Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/17113
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Totalitarismo e democracia na obra de Hans Kelsen

Totalitarismo e democracia na obra de Hans Kelsen

Publicado em . Atualizado em .

“Todo aquele que, na vontade e na ação políticas, puder invocar uma aspiração divina, uma luz supranatural, também poderá ter o direito de ficar surdo à voz dos homens e fazer prevalecer a própria vontade como vontade do bem absoluto, mesmo contra um mundo de adversários incrédulos e cegos”. (KELSEN, 2000, p.106)

“Pronto, oh! Pronto tu empalidecerás,

Dejarás este bello mundo

Y serás olvidado.

Por ello no debes preocuparte,

Siempre es hoy, nunca es mañana;

El tiempo es ilusión

No ensueñes ló muy lejano,

Puedes dar lugar a dichas cercanas.

!Solo ló que tomas es tuyo!”

(Um poema de Hans Kelsen, Revista Doxa)

Na primeira versão deste artigo, por um erro não intencional da autora, foram transcritas passagens do livro “Filosofia do Direito e Justiça na obra de Hans Kelsen”, de autoria de Andityas Soares de Moura Costa Matos, sem as devidas referências. Cumpre salientar que inicialmente o artigo havia sido escrito no ano de 2005, com publicação somente no ano de 2010, ou seja, cinco anos após sua produção, o que acabou ensejando a indevida omissão. Com a finalidade de corrigir essa omissão a autora publica novamente o artigo, com os devidos créditos à referida obra. 


1. INTRODUÇÃO

Todos os que tiveram a oportunidade de assistir, em tempo real, a apocalíptica cena das torres gêmeas encontrando o chão, com maior ou menor profundidade se questionaram sobre as razões daquele espetáculo dantesco. O olhar do mundo voltou-se para a barbárie praticada pelos terroristas, contudo, em muitos aspectos, foram esquecidos os questionamentos acerca dos limites de atuação das vítimas, que sob pretensos argumentos de verdade passaram sistematicamente a satanizar o diferente.

A verdade, mais que qualquer outra falácia argumentativa, sempre rondou o pensamento filosófico do homem: o ser dual e fragmentado está sempre em busca de conceitos e teorias que possam levá-lo, finalmente, a satisfação de seu desejo inconsciente de fusão com o Absoluto.

Na introdução de seu livro “O que é Justiça”, Kelsen nos convida a pensar sobre a verdade e/a justiça e afirma que para tais questões deve-se apenas perguntar melhor, mas nunca se deve ter a pretensão da obtenção de uma resposta última.

Para a filosofia clássica a verdade, entendida enquanto a essência última era possível de ser alcançada, bastando que para isso o ser humano não se deixasse guiar pelos sentidos. Os modernos, com sua crença quase sacral na razão, acabaram por corroborar a tese aventada pelos antigos filósofos, aumentando o coro de que a verdade seria possível desde que houvesse objetividade científica nas análises.

A Epistemologia positivista de August Conte[i] foi o lugar de surgimento do positivismo científico que, como não poderia deixar de ser, ingressou no pensamento jurídico. Para Conte a verdade seria um conceito ligado à ciência, o restante seria teologia ou metafísica. Para o autor “verdades” seriam leis invariáveis que regem os fenômenos observáveis. Deste modo, impossível que alguma coisa alterasse uma lei invariável, sendo irrelevante o tempo e o lugar em que a lei invariável se fizesse notada.

A epistemologia trazida por Conte foi libertadora para o homem, pois, ao abrir mão da metafísica o ser humano buscou o controle sobre sua vida e sua história. Nesse sentido, a modernidade representou uma possibilidade de controle do mundo por meio da razão, com o afastamento do pensamento mágico e, consequentemente, obtenção de maior autonomia existencial.

O sujeito pré-moderno havia sido preso e subjugado pelas cosmologias de cunho metafísico. A falta de representação teórica para criticar trazia temor e insegurança existencial. Ali o sujeito estava preso às explicações mágicas e assustadoras do mundo inexplicável que o cercava. Foi de Rousseau a ideia de que o homem nascia livre, todavia, vivia a ferros, e a única possibilidade de se livrar de sua ausência de liberdade seria se responsabilizando por seu próprio destino. Ao retirar as cosmologias do viver do homem haveria a libertação para uma existência mais dinâmica e participativa.

Os modernos buscaram então se livrar do pensamento mágico do mundo, pressupondo que a razão seria suficiente para um existir mais sereno e, consequentemente, buscaram a obtenção de segurança existencial por meio da verdade científica. Por certo, conforme demonstrou inúmeros fatos históricos, a razão não foi instrumento eficaz para a neutralização do pavor existencial diante das não explicações do mundo e, a fim de evitar o sofrimento trazido pelos simbolismos necessários à existência e a angústia pelas não respostas existenciais, os pós-modernos[1], já sem o auxílio mágico das explicações forjadas em sua subjetividade, buscaram nas ideologias um caminho para a segurança existencial que tanto necessitam – a despeito de sua impossibilidade fática.

Em meio a tanta explicação forjada nas ideologias dominantes, nas crenças mágicas não completamente desveladas, no temor havido no próprio fato de existir, o objetivo do presente ensaio será apresentar o modo pelo qual Hans Kelsen buscou com sua democracia de cunho procedimental lidar com problemas existenciais severos e, ao mesmo tempo, garantir que o ser humano fosse socialmente autônomo e responsável. Sem que para tanto tivesse que se agarrar irracionalmente em ideologias de cunho absolutista.

Após apresentar os elementos essenciais de uma democracia verdadeiramente capaz de lidar com a diversidade e com a diferença, bem como de expor, ainda que sumariamente, as principais diferenças entre democracia e autocracia, o artigo buscará expor a visão kelseniana acerca da relação havida entre democracia e relativismo filosófico e autocracia e absolutismo filosófico. Não são poucos os que apressadamente atribuem ao Mestre de Viena a alcunha de facilitador dos regimes totalitários, principalmente se interpretam Kelsen de modo parcial e levando em consideração apenas parte de sua teoria.

A fim de apresentar uma visão geral de sua teoria democrática, o artigo partirá da constatação de Kelsen sobre os perigos de uma visão unívoca de mundo e tentará refazer os caminhos percorridos pelo autor a fim de demonstrar que as democracias procedimentais são muito mais afeitas ao relativismo filosófico do que ao absolutismo e que não é por meio de crenças sacrais que o ser humano se livrará da responsabilidade de ser um verdadeiro partícipe nas questões de Estado, mas sim tornando-se um legítimo agente de sua existência e dos demais.


2.  ELEMENTOS ESSENCIAIS DA DEMOCRACIA KELSENIANA

Giácomo Gavazzi, na introdução do livro “A Democracia” de Hans Kelsen nos adverte que “A Teoria Pura do Direito” foi a contribuição mais significativa de Kelsen para a filosofia do direito, entretanto, afirma que o teórico do direito não pode ser lido independentemente do filósofo político (KELSEN, 2000, p.02), sob pena de se ter uma visão parcial e equivocada do grande empreendimento operado pelo Mestre de Viena para a academia jurídica.

