de forma que diante de qualquer obra que traga prejuízos os moradores representantes no Conselho poderão se opor. Ao mesmo tempo, a manutenção do artigo 5º é um contra-senso porque é quase como dizer-se que ali é uma ZEIS que não é ZEIS, que pode ter a prioridade habitacional relegada a segundo plano caso haja uma obra da Copa. Deste modo, esse artigo fere a própria natureza das ZEIS, mas permaneceu.

Este projeto de lei foi enviado à Câmara Municipal no último dia de votação de 2009, e não pôde ser votado naquele dia porque também estava sendo aprovada a Lei do IPTU. Assim, somente em 09 de fevereiro de 2010, primeiro dia da nova sessão legislativa, foi que ocorreu a votação com 21 vereadores, o mínimo necessário para a aprovação. A Lei Complementar que inseriu a ZEIS do Lagamar no PDPFOR foi sancionada pela Prefeitura Municipal de Fortaleza em 16/03/2010, mas ainda não foi publicada.

Compreende-se que a experiência do Lagamar foi importante para a comunidade, mas também para as demais ZEIS, porque representou a possibilidade de mobilização pelo direito à cidade. De uma certa forma, após essa experiência de mobilização e pressão popular, o Lagamar está sendo encarado como uma espécie de referência para as demais áreas, que também estão tentando se organizar e animar os habitantes de cada área para participar do debate sobre as ZEIS.

Recentemente, em 1º de maio de 2010, o Lagamar organizou o 1º Encontro Comunitário das ZEIS do Lagamar, reunindo 260 moradores para discutir sobre as ZEIS do Lagamar, sobretudo como fazer para pressionar e agilizar as conquistas na área, bem como debater projetos necessários para o Lagamar. Neste Encontro, os moradores elegeram 34 pessoas para compor o Fórum Comunitário das ZEIS do Lagamar, e elaboraram sugestões acerca do Conselho Gestor da área. Quinzenalmente estão sendo realizadas reuniões sobre a temática, no intuito de manter a mobilização e a participação do maior número de moradores.

2.1.3 Como as ZEIS podem realmente contribuir para a efetivação do direito à moradia?

Inicialmente, as ZEIS significam a reserva de um espaço urbano prioritário para habitação popular, o que usualmente não ocorre. Vigorando unicamente a lei de mercado, é comprovado que as classes populares não conseguem acessar a habitação formal, por conta dos elevadíssimos preços da terra urbana. Não conseguem sequer ter acesso a áreas com alguma infra-estrutura mínima para habitação.

A instituição das ZEIS, portanto, logo em um primeiro plano constitui uma disposição legal, ou seja, uma garantia positivada de que tais áreas da cidade devem ser destinadas, prioritariamente, para a habitação popular. Reconhece-se, no entanto, que em muitos casos a distância entre o discurso legal e a realidade pode tornar letra morta muitas das garantias conquistadas, a exemplo das ZEIS. Neste sentido, apesar de as ZEIS determinarem que em suas áreas a prioridade seja a habitação popular, tal objetivo será cumprido de forma mais efetiva conforme maior for a pressão social.

O reconhecimento de áreas como destinadas para este tipo de habitação implica dizer que é assegurado às comunidades habitantes das ZEIS que a finalidade-mor da área é a habitação, e não a construção de grandes obras, por exemplo. A criação de uma ZEIS implica a responsabilidade do Poder Público em fornecer garantias para que a finalidade habitacional seja cumprida e, de fato, mantida. Deve haver a garantia contra a remoção das populações, sobretudo porque com a instituição das ZEIS o que é intentado pela população é justamente a segurança jurídica da posse e as melhorias urbanísticas nas áreas previstas. Este, portanto, é um dos benefícios nucleares que as ZEIS podem trazer.

Novamente chama-se atenção para o fato de que a garantia é legal, mas muitas vezes é o próprio Poder Público que tenta ignorar, alterar ou "passar por cima" das garantias legais. Tal vem sendo o caso da ZEIS do Serviluz, em que o Governo do Estado insiste em construir naquela área, apesar de ser uma ZEIS, o Estaleiro de Fortaleza. Especificamente sobre este ponto, deter-se-á na seção 3.3.

Além disto, para algumas áreas atender aos parâmetros que o Plano Diretor especifica é impossível, sobretudo pelo caráter de habitação popular. Esse é um dos motivos principais da luta dos movimentos urbanos pela aprovação das ZEIS: porque as ZEIS têm parâmetros próprios, diferentes das zonas maiores em que estão inseridas.

Caso essas áreas não estejam em ZEIS, serão consideradas zonas irregulares, e a legalização da documentação dos imóveis é impossibilitada. Nesse sentido, são várias as contribuições que este instituto pode trazer.

O que de mais essencial trazem as ZEIS enquanto benefício para as populações que habitam "irregularmente" na cidade é o reconhecimento da diversidade de ocupações, uma vez que as ZEIS reconhecem parâmetros específicos de ocupação e habitabilidade. Dessa forma, este instituto possibilita o reconhecimento legal e social de que outras formas de construção são possíveis, de que outros desenhos de bairros podem ser aceitos, e não apenas os que existem nas "áreas ricas" da cidade. É uma forma de enfrentamento do estigma da comunidade ilegal, uma vez que as ZEIS trazem consigo a chance da legalidade.

Este reconhecimento extravasa o âmbito do impacto jurídico, pois se reverte no reconhecimento da dignidade de todas as famílias que estavam morando irregularmente. Com as ZEIS, passa a existir a possibilidade da legalidade nos assentamentos, além do que a instituição de uma ZEIS gera a obrigatoriedade de o Poder Público investir na infra-estrutura da área enquanto política prioritária, gerando qualificação e regularização fundiária.

O reconhecimento de padrões específicos de habitação dentro das ZEIS permite que nelas sejam realizadas as melhorias urbanísticas necessárias, que antes eram impossibilitadas pelo discurso formalista de que primeiro era necessária a legalização da área. Dessa forma, as ZEIS são forte instrumento para agilizar a regularização fundiária.

Boa parte das áreas que são reconhecidas como ZEIS são de ocupações irregulares desprovidas de serviços públicos, a exemplo das ZEIS 1 e 2 de que se falará adiante. Essa carência de serviços é justificada pelo Poder Público e pelas suas concessionárias exatamente por conta dessa irregularidade, sob a escusa comum de que, por serem ilegais, os serviços de água e luz, por exemplo, não podem ser instalados. Com a instituição das ZEIS, a legalidade determina que estes desrespeitos institucionais aos direitos das pessoas cessem, gerando a qualificação das áreas, o que é claro ocorre mais rapidamente conforme seja maior a pressão da população lá residente.

Com as ZEIS, ocorre também a democratização do espaço urbano na medida em que os assentamentos irregulares passam a fazer parte da cidade, e não constituir o "à - margem" da cidade e da cidadania. E se a ZEIS for do tipo 3, ou seja, ZEIS de vazio, isso importa dizer que houve a criação de um espaço prioritário para habitação popular onde antes era um vazio urbano.

Dessa forma, é dada uma função social aos vazios urbanos, democratizando o espaço da cidade que usualmente era utilizado para especulação. Se corretamente previstas e implantadas, as ZEIS de vazio podem ser as mais importantes e com maiores impactos para a efetivação do direito à moradia.

À medida que o espaço urbano for democratizado, a segregação sócio-espacial vai sendo enfrentada em suas bases, uma vez que passa a ser possibilitado o acesso de todos à cidade. Considerando-se que é a segregação uma das mais cruéis faces da crise urbana atual, e cujos prejuízos maiores recaem sobre os mais pobres, entende-se uma das grandes contribuições que as ZEIS trazem é o combate à segregação sócio-espacial.

Conclui-se, assim, que as ZEIS tem um forte potencial para a efetivação do direito à moradia, se enfrentados os obstáculos que certamente surgirão para a sua aplicação. As ZEIS podem ser utilizadas para que o Direito à cidade realmente se concretize, possibilitando que a cidade seja de todos, e que o acesso aos bens e serviços ocorra igualmente para os munícipes que normalmente são excluídos simbólica e politicamente da urbe.

2.2.Breve relato das experiências de Recife

No tocante às ZEIS, Recife teve uma experiência pioneira, haja vista que há várias décadas este instituto foi criado na capital pernambucana. De acordo com dados da Prefeitura de Recife, o município reconhece a existência de 66 Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS, disseminadas pelo espaço urbano. Diante da existência de cerca de 490 favelas, representando 15% da área total do município e 25% da área ocupada, hoje as ZEIS agregam cerca de 80% delas.

A mobilização em Recife a respeito das ZEIS remonta ao início da década de 80, e foi por meio do Decreto Municipal nº 11.670 que 26 comunidades foram reconhecidas como áreas especiais. Um importante marco legal para isto foi a Lei de Uso e Ocupação do Solo – LUOS - de 1983. Nesta lei, as ZEIS foram reconhecidas enquanto instrumento importante da ordenação urbanística de Recife, e houve previsão da sua implantação em 26 áreas da cidade (mas à época a cidade já contava com mais de 200 favelas) sem, no entanto, apontar mecanismos para isto.

A LUOS de 1983 estabeleceu o zoneamento de Recife, criando a divisão em zonas: Residenciais; Industriais; Verdes; de Atividades Múltiplas; Institucionais e Especiais. Por meio da LUOS, as 26 comunidades anteriormente reconhecidas como áreas especiais foram transformadas em Zonas Especiais de Interesse Social. Esta foi uma grande conquista, pois o Poder Público costumava ignorar essa parte da cidade, que não constava nos programas de urbanização anteriormente, quase como se não existisse. Apesar desta previsão das áreas enquanto ZEIS, inexistia ainda regulamentação específica que dispusesse como as ZEIS seriam concretizadas.

A regulamentação específica das ZEIS em Recife se deu com o Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social – PREZEIS, em 1987, que consistiu uma peculiaridade do caso recifense. A aprovação da lei do PREZEIS (Lei Municipal nº 14.947/87) possibilitou a criação de um sistema participativo de gestão das ZEIS, bem como a previsão normativa de um conjunto de instrumentos e procedimentos que viabilizassem a regularização fundiária e urbanística das ZEIS. Uma das maiores inovações do PREZEIS foi a criação de espaços de debate e, portanto, de gestão democrática das ZEIS, dando possibilidade para que se discutisse os investimentos e recursos públicos a serem destinados para as ZEIS.

O sistema de gestão trazido pelo PREZEIS apresenta as seguintes instâncias: as COMUL´s (Comissões de Urbanização e Legalização) e o Fórum Permanente do PREZEIS (Decreto Municipal nº 14.539/88). A COMUL consiste em uma comissão que possui poder deliberativo, sendo responsável por formular, coordenar, e fiscalizar os planos de urbanização e regularização fundiária de cada ZEIS. Já o Fórum Permanente constitui uma espécie de articEIS, no intuito de debater os problemas das ZEIS e deliberar as estratégias para o conjunto das áreas, bem como da integração das ZEIS com a cidade.

Em 1995, a lei foi revisada e foi aprovada a Nova Lei do PREZEIS, (Lei Municipal nº 16.113/95). Aparentemente a criação do PREZEIS gerou uma obrigatoriedade maior do Poder Público, bem como um empoderamento por parte dos movimentos populares urbanos na busca pela implementação das Zonas Especiais de Interesse Social. Tal se deu ainda em virtude de a lei do PREZEIS ter estipulado as responsabilidades e direitos de todos os representantes do sistema gestor das ZEIS – tanto poder público quanto comunidades.

Segundo a Prefeitura de Recife, as ZEIS são:

Art. 17 - As Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS - são áreas de assentamentos habitacionais de população de baixa renda, surgidos espontaneamente, existentes, consolidados ou propostos pelo Poder Público, onde haja possibilidade de urbanização e regularização fundiária.

O conceito dado pela Prefeitura de Recife está em consonância com o apresentado por José Afonso da Silva, em seu livro Direito Urbanístico Brasileiro. O instrumento das ZEIS tem a finalidade de dar maior efetividade ao direito à moradia, promovendo a valorização da função social da propriedade em um contexto em que se dê prioridade do direito de moradia sobre o direito de propriedade, se esta propriedade estiver descumprindo a função social, no caso das ZEIS de vazio (ZEIS 3).

É fato que a nossa Constituição, diferentemente da Constituição Portuguesa, não define especificamente qual o conceito de moradia digna, mas é notória a existência de dispositivos que declaram o direito de todos à habitação digna. Destacamos a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Emenda Constitucional 26/2000, que inclui o direito à moradia no rol dos direitos sociais e institui o poder-dever do Poder Público em satisfazer esse direito, colocado por José Afonso da Silva como direito-necessidade.

No entanto, a efetivação do direito à moradia não é simples, sobretudo em cidades, a exemplo de Recife e Fortaleza, em que a especulação imobiliária reina, e existem vários grupos lutando pela supressão dos instrumentos populares que o Plano Diretor prevê. Não por acaso poucos Municípios conseguiram implementar as ZEIS, como é o caso de Recife, que ora relatamos.

Observamos que são vários os requisitos para o reconhecimento das ZEIS, o que confere maior segurança ao instituto, bem como fornece uma definição bem precisa do que ele é, no intuito de tornar mais claro ao Poder Público se determinada área pode ou não ser reconhecida enquanto ZEIS.

No Plano de Governo da atual gestão da Prefeitura de Recife encontrou-se um dos pontos-prioridade, juntamente com Educação e Saúde, qual seja o programa de requalificação das ZEIS:

Esse programa visa a melhoria da qualidade de vida da população residente nas ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), mediante a legalização da posse da terra, a definição dos parâmetros urbanísticos e edificantes especiais e a implementação de projetos de urbanização visando a sua integração à estrutura urbana da cidade, preservando a sua tipologia e garantindo a permanência da população nessas áreas. São parceiros nessa ação: BID, União (OGU - Orçamento Geral da União) PREZEIS, e Prefeitura do Recife.

Recife, segundo estatísticas do próprio Município, conta hoje com 66 ZEIS (uma população de cerca de 600 mil pessoas), o que a torna uma cidade pioneira e em estágio avançado da legislação urbanística municipal. Enquanto cidades como Fortaleza apenas recentemente conseguiram a inserção do instituto no Plano Diretor, Recife há muito já as tinha previsto e implementado, contando agora com programas de requalificação. No entanto, dificuldades inúmeras passa a cidade de Recife com relação às ZEIS, no que tange aos avanços de qualificação urbana nas áreas. As reclamações das classes populares persistem, certamente por conta de diversos problemas por que passa a cidade, mas, em virtude do espaço limitado deste estudo, não será abordada detidamente a realidade recifense.

Interessante para o Município de Fortaleza seria estudar os programas e intervenções urbanísticas de Recife, através de seminários entre as prefeituras, por exemplo, no intuito de discutir experiências e fomentar políticas públicas exitosas. Sobretudo no que concerne à experiência da lei do PREZEIS e da criação de instâncias de participação popular, certamente a troca de conhecimentos entre os governos parece importante, diante da atual e premente necessidade da instituição dos Conselhos Gestores nas ZEIS em Fortaleza.

2.3 O novo Plano Diretor Participativo de Fortaleza e as ZEIS

O novo Plano Diretor Participativo de Fortaleza - PDPFOR - inovou sobremaneira no que se refere ao planejamento da cidade, trazendo o macrozoneamento urbano e, em específico, as ZEIS. Neste ponto, faremos uma análise do que o PDPFOR dispôs sobre as ZEIS, sem, contudo, pretender esgotar o tema.

Conforme se observa da análise do PDPFOR no que diz respeito às ZEIS, de acordo com o mapa constante do Anexo B, são várias as áreas reconhecidas enquanto Zonas Especiais de Interesse Social. As áreas em vermelho correspondem às ZEIS tipo 1, as de cor marrom são as ZEIS tipo 2 e as de cor laranja são as ZEIS tipo 3 também chamadas de ZEIS de vazio. Em Fortaleza, a maior parte das ZEIS reconhecidas pelo PDPFOR foram as ZEIS 1 e 3. As espécies de ZEIS serão detalhadas e caracterizadas nos próximos pontos.

Observa-se no supracitado mapa que existem algumas ZEIS que são áreas extensas, a maioria delas são ZEIS 1 e ZEIS 3. Neste sentido, cita-se a ZEIS 1 do Grande Pirambu, que corresponde à maior área vermelha do mapa, abrangendo os bairros do Pirambu, do Cristo Redentor e parte da Barra do Ceará. Esta ZEIS é a maior não somente em tamanho, mas também em densidade populacional. Pode-se citar ainda outras ZEIS 1 de tamanho expressivo, que são: Bom Jardim, Planalto Pici e Mucuripe. Já com relação às ZEIS de tipo 3, as maiores em Fortaleza são: Praia do Futuro, Sapiranga, Papicu e Álvaro Weyne.

A maioria das ZEIS, no entanto, corresponde a algumas áreas intermédias em extensão territorial, não sendo correto afirmar que as grandes áreas de ZEIS são o padrão em Fortaleza. Como exemplo destas ZEIS médias, são as seguintes áreas: Moura Brasil, Praia de Iracema e Caça e Pesca (ZEIS 1); Manoel Sátiro e Siqueira (ZEIS 2); bem como Parque Dois Irmãos, Passaré e Vila União, todos estes ZEIS 3.

2.3.1. Diretrizes gerais do Plano

Antes mesmo de mencionar as Zonas Especiais de Interesse Social, o novo PDPFOR em seu artigo 2º afirma que as disposições nele contidas são aplicáveis a todo o território municipal e determina que devam "o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei anual do orçamento municipal orientar-se pelos princípios fundamentais, objetivos gerais e ações estratégicas prioritárias nele contidas". Tal disposição é de importância ímpar para as ZEIS, porque está dito no artigo 2º que os objetivos, princípios e estratégias do PDPFOR devem ser contemplados nas leis orçamentárias.

Uma vez que as ZEIS são dispostas como estratégia prioritária da política urbana municipal, é de suma importância que a lei de diretrizes orçamentárias e a lei anual do orçamento municipal prevejam investimentos constantes nas Zonas Especiais de Interesse Social. A efetivação e a manutenção das ZEIS dependem da previsão contínua de recursos públicos destinados a elas, sob pena de serem apenas mais um instituto sem efetividade na política urbanística municipal. Enfatiza-se esta questão por se entender que é prioritário que o Estado cumpra essa disposição normativa e que os movimentos populares e as comunidades inseridas em ZEIS reivindiquem anualmente as disposições orçamentárias para as ZEIS, para que de fato as melhorias urbanísticas e sociais possam ocorrer.