Fazendo eco ao que afirma Gavazzi, no Brasil, assim como na Itália, o teórico do Direito Hans Kelsen foi lido e confundido com o filósofo político Hans Kelsen, pois como assevera Gavazzi, é muito mais fácil falar e criticar os conceitos puros e formais da teoria do direito e deixar de lado conceitos complexos e problemáticos da filosofia política, do que de fato se debruçar sobre a grandiosidade da obra do Mestre de Viena e tentar compreendê-la como um todo que, em última instância, visa a compreensão global do fenômeno social, político e jurídico. Para Gavazzi:

“A injustiça em relação a Kelsen foi, portanto, dupla: por um lado, para com o Kelsen da Reine Rechtslehre, lido como o santo protetor de qualquer sistema político; por outro lado, para com o Kelsen teórico da democracia, que foi substancialmente ignorado”. (2000, p.05)

Em seu livro O Positivismo na Epistemologia Jurídica de Hans Kelsen, Elza Maria Miranda Afonso afirma que o pensamento jurídico deve ser grato a Kelsen, tanto por ele ter dito algo novo sobre o Direito quanto pelo fato de ter sido o responsável pela introdução do pensamento crítico na doutrina jurídica (MIRANDA AFONSO, 1984, p.02).

Corroborando a má interpretação dominante sobre a teoria de Kelsen, afirma Andityas Soares de Moura Costa Matos, em seu livro Filosofia do Direito e Justiça na obra de Hans Kelsen, que a teoria kelseniana não poderia ser acusada de justificar o que quer que seja, muito menos regimes totalitários, tendo em vista seu caráter puramente formal e, neste sentido, destituído de qualquer conteúdo (MATOS, 2005, p.138).

Assim, com o intuito de, senão fazer justiça a um teórico com o fôlego de Kelsen, pelo menos de trazer a luz pontos de sua teoria que foram olvidados. Inicialmente será preciso esclarecer em linhas gerais os pontos centrais da teoria da democracia de Kelsen para, ao final, demonstrar que muitas das acusações que o Mestre de Viena recebe não podem ser atribuídas ao filósofo político.

Segundo afirma Anna Pintore, o Kelsen democrático foi obscurecido pelo Kelsen teórico do Direito e para confirmar basta notar que nos dois últimos trabalhos mais importantes dos últimos dez anos versando sobre democracia e estado de direito de Ferrajoli e Habermas ele sequer foi citado (PINTORE, 2000, p.120).

Em seu livro A Democracia é possível captar a essência do filósofo político Hans Kelsen de modo muito claro e é exatamente a partir dele que o presente estudo iniciará sua investigação sobre a relação que Kelsen vislumbra entre democracia e relativismo de valores e, ao contrário, também a conexão entre absolutismo filosófico e sistemas autocráticos.

Antes de qualquer coisa, é preciso salientar que a grande preocupação de Kelsen quando discorre sobre a Democracia é conseguir compreender a razão pela qual apesar de uníssonas serem as vozes a favor da democracia, o modo pelo qual esta mesma democracia se apresentava na prática seja tão diverso e porque a democracia assume significados dos mais diferentes na realidade social. Assim, com a finalidade de compreender o fenômeno democrático, o Mestre de Viena faz uma análise sistemática sobre o que pode ou não ser considerado democrático e sobre os rotineiros equívocos existentes na compreensão da relação havida entre democracia real e ideal.

Segundo Kelsen a síntese da democracia é feita por meio da junção dos princípios da liberdade e da igualdade. O primeiro, de caráter transcendente e metafísico, deve deixar de ser compreendido como liberdade perante o Estado para ser vivido enquanto liberdade coletiva, de onde se deduz que só há cidadãos livres em um Estado livre e “que o cidadão só é livre através da vontade geral e de que, por conseguinte, ao ser obrigado a obedecer ele está sendo obrigado a ser livre” (2000, p.34). Já o segundo princípio, relaciona-se com a ideia negativa de que nenhum indivíduo vale mais que outro e que, portanto, há uma igualdade política formal entre todos. É na articulação dos dois princípios que, segundo Kelsen, a democracia deve se assentar.

Apesar de afirmar que a democracia se faz a partir da relação dialógica entre liberdade e igualdade, Kelsen não deixa de dar maior relevo ao papel da liberdade, uma vez que a igualdade que a democracia pode propiciar é a igualdade política formal e não a igualdade material, que para o Mestre de Viena se assemelha a noção de justiça e, consequentemente, de verdade. Conceitos estes essencialmente polisignificativos e, portanto, necessariamente relativos.

Ao discorrer sobre as normas de justiça, Kelsen afirma que são todas elas metafísicas, tanto quanto à sua proveniência quanto ao seu conteúdo, uma vez que não podem ser compreendidas pela razão humana; e que como o ideal de justiça, provém da ideia de absoluto, admitido um conceito para o justo, todas as demais possibilidades seriam excluídas (2003, pp.16/17), o que a democracia não pode admitir, eis que absolutamente contrária à sua essência.

A democracia a que Kelsen faz referência representa um “certo método de criação da ordem social” (2000, p.100), portanto, incapaz de conferir conteúdo normativo a esta mesma ordem social. De acordo com Kelsen, caso não se fizesse a separação entre o que ele chama de democracia social – que vê na igualdade material (justiça) um conteúdo essencial – e a democracia formal – procedimental – correr-se-ia o sério risco de confundirmos democracia e ditadura. Todavia, que fique claro que o fato de Kelsen afirmar que a justiça não é um valor absoluto não significa de modo algum que o Mestre de Viena é signatário da noção de que não existe justiça nenhuma. Ao contrário, o que pretendeu Kelsen com seu relativismo filosófico é que valores de justiça divergentes, por exemplo, pudessem ser abrigados dentro de um mesmo Estado. O autor pretendeu que ao lado da justiça divina – absoluta, todavia, irracional – pudesse também haver uma justiça terrena – relativa e racionalmente concebida. Este ponto, por ser o cerne do presente artigo, voltará a ser abordado, por enquanto o que foi dito até o momento é satisfatório para demonstrar o que Kelsen entende como conteúdos elementares do conceito de democracia.

Para a compreensão da democracia, ademais, segundo o Mestre de Viena, é preciso ter como norte a noção de ideologia e realidade. Afirma o autor que muitos dos equívocos teóricos da democracia estão na má compreensão desta necessária antítese: ...”seria preciso confrontar estes dois elementos, considerando a realidade à luz da ideologia que a domina, e a ideologia do ponto de vista da realidade que a sustenta” (2000, p.35). A fim de demonstrar os equívocos da má compreensão o autor afirma, por exemplo, que do ideal democrático no qual haveria um governo do povo sobre o povo, extrai-se a realidade de que o povo constitui tão somente uma unidade normativa que só poderia ser assim considerado quando efetivamente fizesse uso de seus direitos políticos. (2000, p.38), o que seria de tudo inverídico. Assim, a realidade social da democracia deve sempre ser estudada a luz de sua ideologia – e vice e versa.