Logo adiante, o PDPFOR em seus princípios e objetivos coloca expressamente que uma das diretrizes da política urbana municipal é garantir o direito à cidade e a função social da propriedade, coibindo a especulação imobiliária. Conforme os artigos 3º e 4º:

Art. 3º São princípios da Política Urbana:

(...)

II — a função social da propriedade;

(...)

§ 2º A função social da propriedade é cumprida mediante o pleno desenvolvimento da sua função socioambiental.

§ 3° A propriedade cumpre sua função socioambiental quando, cumulativamente:

I — for utilizada em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental;

II — atenda às exigências fundamentais deste Plano Diretor;

(...)

VI — não for utilizada para a retenção especulativa de imóvel.

Art. 4º São objetivos deste Plano Diretor:

V — combater a especulação imobiliária;

(grifos nossos)

A respeito da especulação imobiliária, observe-se a leitura da seção 1.3 do presente trabalho.

Ainda no artigo 3º, o Plano prevê o respeito às diferenças entre as pessoas e os grupos sociais, de acordo com o Princípio da Equidade. A instituição das ZEIS contempla a finalidade desta disposição, uma vez que este instrumento possibilita o reconhecimento dos diversos tipos de ocupação na cidade, bem como a possibilidade do tratamento diferenciado a cada uma delas.

Diz ainda o PDPFOR que outro dos princípios fundamentais da política urbana é reduzir as desigualdades sociais, de acordo com os §5º e §6º do artigo 3º:

§ 5º O princípio da equidade será cumprido quando as diferenças entre as pessoas e os grupos sociais forem respeitadas e, na implementação da política urbana, todas as disposições legais forem interpretadas e aplicadas de forma a reduzir as desigualdades socioeconômicas no uso e na ocupação do solo do Município de Fortaleza, devendo atender aos seguintes objetivos:

§ 6º O Município deverá dispor de legislações, políticas públicas e programas específicos voltados para a redução da desigualdade social, que objetivem:

I — a garantia de condições dignas de habitabilidade para a população de baixa renda;

Enquanto objetivos elencados pelo Plano Diretor, além de combater a especulação imobiliária, o artigo 4º fala da ampliação da oferta de áreas para habitação de interesse social (VIII); da promoção de urbanização e regularização fundiária de áreas irregulares ocupadas por população de baixa renda (IX); da indução da utilização de imóveis não edificados, inutilizados ou subutilizados (X) e ainda da distribuição equitativa dos equipamentos sociais básicos (XI).

Nesta primeira parte do PDPFOR, são estabelecidas as diretrizes de acordo com as quais deve ser aplicado o Plano, guardando assim correlação direta com a aplicação das ZEIS, que também deve observar os objetivos e princípios dispostos no Plano Diretor.

A primeira vez em que as ZEIS são citadas expressamente no PDPFOR é no artigo 6º, in verbis:

Art. 6º São ações estratégicas prioritárias da política habitacional e de regularização fundiária:

VIII — instituir as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), segundo os critérios e procedimentos estabelecidos pelo Plano Diretor;

(grifo nosso)

Observa-se, assim, que a instituição das ZEIS é descrita como ação prioritária da política habitacional. A disposição expressa no artigo 6° pode e deve ser utilizada como cobrança ao Poder Público para a implementação do instituto às áreas que já foram previstas no Plano para serem ZEIS, bem como para as demais áreas que, no futuro, possam vir a ser Zonas Especiais. De acordo com este artigo, as ZEIS não são meramente um dos instrumentos possíveis de serem aplicados na ordem urbanística municipal. Pelo contrário: sua instituição trata-se de estratégia prioritária, e como tal deve ser cobrada e efetivada.

Ainda sobre as ZEIS em termos gerais, disposição importante é trazida no artigo 51:

Art. 51. São ações estratégicas da política de desenvolvimento econômico:

IV — desenvolver cooperativas sociais e arranjos de economia solidária para o segmento de pessoas em situação de desvantagem social, em especial nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS);

Esse artigo 51, em específico, lembra uma questão central no debate sobre as Zonas Especiais de Interesse Social, que é a importância da formulação de políticas públicas dentro das ZEIS. Ou seja, pouco adianta a previsão legislativa de uma ZEIS em determinada área e sua posterior implementação, por meio dos planos específicos que são necessários, se logo após isso o Poder Público esquece aquela ZEIS.

É preciso garantir que os moradores lá permaneçam, e isso só ocorre quando são criadas as condições para tanto. A exigência da infra-estrutura na área, por meio da presença dos serviços básicos como água, energia e saneamento, é indiscutível e prevista no Plano Diretor. A natureza, o conceito e a positivação das ZEIS determinam que, uma vez instituídas, o Poder Público é obrigado a instalar nelas os serviços essenciais, gerando a qualificação ou a requalificação urbana.

O que o artigo 51 aponta é que, para além da infra-estrutura, é necessário gerar e desenvolver alternativas de emprego e renda para a população, possibilitando a melhoria da qualidade de vida.

As ZEIS aparecem ainda no PDPFOR em vários outros dispositivos, a exemplo dos que abordam a macrozona de proteção ambiental em Fortaleza. A regularização fundiária das ZEIS, assim, é disposta como objetivo das Zonas de Recuperação Ambiental (ZRA), no artigo 68, V e das Zonas de Interesse Ambiental (ZIA), artigo 73, VII.

Para as ZEIS localizadas em alguma área da Macrozona Ambiental, aliás, o artigo 270, §3º, estipula que o plano integrado de regularização fundiária da ZEIS deve prever critérios e parâmetros que visem à proteção da área, em virtude da fragilidade ambiental. É necessário considerar, para estas áreas, a necessidade de redução das construções e taxas maiores de permeabilidade, conforme dispõe o §3º.

O PDPFOR determina que sejam aplicados às Zonas de Ocupação Preferencial 1 e 2 (ZOP 1 e ZOP 2), especialmente, alguns institutos, e dentre eles estão as ZEIS, nos artigos 82, XI e 86, XII, respectivamente. Quanto às Zonas de Ocupação Consolidas, no artigo 90, XI também está prevista a aplicação das ZEIS.

Nas Zonas de Requalificação Urbana (ZRU´s) há disposição acerca das ZEIS. Nos artigos 94, X e 98, X, respectivamente, as ZEIS estão também previstas para serem aplicadas.

Nas Zonas de Ocupação Moderada (ZOM) 1 e 2 da mesma forma, artigo 102, XII e 106, XII. Mesmo nas chamadas Zonas de Ocupação Restrita (ZOR), no artigo 110 do PDPFOR as ZEIS são trazidas como instrumentos a serem aplicados, no inciso V. Também nas Zonas de Orla (ZO), no artigo 121, X.

Assim, nas mais diversas grandes áreas estabelecidas pelo macrozoneamento municipal, como se pôde observar, as ZEIS estão sendo sempre citadas como instrumentos prioritários, dignas da maior atenção, não importando a macrozona em que estejam inseridas.

No plano diretor, as ZEIS são expressamente elencadas como instrumentos de regularização fundiária, conforme se observa do artigo 256, inciso VI, o que contempla as diretrizes urbanísticas municipais:

Art. 256. São instrumentos de regularização fundiária:

(...)

VI — zonas especiais de interesse social (ZEIS);

(grifo nosso)

As ZEIS podem e devem ser utilizadas como institutos que auxiliem a regularização fundiária das áreas de habitação popular, e a disposição expressa do artigo 256 é bastante importante neste sentido.

2.3.2 Seções dedicadas às ZEIS

A definição de ZEIS é feita no Plano Diretor no artigo 123, contemplando as características de que falamos acima, na seção 2.1. No citado artigo, as ZEIS são conceituadas e é dito que a sua destinação é a regularização urbanística e fundiária dos assentamentos habitacionais de baixa renda.

Art. 123. As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) são porções do território, de propriedade pública ou privada, destinadas prioritariamente à promoção da regularização urbanística e fundiária dos assentamentos habitacionais de baixa renda existentes e consolidados e ao desenvolvimento de programas habitacionais de interesse social e de mercado popular nas áreas não edificadas, não utilizadas ou subutilizadas, estando sujeitas a critérios especiais de edificação, parcelamento, uso e ocupação do solo.

É importante destacar-se que existem três tipos de ZEIS, que são dispostas no artigo 124 como: ZEIS 1, ZEIS 2 e ZEIS 3, das quais falar-se-á amiúde posteriormente.

Acerca do mecanismo de instituição das ZEIS, este é previsto no artigo 125, que estabelece que a sua criação deve se dar por meio de lei municipal específica, conforme se observa:

Art. 125. A instituição de novas ZEIS 1, 2 e 3 deverá ser feita através de lei municipal específica, respeitando os critérios estabelecidos nesta Lei, considerando as demandas oriundas da comunidade.

§ 1º A iniciativa legislativa para o reconhecimento e instituição de novas ZEIS 1, 2 e 3 é do chefe do Poder Executivo Municipal, condicionada ao atendimento dos critérios estabelecidos nesta seção, podendo também ser objeto de iniciativa popular na forma da Lei Orgânica e legislação pertinente.

§ 2º A criação de novas ZEIS 1, 2 e 3 poderá ainda ser proposta por associações representativas dos vários segmentos da comunidade ou pelo proprietário da área, através de requerimento encaminhado ao órgão municipal competente.

§ 3º Aprovadas pelo órgão municipal competente, as propostas de novas delimitações das ZEIS 1, 2 e 3 serão encaminhadas para a Câmara Municipal, através de projeto de lei, com a respectiva delimitação de seus perímetros.

O interessante é que, apesar de somente a lei municipal específica poder instituir as ZEIS, a proposta poderá ser dada por associações ou pelo proprietário da área. Essa última, gerada pelo proprietário, poderia vir a ser uma destinação social dada para cumprimento da função social da propriedade, quando esta não esteja sendo respeitada. No entanto, compreende-se que a possibilidade desta hipótese ocorrer é bastante remota, tendo em vista os interesses individualistas dos proprietários que, podendo optar entre dar destinação social ou valorizar o terreno por meio da especulação, normalmente reproduzem a retenção especulativa do imóvel, conforme abordado no capítulo 1.

As ZEIS estabelecidas no PDPFOR são de 3 tipos, e o primeiro tipo trazido no Plano é a ZEIS de tipo 1. Estas podem ser definidas como áreas de ocupação de população de baixa renda, em que geralmente aquela se deu de forma desordenada. Normalmente ocorrem espontaneamente, mas nada obsta que a ocupação da área tenha sido organizada.

Art. 126. As Zonas Especiais de Interesse Social 1 (ZEIS 1) são compostas por assentamentos irregulares com ocupação desordenada, em áreas públicas ou particulares, constituídos por população de baixa renda, precários do ponto de vista urbanístico e habitacional, destinados à regularização fundiária, urbanística e ambiental.

Uma das características da ZEIS 1 é que os moradores encontram-se na irregularidade por não possuírem relação jurídica/legal com o dono do terreno. A ocupação se dá de forma abstraída das normas legais, e seus ocupantes chegaram nestes terrenos em virtude da necessidade de moradia e por não encontrarem outros locais onde habitar. Normalmente estes terrenos não possuíam destinação alguma, caracterizando descumprimento da função social da propriedade por conta do abandono do imóvel.

Outra característica das ZEIS de tipo 1 é a falta de infra-estrutura urbana. São áreas carentes do ponto de vista urbanístico, em que é comum a inexistência de serviços públicos básicos como esgotamento. Também se observa a falta de espaços públicos para convivência e lazer da comunidade. A carência habitacional também é visível na estrutura das habitações, normalmente constituída de barracos e casas de lona, em que a falta de ventilação e de banheiros é latente.

Por estes motivos, são destinadas à Regularização Fundiária, Urbanística e Ambiental. São exemplos de ZEIS 1 o Pirambu, o Serviluz e o Bom Jardim, conforme se observa do Mapa no Anexo B. O plano diretor aborda as ZEIS 1 nos artigos 126 a 128, onde são dispostos os objetivos da ZEIS 1 e os instrumentos que nela podem ser utilizados. Estas normas estão dispostas no Anexo A.

Já as ZEIS de tipo 2 englobam duas modalidades de assentamentos. Os primeiros são os loteamentos clandestinos e irregulares, constituindo amplos terrenos que são divididos em ruas e lotes, que desrespeitam a legislação e, por isto, têm impossibilitada a regularização. Por conta da irregularidade destes loteamentos, o acesso a eles é opção para as classes populares em virtude do preço mais baratos. Os casos mais comuns dessas áreas são loteamentos que formalmente existem, mas jamais foram efetivados, muitas vezes inexistindo inclusive arruamento e serviços básicos.

O segundo tipo de assentamento que compõe as ZEIS 2 é o conjunto habitacional, que pode ser público ou privado. São projetos de construção de casas que não foram feitos de acordo com a lei e precisam ser regularizados. Os dois tipos são destinados à Regularização Fundiária e Urbanística. Existe um número considerável de conjuntos habitacionais irregulares em Fortaleza, sendo contabilizados pelo HABITAFOR mais de 50 destes conjuntos construídos até a época da Gestão Juracy Magalhães.

São exemplos de ZEIS 2 os conjuntos habitacionais construídos pela Prefeitura, principalmente os de mutirão. Algumas destas ZEIS estão localizadas nos bairros Alagadiço Novo, Curió e Manoel Sátiro, conforme o Mapa constante no Anexo B. O PDPFOR aborda as ZEIS 2 nos artigos 129 a 131, constantes também do Anexo A.

Art. 129. As Zonas Especiais de Interesse Social 2 (ZEIS 2) são compostas por loteamentos clandestinos ou irregulares e conjuntos habitacionais, públicos ou privados, que estejam parcialmente urbanizados, ocupados por população de baixa renda, destinados à regularização fundiária e urbanística.

Os critérios de reconhecimento das áreas enquanto ZEIS 1 e 2 são elencados no artigo 132, que se segue:

Art. 132. São critérios para o reconhecimento de uma área como ZEIS 1 e 2:

I — ser a ocupação predominantemente de população de baixa renda;

II — estar a ocupação consolidada há, no mínimo, 5 (cinco) anos, contados até a publicação desta Lei;

III — ter uso predominantemente residencial;

IV — ser passível de regularização fundiária e urbanística, observado o disposto no art. 265 desta Lei.

§ 1º Considerar-se-ão como população de baixa renda as famílias com renda média não superior a 3 (três) salários mínimos.

§ 2º Fica vedado o remembramento de lotes, que resulte em área maior que 150 em ZEIS 1 e 2, para o uso residencial unifamiliar.

(grifos nossos)

Estes critérios foram bastante discutidos nas audiências públicas que deliberaram sobre o Novo PDPFOR. O inciso I foi o menos polêmico, tendo em vista a própria destinação social das ZEIS, determinando que as classes populares sejam prioritariamente beneficiadas por elas. Já o inciso II consistiu no maior absurdo positivado no artigo 132, uma vez que foi a criação de uma das maiores barreiras para o reconhecimento de ZEIS no futuro.

Segundo o inciso II, somente podem ser reconhecidas como ZEIS as áreas que estivessem ocupadas, de forma consolidada, a pelo menos 5 (cinco) anos da publicação da Lei do PPDU. Ou seja, se a lei foi publicada em 2009, somente poderia ser ZEIS a área que fosse de ocupação consolidada até 2004. As áreas que constituíssem ocupação consolidada de 2005 em diante, por exemplo, estariam impossibilitadas de serem ZEIS, ainda que cumprissem todos os demais requisitos para sê-lo.

Por este motivo, uma das principais bandeiras dos movimentos populares nesse momento foi pela retirada desse inciso da proposta, para que ele não fosse aprovado no Plano, por ser um verdadeiro despropósito, que não encontrava justificativa alguma que não fosse simplesmente limitar a instituição das ZEIS, o que correspondia ao interesse do mercado imobiliário. No entanto, apesar da pressão popular, este inciso passou na votação e foi incluído no projeto que foi aprovado e publicado.

Em virtude da pressão exercida contrariamente a este artigo, que continuou mesmo depois da aprovação do plano, ainda em abril de 2009, foi enviado pela Prefeitura de Fortaleza à Câmara Municipal projeto de lei complementar que emenda o Plano Diretor para a reforma do inciso II do artigo 132. A referida Lei Complementar foi aprovada em 22/04/2010, sendo, portanto, bastante recente.

A redação do artigo 132 no inciso II foi alterada por esta lei complementar, determinando que os 5 anos devem ser anteriores ao projeto de lei que institui a área como ZEIS, o que felizmente corrigiu o despropósito da redação anterior. Assim, se o projeto de lei que institui determina ZEIS for de 2012, é necessário que a ocupação esteja consolidada em 2008, no mínimo. O "período de consolidação" de uma ocupação, segundo esta disposição legal, é de 5 anos. Após este tempo é que pode a referida ocupação pleitear a inclusão como ZEIS.

O uso predominantemente residencial (art. 132, III) também é característico das ZEIS, não só no plano diretor de Fortaleza, mas também no de Recife. Entende-se que a expressão "predominantemente" deve ser entendida como regra que comporta exceções, como é bastante comum o comércio familiar dentro da própria residência. Compreende-se que esse tipo de comércio, que constitui muitas vezes a única fonte de renda da família, deve ser respeitado, uma vez que não caracteriza descumprimento do artigo 132.

Uma das proibições relevantes trazidas para as habitações incluídas em ZEIS é a constante do §2º do artigo 132, que é a proibição do remembramento de lotes. O remembramento é proibido no intuito de garantir a permanência das famílias nos lotes, evitando que o mercado imobiliário se insira dentro das ZEIS, adquirindo os lotes e alterando-os, conforme for do interesse do comprador. É das maiores preocupações do PDPFOR que a permanência seja estimulada, e que o mercado não entre nas ZEIS, pois isso faria subir o preço dos imóveis e fechar novamente o acesso das classes populares àquelas áreas.

A última e talvez mais importante das Zonas Especiais de Interesse Social é a ZEIS de tipo 3, pois constituem os chamados terrenos vazios. Apesar de vazios, esses terrenos normalmente são dotados de infra-estrutura (saneamento, água, asfaltamento, energia), e, no entanto, são descumpridores de sua função social. A instituição de ZEIS nestes terrenos possibilita que eles passem a cumprir a função social e sejam direcionados para a construção de habitação de interesse social.