O princípio da maioria, que substitui a ideia irrealizável de unanimidade, é outro ponto de fundamental importância na democracia apresentada por Kelsen. Segundo o Mestre de Viena o princípio da maioria teria como conteúdo necessário a proteção à minoria, função primordial dos direitos e garantias fundamentais. A minoria, em uma democracia como a concebida por Kelsen, deve ser considerada uma minoria qualificada, sempre apta a se tornar maioria e, portanto, digna de proteção. A dialética constante entre minoria e maioria é condição de possibilidade da democracia. Afirma Kelsen:

“Uma ditadura da maioria sobre a minoria não é possível, a longo prazo, pelo simples fato de que uma minoria, condenada a não exercer absolutamente influência alguma, acabará por renunciar à participação – apenas formal e por isso, para ela, sem valor e até danosa – na formação da vontade geral, privando com isso a maioria – que por definição não é possível sem a minoria – de seu próprio caráter de maioria”. (KELSEN, 2000, p.69/70)

A liberdade e a igualdade em Kelsen são de algum modo, identificadas com o sentido de lei, com a substituição da liberdade natural pela liberdade em coletividade. Assim, como as normas são postas pelo Estado, para o autor, somente em um Estado livre o indivíduo é livre. E somente onde há liberdade a democracia seria possível. Assim, o critério decisivo para aferição da democracia seria a efetiva participação de todos na formação da vontade do Estado, que é composta pelas vontades individuais. Segundo Matos, o Estado no positivismo de cunho relativista em nada se assemelha ao Estado totalitário jusnaturalista, pois neste último a legalidade se localiza muito acima das vontades individuais e os fracos devem se submeter aos fortes (2005, p.133/34).

Já antevendo o que hodiernamente se apresenta como “procedimento discursivo”, Kelsen afirma que “o procedimento parlamentar, com sua técnica dialético-contraditória, baseada em discursos e réplicas, em argumentos e contra argumentos, tende a chegar a um compromisso” (KELSEN, 2000, p.70). E é exatamente por meio deste procedimento que, para Kelsen, seriam possíveis os consensos e os compromissos sociais entre posições inicialmente antagônicas, essência da democracia. O princípio majoritário proposto por Kelsen é, por definição, um princípio de “meio-termo entre interesses opostos” (KELSEN, 2000, p.70), portanto, pressupõe uma igualdade essencial entre governantes e governados; entre posição e oposição, com ampla e irrestrita proteção à minoria. Assim apresentado, o procedimento democrático kelseniano pressupõe uma desarmonia inicial entre as posições antagônicas, que pode ser superada por meio de compromissos permanentes e nas palavras do autor, que devem ser “incessantemente renovados” (KELSEN, 2000, p.77)

Segundo Matos, ao contrário do que afirmam alguns teóricos, o direito positivo e a doutrina de Kelsen de um modo geral, pode ser culpabilizada pelo surgimento do totalitarismo no século XX. O positivismo de cunho moderado, preconizado pelo Mestre de Viena, afirma Matos, representa uma ideologia de cunho liberal, nunca totalitário. (MATOS, 2005, p.135). Ao sujeito emancipado pós-moderno restaria, segundo Kelsen, apenas a democracia, uma vez que a autocracia, ao divinizar o governante, pressupõe a noção de um “eu” fraco, não mais aceitável na pós-modernidade.

A partir da exposição dos elementos essenciais da democracia, bem como da conclusão que a democracia é o melhor método de gestão para a vida social, única capaz de lidar com a pluralidade e complexidade hodierna, não se conclui nada acerca do conteúdo necessário para que as democracias se desenvolvam, o que poderia representar um problema em uma sociedade de sujeitos não participativos e irresponsáveis, o que como será demonstrado, nem de longe é o partícipe que o Mestre de Viena pressupõe em sua teoria democrática. Todavia, antes disto, será preciso uma breve análise acerca das abissais diferenças entre autocracia e democracia e as implicações disto na organização social, tudo de acordo com a teoria kelseniana.


3. DIFERENÇAS ELEMENTARES ENTRE DEMOCRACIA E AUTOCRACIA SEGUNDO KELSEN

Após estabelecermos, ainda que de modo sucinto, os elementos essenciais da democracia procedimental kelseniana, resta ainda, antes de compreender de modo decisivo a razão pela qual o Mestre de Viena relaciona as democracias ao relativismo de valores e as autocracias ao absolutismo de valores, diferenciar os regimes democráticos dos autocráticos.

Inicialmente é possível destacar que na democracia há possibilidade de acordo de vontades entre a maioria e a minoria, o que é de tudo incomum em uma autocracia, uma vez que nesta última, contracorrentes políticas se mostram problemáticas, quando não impossíveis. Na democracia a formação da vontade do Estado, segundo Kelsen, se apresenta a partir de um meio-termo entre direções políticas opostas (KELSEN, 2000, p.75). Segundo o Mestre de Viena democracia e autocracia se diferenciam, dentre outros pontos, pela diversidade do que ele chamou de situação “espiritual-política”. Em suas palavras:

“Enquanto o mecanismo das instituições democráticas tende diretamente a introduzir a paixão política da massa a ultrapassar o limiar da consciência social, para então aí fazê-lo desafogar, na autocracia o equilíbrio social repousa, ao contrário, na transferência da paixão política para uma esfera que poderia ser comparada ao inconsciente do indivíduo [...] Por isso, mesmo na autocracia, a submissão do indivíduo à vontade dominadora tem um sentido um tanto diferente do sentido que tem na democracia, ou, em outras palavras, ela é, em geral, acompanhada por outra tonalidade afetiva” (KELSEN, 2000, p.76).

Assim, a consciência que o indivíduo tem de que a lei a qual está submetido foi feita por alguém legitimamente eleito para tal mister e que para sua elaboração houve seu consentimento, leva-o a uma certa postura obediente, o que não ocorre nas autocracias, nas quais a obediência a ordem estatuída tem fontes psíquicas diversas – não assentadas na noção de liberdade. Kelsen afirma que “não é tão característico da democracia que a vontade dominante seja a vontade do povo, mas que o amplo estrato dos submetidos à ordem social, o maior número possível dos membros da coletividade, participe do processo de formação da vontade” (KELSEN, 2000, p.88). O argumento do autor é plenamente justificado na sua posição no tocante ao conceito de povo, que para Kelsen é um conceito puramente normativo, o que garantiria a liberdade característica da democracia seria a efetiva participação na vontade do Estado, o que não se mostra muito viável em uma autocracia.

Segundo Matos, em regimes totalitários nem sempre é possível vislumbrar um sistema jurídico piramidal como o proposto por Kelsen. Ao fazer referência a Hannah Arendt, Matos afirma que a autora sustenta que o totalitarismo é apenas uma forma moderna de despotismo, ou seja, um governo sem leis, uma vez que a legalidade é a força de um governo não tirânico. Em um regime totalitário não sobrevive qualquer direito; nenhuma teoria jurídica seja ela positivista ou jusnaturalista. Embora esta última possa justificar o terror ideológico como exigência de uma ordem natural superior que separa os fracos e os fortes por meio da eliminação dos primeiros. É certo, contudo, que os conceitos de legalidade e ilegalidade não podem ser utilizados para descrever os regimes totalitários (MATOS, 2004, pp.131/32).