O PDPFOR descreve as ZEIS 3 no artigo 133:

Art. 133. As Zonas Especiais de Interesse Social 3 – ZEIS 3 – são compostas de áreas dotadas de infra-estrutura, com concentração de terrenos não edificados ou imóveis subutilizados ou não utilizados, devendo ser destinadas à implementação de empreendimentos habitacionais de interesse social, bem como aos demais usos válidos para a Zona onde estiverem localizadas, a partir de elaboração de plano específico.

Assim, as ZEIS 3 são um mecanismo bastante interessante para que os imóveis vazios que não vêm sendo utilizados passem a ser destinados para a população de baixa renda, proporcionando a toda a população o acesso à moradia. É preciso a elaboração de um plano específico para cada uma dessas ZEIS. No Plano Diretor de Fortaleza são reconhecidas como ZEIS 3 áreas na Francisco Sá, na Praia do Futuro e no Papicu (vide Mapa no Anexo B).

Especificamente sobre as ZEIS 3 o PDPFOR traz os artigos 133 e 138, todos constantes do Anexo A desta monografia. Destacam-se, no entanto, as disposições dos seguintes artigos:

Art. 134. São objetivos das Zonas Especiais de Interesse Social 3 (ZEIS 3):

I — ampliar a oferta de moradia para a população de baixa renda;

II — combater o déficit habitacional do Município;

III — induzir os proprietários de terrenos vazios a investir em programas habitacionais de interesse social.

(grifos nossos)

Observa-se que os objetivos das ZEIS 3 são um tanto diferentes dos objetivos das ZEIS 1 e 2, pois está prevista a indução do proprietário da área vazia a investir nos programas habitacionais. Dessa forma, combate-se tanto o número de imóveis vazios na cidade, o que é um combate direto à especulação imobiliária, quanto se obriga o proprietário a investir na área, com finalidade de auxiliar na efetivação do direito à moradia.

As ZEIS 3, diferentemente das ZEIS 1 e 2, não são voltadas para a regularização fundiária, pois nelas inexiste ocupação irregular. São áreas vazias que contraditoriamente são dotadas de toda a infra-estrutura urbana. Por conta destas características, o objetivo central destas ZEIS é prover moradia popular, determinando a obrigatoriedade de o Poder Público proporcionar essas construções seja por iniciativa pública ou por convênios com particulares.

As chamadas ZEIS de vazio servem para assegurar a destinação de terras bem localizadas e com infra-estrutura para as classes populares, no intuito da criação de uma reserva de mercado de terras para a habitação de interesse social. A instituição das ZEIS 3 amplia a oferta de terras urbanizadas e bem localizadas para a população de baixa renda, além de aumentar a capacidade de negociação da prefeitura com os proprietários de terras bem localizadas.

Outra observação acerca das normas especificamente sobre as ZEIS 3, é a nítida preocupação maior do PDPFOR em detalhar. O número de artigos, portanto, que discorrem sobre as ZEIS 3 é bem maior do que o das demais ZEIS, conforme se depreende da análise do Anexo A. A existência de um maior número de artigos não é surpresa, nem se dá ao acaso. Uma vez que com relação a elas se está interferindo de forma mais incisiva nas propriedades vazias na cidade, é interesse do mercado imobiliário que existam limitações maiores para a instituição da ZEIS 3. As referidas limitações serão abordadas logo a seguir.

O artigo 136 determina os critérios para estabelecimento de novas ZEIS 3:

Art. 136. São critérios para demarcação de novas ZEIS 3:

I — ser área dotada de infraestrutura urbana;

II — existência de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que permita a implantação de empreendimentos habitacionais de interesse social e de mercado popular;

III — não estar localizada em áreas de risco;

IV — estar integralmente localizada na macrozona de ocupação urbana.

Os incisos I e II são concernentes ao próprio conceito de ZEIS 3, qual seja de área vazia urbana dotada de infra-estrutura que permita a implantação de habitação popular, razão pela qual dispensam maiores comentários. Já o inciso III aponta que as ZEIS 3 não podem estar localizadas em áreas de risco, o que é ao mesmo tempo uma limitação e uma garantia. Limitação porque veda que sejam criadas ZEIS 3 em áreas de risco, e garantia porque, por meio do inciso III, se estabelece que o Poder Público não poderá buscar o caminho mais fácil, que normalmente foi de destinar para as classes populares somente as áreas socioambientalmente mais frágeis.

Compreende-se, assim, que o inciso III do artigo 136 é muito mais uma garantia para a população de que, ao ser estabelecida uma ZEIS 3, ela será dotada de segurança e infra-estrutura urbana. A exigência de infra-estrutura, aliás, é descrita no inciso I e, portanto, destinar uma área que não comportasse infra-estrutura – como é o caso da área de risco – já seria uma impossibilidade flagrante.

Ainda no artigo 136, o inciso IV diz que as ZEIS 3 devem estar totalmente dentro do perímetro da macrozona estipulada para ocupação urbana.

Em seguida, diz o artigo 137 que os empreendimentos habitacionais populares necessitam de parâmetros definidos por lei municipal específica. Novamente, trata-se de uma norma que pode ser entendida tanto como garantia, quanto limitação ou burocracia que irá impedir ou dificultar a instituição de novas ZEIS.

O artigo 138 traz o que anteriormente foi dito como sendo a limitação maior ao estabelecimento das ZEIS 3. Conforme o seu teor:

Art. 138. São inválidas e sem eficácia como áreas de Zona Especial de Interesse Social 3 (ZEIS 3) as áreas que, embora situadas dentro dos limites de ZEIS 3, sejam áreas de:

I — logradouros públicos (ruas, avenidas, praças e parques);

II — imóvel edificado com índice de aproveitamento igual ou maior que o índice de aproveitamento mínimo estabelecido para a Zona em que esteja inserido o imóvel.

Parágrafo único. A regulamentação das ZEIS especificará regras em imóveis situados nos alinhamentos de vias públicas que limitem hotéis, postos de combustível, depósitos de gasolina, depósitos de gás, depósitos de explosivos, depósitos de cimento, subestações rebaixadoras de tensão da COELCE, rotatórias de trânsito de veículos, pontes e viadutos e imóveis não edificados que não atendam aos critérios estabelecidos nesta Lei, para serem parte de ZEIS 3, incluídos os demarcadores descritos, respectivamente, nos mapas e anexos desta Lei.

(grifos nossos)

Este artigo criou uma série de limitações para a instituição de novas ZEIS 3, o que certamente não se deu por acaso, e sim por forte pressão dos setores imobiliários. Conforme se observa, diz o parágrafo único do artigo 138 que devem ser criadas regras específicas para as ZEIS 3 em áreas próximas a hotéis e postos de combustível, bem como vários tipos de depósitos, subestações de energia ou pontes e viadutos. O estabelecimento destes limites é, de forma clara, uma medida desarrazoada, pois pouquíssimas devem ser as áreas urbanas que não sejam vizinhas ou muito próximas de postos de combustível, hotéis, depósitos ou viadutos, por exemplo. O parágrafo único, desta forma, traz limites que diminuem sensivelmente as áreas possíveis de serem estabelecidas como ZEIS.

Ademais, as limitações não se justificam nem de forma ética nem legal. Ainda que se possa pensar que alguns dos itens são para segurança da própria ZEIS, como é o caso da restrição às ZEIS próximas de estações de energia e postos de combustíveis, não se pode esquecer que a elaboração destas normas está inserida no contexto de disputa do espaço urbano, de que falamos no capítulo 1.

Não se compreende porque não pode haver ZEIS 3 próximo a hotéis, por exemplo. A imposição desta limitação é do interesse unicamente do setor hoteleiro, para isolar os pobres da proximidade dos hotéis e tirá-los do campo de visão dos turistas, o que não se conforma de forma alguma com o interesse público existente no PDPFOR e na política habitacional municipal. O interesse particular, neste momento, sobrepôs-se ao interesse público, pois prevaleceu a vontade dos hotéis sobre a necessidade de moradia.

Houve forte disputa com relação a este artigo, e várias propostas de alterá-lo ou mesmo retirá-lo foram dadas pelo Campo Popular. No projeto de lei complementar enviado em 14/04/2009 para a Câmara Municipal de Fortaleza, a Prefeitura também propôs alteração a este artigo 138, segundo a Prefeitura para "garantir maior segurança para instalações de áreas de habitação popular". No entanto, a única alteração realizada neste artigo foi com relação ao inciso II, cuja redação passou a ser: "imóvel edificado com índice de aproveitamento igual ou maior que o índice de aproveitamento mínimo estabelecido para a Zona que esteja inserido o imóvel, exceto se o mesmo estiver desocupado e sem utilidade a mais de um ano."

Ou seja, não foi o artigo 138 alterado substancialmente, uma vez que mantém o parágrafo único com a redação original. Permanece, portanto, um dos piores dispositivos com relação à resolução da demanda por moradia da população, pois será com certeza um obstáculo para a efetivação das ZEIS.

Ainda com relação às disposições específicas sobre ZEIS, o Plano Diretor, no Capítulo X (Da regularização fundiária), estabelece em toda a Seção III um rol de dispositivos abordando os planos necessários para a efetiva regularização fundiária das áreas inseridas como ZEIS. A Seção III está integralmente disposta no Anexo B.

Art. 264. O Município promoverá a regularização fundiária nas Zonas Especiais de Interesse Social 1 e 2 – ZEIS 1 e 2, atendidas as exigências dos arts. 129 e 132.

O artigo 265 traz a disposição de que o loteador tem a obrigação de regularizar os terrenos, ainda que haja o reconhecimento como ZEIS, tratando-se de norma que autoriza a responsabilização do loteador que não proceda corretamente, como determina a legislação. O estabelecimento das ZEIS não pode servir de escusa para que o proprietário do loteamento continue praticando os atos ilícitos ou as omissões anteriores.

Art. 265. O reconhecimento como ZEIS de loteamentos irregulares ou clandestinos não eximirá os loteadores das obrigações e responsabilidades civis, administrativas e penais previstas em lei.

Parágrafo único. O Município, a partir da constatação da irregularidade ou clandestinidade, oficiará ao Ministério Público, a fim de que seja apurada a responsabilidade penal dos infratores.

Já o artigo 266 traz expressamente quais são as áreas em que não pode ser realizada regularização fundiária e urbanística, caso elas estejam integralmente localizadas, por exemplo: em pontes e viadutos (inciso I); sob redes de alta tensão (inciso III); em Zonas de Preservação Ambiental – ZPA (inciso V) ou áreas de risco (inciso VI).

Estas limitações se dão em virtude de impossibilidades materiais, vez que não se pode regularizar uma área de risco, por exemplo, em que sazonalmente as casas são inundadas por algum rio. Muitas vezes, em virtude da própria vulnerabilidade das áreas, o mais acertado a fazer é o Poder Público dialogar com a comunidade residente, pensando conjuntamente quais seriam as melhores alternativas para aquela situação. Se realmente inexistir possibilidade de solução, há casos em que o recomendável é a remoção, mas ressaltando-se a responsabilidade governamental de realocação imediata das famílias em áreas estruturadas e próximas aonde elas residiam anteriormente.

A este respeito, a garantia de que, em caso de remoção, esta se dará prioritariamente para áreas próximas está nos artigos 5º e 277 do Plano Diretor:

Art. 5º São diretrizes da política de habitação e regularização fundiária:

(...)

XVI — garantia de alternativas habitacionais para a população removida das áreas de risco ou decorrentes de programas de recuperação e preservação ambiental e intervenções urbanísticas, com a participação das famílias na tomada de decisões e reassentamento prioritário em locais próximos às áreas de origem do assentamento.

Art. 277. As famílias que ocupam imóveis localizados em áreas de risco e Zona de Preservação Ambiental (ZPA), situados dentro das ZEIS 1 e 2, serão reassentadas, preferencialmente, em local próximo à área anteriormente ocupada, necessariamente dotada de infra-estrutura urbana, garantido o direito à moradia digna.

(grifo nosso)

Em continuidade ao que dispõe o PDPFOR sobre os planos necessários para a regularização urbanística das ZEIS, estabelece o artigo 267:

Art. 267. Para as Zonas Especiais de Interesse Social 1 e 2 – ZEIS 1 e 2 – será elaborado um plano integrado de regularização fundiária, entendido como um conjunto de ações integradas que visam ao desenvolvimento global da área, elaborado em parceria entre o Município e os ocupantes da área, abrangendo aspectos urbanísticos, socioeconômicos, de infra-estrutura, jurídicos, ambientais e de mobilidade e acessibilidade urbana.

(grifo nosso)

Este plano integrado de regularização fundiária, conforme é disposto no PDPFOR, deve corresponder a um conjunto de intervenções públicas ordenadas (integradas) com a finalidade de regularizar as áreas previstas como ZEIS. É importante frisar-se que a integração é intuito maior deste plano, tendo como objetivo evitar as ações desordenadas e pontuais do Poder Público, muitas vezes em completa falta de diálogo das ações estaduais e municipais, por exemplo.

A falta de integração ocorre muitas vezes entre órgãos da própria Prefeitura, em virtude de não serem pensadas ações conjuntas, mesmo por órgãos que não se concebe trabalharem isoladamente. Foi para evitar este tipo de equívoco que o Plano Diretor foi bastante expresso, determinando a elaboração do plano integrado de regularização fundiária.

A natureza do plano integrado de regularização fundiária é múltipla, podendo se reconhecer os vieses vários deste instrumento: jurídico, urbanístico, sócio-ambiental, econômico e territorial. O objetivo do plano integrado é promover as intervenções urbanísticas, jurídicas e sócio-ambientais necessárias de forma integrada, visando à melhoria do ambiente urbano, à regularização fundiária e à ampliação da cidadania e da qualidade de vida dos habitantes das ZEIS.

O artigo 268 é um dos mais relevantes desta Seção, vez que dispõe sobre os Conselhos Gestores, conforme se observa:

Art. 268. Deverão ser constituídos, em todas as ZEIS 1 e 2, Conselhos Gestores compostos por representantes dos atuais moradores e do Município, que deverão participar de todas as etapas de elaboração, implementação e monitoramento dos planos integrados de regularização fundiária.

A participação popular é uma das diretrizes determinadas pelo PDPFOR para o plano integrado de regularização fundiária. Compreende-se que a existência destes conselhos será crucial para fomentar a participação das pessoas na gestão das ZEIS, mas uma enorme dificuldade se apresenta com relação a isto: o PDPFOR não dispôs como se dará a instituição dos Conselhos. Ao contrário, por meio do parágrafo único do artigo 268, disse que as atribuições, as formas de funcionamento e os modos de representação da comunidade e do governo deverão ser estabelecidos por meio de decreto municipal. Conforme veremos, a não regulamentação desta questão pelo PDPFOR pode configurar um dos grandes obstáculos para a efetivação das ZEIS.

As diretrizes do plano integrado são dispostas no artigo 269, e é de vital importância que elas sejam observadas, para a correta criação e manutenção das ZEIS:

Art. 269. São diretrizes dos planos integrados de regularização fundiária:

I — a integração dos assentamentos informais à cidade formal;

II — a integração do traçado viário das ZEIS com o sistema viário do seu entorno;

III — a inclusão social, com atenção especial aos grupos sociais vulneráveis;

IV — a promoção do desenvolvimento humano e comunitário, com a redução das desigualdades de renda e respeito à diversidade de gênero, orientação sexual, raça, idade e condição física;

V — a articulação das políticas públicas para a promoção humana;

VI — a qualidade ambiental dos assentamentos;

VII — o controle do uso e ocupação do solo;

VIII — o planejamento e a gestão democráticos, com efetiva participação da população diretamente beneficiária;

IX — o respeito à cultura local e às características de cada assentamento na definição das intervenções específicas.

(grifos nossos)

O plano integrado deve, desta forma, visar à integração dos assentamentos informais à urbe e à articulação das políticas públicas, conforme explanado anteriormente. Não se olvide ainda que uma das diretrizes nucleares é a inclusão social e o desenvolvimento humano das comunidades habitantes das ZEIS, tendo em vista que o maior objetivo das Zonas Especiais de Interesse Social é promover a dignidade e a melhoria de vida das pessoas, no intuito da redução das desigualdades sociais, não sendo este um instrumento urbanístico formalista, que se preocupa apenas com parâmetros técnicos sobre a cidade.

Uma diretriz das mais importantes é prevista no inciso VIII (art. 269), qual seja a participação e a gestão democrática do plano integrado, que deve ser exercida com a instituição dos Conselhos Gestores, a respeito dos quais se falou acima. É importantíssimo que estes Conselhos cheguem a existir, contando com forte representatividade da comunidade local. É necessário que os Conselhos se reúnam e sejam atuantes, instigando a população a participar e cobrar a efetivação das disposições do plano integrado. Ainda sobre os Conselhos Gestores, o artigo 270, §1º também afirma que o plano integrado de regularização fundiária deve ser elaborado com efetiva participação da população envolvida.

O plano integrado de regularização fundiária deve atender às demandas da região por infra-estrutura e equipamentos sociais dentro das ZEIS, de acordo com o que se depreende do artigo 272 do PDPFOR. Para atender estas demandas, o Plano Diretor aponta que o plano integrado deve conter, no mínimo (art. 272):

I — a identificação de imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados, em especial aqueles com potencial para o uso habitacional;

II — o mapeamento das áreas não passíveis de ocupação, a fim de evitar futuras situações de risco e de baixa qualidade ambiental para a população residente das ZEIS;

III — os projetos e as intervenções de caráter urbanístico necessários à recuperação física da área e à promoção da qualidade ambiental para a população residente em conformidade com o diagnóstico produzido previamente e com as demandas comunitárias;

IV — projetos de provisão habitacional, caso seja necessário, com definição dos beneficiários e área de implantação, que deverá, prioritariamente, integrar o perímetro da ZEIS ou estar localizada em área próxima;

V — ações de acompanhamento social durante o período de implantação das intervenções.

O cumprimento destes requisitos mínimos estipulados no artigo 272 é essencial para que seja possível a regularização fundiária e urbanística das ZEIS, que corresponde a um dos anseios maiores da população destas áreas. O mapeamento das áreas (inciso II) e a identificação dos imóveis não edificados ou subutilizados (inciso I), por exemplo, é vital para o conhecimento amiúde das áreas, visando à elaboração de medidas compatíveis com cada realidade local.

É imprescindível também que haja no plano integrado de regularização fundiária a previsão dos projetos e intervenções necessárias para a qualificação das áreas (inciso III do artigo 272), e que estes projetos estejam em consonância com as demandas apresentadas pela comunidade.

Além dos requisitos mínimos elencados no artigo 272, o inciso I do artigo 270 aponta como conteúdo essencial ao plano integrado: o diagnóstico da realidade local, contendo análises físico-ambiental, urbanística e fundiária; o mapeamento das áreas de risco e das demandas da comunidade; a identificação dos serviços e equipamentos públicos, bem como da infra-estrutura local; e a caracterização socioeconômica da população.

Compreende-se, desta forma, que o objetivo central do plano integrado é dispor sobre as especificidades de cada ZEIS, possibilitando o conhecimento esmiuçado da situação infra-estrutural, bem como dos problemas experimentados por aquela região. Tanto é assim que a descrição da situação local é requisito mínimo para o plano, bem como os projetos apontados como solucionadores dos problemas locais, e há a necessidade expressa de que estes projetos estejam em consonância com as demandas da comunidade.

No plano integrado de regularização fundiária deve haver ainda a normatização especial de parcelamento, edificação, uso e ocupação do solo (inciso II, artigo 270). Essa normatização especial é disposta no artigo 271 do plano diretor, onde é dito que ela precisa conter:

I — as diretrizes para a definição de índices e parâmetros urbanísticos específicos para o parcelamento, edificação, uso e ocupação do solo;

II — a definição dos índices de controle urbanístico para parcelamento, edificação, uso e ocupação do solo, de acordo com as diretrizes previamente estabelecidas;

III — a definição do lote padrão e, para os novos parcelamentos, as áreas mínimas e máximas dos lotes;

IV — as regras relativas ao remembramento de lote;

V — os tipos de uso compatíveis com o residencial e os percentuais permitidos dentro da ZEIS.

Essa normatização especial é da própria natureza das ZEIS, tendo em vista que é por meio dela que serão reconhecidos os parâmetros urbanísticos próprios de cada ZEIS. Deve ser definido o tamanho do lote padrão, bem como a área mínima e máxima para cada lote. O ordenamento do uso e ocupação do solo corresponde à definição de quais atividades e usos são compatíveis com cada área das ZEIS, e quais os percentuais permitidos dentro delas. Deve ainda ser estipulado a respeito do remembramento de lotes, e sobre o parcelamento e edificação do solo.

O PDPFOR dispõe sobre a possibilidade de o plano integrado de regularização fundiária abranger mais de uma ZEIS, mas para tanto é obrigatória a participação dos Conselhos Gestores e das populações de ambas as áreas envolvidas (artigo 270, §2º).

O plano integrado, na verdade, congrega a existência de vários outros planos, que são mais concernentes a assuntos mais específicos. Estes outros planos estão dispostos no artigo 270, e são: plano de urbanização (inciso III); plano de regularização fundiária (IV); plano de geração de trabalho e renda (V) e plano de participação comunitária e desenvolvimento social (VI).

Diz o PDPFOR no artigo 273 que o plano de regularização fundiária (artigo 270, IV) visa à legalização das ocupações existentes de forma irregular para melhorar o ambiente urbano e resgatar a cidadania daquela população. Este plano deve contar com, pelo menos: os procedimentos e instrumentos jurídicos aplicáveis para a regularização fundiária (inciso I) e ações de acompanhamento social durante o período de implantação das intervenções (inciso II).

Já o plano de geração de trabalho e renda, disposto no artigo 274:

Art. 274. O plano de geração de trabalho e renda poderá ser constituído de:

I — projetos de capacitação e aperfeiçoamento técnico;

II — ações de aproveitamento da mão-de-obra local nas intervenções previstas para a ZEIS;

III — fomento para o desenvolvimento de cooperativas, incluindo capacitações de gestão de empreendimentos e programas de créditos;

IV — ações voltadas para a formação de redes e parcerias entre os atores públicos e privados que atuam na ZEIS;

V — programas de créditos especiais para projetos individuais ou coletivos de socioeconomia solidária.

Impende destacar que o rol disposto no artigo 274 é meramente exemplificativo, sendo nítido que os incisos nele constantes são possibilidades, pois o caput anuncia que o plano "poderá ser" constituído daquelas hipóteses. Estas possibilidades são sugestões da legislação, que podem muito bem ser utilizadas genericamente para as ZEIS, mas é importantíssimo que sejam consideradas as especificidades de cada ZEIS para quem sejam formuladas as diretrizes e ações que mais sejam efetivas em cada situação.

Para cumprimento dos objetivos das ZEIS é necessário que a população residente na área não seja forçada a sair por algum motivo exterior futuro, que pode ser a pressão do mercado imobiliário querendo adentrar nas ZEIS (após as melhorias urbanísticas realizadas pelo Poder Público), ou alguma impossibilidade que se apresente para as famílias não conseguirem se manter no local. Uma impossibilidade concreta pode ser a falta de emprego próximo às ZEIS, que acabe forçando a família a se mudar para outra área. Dessa forma, a instituição do plano de geração de emprego e renda vem no intuito de efetivar o objetivo das ZEIS de gerar melhoria urbana e cidadania para os residentes na área.

É preciso bem mais que criar a ZEIS por meio de uma lei específica, de acordo com o que se observa das próprias disposições do PDPFOR. Há a necessidade de gerar condições para que os ocupantes permaneçam nas ZEIS, caso contrário este instrumento será fadado ao insucesso. É necessário atentar para o fato de que a regularização fundiária e urbanística, ou seja, a legalização, trará também ônus para a comunidade. Os gastos para as famílias irão crescer, ou devido aos impostos, ou por contas que, na ilegalidade, elas não pagavam (energia e água).

Há quem fale nos "custos da legalidade", e observa-se que, de fato, é preciso que se pense a redução dos impactos destes custos para as áreas de ZEIS, justamente para manter a comunidade no local. Pensar-se um IPTU diferenciado para as ZEIS (se os imóveis já não forem beneficiados pela isenção, por exemplo), a priori parece uma boa alternativa. Bem como a criação de taxas diferenciadas para serviços como água e energia. Com relação à energia, pelo menos, boa parte das famílias é isenta por ser consumidora de baixos níveis de energia.

A existência de um plano de geração de emprego e renda também é apontada como forte potencial de manutenção da população na área, mas para tanto é preciso que o plano seja bem estruturado e, o que é mais importante, cumprido de forma eficaz.

O último plano específico trazido para as ZEIS, componente ainda do plano integrado de regularização fundiária, é o plano de participação comunitária e desenvolvimento social. Este plano novamente reforça a importância da participação da população local em todas as etapas de instituição e desenvolvimento das ZEIS:

Art. 275. O plano de participação comunitária e desenvolvimento social será elaborado de forma a garantir a integração com as intervenções previstas nos demais planos, com o fim de promover a eficaz participação popular em todas as etapas de desenvolvimento da ZEIS.

Parágrafo único. A comunidade será capacitada, além dos temas pertinentes ao processo de regularização fundiária, nas temáticas de educação ambiental e temas afins.

Após a análise dos planos componentes do plano integrado de regularização fundiária, e uma vez que este último constitui uma exigência para a efetivação das ZEIS, a pergunta que se coloca é: qual o tempo mínimo necessário para a elaboração de todos estes planos? Parece-nos que a chance de que o procedimento de elaboração dos planos demore é bastante alta, sobretudo porque é preciso ainda prever a forma dos Conselhos Gestores e implantá-los em cada ZEIS, pois os Conselhos devem acompanhar toda a fase de elaboração e cumprimento dos planos.

Em um primeiro momento, poder-se-ia pensar que é mais interessante iniciar as obras das ZEIS sem aguardar a elaboração dos planos, mas é bastante temerário esse pensamento. Se as obras e os projetos forem iniciados sem que sejam estabelecidos as diretrizes e as especificidades de cada ZEIS, dificilmente as obras serão soluções para os problemas das áreas. A chance de equívocos é bem maior, e ainda existirá o vício da falta de participação popular, o que é gravíssimo em se tratando das ZEIS, instrumento criado para viabilizar moradia popular.

Ressalta-se a importância dos planos, por compreender que eles, antes de serem burocracia ou impedimento, são garantias que as ZEIS terão de que suas especificidades serão respeitadas. Garantias ainda de que as deliberações do Conselho Gestor devem ser seguidas, ou seja, que a voz da comunidade seja ouvida. Garantia, além do mais, de que o Poder Público não pode alterar unilateralmente as diretrizes urbanísticas das ZEIS, nem retirar a população de lá ou construir grandes obras viárias à revelia da população.

Por mais que, em um primeiro momento, o plano integrado de regularização fundiária possa parecer uma grande dificuldade, é necessário que se compreenda que a grande garantia das ZEIS será esta, se conseguir elaborar os planos com brevidade e ampla participação popular. Daí que se diga que é perigoso as comunidades abrirem mão dos planos, ainda que sob o discurso de barganha da Administração, de que "melhor é fazer logo".

De uma forma geral, estes são os dispositivos sobre as ZEIS trazidos pelo novo Plano Diretor, mas reitera-se que este é o discurso legal. Como se sabe, na maioria das vezes a distância entre o discurso e a realidade é enorme, e existem vários obstáculos para a efetivação das ZEIS na cidade de Fortaleza. Sobre os presentes e os possíveis futuros obstáculos, falar-se-á no capítulo 3.


3 A IMPLEMENTAÇÃO DAS ZEIS E OS OBSTÁCULOS À EFETIVAÇÃO DO DIREITO À MORADIA.

Antes de serem abordados diretamente os possíveis obstáculos à implementação das ZEIS, é mister que se esclareça, ainda que brevemente, as origens do urbanismo em Fortaleza. Este breve histórico tem por finalidade situar-nos no contexto das medidas urbanísticas usualmente implementadas em âmbito municipal, com o objetivo de alertar para que não sejam reproduzidos os mesmos modelos de medidas adotados anteriormente, ainda que com nomenclaturas e propostas diversas.

3.1 Medidas Urbanísticas em Fortaleza

Sobre as medidas urbanísticas no Município de Fortaleza, destaca-se a vasta documentação do Núcleo de Documentação Cultural (NUDOC/UFC), em que encontramos uma série de livros e documentos tratando sobre a origem do urbanismo em Fortaleza. Também nas pesquisas do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles encontrou-se relevante arcabouço teórico, bem como várias das bases de dados citadas neste estudo.

No início do século XIX, era a Câmara Municipal de Fortaleza que fazia a gestão político-administrativa e social da cidade. Em 1800 havia um "arruador" (arquiteto leigo), que basicamente era responsável por cuidar do traçado das ruas. De 1813 é a primeira planta parcial da vila, e é por volta da metade do século XIX que se tem notícia dos primeiros gastos municipais com alinhamentos de ruas e becos, e através das décadas da segunda metade do século, medidas várias versando sobre a ordem urbanística de Fortaleza.

Pela Câmara Municipal eram sugeridas, e por vezes implementadas, algumas medidas inusitadas, inclusive, como uma

Proposta do então Presidente da Câmara de dividir a cidade em tantos bairros quanto o número de vereadores. Outra curiosidade é que até mesmo a cor das residências chegou a ser objeto de deliberação, sendo aprovada a proibição de que o interior das casas tivesse caiamento branco ou encarnado..." [10]

Observa-se que, no século XIX e em boa parte do século XX, a maioria das medidas urbanísticas era pensada somente no que concerne ao embelezamento da cidade. Fato notório era que todos os especialistas em engenharia contratados eram recém-egressos da Europa, trazendo as novidades européias para Fortaleza. Não se refletia, no entanto, que a realidade cearense era bem diversa da européia.

Souza (2009) aponta que no governo Inácio de Sampaio (1812-1820) é que foram traçadas as primeiras normas dispondo sobre a organização do espaço da cidade, e é dessa época a planta da cidade do engenheiro Silva Paulet. Neste momento, ainda eram muito esparsas as normas urbanísticas.

Foi no governo seguinte, o do Boticário Ferreira, que houve uma maior preocupação com o disciplinamento da cidade e do seu crescimento. A autora lembra que foi dessa época (1859) a primeira planta elaborada pelo arquiteto Adolfo Herbster, que teve uma participação intensa no urbanismo do período. No governo do Boticário, foi proibida a construção de becos estreitos e ruas sinuosas no centro da cidade, e foi também nessa época que foi iniciada a instalação de iluminação pública.

A preocupação inicial, ressalte-se, era embelezar a cidade. As normas relacionadas ao urbanismo (que neste momento ainda estava se consolidando enquanto técnica), portanto, eram um conjunto das medidas tomadas no sentido de tornar a cidade mais bela e, quando muito, proteger os cidadãos de doenças, vez que naquela época se acreditava que os grãos de areia ao vento eram partículas de doença.

Segawa (2000) aponta que o urbanismo incipiente no Brasil configurou uma série de medidas que não tinham a necessária preocupação com a reordenação do tecido urbano. Dessa forma, os melhoramentos trazidos com o urbanismo (em geral de embelezamento e higienização) visavam a manutenção da estrutura existente, com poucas modificações. O autor aponta que a intervenção urbana derivava dos processos de saneamento urbano desenvolvidos no século 19, adquirindo naquele momento uma nova condição, enquanto visão racionalizadora e integrada de interferência na cidade, com o objetivo da "modernização" das estruturas urbanas.

Normalmente essa "modernização" era atribuída à importação de modelos urbanísticos da Europa, completamente alheios às realidades brasileiras. Além disto, Maricato (2000) assevera que o urbanismo no Brasil (enquanto planejamento e regulação urbanística) não tem comprometimento com a realidade concreta, e sim com uma ordenação que se refere apenas a uma parte da cidade, conforme foi abordado no capítulo 1.

O urbanismo no Brasil não se propôs no início a mudanças estruturais ou significativas; ao contrário, manteve as estruturas. Preconizou, sim, o tripé das seguintes diretrizes: embelezamento, higienização ou sanitarização; e segregação social por meio da dispersão do povo (evitando assim revoltas populares, a exemplo da criação de largas avenidas que facilitavam a repressão aos movimentos).

Exemplos de medidas urbanísticas adotadas à época, solidamente representativas deste tripé aludido:

(...) a criação de novos eixos viários, a uniformização das fachadas dessas avenidas e a implantação de parques públicos mediante a remodelação do tecido urbano colonial da cidade. Foi uma iniciativa de saneamento físico e social e de "embelezamento" (termo corrente na época) da cidade – capital e principal entrada internacional do país. Conciliar a erradicação das epidemias que varreram a cidade ao longo do século 19, afastar a população pobre dos setores estratégicos para a expansão urbana e conferir à paisagem uma estética arquitetônica de padrão europeu caracterizaram iniciativas para a modelagem de um Brasil condizente com o figurino de uma nação "civilizada" (SEGAWA, idem, p. 21)

Afastar a população pobre não só dos pontos estratégicos em termos econômicos (dificultando que eles acessassem as zonas boas para se morar), mas também buscando evitar manifestações políticas e aglomerações. Não nos esqueçamos que muitas ocupações irregulares, a exemplo das favelas, se originaram de medidas higienizadoras promovidas pelos governos municipais e estaduais, a exemplo do que ocorreu no Rio de Janeiro. O caso da cidade do Rio de Janeiro é emblemático porque boa parte das favelas antigas da cidade se originaram por conta das medidas iniciadas no governo Pereira Passos, mas ressalte-se que essa experiência foi parecida com a de muitos municípios do País.

Em nome do embelezamento da cidade e da "erradicação de doenças", expulsa-se a população pobre de uma área que geralmente está sendo visada pelo mercado imobiliário. Não se nega que muitas vezes é realmente necessária a remoção de populações em virtude de estarem elas em situação de risco (encostas de morros ou margem de rios, por exemplo), ou mesmo para conter epidemias, mas o fato é que este discurso muitas vezes foi usado por nossos governos para simplesmente afastar os pobres do olhar dos turistas (no caso de Fortaleza) e das elites, isolando-os o mais longe possível.

Assim, a urbanização vai acontecendo no Brasil de forma excludente: gerando espaços privilegiados de poucos. Todos, em tese, "têm direito" de ter onde morar, mas somente conseguem acessar esse direito os que possuem condições econômicas para tanto. Em termos reais, em não sendo tomadas medidas para garantir o igual acesso de todos, o que se está a fazer é legitimar uma ordem que preconiza o direito de alguns, em detrimento das necessidades de todos.

(...) há um vetor comum nas pontuais operações urbanas processadas nesse período: a apropriação de um repertório ideologizado de intervenção nas estruturas urbanas – o urbanismo como disciplina, tal como se codificava na Europa – instrumento modernizador por excelência, uma tentativa de equiparação da cidade brasileira aos patamares europeus ou a procura de uma tênue modernidade brasileira. (SEGAWA, idem, p.23)

Em 1875, o arquiteto Adolfo Herbster elaborou uma nova planta de Fortaleza, que serviu de plano-base para os demais estudos sobre a cidade, e principalmente no que diz respeito às obras viárias. Sousa (2009) afirma que esta planta foi de importância fundamental para o traçado urbano de Fortaleza, sobretudo porque as autoridades deram atenção para a criação de um transporte coletivo (o "bonde puxado a burro"), até então inexistente na cidade, bem como da primeira linha de trem, que foi inaugurada em 1873.

Ou seja, apenas no fim do século XIX é que começaram a ser inaugurados os serviços públicos de calçamento das vias principais, iluminação, telégrafo, etc. A canalização de água somente se deu em 1867, e funcionou de forma bastante precária por 10 anos.

Na Administração de 1931/1932, de Tibúrcio Cavalcante, a dita "administração revolucionária", foi dada especial atenção às questões viárias, sobretudo à pavimentação a concreto e ao prolongamento de algumas ruas. A partir daí o crescimento de Fortaleza começou a apresentar taxas expressivas. Foi criado nessa época um código de posturas, visando à proibição de construção de prédios com fachadas contínuas.

Conforme iam sendo inaugurados os serviços públicos, ainda que precários, continuava o ideário urbanista embelezador, com as influências européias apontadas por Segawa e Maricato.