Outra diferença substancial vista pelo Mestre de Viena entre autocracia e democracia seria a quantidade e a origem dos chefes. Para Kelsen que o que distingue a democracia real da autocracia real não se encontra tanto em sua essência, “mas sobretudo pelo grande número de chefes” (KELSEN, 2000, p.91) que esta última comporta e que tem como método de seleção dos governantes, a eleição. Diverso é o que ocorre nas autocracias, cujo governo do Estado encontra-se nas mãos de poucos escolhidos, geralmente por meios cuja participação popular na vontade é nula ou extremamente limitada. Nas palavras de Kelsen, “Se é um só indivíduo, um monarca hereditário ou um ditador que alcançou revolucionariamente o poder, estamos perante uma autocracia; se é a assembleia de todo o povo ou um parlamento eleito pelo povo, temos uma democracia” (KELSEN, 2006, p.250).

A consequência do acima narrado, segundo Kelsen, é que nas autocracias os governantes aparecem aos olhos dos governados como pertencente a uma natureza diversa da sua, notadamente, como um agente superior e, portanto, digno de obediência em virtude de uma vocação divina, cuja natureza a coletividade deve a sua própria existência. Assim, afirma o autor:

“No sistema de ideologia autocrática as questões de origem, designação e criação do chefe não são questões lícitas que possam ser propostas ou mesmo resolvidas através do conhecimento racional”. A direção exercida pelos chefes representa um valor absoluto que se expressa na divinização do chefe. (KELSEN, 2000, p.93)

Se é assim nas autocracias, na ideologia democrática a questão da origem está no cerne dos questionamentos racionais. Afirma Kelsen que o valor do chefe nas democracias não é absoluto e, portanto, a partir de sua relatividade, os questionamentos sobre origem, limitação e designação encontram abrigo. A temporalidade do exercício do poder faz com que o chefe esteja sempre sujeito a questionamentos e críticas, uma vez que se encontra em situação de igualdade com seus governados. Afirma Kelsen:

“A direção exercida pelos chefes não representa um valor absoluto, mas um valor totalmente relativo: o chefe aparece como ‘chefe’ apenas por um certo tempo e segundo certos pontos de vista; de resto, ele é igual aos outros e sujeito a crítica” (KELSEN, 2000, p.94)

Exatamente da relatividade do valor dos chefes nas democracias, que Kelsen consegue extrair uma importante conclusão: a de que apenas na democracia é possível responsabilizar o chefe em caso de abusos. A transcendência do chefe na autocracia coloca-o acima da ordem social e, portanto, não sujeito a ela; já a imanência do chefe democrático o submete a ordem social. De tal conclusão é possível para o Mestre de Viena trazer a baila outra diferença substancial entre democracia e autocracia, enquanto nesta última há apenas alguns poucos escolhidos para figurarem como chefes, na segunda, qualquer um pode se tornar chefe, pois a sociedade é composta por sujeitos essencialmente iguais.

Em várias passagens de seus escritos Kelsen deixa claro que a democracia é preferível à autocracia:

“E, estreitamente relacionado com isso, também há o fato de que, na democracia, com o princípio reinante da ‘prova de bons resultados’ e da liberdade de crítica, as falhas verificadas na administração pública são fácil e rapidamente descobertas, enquanto na autocracia, com seu princípio dominante de manutenção da autoridade dos funcionários, uma vez empossados, cria um sistema tradicional de dissimulação. Por isso, são míopes os que veem na democracia mais corrupção do que na autocracia” (KELSEN, 2000, p.96).

“Uma vez que democracia, de acordo com sua natureza mais profunda, significa liberdade, e liberdade significa tolerância, nenhuma outra forma de governo é mais favorável à ciência que a democracia” (KELSEN, 2001, p.25).

Após estudar a democracia e a autocracia a partir de variados aspectos, Kelsen afirma que o problema da democracia é muito mais um problema de ‘educação para a democracia’ (KELSEN, 2000, p.97), na qual os cidadãos sejam verdadeiros partícipes da formação da vontade do estado e responsáveis pelas ações que escolhem como sendo as melhores. Não é apenas pressupondo a igual aptidão para a participação na vontade do Estado que se constrói uma democracia, mas sim a partir de cidadãos verdadeiramente responsáveis por sua liberdade política.

Ao tecer comentários sobre o materialismo histórico, Kelsen, afirma que o único modo de se pensar que a evolução social levaria a um estado de coisas no qual dois grupos antagônicos iriam contrapor interesses para a busca de um certo estado de equilíbrio, seria no interior de uma democracia e nunca de uma autocracia, pois nesta última não haveria possibilidade de grupos opostos voltados para o diálogo em busca de consenso. Segundo o Mestre de Viena, a democracia é o “ponto de equilíbrio para o qual sempre deverá voltar o pêndulo político” (KELSEN, 2000, p.78). Para Kelsen, os conflitos de classes existiram e sempre existirão e um modo razoável de se buscar a paz social é exatamente por meio de um procedimento democrático, no qual a união de liberdade e igualdade entre as partes leve à possibilidade de consenso.

Para Kelsen, tanto autocracia quanto democracia podem se assemelhar em aspectos administrativos, tais como criação de órgãos de deliberação parlamentar, instituição de uma burocracia para a função executiva, dentre outros, mas tal aproximação estrutural real não deixa encobrir as profundas divergências ideológicas entre ambas: enquanto a democracia se apresenta como um método de criação da ordem social, cujo conteúdo é de responsabilidade integral dos membros da sociedade (KELSEN, 2000, p.103), a autocracia, ao relegar o aspecto formal ao segundo plano, traz em si a arrogância da possibilidade do conhecimento absoluto e, consequentemente, a ideia de que alguns, por ocuparem determinados postos na organização do Estado, são capazes de traduzir as necessidades sociais de modo equânime e justo, o que para o autor é irracional e perigoso.

Como foi dito, para Kelsen a diferença essencial entre democracia e autocracia não está necessariamente na forma de organizar o Estado, mas essencialmente no modo pelo qual o “outro” é compreendido filosoficamente: como um igual ou como um ser divinizado transcendente. Assim, na democracia há uma relação entre sujeitos iguais, participativos da formação da vontade geral e verdadeiramente responsáveis. Na autocracia há uma relação desigual entre Estado e governados, onde o primeiro é elevado à categoria de deidade, na qual os governados projetam toda a sua insegurança e temor existencial.

Tudo considerado e tendo como pressuposto que a democracia kelseniana tem caráter puramente procedimental, como seria então possível conceber o conteúdo normativo desta democracia, principalmente se tivermos em mente a noção de que para o Mestre de Viena o conteúdo da ordem normativa não pode ser fixado de antemão por este procedimento? Como conciliar o inevitável choque entre as diversas vontades individuais em um mundo no qual não haveria uma indicação segura acerca do melhor valor a ser implantado socialmente? Como as “verdades” estabelecidas por um grupo pode não representar a destruição de outros? Ou ainda, como harmonizar o necessário conflito advindo da pluralidade? É exatamente o que o próximo ponto tentará abordar e para o qual os esforços de Kelsen se concentraram.