Paralelamente a essa modelo de urbanismo importado da Europa, cujas preocupações eram majoritariamente embelezadoras, a população da cidade somente crescia. Este crescimento se deu em grande escala por conta das migrações, que no caso de Fortaleza normalmente são de pessoas oriundas do interior do estado. Segundo dados do IBGE, de 1940 a 1970 Fortaleza teve um saldo migratório de mais de 400.000 pessoas.

A partir da migração da população de outros municípios, e da elevada concentração de renda, começam a se formar as ocupações irregulares que são as chamados "favelas". O fenômeno da favelização encontra explicações mormente econômicas e sociais, inseridas no contexto maior da política brasileira em não priorizar os direitos fundamentais, aqui explicitado o direito à moradia. As primeiras favelas surgiram no período de 1930-1950, e algumas delas são: Cercado de Zé do Padre (1930); Lagamar (1933); Mucuripe (1933); Morro do Ouro (1940) e Varjota (1945).

Conforme dados da Prefeitura Municipal de Fortaleza, em publicação de 1996, entre 1950 e 1960, cresceu a uma taxa de quase 100%, revertendo no aparecimento de núcleos absolutamente desprovidos de infra-estrutura básica e espalhados pela periferia. Em vista dessas necessidades emergentes, foram criadas novas divisões administrativas na Prefeitura e numerosas comissões específicas.

Nos anos de 1940 a 1950, a cidade cresceu 49,9%, e no decênio seguinte o percentual foi de 90% de crescimento, pois a população passou de 270.169 em 1950 para 514.813 habitantes em 1960. Conforme Souza (2009), as estimativas apontam que a população de Fortaleza em 1975 era por volta de 1.100.000 (um milhão e cem mil) habitantes. Hoje a cidade ultrapassou 2,5 milhões, o que comprova o pico populacional também dos últimos trinta anos.

Com a grande seca de 1979 a 1984, veio outro agravamento à problemática urbana de Fortaleza, em virtude da população rural do Estado que chegava em massa à Fortaleza. A urbanização desordenada começava a se mostrar mais visível. Fortaleza, com o desenvolvimento econômico-cultural e com a migração, já demonstrava a necessidade de medidas urbanísticas solucionadoras, mas sobretudo preventivas. Datam desse período os primeiros movimentos organizados de bairros e uma intensificação das ações públicas para reduzir esse quadro.

O urbanismo deste período deu continuidade às medidas observadas nas décadas anteriores, com uma crescente preocupação para as obras viárias e à mobilidade na urbe. Ainda existia um forte viés embelezador e segregador, mas começam a aparecer alguns outros questionamentos, a exemplo dos levantados pelo arquiteto Sabóia Ribeiro (1947). Naquele ano, Ribeiro propôs o "Plano Diretor para Remodelação e Extensão de Fortaleza", que chegou a ser aprovado enquanto anteprojeto na gestão do Coronel Machado Lopes. O projeto final do plano foi apresentado em 1948 na gestão Acrísio Moreira, mas não foi aceito, acusado de não possuir estudos mais realistas, aprofundados, e de acordo com as possibilidades econômicas da cidade.

Costa (2009a, p.155) aponta que o plano proposto por Sabóia Ribeiro era inovador para a época porque trazia uma "preocupação pioneira com a preservação dos leitos dos riachos e das áreas verdes e com a delimitação de áreas verdes de parques". Este plano estabelecia, ainda que minimamente, a proposta de um zoneamento para a cidade, mas não chegou a definir os critérios para tanto.

Apesar da inovação proposta pelo plano de Sabóia, observa-se que o método de proposição se mantém o mesmo: algum engenheiro ou arquiteto ligado ao governo elabora um plano, encaminha ao Poder Público, que analisa e, se for o caso, providencia a aprovação. Daí a ser implantado ou não o plano, são outras dificuldades. O método unilateral de produção do ordenamento urbanístico, no entanto, é notório. Somente há poucos anos começou-se a falar em participação popular, tendo ganho esse discurso maior força nos anos 80, em especial com a Constituição Federal de 1988.

Antes da década de 80, falar-se em democratização do planejamento urbano era mais que uma utopia, quiçá uma loucura, tendo em vista que se compreendia (e ainda há quem pense assim) que discutir a cidade e o planejamento urbano é assunto para especialistas e técnicos, e a população não pode se inserir nos debates. Trata-se, em verdade, de um despropósito, mormente se consideramos que a cidade é construída por todos os que nela habitam. Ademais, muitas vezes quem melhor conhece os problemas urbanos são os habitantes de cada região, e não um especialista vindo de outra parte do país, às vezes até de outra nação.

Em 1963, o arquiteto Hélio Modesto, dando continuidade a estes planos construídos apenas por um especialista, elaborou um novo Plano Diretor que se ateve a aspectos econômicos e administrativos. Um grande problema deste plano foi que ele estabeleceu um zoneamento bastante segregador, na verdade foi o que Costa (2009) definiu como sendo a oficialização da segregação sócio-espacial, pois determinou a criação de 4 zonas diferenciadas em função do nível de renda da população. Compreende-se porque a autora falou em oficializar a segregação, tendo em vista que este plano sugeriu que, de forma legal, se dispusesse a respeito de áreas em que somente poderiam habitar os estratos sociais mais altos, e áreas destinadas às classes de baixa renda. Sabe-se, sem sobra de dúvidas, que somente restariam para os mais pobres as áreas sem nenhuma infra-estrutura, e seriam realmente só aquelas que não interessassem o mercado imobiliário formal.

A despeito de configurar um absurdo, a concepção deste plano deu origem a uma série de propostas urbanísticas que de fato foram adotadas, a exemplo da construção da Avenida Perimetral e da Avenida Beira-Mar, bem como da Avenida Luciano Carneiro, para possibilitar um melhor acesso ao aeroporto. O plano segregador de 1963 forneceu as diretrizes para a consolidação de uma série de melhorias urbanísticas que visavam atender apenas às elites. Não foi à toa que o primeiro bairro a ser beneficiado com a captação de água subterrânea das dunas foi a Aldeota, tratando-se de um direcionamento político que não se preocupa em atender as demandas da maioria da população.

Após estes plano de Hélio Modesto veio o Plano de Desenvolvimento Integrado para a Região de Fortaleza – PLANDIRF (1972). Novamente foram adotados vários projetos para o sistema viário (a exemplo das Avenidas Zezé Diogo, Aguanambi e Borges de Melo). Com o PLANDIRF também houve a instalação de alguns centros comunitários e a construção de conjuntos habitacionais com a finalidade da "desfavelização".

Em seguida, em 1975 foi aprovado o Plano Diretor Físico (Lei Municipal nº 4.486), que estabeleceu a divisão do município em zonas, determinando os usos e ocupação do solo diferenciados. Neste momento ocorria a acelerada expansão urbana para o Leste da cidade, nas proximidades da Praia do Futuro e a conseqüente valorização dos terrenos daquela área. Por conta disto, o mercado imobiliário realizou forte pressão sobre o governo, e conseguiu o aumento dos limites de densidade habitacional e a taxa de ocupação para a área, o que comprova que muitas das diretrizes urbanísticas municipais são fortemente influenciadas pelo mercado, conforme dissemos.

Novos Planos Diretores Físicos foram propostos após este, sem participação popular alguma, até que se chegou ao novo Plano Diretor, publicado em 2009, conhecido por alguns como PDPFOR – Plano Diretor Participativo de Fortaleza.

Paralelamente a estes planos urbanísticos citados, em que a maioria considerava como preocupação central a malha viária urbana e estruturava um sistema de transporte voltado para o transporte individual, poucas foram as iniciativas públicas de efetivação do direito à moradia em Fortaleza. Alguns conjuntos habitacionais foram construídos nas últimas décadas, mas há o notório fato de que a construção de conjuntos de forma isolada de outras políticas públicas não resolve o problema do enorme déficit habitacional brasileiro. Ressalte-se, outrossim, a baixíssima qualidade das construções destes conjuntos, em regra, e a localização bastante isolada destas construções. São poucas as exceções, como é o caso do recente conjunto habitacional Maravilha.

A conclusão a que se chega, analisando o histórico das medidas urbanísticas em Fortaleza, bem como as poucas iniciativas governamentais no sentido de prover moradia para a população de baixa renda, é que não se enfrentaram as questões de fundo que geram o déficit habitacional urbano. E, se não são tomadas medidas no sentido de dirimir as desigualdades, perpetua-se estas desigualdades, muitas vezes até solidificando-as por meio de instrumentos legais.

É preciso, portanto, utilizar na gestão urbanística da cidade os instrumentos legais que possam favorecer a efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo o direito à moradia no contexto do direito à cidade. Este breve histórico teve por finalidade apontar para a necessidade de se avançar e não cair nos erros dos planejamentos anteriores, tendo consciência de que a cidade está em disputa, e é mister utilizar os instrumentos como as ZEIS para possibilitar que esta disputa se dê de uma forma menos desigual e mais democrática.

3.2 Possíveis obstáculos à implementação das ZEIS

Após a leitura do PDPFOR, observa-se um extenso rol de dispositivos que, a priori, podem ser utilizados na política urbana municipal com a finalidade da democratização do acesso à terra urbana, como é o caso das ZEIS. Ocorre, no entanto, que existe possibilidade de que este Plano e as inovações por ele trazidas não saiam do papel.

Neste caso, o PDPFOR cumpriria uma função de "plano-discurso" conforme é apontado por Maricato (2000). O "plano-discurso" é aquele que esconde ao invés de mostrar, geralmente trazendo uma introdução ou justificativa de belos motivos, e um rol extenso de objetivos e diretrizes que visam a diminuição das desigualdades sociais, mas que na verdade não objetiva realmente alterar coisa alguma. O plano-discurso esconde, assim, a finalidade dos investimentos e das obras que obedecerão a um plano não explícito, escondido e aquém das necessidades da população.

É importante ressaltar que no Brasil há um extenso ordenamento urbanístico visando a produção e a distribuição regulada do espaço urbano. Ocorre é que esse ordenamento desconsidera completamente a maioria da população urbana brasileira, que vive na irregularidade, excluída do planejamento da cidade. Nesse sentido, em um primeiro momento, poder-se-ia pensar que a legislação urbanística, incluído aí o Plano Diretor, é ineficaz. Maricato, entretanto, aponta que

A ineficácia dessa legislação é, de fato, apenas aparente pois constitui um instrumento fundamental para o exercício arbitrário do poder, além de favorecer pequenos interesses corporativos. A ocupação ilegal da terra urbana é não só permitida como parte do modelo de desenvolvimento urbano no Brasil (...)

A ilegalidade na provisão de grande parte das moradias urbanas (expediente de subsistência e não mercadoria capitalista) é funcional para a manutenção do baixo custo de reprodução da força de trabalho, como também para um mercado imobiliário especulativo.

(MARICATO, 2000, p. 147-148, grifo nosso)

Dessa forma, a aparente ineficácia se revela como funcional ao sistema vigente, não apenas mantendo a situação irregular das moradias hoje, mas fazendo com que essa irregularidade se perpetue com bases sólidas. É neste contexto que o "plano-discurso" é formulado, com o claro objetivo de satisfazer formalmente uma exigência legal e também social, mas escondendo algumas das finalidades estruturantes para o governo e o mercado, que no futuro aparecerão. O "plano-discurso", portanto, é funcional para o mercado imobiliário, mas extremamente não-funcional para a cidade considerada como um todo, para os munícipes, e mais ainda para as classes populares, pois são elas que mais sofrem com o descaso para com a cidade informal.

É comum que apenas parte do Plano seja cumprida, ou ainda que somente seja aplicado o plano diretor àquela parte da cidade que corresponde à "cidade legal". Observa-se também a freqüente não-aplicação dos instrumentos que correspondem às melhorias urbanísticas para as classes populares, a exemplo das ZEIS de vazio. Oobstáculo central a ser enfrentado para a implementação das ZEIS, portanto, é a própria existência do plano-discurso, pois é necessário promover a sua superação,exigindo que sejam aplicados os instrumentos como as ZEIS, em benefício da população.

Algumas das dificuldades específicas foram apontadas ainda no capítulo 2, quando se analisou os dispositivos trazidos pelo PDPFOR sobre as ZEIS, a exemplo do número de planos que são necessários para a implementação das ZEIS. A necessidade dos variados planos que compõem o plano integrado de regularização fundiária, conforme dissemos anteriormente, constitui uma garantia para as populações de que as particularidades com relação às ZEIS serão respeitadas, e de que serão pensadas alternativas para os problemas da área. Uma garantia, em suma, para que os objetivos das ZEIS sejam de fato cumpridos. No entanto, o grande número de planos pode dificultar em função do tempo necessário para a sua elaboração, tempo este de difícil aceitação pela população com demandas há muito ignoradas.

Neste sentido, pode ser que o rol de planos necessários ao plano integrado constitua também uma dificuldade, mas é preciso que se esclareça que esta é uma dificuldade que deve ser superada. Admitir que as obras nas ZEIS se iniciassem sem a criação dos planos seria perder a possibilidade de firmar várias garantias perante o Poder Público, que vinculam também o interesse particular.

Não se questiona a existência destes planos, pelo contrário: acredita-se que o estabelecimento de uma ZEIS sem os devidos planos urbanísticos não é de forma alguma benéfico para a população, uma vez que inexistirá segurança jurídica com relação à manutenção das ZEIS. Apesar de serem necessários para conferir segurança e qualidade urbanística as ZEIS, é possível que, por serem vários, os planos específicos para as ZEIS constituam uma demora ou obstáculo formal para a efetivação das Zonas Especiais, dependendo da prioridade política que a elas seja dada.

Outro ponto que pode constituir obstáculo é a questão dos Conselhos Gestores, vez que o PDPFOR aponta que deve haver um Conselho Gestor para cada ZEIS, mas não existe qualquer dispositivo que as delimite ou forneça subsídios que esclareça sobre elas. A legislação neste ponto foi omissa, e neste caso uma omissão que pode atrapalhar e muito a implantação das ZEIS. A este respeito, consultar o ponto 2.3.2.

A dotação orçamentária é outro ponto polêmico, pois é extremamente necessário que todos os anos sejam previstas linhas de investimento para cada ZEIS na lei de diretrizes orçamentárias e a lei anual do orçamento municipal. Sem a previsão constante de investimentos, as melhorias previstas nas ZEIS se tornam ineficazes, uma vez que não terão aplicabilidade. O Plano Diretor, logo no início, momento em que são dispostos os objetivos e as diretrizes da política urbanística municipal, assegura que as leis concernentes ao orçamento municipal devem contemplar o que o plano determina para o desenvolvimento urbano.

Desta forma, sendo as ZEIS um instrumento prioritário da política urbanística municipal, é também prioritário que anualmente sejam previstos os investimentos que serão feitos nas áreas. Em não havendo essa previsão, estar-se-ia descumprindo o PDPFOR, de forma a possibilitar a caracterização de improbidade administrativa, pois a legislação é expressa com relação a esta obrigatoriedade.

Já está positivado, portanto, que a dotação orçamentária tem de prever os investimentos nas ZEIS, o que tem que ser discutido de forma constante é a efetivação desta garantia, bem como qual o percentual estabelecido para isto. É necessário que este percentual não seja ínfimo, para que se possa atender às demandas das várias áreas previstas como ZEIS, bem como a continuidade dos investimentos, não podendo estes ocorrer de maneira pontual.

Alguns dos fatores específicos que podem retardar ou mesmo impedir a aplicação das ZEIS são apontados por Ferreira (2007): a inexistência de sistematização das experiências no país; a descontinuidade das gestões municipais; a ausência de prioridade política; a adequação e coerência de conceitos e parâmetros técnicos e jurídicos; e a disputa na aplicação das ZEIS.

A primeira dificuldade apontada pelo autor é o fato de as ZEIS serem relativamente recentes e um tanto quanto inéditas na realidade brasileira, o que dificulta a sistematização teórica dos casos em que foram implementadas, ou das dificuldades que foram encontradas para sua concretização. Sabe-se que em alguns municípios paulistas, bem como Recife, as ZEIS foram criadas e efetivadas (ainda que, em alguns casos, parcialmente), mas ainda são poucos os estudos sobre esta questão, bem como inexistente uma sistematização consistente das experiências.

A sistematização seria bastante interessante para Fortaleza, por exemplo, para contribuir com as experiências bem-sucedidas, analisando-se, é claro, as particularidades regionais, bem como para proporcionar que a implementação das ZEIS se desse de forma mais rápida. O conhecimento dos erros e das dificuldades na aplicação das ZEIS também seria de suma importância. O ineditismo, neste caso, pode ser um fator que contribua para o retardamento da aplicação das ZEIS em Fortaleza.

Outro possível obstáculo é a descontinuidade das políticas públicas por razões político-partidárias, uma vez que é comum na política brasileira que, na alteração de gestões, sejam abandonados os planos e os projetos do governo antecessor. A continuidade das políticas públicas, via de regra, ocorre somente nos casos em que o novo governo é sucessor político do anterior. Em Fortaleza, o novo plano diretor e a conquista das ZEIS se deram na gestão Luizianne Lins, ainda que existam dúvidas se nesta gestão haverá prioridade para o estabelecimento das ZEIS.

Mesmo assim, foi na citada gestão que se iniciou o processo criador das Zonas Especiais, por meio da disposição expressa no PDPFOR. Há uma possibilidade e uma preocupação das classes populares de que, com a mudança da gestão municipal, a discussão sobre as ZEIS perca espaço na administração. Tal preocupação tem razão de ser, tendo em vista o exemplo de São Paulo, em que várias conquistas a respeito das ZEIS aconteceram no PDPFOR aprovado em 2002 e foram absolutamente esquecidas logo na primeira gestão subseqüente. (FERREIRA, 2007, p. 51)

A cobrança dos movimentos populares será fator crucial para o enfrentamento de obstáculos desta espécie, pois é necessário haver forte resistência contra este costume político criminoso existente no Brasil, que não encontra justificativa legal alguma. A descontinuidade de políticas públicas por razões político-partidárias é um crime para com a sociedade, pois constitui enorme desperdício de dinheiro público, que deveria ser destinado para a célere realização de serviços e obras públicas.

Uma outra dificuldade que pode ocorrer, configurando assim obstáculo às ZEIS e ao direito à moradia, é a ausência de prioridade política para a implementação das Zonas Especiais de Interesse Social. É necessário que as ZEIS sejam prioridade por parte da gestão municipal, caso contrário serão relegadas ao esquecimento e à ineficácia. Tendo em vista as contribuições que as ZEIS possibilitam ao direito à moradia, a ausência de prioridade política configura um claro desrespeito ao direito à moradia das classes populares.

As ZEIS precisam ser parte integrante da política habitacional, e portanto serem consideradas dentro do contexto da cidade, e não apenas como anexos pontuais. Ferreira (2007) aponta que é enorme a distância entre os tempos de elaboração e implementação dos Planos de Regularização e das demandas reais das comunidades localizadas em ZEIS. Ou seja, é preciso priorizar a política habitacional em torno das ZEIS, dando ênfase nos recursos financeiros e humanos necessários para diminuir o tempo da efetivação das políticas públicas, vez que o tempo é fator muito importante quando se está falando da efetivação de um direito fundamental. Quanto maior a prioridade dada pela gestão, de forma mais rápida e eficaz poderão ser as ZEIS estabelecidas, e este é um dos interesses maiores da população envolvida no processo de aprovação do PDPFOR.

A questão da adequação e coerência de conceitos e parâmetros técnicos e jurídicos é outra que pode ser obstáculo para a implementação das ZEIS, se aqueles parâmetros não forem estabelecidos de forma criteriosa, estudada e fundamentada por parte da gestão municipal. É primordial o estabelecimento preciso de conceitos, da quantidade e dos tipos de ZEIS, bem como da existência de critérios para a flexibilização dos parâmetros urbanísticos dentro das ZEIS.

A não-definição destes parâmetros imprescindíveis para a criação e manutenção das ZEIS geralmente repercute na demora ou no abandono dos planos das ZEIS. Algumas vezes, remeter a regulamentação destes parâmetros especiais para decretos ou leis específicas (e não exatamente as leis instituidoras das ZEIS) pode ser outro fator de demora e de possível ineficácia das ZEIS.

Ferreira comenta algumas das dificuldades sobre a necessidade da adequação desses parâmetros especiais:

Na maioria das vezes, esses parâmetros permitem índices altíssimos de ocupação e aproveitamento dos terrenos a fim de incentivar a produção de habitação social por parte do mercado imobiliário privado. No entanto, esses índices elevados, ao possibilitarem altas taxas de densidade e ocupação, podem acarretar resultados urbanísticos e arquitetônicos questionáveis ou de baixa qualidade. (FERREIRA, 2007, p. 50)

Neste sentido, o autor aponta que o estabelecimento das ZEIS deve se dar de forma integrada ao planejamento urbano, refletindo sobre quais devem ser os índices de ocupação e densidade, por exemplo, para que não se dê margens para distorções. O objetivo da criação das ZEIS é democratizar o espaço urbano e possibilitar a criação e a manutenção de habitação popular de qualidade e a baixo custo para as classes populares. Portanto deve-se evitar que o custo seja desproporcional ao esperado, ou que a qualidade urbanística das moradias decaia, bem como impedir que o mercado imobiliário invada às áreas previstas como ZEIS.

Para cumprir com o objetivo das ZEIS, é imprescindível o estabelecimento de parâmetros específicos para cada ZEIS, e que a criação destes critérios não se dê de modo isolado do restante da cidade.

Por fim, mas não menos importante, ainda como obstáculo a implementação das ZEIS pode-se apontar a disputa na aplicação das ZEIS. Não se olvida que as ZEIS são matéria controversa na política urbana municipal, sobretudo tendo em vista a enorme disputa que houve durante a discussão do atual PDPFOR. (vide a subseção 2.1.1) Agora, passado o momento dos debates acerca do projeto do PDPFOR, tendo em vista que ele já esta em vigor, certamente a aplicação das ZEIS também ocorrerá em meio a uma grande disputa entre as classes populares e o mercado imobiliário.

É certo que a disputa maior se dará por conta das ZEIS 3, de que falamos na subseção 2.3.2., uma vez que a delimitação de ZEIS em terrenos vazios gerará contenção dos valores da terra urbana (o que é intenção das ZEIS, mas vai de encontro aos interesses do mercado imobiliário). Além disso, as ZEIS de vazio vão propiciar espaços urbanos para o estabelecimento de habitação popular, o que novamente vai de encontro aos interesses do mercado. Neste sentido, claro está que a aplicação das ZEIS gerará conflito e disputa.

Em Fortaleza, as ZEIS se encontram ameaçadas não somente pelo mercado imobiliário, mas também pela possibilidade de as grandes obras governamentais minarem as conquistas sociais advindas no novo PDPFOR, a exemplo das ZEIS. Ainda que, neste primeiro momento, a concretude destes obstáculos não tenha sido observada diretamente por conta destas obras, as possibilidades de elas dificultarem – e muito – a efetivação das ZEIS estão cada vez mais presentes na mídia e nos discursos dos gestores municipais. Especificamente sobre estas obras, falar-se-á no próximo ponto.

3.3. O risco dos impactos das grandes obras

A conquista das Zonas Especiais de Interesse Social no ordenamento urbanístico municipal é bastante recente, mas, apesar disto, não tardou para que surgissem as ameaças à efetivação das ZEIS. Para além dos obstáculos legais para a instituição de novas ZEIS, ameaças externas e inclusive do Poder Público têm preocupado boa parte da população que reside em áreas previstas como ZEIS.

Dentre essas ameaças, pode-se destacar algumas que poderão implicar prejuízos no futuro, seja por conta de dificultarem as melhorias nas ZEIS, ou mesmo por alterar a legislação para desconfigurá-las enquanto ZEIS, conforme será abordado neste ponto.

3.3.1 O Estaleiro

Uma das primeiras polêmicas que despontaram na mídia a respeito do cumprimento do novo Plano Diretor foi a questão da construção ou não do Estaleiro Promar Ceará na praia do Titanzinho, localizada no Serviluz. Ocorre que o Serviluz é uma área prevista como ZEIS no PDPFOR, ou seja: a prioridade da área é habitação popular, não comportando, por óbvio, a construção de uma indústria desta magnitude.

3.3.1.1 A divergência inicial dos posicionamentos do Governo do Estado e da Prefeitura de Fortaleza

Apesar de a legislação municipal ser bastante clara a este respeito, o Governo do Estado tem feito forte pressão para que a Prefeitura de Fortaleza entre em consenso com o consórcio de empresas que se propõe a construir o Estaleiro, composto pelas companhias STX Europe e PJMR. A posição do Governo do Estado é declarada e abertamente em favor desta obra, ao contrário do que inicialmente se manifestou a Prefeitura, que nos últimos meses permaneceu desfavorável à construção do estaleiro no Serviluz.

Já em julho de 2009 o governador do Ceará dava mostras de aceitação ao projeto da instalação do Estaleiro no Titanzinho, e anunciou que o primeiro orçamento teria contrapartida de 60 milhões do governo do Estado em infra-estrutura, conforme matéria veiculada no jornal O Povo em 29/07/2009. [11]

Os argumentos levantados pelo consórcio das empresas e pelo Governo do Estado, que seriam vantagens advindas da construção do Estaleiro no Titanzinho são: a criação de 1.200 postos de trabalho e a possibilidade de aproveitamento da mão-de-obra local; a garantia de incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE; a menor distância entre o Brasil e a Europa e os EUA; e a proximidade do Titanzinho com a região portuária de Fortaleza.

Os benefícios, conforme se observa, são mais para o empreendimento (em especial com relação aos incentivos fiscais) do que para a comunidade propriamente dita. A vantagem que é apresentada para os moradores do Titanzinho é o número de empregos que, segundo o consórcio vencedor, possivelmente serão aproveitados da própria comunidade. Questiona-se, no entanto, se realmente serão os próprios moradores que irão trabalhar no Estaleiro, principalmente por conta da questão do nível de escolaridade que será exigido dos trabalhadores do empreendimento, bem como da necessidade de qualificação técnica.

A contrariedade da Prefeitura se dá em virtude de o Plano Diretor estipular que o Serviluz é uma ZEIS, e tal não foi uma garantia sem luta. Durante muitos anos a população do Serviluz tem reivindicado melhorias naquela área, sem ver suas demandas atendidas. Ademais, além da previsão expressa no PDPFOR enquanto ZEIS, os impactos desta obra seriam enormes, tanto sociais quanto ambientais, em virtude de ser uma zona litorânea frágil, e absolutamente inserida na zona urbana.

3.3.1.2 A opinião dos técnicos e estudiosos da área

O professor Jeovah Meireles, do departamento de Geografia da UFC, que realiza estudos na Praia do Titanzinho desde 1990, afirmou em matéria da Revista Universidade Pública [12] que não acredita que a construção do Estaleiro naquele local seja fundamental para a comunidade do Titanzinho. Meireles afirmou que aquela área constitui um "território extremamente complexo e incompatível com um equipamento industrial que poderá incrementar danos ambientais, potencializar a exclusão social e atrair outras indústrias poluentes".

De acordo com o que já está previsto e devidamente positivado no PDPFOR, o que deve ser realizado no Serviluz é a regularização urbanística e fundiária, que, conforme reforça Meireles, deve vislumbrar a sustentabilidade socioambiental prevista no Projeto de Gestão Integrada da Orla Marítima (Projeto Orla) e no novo Plano Diretor.

É uma área que deverá ser incorporada em projetos paisagísticos includentes e afirmativos, de revitalização dos sistemas ambientais que incluem as dunas do Morro Santa Terezinha e demais componentes históricos, como o farol do Mucuripe, de 1840. (MEIRELES, na citada matéria.)

É necessário que se diga que boa parte da população do Titanzinho tem a pesca como meio de vida, e a instalação do Estaleiro naquele local certamente traria prejuízos imediatos aos pescadores. Os pescadores da região perderiam a sua atividade econômica, ou seja, se tornariam desempregados e desprovidos de outra forma de sustento das famílias. Além disto, a praia do Titanzinho tem tradição no esporte nacional, com um grande número de surfistas campeões oriundos daquela região. O surfe é um esporte bastante praticado pela comunidade, e que configura um elemento da cultura local, não podendo ser desprezado neste debate.

O arquiteto Fausto Nilo também apresenta opinião contrária acerca da instalação do Estaleiro no Titanzinho. Fausto Nilo, em 04 de março de 2010, escreveu um artigo intitulado "Estaleiro ou vida urbana compartilhada", afirmando que é preciso liberar as orlas da função de "quintal urbano", e o que deve ser valorizado é a vocação turística destas áreas da cidade, principalmente em cidades como Fortaleza. Conforme Nilo,

Há convergências mundiais sobre a necessidade de libertar as orlas da função de ``quintal`` urbano. Isso porque elas favorecem com vantagens os negócios do novo século, principalmente se comparados os volumes de benefícios originados desses negócios com aqueles decorrentes da sucata mecânica do século que passou. O debate sobre a implantação de um estaleiro na praia do Titanzinho mostra que é chegado o momento em que Fortaleza precisa aderir ao padrão universal das boas práticas aplicando as técnicas urbanísticas de controle da alteração de valores com escala estratégica e visão sustentável. Segundo essa visão, um projeto de intervenção no ambiente urbano só deve ser realizado se houver cruzamento balanceado e demonstrável, na obtenção de benefícios econômicos, ambientais e sócio-culturais, a uma só vez. (NILO, em matéria veiculada em 04/03/2010 no O Povo Online) [13]

Aponta Fausto Nilo que a tendência mundial é da construção de empreendimentos deste porte somente em áreas afastadas da zona urbana, de onde estejam grandes concentrações populacionais, tendo em vista os consideráveis impactos trazidos por indústrias pesadas.

Por sua própria natureza física, a imagem urbana de um estaleiro com fronteiras fixadas por muralhas não se harmoniza com os espaços públicos de vizinhanças. A poluição sonora é insuportável. O intenso tráfego de cargas produzido pelas atividades relacionadas a ele será inevitável. Ninguém suporta a insalubridade de viver em proximidade de um estaleiro e isso pode ser constatado em todas as situações existentes no mundo. (NILO, idem, grifo nosso)

Conclui o citado arquiteto que a construção do Estaleiro no Titanzinho seria um contra-senso e um retrocesso, em especial por não se adequar à atual compreensão dos danos que um equipamento industrial desta monta pode trazer para áreas urbanas. Sugere Nilo, em oposição ao projeto do Estaleiro naquela área, que seja examinada uma alternativa sustentável do uso do solo para o Titanzinho, proposta que foi também levantada por Meireles.

O Governo do Estado tenta utilizar o "discurso do desenvolvimento" para convencer a população do Titanzinho que o Estaleiro trará investimentos e melhorias para a área, além do que milhares de empregos serão criados. Sabe-se, no entanto, que estes empregos exigirão alta qualificação, e dificilmente serão preenchidos pela população local. Além disto, o projeto do estaleiro já prevê que serão construídos apenas 8 navios, ou seja, o próprio prazo de duração destes "inúmeros empregos" é curto e determinado pela construção destes navios. O impacto da obra é gigantesco, para um objetivo que parece muito modesto: a construção pontual destes navios. Pouco se tem dito sobre a destinação que será dada a este Estaleiro após a construção destes 8 navios.

Não por acaso o Instituto dos Arquitetos do Brasil Secção Ceará – IAB-CE – emitiu opinião contrária à construção do estaleiro no Titanzinho. De acordo com notícia veiculada em 26/03/2010 [14], o IAB disse ser no mínimo inadequado este projeto, por não estar de acordo com a legislação e o planejamento urbano para aquela região. Além disto, há incompatibilidade com as vocações econômicas da cidade, que são mais voltadas para o turismo, de forma que a área seria muito melhor aproveitada havendo investimento em turismo comunitário no Titanzinho, por exemplo.

O IAB destaca ainda uma série de barreiras legais que inviabilizariam o projeto. Além de destacar que a área está classificada como Zona de Proteção Ambiental (ZPA) e Zona Especial do Projeto Orla (ZEPO), o documento desconstrói o argumento do Governo de que a área para o estaleiro seria "solo criado" - por ser uma área no mar que seria aterrada -, não estando, assim, submetida ao ordenamento jurídico municipal.

Contraditoriamente, em março de 2010 a Ordem dos Advogados do Brasil Secção Ceará - OAB-CE - elaborou um relatório técnico sobre a questão e emitiu um parecer favorável à instalação do Estaleiro no Titanzinho. Apesar de este documento ter a obrigação de conter uma avaliação técnica e jurídica sobre o empreendimento e a sua possível construção no Serviluz, o que se observou foi uma defesa aberta do empreendimento, endossando e repetindo os argumentos do Governo do Estado e do consórcio de empresas responsável pela construção.

O presidente da recém-criada comissão de Política Urbana e Direito Urbanístico, Laércio Noronha, afirmou a natureza do relatório apresentada pela OAB: "Na terça-feira vamos apontar quais os procedimentos jurídicos, técnicos e políticos que os empreendedores (PJMR e STX Europe) e o governo do Estado podem e devem adotar para que o estaleiro possa ser instalado no Titanzinho" [15]. Nessa entrevista o representante da OAB afirmou que o que motivou o relatório da OAB não foi de fato um estudo aprofundado sobre a possibilidade ou não da construção do Estaleiro naquele local, e sim a indicação dos procedimentos a serem tomados para que essa instalação possa ocorrer, ainda que, conforme o Plano Diretor, tal instalação seja ilegal porque contraria o zoneamento urbano e as ZEIS do Serviluz.

Em resposta a este parecer deveras parcial emitido pela OAB/CE, órgão que deve primar pela ética profissional e pelo exercício de profundos debates sobre a sociedade em geral e em específico sobre a cidade, a Rede Nacional de Advogados Populares seção Ceará – RENAP/CE em 22/03/2010 elaborou uma nota de repúdio, apontando a aberta defesa dos interesses das empresas consorciadas por parte da OAB, que deveria elaborar um parecer técnico e não parcial.

Esclareça-se que, no que concerne ao parecer proferido pela OAB-CE, a questão permanece em discussão dentro da entidade, tendo em vista a considerável discordância interna com relação ao teor do questionado parecer.

Compreende-se que este é um tema que está em disputa, e que o destino da ZEIS do Serviluz depende do desfecho deste impasse. Caso haja a instalação do Estaleiro naquela área, o que se daria em desconformidade com a legislação, entende-se que a ZEIS do Serviluz estaria em muito comprometida por conta dos impactos ambientais e sociais de uma obra deste porte. O próprio objetivo das ZEIS estaria ferido e talvez impossibilitado, qual seja promover regularização urbanística e fundiária das áreas, levando melhoria de vida para a população.

A finalidade urbanística atribuída àquela área é um impeditivo legal para que a obra aconteça naquele local, mas é sabido que o Estado no Brasil cultiva o vício da alteração da legislação conforme os interesses hegemônicos. A alteração do PDPFOR não foi descartada pelo governo, que neste caso se daria por meio de Emenda, por exemplo. Ressalte-se que qualquer alteração ao PDPFOR deve ser realizada novamente com participação popular, e todas as audiências públicas que forem necessárias.

3.3.1.3 A resistência do Serviluz e as audiências públicas

A população do Serviluz não está passiva diante disto, pelo contrário. Apesar do esforço dos empresários e do Governo em convencer os habitantes do Titanzinho pelo argumento do "discurso do desenvolvimento e do emprego", existe forte resistência do Serviluz ao Estaleiro. Como exemplo desta resistência, cita-se a realização, pelos moradores do Serviluz, do seminário "O Serviluz que queremos", em 26/02/2010.

Neste seminário, foi enfatizada a questão dos impactos que o empreendimento traria, e a população pôde discutir sobre os possíveis benefícios e os riscos que se apresentam diante da construção na localidade. A população participou ainda ativamente das audiências públicas que foram realizadas para debate acerca do Estaleiro Promar, tanto na Câmara Municipal de Fortaleza – CMF – quanto na Assembléia Legislativa do Ceará – ALCE.

Em 15/09/2009 foi realizada a primeira audiência pública sobre o Estaleiro na Câmara Municipal de Fortaleza, mas neste momento inicial prevaleceram as falas expositivas dos empresários e do governo sobre as vantagens advindas do empreendimento.

Já em 03/03/2010 foi realizada nova audiência pública na CMF, em que alguns moradores do Titanzinho organizaram uma caravana para seguir até a Câmara. Nesta audiência pública houve forte participação dos moradores nas discussões, e foi evidenciado pelos moradores presentes o posicionamento contrário à implantação do empreendimento.