4. ABSOLUTISMO FILOSÓFICO E AUTOCRACIA X RELATIVISMO FILOSÓFICO E DEMOCRACIA

Antes de iniciarmos o empreendimento final do artigo, no qual será demonstrado como Kelsen viu nas democracias uma relação com a filosofia relativista e nas autocracias uma relação com as filosofias de cunho absolutista, cumpre salientar que ao desenvolver sua teoria o autor tinha em mente um sujeito verdadeiramente emancipado e capaz de lidar de modo razoavelmente harmônico com as necessárias não respostas que o próprio ato de existir acarreta. Assim, é para um sujeito emancipado e responsável que a teoria kelseniana como um todo é escrita e não para aqueles que ainda necessitam projetar na figura do pai ou do grande irmão um meio de lidar com a instabilidade e a impermanência existencial. Para um sujeito que de modo racional procura justificar seu comportamento e suas escolhas, impelido pelo temor ou pelo desejo, mas conhecedor dos limites que tal justificação sofre (KELSEN, 2001, p.09).

Deste modo, Kelsen parte do princípio que um sujeito emancipado não precisa projetar suas inseguranças em um pretenso Estado transcendente, ao contrário, pressupõe um sujeito capaz de vivenciar sua liberdade por meio de uma efetiva participação na formação da vontade do Estado. Assim, para a questão sobre se existiria ou não alguma verdade absoluta, capaz de calar todas as demais concepções possíveis, o Mestre de Viena responde categoricamente que não e que a ideia de absoluto transcenderia a experiência. E afirma que “à concepção metafísico-absolutista está associada uma atitude autocrática, enquanto à concepção crítico-relativista do mundo associa-se a uma atitude democrática” (KELSEN, 2000, p.105). Sendo assim, afirma Kelsen, quem considera o absoluto inacessível tem obrigação de considerar não apenas suas concepções de mundo, mas de todos que o cerca e afirma que o relativismo é a concepção de mundo que a democracia pressupõe, pois a única capaz de considerar ‘outro’ como igualmente valioso. Em suas palavras:

“A democracia julga da mesma maneira a vontade política de cada um, assim como respeita igualmente cada credo político, cada opinião política cuja expressão, aliás, é a vontade política. Por isso a democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se e de buscar conquistar o ânimo dos homens através da livre concorrência. Por isso, o procedimento dialético adotado pela assembleia popular ou pelo parlamento na criação das normas, procedimento esse que se desenvolve através de discursos e réplicas, foi oportunamente reconhecido como democrático” (KELSEN, 2000, p.105/06).

Sustenta Kelsen que a causa democrática não pode ter esperança se pensar na possibilidade de conhecimento Absoluto, pois essência da democracia é exatamente a possibilidade de discordância e, consequentemente, a necessidade de diálogo constante entre maioria e minoria, a fim de se estabelecer um pacto social estável. Tudo, além disto, estaria condenado ao fracasso e a instabilidade da ordem social. Em suas palavras:

“Do ponto de vista do conhecimento racional existem somente interesses humanos e, portanto, conflitos de interesses. Para solucioná-los, existem apenas dois caminhos: ou satisfazer um dos interesses à custa do outro, ou promover um compromisso entre ambos” (KELSEN, 2001, p.23).

A posição de Kelsen para a causa democrática, sem sombra de dúvida, é influenciada por sua epistemologia de cunho positivista que desde sua origem defendeu que o Direito seria um sistema no qual não caberiam juízos de valor, dada sua subjetividade e, consequentemente, irracionalidade. Sgarbi afirma que a teoria democrática kelseniana encontra-se em franca conexão com sua metodologia jurídica, servindo como parâmetro para o tratamento dos valores (SGARBI, 2007, p.151).

Para Kelsen deveria haver uma nítida separação entre a Ciência Jurídica e a Política, a fim de evitar que a Ciência do Direito – objetiva – ofertasse sustentáculo a posições Políticas, muitas das vezes subjetivas. Na Teoria Pura do Direito, Kelsen é categórico ao afirmar que:

...“do ponto de vista do conhecimento científico, se rejeita o suposto de valores absolutos em geral e de um valor moral absoluto em particular – pois um valor absoluto apenas pode ser admitido com base numa crença religiosa na autoridade absoluta e transcendente de uma divindade” (KELSEN, 2006, p.72)

Segundo afirma Matos, na obra de Hans Kelsen não seria correto afirmar que o positivismo jurídico tenha sido a mera repetição da sistematização feita pela clássica Escola Alemã de Direito Público ou continuação das posições ingênuas de Austin e Benthan. A diferença abissal existente entre seus antepassados positivistas e Kelsen reside no fato de em sua teoria haver uma profunda fundamentação filosófica nela envolta (MATOS, 2005, pp.60/61). Assim, o Mestre de Viena mostra-se um pesquisador disposto, não apenas nas questões de ordem social, mas também nas angustias existenciais mais profundas. Nos medos e temores que faziam com que o ser humano tivesse necessidade de projetar em um Estado ou em um monarca, seu primário desejo de segurança e estabilidade.

Ao fazer referencia a doutrina kelseniana Silvio de Macedo afirma que:

“Sua Teoria do Direito Puro é, na verdade, um gesto heróico, de separar o joio do trigo, despojar o direito de sua ganga política, des­ligar a ciência da ideologia, a inteligência do interesse e da paixão. E com ela a Ciência jurídica muito progrediu. O que não pode, entretanto, é desconhecer que há outras zonas da realidade e que não se contradizem com as da Ciência Jurídica e especialmente há fronteiras entre elas, cabendo à Filosofia do Direito outras tarefas da Dogmática jurídica” (1982, p.132).

A depuração que Kelsen opera em sua Teoria Pura, na teoria democrática tem um valor a mais: aqui a relatividade dos valores representa uma necessária abertura ao diálogo entre maioria e minoria e não propriamente o cinismo que as vezes é atribuído ao autor, de considerar como legítimo todo e qualquer valor. Afirma Matos que até mesmo Recaséns Siches, que se opunha a axiologia relativista kelseniana, afirmava que o relativismo de Kelsen não se resolvia em um ceticismo cínico, pois nele havia um elevado valor humanista. Do mesmo modo, afirma Matos, o relativismo kelseniano também não se resolve em um utilitarismo decisionista, no sentido de que para o Mestre de Viena qualquer valor serviria ao Direito e que o importante seria somente a forma e não o conteúdo das normas. Na verdade o que Kelsen propõe é que a tarefa de valorar não seja dada a um cientista do direito, mas sim a outros estudiosos como sociólogos, psicólogos, etc, o que é muito diverso do que aceitar qualquer valor como correto (MATOS, 2005, pp.129/30).

Luiz Fernando Bazotto afirma que no mundo contemporâneo não há mais valores que possam ser considerados objetivos e que “recebam a adesão generalizada”. Em razão disto, afirma o autor, o apelo à justiça, em Kelsen apresentada como uma virtude ético-política, que faz com que os destinatários obedeçam as normas por trazerem consigo uma pretensão de correção, não pode ser invocado, eis que é fator de “insegurança na identificação do jurídico, na medida em que os valores, formadores do âmbito moral da vida social, carecem de conteúdo objetivo”(1999, p.13/14). A partir disto, seria possível afirmar que o que pretende o positivismo jurídico, ao defender a relatividade dos valores, é exatamente permitir que em uma sociedade heterogênea e alicerçada em valores diversos, seja possível a convivência social por meio do debate democraticamente estabelecido, assentada em consensos para sempre mantidos em aberto.