Naquela ocasião alguns moradores do Serviluz expuseram seus questionamentos à imprensa, a exemplo de Michel Platini e Pedro Paulo Fernandes.

A nossa segurança é que o Plano (da Prefeitura) vai ter de passar pelo crivo da comunidade, que está decidida a mudar o projeto da forma com está. Para ser aprovado, precisa estar dentro da ZEIS. (...) Não vamos apoiar nem o projeto da Prefeitura. Se quiser fazer o projeto lá, terão que convencer a comunidade. (PLATINI, em matéria veiculada em 03/03/10 no Diário do Nordeste Online) [16]

Grande parte da população que pode ser afetada pelo estaleiro compareceu à audiência, se inscreveu na tribuna e deixou claro que é contra este projeto do Governo. (FERNANDES, em matéria do site da Adital em 04/03/10 ) [17]

No dia 04/04/2010 também foi realizada audiência pública, mas desta vez na Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, em que novamente participou a comunidade do Titanzinho, bem como os interessados na construção do Estaleiro.

É importante que se diga que, a despeito da resistência de vários moradores do Titanzinho, há quem concorde com o empreendimento, seduzido certamente pelo argumento do número de empregos. No entanto, a comunidade conseguiu organizar e publicar uma resistência massiva ao Estaleiro. Observou-se ainda, de forma infeliz, a tentativa de cooptação e enganação de alguns moradores através da realização de um abaixo-assinado que coletou assinaturas de quem, supostamente, seria a favor da instalação do Estaleiro no Titanzinho.

Ocorre que visivelmente o abaixo-assinado apresentava vícios como: a expressiva repetição de assinaturas; várias assinaturas elaboradas com a mesma caligrafia e sem apontar o RG e o CPF do participante; além do exacerbado número de 10.000 assinaturas coletadas em menos de uma semana. O referido abaixo-assinado foi entregue pelo vereador Salmito Filho ao Governador do Estado no dia 09 de março de 2010 como sendo uma suposta concordância da comunidade ao empreendimento.

A própria comunidade questiona o abaixo-assinado, com relação à ilegitimidade das assinaturas, tendo em vista que a iniciativa de realizar o abaixo-assinado não partiu da própria comunidade do Titanzinho, e há relatos de que foram contratados terceirizados para realizar o abaixo-assinado, e que muitos dos habitantes que o assinaram sequer sabiam do que se tratava. [18] A validade jurídica deste documento foi bastante questionada em razão das fortes suspeitas de ilegitimidade que se levantaram contra o abaixo-assinado, e várias lideranças do Titanzinho afirmam que o documento não os representa, sobretudo por conta dos vícios que lhe são visíveis.

3.3.1.4 A mudança de postura da Prefeitura de Fortaleza e um novo impasse

Apesar da resistência, a questão ainda permanece relativamente em aberto. Entre os meses de março a maio de 2010, o Governo do Estado insistiu fortemente para que a Prefeitura se reunisse com as empresas responsáveis, e em 01/05/2010 o governador Cid Gomes, durante a posse dos novos diretores da Associação Cearense de Emissoras de Rádio e Televisão – ACERT -, reafirmou a intenção de construir o Estaleiro na Praia do Titanzinho.

Mesmo que não se possa mensurar os impactos reais que a instalação do Estaleiro provocaria com relação à ZEIS do Serviluz, compreende-se que este é um risco possível, e que o melhor é a não construção do estaleiro naquela área. Diante das notícias mais recentes, resta uma apreensão diante do recuo da Prefeitura, mas diante das várias opiniões abalizadas sobre os prejuízos da construção do Estaleiro no Serviluz, compreende-se que a instalação do Estaleiro deva se dar em outra localidade.

Os impactos que poderiam ser causados às ZEIS do Serviluz são inúmeros, conforme foram os citados nesta subseção, e caso haja a implantação do Estaleiro naquela área, muito provavelmente estarão impossibilitados de ocorrer os benefícios previstos nas ZEIS.

A Prefeitura, que até poucas semanas era radicalmente contra a instalação do Estaleiro no Titanzinho, começou a dar mostras de alguma concordância com o projeto. Em momento algum a prefeita ou qualquer representante do governo municipal afirmou a concordância com relação à construção no Serviluz, mas em reunião com Paulo Haddad, diretor de uma das empresas do consórcio vencedor, a prefeita garantiu que o Estaleiro será construído em Fortaleza, mas ainda em local indefinido. A prefeita Luizianne Lins agendou ainda uma visita, para o dia 17/05/2010 ao Estaleiro Atlântico Sul, na Região Metropolitana do Recife, e Paulo Haddad, no dia 18/05/2010, virá à Fortaleza para identificar possíveis locais de construção.

No dia 19/05/2010 a prefeita Luizianne Lins afirmou à imprensa que o Estaleiro será construído em Fortaleza, representando a alteração de opinião que os movimentos populares receavam. A prefeita, juntamente com o empresário Paulo Haddad, afirmaram que a construção no Titanzinho está descartada, e que estão sendo consideradas as localizações do Pirambu e do entorno do Poço da Draga. No entanto, nada foi ainda definido com relação a isto, permanecendo o impasse.

Impende destacar que também os novos locais apontados como alternativas são problemáticos, em virtude do grande número de pessoas residentes nos locais. A alteração do possível local de construção não resolve a problemática dos danos sociais e ambientais advindos do empreendimento, somente os desloca para outros locais. Além disto, também existem ZEIS no Pirambu, por exemplo, e pode ser que os riscos corridos pelo Pirambu sejam os mesmos que temia a população do Serviluz.

Aparentemente estão afastados os riscos que o Serviluz corria com a instalação do Estaleiro naquele local, mas ainda não se pode dizer com certeza que aquela localização está descartada, sobretudo neste assunto que tem sido tão controvertido. Considerando os vários posicionamentos que a Prefeitura de Fortaleza apresentou nestes meses de polêmica, a população do Titanzinho ainda não está despreocupada, em especial com a possibilidade de o Titanzinho vir a ser reconsiderado como local de construção.

A prefeitura afirmou que o Titanzinho está descartado, bem como o empresário Paulo Haddad, que pela primeira vez se pronunciou sobre a impossibilidade de construção do estaleiro no Serviluz. [19] A Prefeitura se comprometeu ainda a construir o projeto urbanístico e de requalificação da área Aldeia da Praia, que é o que a comunidade do Serviluz anseia há vários anos. Espera-se que a postura da Prefeitura seja mantida com relação tanto ao compromisso de estar o Titanzinho descartado enquanto potencial localização, quanto com relação a este projeto de requalificação urbana, que aliás é obrigação da Administração em virtude de o PDPFOR ter estabelecido aquela área como ZEIS.

3.3.2 A Copa de 2014

Pouco tempo após a aprovação do novo PDPFOR, foram escolhidas as cidades brasileiras que sediarão os jogos da Copa de 2014 e Fortaleza foi uma das cidades selecionadas. Ocorre que o PDPFOR não previu obra nenhuma para fins de realização deste mega-evento esportivo, e de fato serão empreendidas as mais diversas obras nestes próximos 4 anos.

De início, em projeto apresentado pelo Governo do Estado do Ceará em parceria com a Prefeitura Municipal de Fortaleza, serão gastos mais de R$ 9,46 bilhões de reais nas obras previstas para serem realizados. É sabido por meio da experiência de outras cidades que sediaram mega-eventos esportivos que, conforme forem sendo realizadas as obras, provavelmente se observará que o valor investido ultrapassa e muito a previsão inicial. Somente para a construção e o melhoramento de estádios foram destinados R$ 451 milhões.

A maior parte deste montante de R$ 9,46 bi está destinada para o setor de Transporte e Trânsito, correspondendo a mais de 63% dos investimentos. Conforme o Projeto oficial para a Copa de 2014, está previsto um extenso rol de alterações viárias e de transporte na cidade e no Estado, como por exemplo:

a) Duplicação dos trechos 1 e 2 da BR 122;

b) Conclusão da BR 116 no trecho Horizonte-Itaitinga;

c) Implantação do terminal de passageiros no Porto do Mucuripe;

d) Conclusão das obras do METROFOR;

e) Criação do Grande Terminal da Parangaba, sendo extinto o Terminal Lagoa;

f) Criação de um ramal ferroviário ligando o Mucuripe ao Aeroporto e ao Castelão, dentre várias outras intervenções de grande e médio porte previstas no plano.

Diante disto, há três possibilidades: ou o Poder Público não realiza as obras incluídas dentro de Fortaleza, por estarem em desconformidade com o Plano Diretor (considera-se esta possibilidade bastante remota); ou haverá alteração do Plano Diretor para conformá-lo com as novas obras a serem realizadas para a Copa; ou as obras irão ocorrer à revelia do disposto no Plano Diretor.

O presidente da Câmara Municipal de Fortaleza, o vereador Salmito Filho, já se manifestou publicamente afirmando que o Plano Diretor será alterado, e esta é a situação que se nos assemelha mais provável. Fortaleza somente deixaria de realizar as alterações na cidade se realmente se comprovasse que inexistirá recursos para tanto, ou que não haverá como realizar as obras em tempo hábil. Acredita-se também que obras do porte das que se farão necessárias (a maioria delas com relação ao sistema viário municipal) não serão realizadas a despeito do Plano Diretor, porque será necessário um novo planejamento com relação a várias áreas da cidade.

Ocorre que, para ser alterado, o Plano Diretor necessitará cumprir os mesmos requisitos para sua elaboração anterior, ou seja: é preciso contemplar a participação popular. Qualquer alteração que não possibilite participação é eivada de vício material e é nula, devendo portando acontecer por meio das audiências públicas, conforme foi dito anteriormente.

Ademais, compreende-se que as alterações que por ventura sejam feitas não devem retirar as melhorias legislativas alcançadas pela população, a exemplo das ZEIS. Retirar qualquer das áreas que foram previstas como ZEIS configuraria um despropósito, sobretudo porque o intuito das ZEIS é melhorar a cidade, e não "atravancar o desenvolvimento".

É necessário que haja um forte acompanhamento desta questão por parte dos movimentos populares e das comunidades que compõem áreas de ZEIS, para resistir a quaisquer alterações que lhes sejam negativas neste sentido. Como se sabe, para a realização de grandes alterações viárias provavelmente será necessária a remoção de várias moradias, como é usual nos alargamentos e mais ainda na construção de novas vias.

A Copa de 2014 trará um grande contingente de turistas para as cidades-sede, e dentre elas Fortaleza, o que gerará um sobrefluxo de pessoas que a cidade, hoje, não conseguiria suportar. Para tanto, serão alargadas algumas das vias que dão acesso aos pontos turísticos a exemplo da Beira-Mar e também do Aeroporto, bem como provavelmente serão criadas novas vias para escoamento do grande fluxo que deve advir do aeroporto internacional quando da realização dos jogos.

A desapropriação de alguns imóveis já é esperada, pois é o usual quando se trata de alterações viárias na cidade, bem como a remoção de algumas ocupações irregulares que estejam localizadas em áreas que irão sofrer alterações. O risco para algumas comunidades é justamente este: que esteja prevista alguma grande obra para o local em que residem, pois certamente a remoção será apontada como única alternativa pelo Poder Público.

Algumas dessas áreas sob o risco de remoção estão localizadas dentro de ZEIS, como é o caso do Lagamar, que constitui uma área estratégica na zona urbana, relativamente central, e que pode dar acesso a várias áreas da cidade. O Lagamar provavelmente será alvo de projetos de ruas ou mesmo avenidas que dêem acesso ao Aeroporto, por exemplo, por ser considerado, conforme já dissemos, uma zona estratégica.

Ocorre que, por ser ZEIS, o Poder Público está vinculado às diretrizes urbanísticas previstas para aquela área, e quaisquer alterações (sejam ou não para a Copa) deverão contar com a aprovação do Conselho Gestor, tão logo ele for instituído. A remoção das famílias deve ser a última alternativa, somente após serem consideradas todas as demais possibilidades, pois a remoção deve ser entendida como medida excepcionalíssima. Não pode ocorrer é que as remoções sejam a política prioritária da administração, pois tal seria um contrasenso e desrespeito às garantias do Plano Diretor. O prioritário na ordem urbanística municipal são os instrumentos que viabilizem a moradia, e não as remoções, que são medida última e atentatória à dignidade das famílias removidas.

Ademais, se for ocorrer uma remoção, o PDPFOR determina que as famílias sejam realocadas em locais próximos aos de origem, conforme foi abordado no capítulo 2. Para acompanhamento desta e de outras questões com relação à Copa, foi criado o Comitê Popular para acompanhamento da Copa de 2014, articulação que congrega vários movimentos populares que vem, desde 2009, discutindo estas questões.

O Comitê Popular questiona, dentre outras coisas, a vultosa quantia a ser destinada para a Copa, trazendo investimentos que serão usufruídos apenas pela pequena parcela da população de Fortaleza que constitui as classes ricas. De fato aquele representa um valor consideravelmente alto a ser investido para a realização de um evento pontual, quando a maioria das demandas populares não é atendida e boa parte da população de Fortaleza vive com o descaso do Poder Público com relação aos seus direitos fundamentais.

O Comitê questiona, ademais, a inexistência de participação popular na discussão, planejamento e no acompanhamento das obras da Copa de 2014, bem como a polêmica questão das remoções, de que será palco muito em breve a cidade de Fortaleza em virtude da realização da Copa.

Por ora os problemas advindos da Copa existem enquanto perspectiva e probabilidade, pois somente neste e nos próximos anos se poderá ter uma noção mais clara dos impactos das obras advindas da Copa. No entanto, sabe-se que dificilmente as grandes obras previstas para sua realização ocorrerão sem prejuízos às famílias que residem em ocupações irregulares, sejam elas previstas ou não enquanto ZEIS.

O respeito ao PDPFOR é o que deve ocorrer, em especial com relação às áreas que já são ZEIS. Por serem ZEIS, estas comunidades devem ser dotadas de maior segurança com relação à posse, tendo em vista que é a segurança da posse um dos objetivos da ZEIS, ainda que os moradores não detenham o título de proprietários.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de ser reconhecido no âmbito internacional o direito à moradia há várias décadas e em âmbito constitucional a partir de 2000, observou-se neste estudo a situação de um enorme desrespeito a este direito no Brasil. Tal desrespeito é facilmente comprovado pelo enorme déficit habitacional na cidade de Fortaleza, com a desconsideração aos direitos fundamentais de considerável parcela da população.

A cidade não é um espaço de igual acesso para todos, ocorrendo a olhos vistos a segregação sócio-espacial como forma de solidificar a existência de espaços diferenciados de acordo com a estratificação social de quem neles habite. A especulação imobiliária é um dos fatores que obstaculiza, e muito, a efetivação do direito à moradia, contribuindo diariamente para a manutenção da segregação sócio-espacial, conforme foi abordado no início deste trabalho.

Como uma das conclusões desta pesquisa, está a necessidade de combater as bases do problema da moradia no Brasil, que não se resolve simplesmente com a construção de conjuntos habitacionais. É preciso enfrentar a especulação imobiliária, o que significa o governo se indispor com o mercado imobiliário sim, mas não se pode olvidar que a especulação configura uma prática ilícita e, como tal, deve ser combatida.

O Plano Diretor de 2009 afirmou expressamente que a prática da especulação imobiliária fere a função social da propriedade, e que esta prática deve ser combatida como um dos objetivos da política urbanística de Fortaleza. E muito embora pudesse ter avançado bem mais, o novo Plano Diretor de Fortaleza trouxe alguns instrumentos essenciais para a melhoria da cidade e da qualidade de vida dos munícipes. Um destes instrumentos foi estudado neste trabalho, qual seja a Zona Especial de Interesse Social, que pode ser utilizado como potencial inibidor da ação de especuladores.

Ocorre que as desigualdades sociais e os problemas urbanos não se devem à falta de planejamento urbano ou de legislação avançada, pois o planejamento existe, e os instrumentos a serem aplicados, também. A experiência nacional não é satisfatória no que diz respeito à legislação avançada, que normalmente leva décadas para ser aplicada. Tal é o caso das leis ambientais, em que o Brasil é reconhecido internacionalmente por ter um dos melhores ordenamentos, mas uma das piores realidades de efetivação das conquistas legais.

É diante deste quadro de contradições que se insere a conquista das Zonas Especiais de Interesse Social. Foram discutidos neste trabalho as várias contribuições que este instrumento jurídico-urbanístico pode propiciar à cidade, principalmente ao direito à moradia. A criação de parâmetros específicos de construção e habitabilidade para as áreas destinadas a habitação popular; a regularização urbanística e fundiária destas áreas; a priorização dos investimentos em infra-estrutura e serviços coletivos; a integração das comunidades habitantes em ZEIS com o conjunto da urbe, enfim, são diversos os fatores que podem ser considerados enquanto benefícios para as áreas incluídas como ZEIS no Plano Diretor.

Neste trabalho, portanto, foram analisadas as vantagens da inclusão das áreas enquanto ZEIS. No entanto, também foram considerados os possíveis obstáculos a que sejam postas em prática as conquistas advindas das ZEIS, sejam elas as limitações legais já estabelecidas no próprio Plano Diretor, ou ainda as que derivem de legislação posterior ou de demora para aprovar as normas complementares.

Outro risco considerável são as obras faraônicas características de algumas gestões públicas, conforme foi citado o exemplo do Estaleiro, que, se construído no Serviluz, estaria desconsiderando e desrespeitando uma ZEIS já prevista no plano diretor.

O direito à moradia, assim como as ZEIS, restam ameaçados diante destas situações, mas é preciso que se diga que se está avançando. A instituição das ZEIS no ordenamento urbanístico municipal foi uma vitória considerável, e resultado de uma luta antiga dos movimentos populares. Faz-se imperiosa, sim, a continuidade da pressão para aprovação das demais leis que complementam a política urbanística municipal, bem como para a criação dos instrumentos necessários para que as melhorias comecem a acontecer nas áreas previstas como ZEIS.

Esclareça-se que o debate sobre as ZEIS está apenas no começo, pois houve a positivação básica que era necessária para a implantação deste instituto, mas muitos anos ainda passarão para que se possa ver a realização dos objetivos destas ZEIS. Ademais, é preciso que a preocupação não arrefeça, pois os riscos às melhorias alcançadas sempre existirão, e as contradições do espaço urbano necessitam ser combatidas progressiva e diariamente.


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ANEXO A – LEGISLAÇÃO MUNICIPAL SOBRE AS ZEIS

Sobre as ZEIS 1:

Art. 126. As Zonas Especiais de Interesse Social 1 (ZEIS 1) são compostas por assentamentos irregulares com ocupação desordenada, em áreas públicas ou particulares, constituídos por população de baixa renda, precários do ponto de vista urbanístico e habitacional, destinados à regularização fundiária, urbanística e ambiental.

Art. 127. São objetivos das Zonas Especiais de Interesse Social 1 (ZEIS 1):

I — efetivar o cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana;

II — promover a regularização urbanística e fundiária dos assentamentos ocupados pela população de baixa renda;

III — eliminar os riscos decorrentes de ocupações em áreas inadequadas;

IV — ampliar a oferta de infra-estrutura urbana e equipamentos comunitários, garantindo a qualidade ambiental aos seus habitantes;

V — promover o desenvolvimento humano dos seus ocupantes.

Art. 128. Serão aplicados nas Zonas Especiais de Interesse Social 1 (ZEIS 1), especialmente, os seguintes instrumentos:

I — concessão de uso especial para fins de moradia;

II — usucapião especial de imóvel urbano;

III — concessão de direito real de uso;

IV — autorização de uso;

V — cessão de posse;

VI — plano integrado de regularização fundiária;

VII — assistência técnica e jurídica gratuita;

VIII — direito de superfície;

IX — direito de preempção.

Sobre as ZEIS 2:

Art. 129. As Zonas Especiais de Interesse Social 2 (ZEIS 2) são compostas por loteamentos clandestinos ou irregulares e conjuntos habitacionais, públicos ou privados, que estejam parcialmente urbanizados, ocupados por população de baixa renda, destinados à regularização fundiária e urbanística.

Art. 130. São objetivos das Zonas Especiais de Interesse Social 2 (ZEIS 2):

I — efetivar o cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana;

II — promover a regularização urbanística e fundiária dos loteamentos clandestinos e irregulares e dos conjuntos habitacionais ocupados pela população de baixa renda;

III — eliminar os riscos decorrentes de ocupações em áreas inadequadas;

IV — ampliar a oferta de infraestrutura urbana e equipamentos comunitários, garantindo a qualidade ambiental aos seus habitantes;

V — promover o desenvolvimento humano dos seus ocupantes.

Art. 131. Serão aplicados nas Zonas Especiais de Interesse Social 2 (ZEIS 2) especialmente, os seguintes instrumentos:

I — concessão de uso especial para fins de moradia;

II — usucapião especial de imóvel urbano;

III — concessão de direito real de uso;

IV — autorização de uso;

V — cessão de posse;

VI — plano integrado de regularização fundiária;

VII — assistência técnica e jurídica gratuita;

VIII — direito de superfície;

IX — direito de preempção.

Sobre as ZEIS 3:

Art. 133. As Zonas Especiais de Interesse Social 3 – ZEIS 3 – são compostas de áreas dotadas de infraestrutura, com concentração de terrenos não edificados ou imóveis subutilizados ou não utilizados, devendo ser destinadas à implementação de empreendimentos habitacionais de interesse social, bem como aos demais usos válidos para a Zona onde estiverem localizadas, a partir de elaboração de plano específico.

§ 1º Caberá ao Poder Público Municipal elaborar Plano de Intervenção para cada ZEIS 3, no qual serão delimitadas as áreas precisas de aplicação das diretrizes contidas neste artigo, respeitados os procedimentos sequenciais dos arts. n. 208 a 217 deste Plano Diretor, e em conformidade com os arts. 5º e 8º do Estatuto da Cidade.

§ 2º Os proprietários que implementarem projetos habitacionais de interesse social nos terrenos vazios contidos nas ZEIS 3 serão beneficiados com a transferência de todo o potencial construtivo da propriedade para as áreas passíveis de importação deste parâmetro.

§ 3º Nas ZEIS 3 com predominância de edificações subutilizadas e não utilizadas em áreas dotadas de infraestrutura, serviços urbanos e oferta de empregos, ou que estejam recebendo investimentos desta natureza, poderão, conforme o interesse público, além do disposto no caput, visar à requalificação urbanística e à dinamização econômica e social.

Art. 134. São objetivos das Zonas Especiais de Interesse Social 3 (ZEIS 3):

I — ampliar a oferta de moradia para a população de baixa renda;

II — combater o déficit habitacional do Município;

III — induzir os proprietários de terrenos vazios a investir em programas habitacionais de interesse social.

Art. 135. Serão aplicados nas Zonas Especiais de Interesse Social 3 (ZEIS 3), especialmente, os seguintes instrumentos:

I — parcelamento, edificação e utilização compulsórios;

II — IPTU progressivo no tempo;

III — desapropriação para fins de reforma urbana;

IV — consórcio imobiliário;

V — direito de preempção;

VI — direito de superfície;

VII — operações urbanas consorciadas;

VIII — transferência do direito de construir;

IX — abandono;

X — plano de intervenção.

Art. 136. São critérios para demarcação de novas ZEIS 3:

I — ser área dotada de infraestrutura urbana;

II — existência de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que permita a implantação de empreendimentos habitacionais de interesse social e de mercado popular;

III — não estar localizada em áreas de risco;

IV — estar integralmente localizada na macrozona de ocupação urbana.

Art. 137. Os projetos de empreendimentos habitacionais de interesse social (EHIS) a serem implantados nas ZEIS 3 deverão ser elaborados a partir de parâmetros definidos por lei municipal específica.

Art. 138. São inválidas e sem eficácia como áreas de Zona Especial de Interesse Social 3 (ZEIS 3) as áreas que, embora situadas dentro dos limites de ZEIS 3, sejam áreas de:

I — logradouros públicos (ruas, avenidas, praças e parques);

II — imóvel edificado com índice de aproveitamento igual ou maior que o índice de aproveitamento mínimo estabelecido para a Zona em que esteja inserido o imóvel.

Parágrafo único. A regulamentação das ZEIS especificará regras em imóveis situados nos alinhamentos de vias públicas que limitem hotéis, postos de combustível, depósitos de gasolina, depósitos de gás, depósitos de explosivos, depósitos de cimento, subestações rebaixadoras de tensão da COELCE, rotatórias de trânsito de veículos, pontes e viadutos e imóveis não edificados que não atendam aos critérios estabelecidos nesta Lei, para serem parte de ZEIS 3, incluídos os demarcadores descritos, respectivamente, nos mapas e anexos desta Lei.

Seção III

Das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)

Art. 264. O Município promoverá a regularização fundiária nas Zonas Especiais de Interesse Social 1 e 2 – ZEIS 1 e 2, atendidas as exigências dos arts. 129 e 132.

Art. 265. O reconhecimento como ZEIS de loteamentos irregulares ou clandestinos não eximirá os loteadores das obrigações e responsabilidades civis, administrativas e penais previstas em lei.

Parágrafo único. O Município, a partir da constatação da irregularidade ou clandestinidade, oficiará ao Ministério Público, a fim de que seja apurada a responsabilidade penal dos infratores.

Art. 266. Não são passíveis de regularização fundiária e urbanística as áreas que estejam integralmente:

I — sob pontes e viadutos;

II — sobre oleodutos e troncos do sistema de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos;

III — sob redes de alta tensão;

IV — em áreas que apresentam alto risco à segurança de seus ocupantes, de acordo com parecer técnico elaborado por órgão municipal competente;

V — em Zonas de Preservação Ambiental (ZPA);

VI — em áreas de risco, definidas como tais pela autoridade aeronáutica ou órgão da aviação civil competente, no entorno de aeródromos públicos e privados;

VII — nas áreas com potencial para serem classificadas com Zonas de Preservação do Patrimônio Paisagístico, Histórico, Cultural e Arqueológico – ZEPH definidas no art. 153, Seção VI – Capítulo V – Das Zonas Especiais, desta Lei.

Parágrafo único. As ocupações situadas nas áreas indicadas neste artigo, impossibilitadas de regularização urbanística e fundiária, deverão ser reassentadas em local a ser definido e posteriormente aprovado pelo Conselho Municipal de Habitação Popular e pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano.

Art. 267. Para as Zonas Especiais de Interesse Social 1 e 2 – ZEIS 1 e 2 – será elaborado um plano integrado de regularização fundiária, entendido como um conjunto de ações integradas que visam ao desenvolvimento global da área, elaborado em parceria entre o Município e os ocupantes da área, abrangendo aspectos urbanísticos, socioeconômicos, de infraestrutura, jurídicos, ambientais e de mobilidade e acessibilidade urbana.

Art. 268. Deverão ser constituídos, em todas as ZEIS 1 e 2, Conselhos Gestores compostos por representantes dos atuais moradores e do Município, que deverão participar de todas as etapas de elaboração, implementação e monitoramento dos planos integrados de regularização fundiária.

Parágrafo único. Decreto Municipal deverá regulamentar a constituição dos Conselhos Gestores das ZEIS 1 e 2 determinando suas atribuições, formas de funcionamento, modos de representação equitativa dos moradores locais e dos órgãos públicos competentes.

Art. 269. São diretrizes dos planos integrados de regularização fundiária:

I — a integração dos assentamentos informais à cidade formal;

II — a integração do traçado viário das ZEIS com o sistema viário do seu entorno;

III — a inclusão social, com atenção especial aos grupos sociais vulneráveis;

IV — a promoção do desenvolvimento humano e comunitário, com a redução das desigualdades de renda e respeito à diversidade de gênero, orientação sexual, raça, idade e condição física;

V — a articulação das políticas públicas para a promoção humana;

VI — a qualidade ambiental dos assentamentos;

VII — o controle do uso e ocupação do solo;

VIII — o planejamento e a gestão democráticos, com efetiva participação da população diretamente beneficiária;

IX — o respeito à cultura local e às características de cada assentamento na definição das intervenções específicas.

Art. 270. Será elaborado plano integrado de regularização fundiária específico para cada uma das ZEIS 1 e 2, tendo como conteúdo mínimo:

I — diagnóstico da realidade local, com análises físico-ambiental, urbanística e fundiária, mapeamento de áreas de risco, identificação da oferta de equipamentos públicos e infraestrutura, caracterização socioeconômica da população e mapeamento das demandas comunitárias;

II — normatização especial de parcelamento, edificação, uso e ocupação do solo;

III — plano de urbanização;

IV — plano de regularização fundiária;

V — plano de geração de trabalho e renda;

VI — plano de participação comunitária e desenvolvimento social.

§ 1º Os planos integrados de regularização fundiária devem ser elaborados com efetiva participação das populações ocupantes das ZEIS, devendo ser aprovados pelos respectivos Conselhos Gestores e, posteriormente, instituídos por Decreto Municipal.

§ 2º Os planos integrados de regularização fundiária podem abranger mais de 1 (uma) ZEIS, devendo, para tanto, contar com a participação da população e dos Conselhos Gestores de ambas as áreas.

§ 3º Os planos integrados de regularização fundiária das ZEIS localizadas no Macrozoneamento Ambiental deverão prever parâmetros que respeitem os níveis de fragilidade ambiental, considerando, dentre outros aspectos, a necessidade de redução de densidade construtiva e maiores taxas de permeabilidade.

Art. 271. A normatização especial de parcelamento, edificação, uso e ocupação do solo constante do plano integrado de regularização fundiária deve considerar a realidade de cada assentamento, prevendo:

I — as diretrizes para a definição de índices e parâmetros urbanísticos específicos para o parcelamento, edificação, uso e ocupação do solo;

II — a definição dos índices de controle urbanístico para parcelamento, edificação, uso e ocupação do solo, de acordo com as diretrizes previamente estabelecidas;

III — a definição do lote padrão e, para os novos parcelamentos, as áreas mínimas e máximas dos lotes;

IV — as regras relativas ao remembramento de lote;

V — os tipos de uso compatíveis com o residencial e os percentuais permitidos dentro da ZEIS.

Art. 272. O plano integrado de regularização fundiária, compreendido como o conjunto de ações integradas que visam a atender às demandas da região por infraestrutura urbana e equipamentos sociais, à melhoria das condições habitacionais, deve possuir, no mínimo:

I — a identificação de imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados, em especial aqueles com potencial para o uso habitacional;

II — o mapeamento das áreas não passíveis de ocupação, a fim de evitar futuras situações de risco e de baixa qualidade ambiental para a população residente das ZEIS;

III — os projetos e as intervenções de caráter urbanístico necessários à recuperação física da área e à promoção da qualidade ambiental para a população residente em conformidade com o diagnóstico produzido previamente e com as demandas comunitárias;

IV — projetos de provisão habitacional, caso seja necessário, com definição dos beneficiários e área de implantação, que deverá, prioritariamente, integrar o perímetro da ZEIS ou estar localizada em área próxima;

V — ações de acompanhamento social durante o período de implantação das intervenções.

Art. 273. O plano de regularização fundiária, compreendido como o conjunto de ações integradas, abrangendo aspectos jurídicos, urbanísticos e socioambientais, que visam a legalizar as ocupações existentes em desconformidade com a lei, visando à melhoria do ambiente urbano e o resgate da cidadania da população residente no assentamento, deve possuir, no mínimo:

I — os procedimentos e instrumentos jurídicos aplicáveis para a regularização fundiária;

II — ações de acompanhamento social durante o período de implantação das intervenções.

Art. 274. O plano de geração de trabalho e renda poderá ser constituído de:

I — projetos de capacitação e aperfeiçoamento técnico;

II — ações de aproveitamento da mão-de-obra local nas intervenções previstas para a ZEIS;

III — fomento para o desenvolvimento de cooperativas, incluindo capacitações de gestão de empreendimentos e programas de créditos;

IV — ações voltadas para a formação de redes e parcerias entre os atores públicos e privados que atuam na ZEIS;

V — programas de créditos especiais para projetos individuais ou coletivos de socioeconômia solidária.

Art. 275. O plano de participação comunitária e desenvolvimento social será elaborado de forma a garantir a integração com as intervenções previstas nos demais planos, com o fim de promover a eficaz participação popular em todas as etapas de desenvolvimento da ZEIS.

Parágrafo único. A comunidade será capacitada, além dos temas pertinentes ao processo de regularização fundiária, nas temáticas de educação ambiental e temas afins.

Art. 276. Os projetos para regularização fundiária nas ZEIS 1 e 2 ficam dispensados das exigências urbanísticas para loteamento estabelecidas na legislação municipal, observando a normatização especial prevista no plano integrado de regularização fundiária, devendo ser devidamente aprovados pelo órgão técnico municipal competente.

Art. 277. As famílias que ocupam imóveis localizados em áreas de risco e Zona de Preservação Ambiental (ZPA), situados dentro das ZEIS 1 e 2, serão reassentadas, preferencialmente, em local próximo à área anteriormente ocupada, necessariamente dotada de infra-estrutura urbana, garantido o direito à moradia digna.

ANEXO B – MAPA DAS ZEIS NO PDPFOR


Notas

  1. Estas são áreas de habitação predominantemente de baixa renda, que terão parâmetros próprios de regulamentação urbanística, conforme abordaremos neste trabalho.
  2. Raquel Rolnik em palestra proferida em 30/03/2010 na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, no Seminário Direito à Moradia e áreas de risco, promovido pela ONG Cearah Periferia.
  3. Sobre este acordo, há interessante texto de Jacques Alfonsin circulado na Internet, disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=30044
  4. O texto completo da pesquisa pode ser encontrado em: http://www.ipea. gov.br/ipeacaixa /premio2006/ docs/trabpremiad os/IpeaCaixa2006 _Profissional_ 01lugar_tema01. pdf
  5. Raquel Rolnik. Op. Cit., no mesmo Seminário.
  6. Trata-se do limite à construção dentro de cada terreno. Por exemplo, se o limite de permeabilidade em dada área é 70%, isso importa dizer que naquela área somente pode haver construção em 70% do terreno, pois o restante deve servir à permeabilidade do solo e às exigências urbanísticas previstas no Plano Diretor.
  7. Trata-se do Campo Popular de Articulação pelo Plano Diretor Participativo de Fortaleza , articulação de movimentos populares que reuniu, dentre outros atores políticos não-institucionais, o Movimento dos Conselhos Populares (MCP), a Organização Não-Governamental Cearah Periferia, a Fundação Marcos de Bruin, o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), a Federação de Entidades de Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF), a Central dos Movimentos Populares (CMP) e a Rede Estadual de Assessoria Jurídica Universitária (REAJU).
  8. Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará.
  9. Como não foi incluída no plano aprovado em 2009, a área do Lagamar só foi reconhecida como ZEIS no dia 09/02/2010 por meio da aprovação de uma lei complementar específica para aquela área. Na votação, o projeto recebeu os votos de 21 vereadores, o mínimo necessário para aprovação.
  10. Cf. in Fortaleza, a Gestão da Cidade (uma história político-administrativa), p. 19, 1995, Fundação Cultural de Fortaleza.
  11. Estaleiro preocupa ambientalistas, disponível em http://opovo.uol.com.br/opovo/fortaleza/897077.html
  12. Entrevista à Revista Universidade Pública de março/abril de 2010, edição nº 54, ano 10, p. 24-26.
  13. Artigo disponível no endereço eletrônico: http://opovo.uol.com.br/opovo/politica/959144.html
  14. Matéria disponível no site do Jornal O Povo, no sítio: http://opovo.uol.com.br/opovo/politica/966602.html
  15. Matéria disponível em http://www.portosenavios.com.br/site/noticiario/industria-naval/1577-oab-ce-prepara-relatorio-sobre-estaleiro
  16. Michel Platini, presidente da Associação do Rastro, comunidade na área do Serviluz, em matéria disponível em http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=744521
  17. Pedro Paulo Fernandes, morador do Serviluz, em matéria disponibilizada no site: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=45705
  18. Sobre este assunto, os seguintes sites apresentam esclarecimentos: http://conselhospopulares.org.br/moradores-e-movimentos-questionam-abaixo-assinado-em-favor-do-estaleiro-no-titanzinho e http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=748488
  19. Matéria disponível no site do Diário do Nordeste em 19/05/10 http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=787339


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Marília Passos Apoliano. Da possibilidade de efetivação do direito fundamental à moradia por meio das Zonas Especiais de Interesse Social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2598, 12 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17112. Acesso em: 10 maio 2024.