Citando Norberto Bobbio, Matos afirma que o positivismo jurídico não é somente uma teoria do direito, mas também uma metodologia e uma ideologia que se bifurca em duas versões: uma de cunho extremado (absolutista) e outra de cunho moderado (relativista). E continua afirmando que as críticas que se fazem a Kelsen acabam por confundir a primeira versão, absolutista, com a versão de Kelsen para o positivismo, pois ao adotar uma concepção ética relativista, que tem como alicerce os valores da ordem, da igualdade formal e da  certeza jurídica, Kelsen se opõe frontalmente contra qualquer espécie de totalitarismo (MATOS, 2005. p.131)

Para Kelsen, se a democracia pretendesse estabelecer um conteúdo material para sua ordem normativa, perdendo o caráter procedimental, correr-se-ia o risco de haver confusão entre um governo “do povo” e um governo “para o povo”. Apenas no primeiro caso haverá uma democracia autentica, ainda que não tenham sido poucas as vezes na história em que a confusão ocorreu, como é o caso do da doutrina soviética, muito bem examinada por Kelsen em seu livro A Democracia, para quem os soviéticos perverteram o conceito de democracia (KELSEN, 2000, p.148). Afirma Matos que a acusação surgida no pós-guerra de que o positivismo jurídico e o relativismo filosófico, ao se desvencilharem da ética e da justiça, teriam contribuído para as experiências totalitárias, não é verdadeira (MATOS, 2005, p.130), pelo menos no que se refere ao positivismo jurídico de orientação moderada preconizado por Kelsen.

Segundo Matos, o positivismo de Kelsen é um método de se fazer ciência jurídica e não uma ideologia panfletária. Em sua obra Teoria Pura do Direito, afirma Matos, Kelsen nos adverte que o fato de não advogar em favor de nenhum valor não implica que eles não existam, pois negar a existência de valores humanos que possam fundamentar o Direito é, em última análise, justificá-lo irracionalmente (MATOS, 2005, p.138). Em razão disto é que Kelsen compreende que somente em uma democracia procedimental seria possível conciliar os valores heterogêneos e plurais. Assim, seria na democracia procedimental, por meio da tolerância, dos direitos das minorias, da liberdade de política, de expressão e de pensamento, da igualdade, da responsabilidade para consigo e com o outro, que seria possível a construção de uma sociedade pacífica.

Kelsen afirma que inúmeros foram os modelos que, sob a máscara de uma terminologia democrática, foram verdadeiros adversários da democracia. Usando o argumento de que eram governos “para o povo” promoveram verdadeiras autocracias, sob os auspícios de uma denominação democrática. O Mestre de Viena deixa claro que em uma democracia o governo é exercido “pelo” povo e não “para” o povo. Essência do conceito de democracia é a participação efetiva e responsável dos governados no processo de formação da vontade do Estado e não o conteúdo específico desta ordem. Em suas palavras:

“Portanto, a participação no governo, ou seja, na criação e aplicação das normas gerais e individuais da ordem social que constitui a comunidade, deve ser vista como a característica essencial da democracia. Se esta participação se dá por via direta ou indireta, isto é, se existe uma democracia direta ou representativa, trata-se, em ambos os casos, de um ‘processo’, um método específico de criar e aplicar a ordem social que constitui a comunidade, que é o critério do sistema político apropriadamente chamado democracia. Não é um conteúdo específico da ordem social na medida em que o processo em questão não constitui em si um conteúdo desta ordem, isto é, não é regido por esta ordem” (KELSEN, 2000, p.142)

Assim, assevera Kelsen que o conteúdo processual fica em primeiro plano na caracterização da democracia. E que o elemento liberal, entendido enquanto conteúdo específico da ordem social tem apenas importância secundária (KELSEN, 2000, p.143). Sobre o conteúdo desta ordem e o caráter procedimental da democracia, o Mestre de Viena não deixa de observar que:

“Se definirmos democracia como um sistema político através do qual a ordem social é criada e aplicada pelos que estão sujeitos à ordem, de tal modo de liberdade política, no sentido de autodeterminação, esteja assegurada, então a democracia, necessariamente, em todas as circunstâncias e em toda parte estará a serviço deste ideal de liberdade política” (KELSEN, 2000, p.144).

Assim, afirma Kelsen, a ordem social democrática deve também garantir certos direitos e garantias fundamentais, especialmente para proteção da minoria, esta última essencial também ao conceito de democracia, o que o leva a concluir que a ordem social que não atender aos ideais democráticos assim apresentados não será democrática, ainda que se autodenomine de tal modo. Para Kelsen, enquanto sistema ou processo, a democracia é uma forma de governo e não há “melhor maneira de impedir o avanço da democracia, de preparar o caminho da autocracia e dissuadir o povo de seu desejo de participação no governo do que depreciar a definição de democracia” (KELSEN, 2000, p.145), dando a entender que governo “para o povo” e “do povo” seriam expressões sinônimas.

Para o Mestre de Viena o modo mais seguro de evitar confusões sobre o conceito de democracia seria assumir a noção de que os valores são relativos e que a eleição daqueles valores considerados dominantes em um determinado momento histórico seria da responsabilidade de todos os cidadãos livres pertencentes ao Estado, não cabendo ao Estado – como ente divinizado – a eleição do melhor para o povo – este último, conceito impossível de ser dimensionado e, portanto, irracional. Assim, afirma Kelsen:

“Pretendo mostrar que, de fato, não existe apenas um paralelismo externo, mas uma relação interna entre o antagonismo autocracia/democracia, por um lado e absolutismo filosófico/relativismo filosófico, por outro: que a autocracia como absolutismo político está coordenada com o absolutismo filosófico, enquanto a democracia, como relativismo filosófico, está coordenada com o relativismo filosófico” (KELSEN, 2000, p.161)

Segundo Kelsen é na esfera epistemológica e da teoria dos valores que é possível verificar o antagonismo entre o absolutismo e o relativismo filosófico, que em sua opinião, é análogo ao antagonismo existente entre autocracia e democracia, enquanto representantes respectivamente do absolutismo e do relativismo político (KELSEN, 2000, p.162).  Sob forte influência das teorias psicanalíticas, principalmente as de cunho freudiano, Kelsen afirma que “a raiz comum do credo político e da convicção filosófica é sempre a mentalidade do político e do filósofo, a natureza de seu ego, ou seja, o modo como esse ego experimenta a si mesmo e sua relação com o outro, que também reivindica a condição de ego” (KELSEN, 2000, p.162).

Deste modo, afirma o autor que é preciso reconhecer que a formação dos sistemas políticos e filosóficos em última instancia é determinada pelas singularidades da mente humana, mas que mesmo assim, seria possível demonstrar que ao longo da história a análise de várias obras de filosofia e política deixa antever a estreita ligação que há entre as teorias filosóficas e políticas. Em suas palavras:

“Me reporto ao fato histórico de que quase todos os representantes mais destacados de uma filosofia relativista eram politicamente favoráveis à democracia, ao passo que os seguidores do absolutismo filosófico, os grandes metafísicos, eram favoráveis ao absolutismo político e contrários a democracia” (KELSEN, 2000, p.195).

Afirma Matos que a história é um amplo repositório de fatos que estão a confirmar a teoria kelseniana sobre a relação entre absolutismo e autocracia e democracia e relativismo. Todavia, o autor nos adverte que obviamente Kelsen não deixou de ver que tal correlação não seria necessária, pois se tratava de uma analogia que comportava temperamentos. Isto porque a formação teórica dos sistemas políticos ocorre na mente humana – dotada de inúmeras peculiaridades – não se comportando em todos os momentos como seria o previsível. A tal indeterminação ainda é possível acrescer, segundo Matos, as circunstâncias históricas, sociais, econômicas, etc. (MATOS, 2005, pp.124/25). Nas palavras de Kelsen:

“Mas, exatamente pelo fato de ser na alma do ser humano empírico, e não em uma esfera da razão que se originam a política e a filosofia, não devemos esperar que uma visão política definida esteja sempre, e em toda parte, associada ao sistema filosófico que por lógica lhe corresponde (KELSEN, 2000, p.196).

Fazendo clara vinculação entre o jusnaturalismo e os regimes autocráticos, Kelsen dedicou muitos escritos a demonstrar como sob um pretenso véu de magnanimidade o jusnaturalismo – e seus correlatos métodos antidemocráticos - foi capaz de perpetrar os mais variados modos de subjugação de povos, principalmente ao eleger como ‘natural’ o que de fato não passava de imposição arbitrária. Para Kelsen:

“Logo que a teoria do Direito Natural intenta determinar o conteúdo das normas imantes à natureza, deduzidas da natureza, enreda-se nas mais insuperáveis contradições. Os seus representantes não proclamam um único direito natural, mas vários direito naturais, muito diversos entre si e contraditórios uns com os outros. [...] Segundo uma doutrina do Direito natural só é ‘natural’ , isto é, justa, a propriedade individual, segundo outra, só o é a propriedade coletiva; segundo uma só é ‘natural’, isto é, justa, a democracia, segundo outra, só o é a autocracia. [...] A doutrina do Direito natural, tal como efetivamente tem sido desenvolvida – e não pode ser desenvolvida de outra maneira – está muito longe de fornecer o critério firme que dela se espera” (KELSEN, 2006, p.245).

A Escola de Direito natural, tanto de cunho metafísico quanto racionalista, teve predomínio nos séculos XVII e XVIII e foi quase que totalmente abandonada no século XIX (KELSEN, 2001, p.21), retomada no século XX, com fortes defensores ainda nos dias de hoje. Para os jusnaturalistas há uma regulação absolutamente justa das relações humanas por parte da ‘natureza’. Para tais teóricos a ‘natureza’ é detentora de autoridade normativa, capaz de fornecer ao sujeito leis heterônomas diretivas de seu comportamento social e individual. Assim, segundo Kelsen, os defensores do Direito natural afirmam que “por meio de uma análise cuidadosa da natureza, podemos encontrar as normas a ela imanentes, que prescrevem a conduta humana correta” (KELSEN, 2001, p.22).

Entretanto, segundo Matos, no pensamento jurídico, foi exatamente sob a égide da doutrina jusnaturalista que os regimes sociais excludentes, opressores e autocráticos ganharam guarida. Foi Aristóteles quem legitimou e deu verniz filosófico à escravidão grega.  Platão, com seu dualismo, deu forte sustentação a uma sociedade completamente dividida entre pobres e ricos. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, com base em um direito natural, puderam pregar filosoficamente a sujeição total do poder secular ao poder espiritual. Bodin e sua tese de “direito divino dos reis”, buscou legitimar a ordem imposta. Hobbes em seu Estado Leviatã advogou firmemente que o homem, devido à sua natureza gananciosa, tola, egoísta e fratricida deve obediência incondicional às ordens estatais. Para Matos só é possível vislumbrar duas oportunidades históricas em que o absolutismo filosófico do jusnaturalismo foi verdadeira causa de mudança social: na Revolução Francesa de 1789 e na Revolução Americana de 1776. Todavia, tais acontecimentos ligados ao jusnaturalismo não foram a regra, mas sim a exceção (MATOS, 2005, pp.126/27). [ii]

A junção entre jusnaturalismo e regimes autocráticos em Kelsen se mostra muito clara em virtude dos conceitos que adota. Assim, do ponto de vista científico, que tem como pressuposto a busca pela verdade, o jusnaturalismo, segundo o Mestre de Viena, seria destituído de valor, pois não pode ser racionalmente justificado. Entretanto, afirma o Mestre de Viena, “do ponto de vista da política, como um instrumento intelectual na luta pela realização de interesses, a doutrina do Direito natural pode ser considerada muito útil” (KELSEN, 2001, p.175).

A doutrina kelseniana compreende o absolutismo filosófico como a “concepção metafísica da existência de uma realidade absoluta, isto é, de uma realidade que independe do conhecimento humano”, que está para além da realidade espaço e tempo – dimensões nas quais, para o autor, o conhecimento científico se restringe. Já o relativismo filosófico seria a doutrina empírica que defende que “a realidade só existe na esfera do conhecimento humano, e que, enquanto objeto do conhecimento, a realidade é relativa ao sujeito cognoscitivo” (KELSEN, 2000, p.164).

Ao lado da ideia do absolutismo filosófico se assenta a noção de possibilidade de verdade absoluta e de valores absolutos, como pregam as doutrinas jusnaturalistas. Ao contrário, o relativismo filosófico só admite uma verdade relativa e, consequentemente, valores relativos.  Corroborando tal raciocínio, Matos afirma que de acordo com Kelsen, os valores não podem se pretender absolutos – ou seja, incontrastáveis e imodificáveis – eis que as normas, sejam elas jurídicas, morais, religiosas ou éticas, que os objetivam são criações humanas, portanto, variáveis no tempo e no espaço. Pretender um valor absoluto é afirmar que a norma que o objetiva seria perfeita; e isso só é possível se se admite a premissa da existência de uma autoridade transcendente e inoponível, o que não é possível em uma teoria que se pretenda verdadeiramente científica (MATOS, 2005, p.121). Nas palavras de Kelsen:

“Quando, porém, nós representamos a norma constitutiva de certo valor e que prescreve determinada conduta como procedente de uma autoridade supra humana, de Deus ou da natureza criada por Deus, ela apresenta-se-nos com a pretensão de excluir a possibilidade de vigência (validade) de uma norma que prescreva a conduta oposta [...] Uma teoria científica dos valores apenas toma em consideração, no entanto, as normas estabelecidas por atos de vontade humana e os valores por elas constituídos” (KELSEN, 2006, p.20)

Para Kelsen o absoluto representa necessariamente a perfeição e, assim, a existência do absoluto pressupõe a aceitação de uma autoridade absoluta, capaz de direcionar a liberdade de todos os demais, eis que mensageira da verdade. Assim, afirma Kelsen, “a personificação do absoluto, sua apresentação como o onipresente e absolutamente justo criador do universo, cuja vontade é a lei da natureza e do homem é a consequência inevitável do absolutismo filosófico” (KELSEN, 2000, p.164). De lado outro, afirma Kelsen, o relativismo filosófico, em sua essência empirista antimetafísica, insiste em uma clara separação entre realidade e valor, deixando antever a separação havida entre “proposições sobre a realidade” e “juízos de valor”, estes últimos baseados em juízos irracionais advindos de fatores emocionais, nos desejos e temores do homem (KELSEN, 2000, p.165).

Ao fazer a distinção entre absolutismo e relativismo, Kelsen afirma que uma epistemologia do conhecimento de base absolutista teria que admitir a existência de leis heterônimas às quais o sujeito do conhecimento é sujeitado, leis estas imanentes à realidade objetiva. Enquanto que uma epistemologia de base relativista:

...“implica que o homem, sujeito do processo cognitivo é – epistemologicamente – o criador do seu mundo, um mundo constituído em e por seu conhecimento. Isso não significa que o processo de conhecimento tem um caráter arbitrário. A constituição do objeto de conhecimento pelo processo cognitivo não significa que o sujeito cria o objeto do mesmo modo que Deus cria o mundo. Há uma correlação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Existem leis normativas que determinam este processo. Ao agir de acordo com essas normas, o conhecimento racional da realidade – em oposição à expressão das emoções subjetivas, a base dos juízos de valor – é objetivo. Essas normas, porém, se originam na mente humana, tendo o sujeito do conhecimento por legislador autônomo” (KELSEN, 2000, pp.165/66)

Assim, no relativismo, em troca de uma falsa sensação de segurança existencial, o sujeito se torna verdadeiramente partícipe do processo cognoscitivo e, conforme ensina Kelsen, há a afirmação de dois dos mais primitivos instintos do homem enquanto ser social: “o desejo de liberdade e o sentimento de igualdade estão em sua base” (KELSEN, 2000, p.167). Para o Mestre de Viena, do ponto de vista psicológico, “a síntese de liberdade e igualdade, característica essencial da democracia, significa que o indivíduo, o ego, deseja liberdade não apenas para si mesmo, mas também para os outros” (KELSEN, 2000, p.180).

Admitir a possibilidade de conhecimento absoluto e, consequentemente do absolutismo político seria, para os governados, a renuncia à sua autodeterminação e, consequentemente, à sua liberdade. Além de ser, ao mesmo tempo, incompatível com a ideia de igualdade, que pressupõe paridade entre governantes e governados, o que modo algum não ocorreria no absolutismo político. Portanto, incompatível com a verdadeira essência de democracia qualquer método de governo que tenha como pressuposto uma filosofia política de cunho absolutista, ou seja, crente na possibilidade do conhecimento da verdade.

Segundo Kelsen, o paralelismo existente entre absolutismo filosófico e político é manifesto, pois o poder ilimitado de um governo absoluto é muito além de qualquer possibilidade de influencia de seus governados, que apenas devem obedecer as leis para quais não contribuíram em seu ato criativo; de modo parecido, afirma Kelsen, o absoluto “está além de nossa experiência, enquanto objeto do conhecimento, na teoria do absolutismo filosófico, é independente do sujeito do conhecimento, totalmente determinado, em seu conhecimento, por leis heterônomas” (KELSEN, 2000, p.181). Assim, o absolutismo filosófico, pode ser caracterizado como absolutismo epistemológico, que mantém uma concepção de universo na qual a criatura não participa do ato criativo.

Para Kelsen é claro que o absolutismo político tende a se utilizar do absolutismo filosófico como instrumento ideológico, com a apresentação do governo como único representante possível da tradução de uma vontade superior e divinizada, autorizado a conduzir uma massa de comuns. Em regimes nos quais não é possível se utilizar de uma religião histórica como recurso para o poder divinizado do governante, afirma Kelsen, como ocorreu no nacional-socialismo e no bolchevismo, o próprio governo assume o caráter mítico-religioso, tornando absolutos valores como a ideia de nação ou de socialismo.

Em suma, em Kelsen a democracia não pode se desvincular de seus conceitos essenciais – que não guardam relação com regimes autocráticos – mas sim, ao contrário, uma democracia só é verdadeiramente uma democracia quando pressupõe uma sociedade de iguais, capazes de debater e decidir sobre os rumos de sua liberdade. Nas palavras de Kelsen: ...“democracia é discussão.” (KELSEN, 2000, p.183) e o conteúdo de uma ordem jurídica deve ser necessariamente o resultado de consensos estabelecidos entre maioria e minoria, que deve se utilizar de todos os meios possíveis para o diálogo democrático.

“A vontade da comunidade, numa democracia, é sempre criada através da discussão contínua entre maioria e minoria, através da livre consideração de argumentos a favor e contra certa regulamentação de uma matéria. Essa discussão tem lugar não apenas no parlamento, mas também, e em primeiro lugar, em encontros políticos, jornais, livros e outros veículos de opinião” (KELSEN, 2005, p.411).

Assim, a partir da teoria Kelseniana é possível ver que o autor pressupôs um participante capaz de manter sua autonomia política, intelectual e dirigir sua participação a partir da razão. Exatamente em virtude de sua tendência rumo ao compromisso entre partes antagônicas é que é possível afirmar que ela se aproxima do ideal de autodeterminação completa (KELSEN, 2005, p.412).

Portanto, como dito em outro momento, o problema da democracia é, antes de tudo, um problema de educação para a democracia e, consequentemente, o estabelecimento de um governo capaz de garantir a máxima liberdade individual possível e não um problema do estabelecimento de valores prévios à possibilidade de consenso.

Por mais inseguro que possa parecer em um primeiro momento, os consensos viabilizados em uma democracia procedimental como a proposta por Kelsen são preferíveis às verdades pré-estabelecidas de estados autocráticos. Ainda que sob a denominação ‘democrática’ não tenham sido poucos os regimes essencialmente autocráticos é preciso ter em mente que em uma verdadeira democracia a verdade possível é sempre parte de um ‘porvir’ nunca completamente implementado, todavia, aberto à possibilidade de novos consensos e, portanto, aspirado por um conjunto de sujeitos educados para a democracia.


CONCLUSÃO

A democracia kelseniana tem como elementos essenciais a noção de igualdade política formal e liberdade em comunidade que, de modo articulado, garantem que o método político seja capaz de lidar com a diversidade e com a complexidade da atualidade.

A partir dos estudos acima é possível concluir que historicamente democracia e autocracia estão vinculadas respectivamente a relativismo filosófico e absolutismo filosófico.

Por mais que seja mais seguro existencialmente defender a ideia de valores absolutos, capazes de conduzir a sociedade de modo claro e unívoco, tal afirmação é irracional e, portanto, cabível apenas em regimes autocráticos, nos quais há a afirmação de que a relação que deve ser estabelecida entre governantes e governados seja hierarquicamente institucionalizada - uma relação entre diferentes - e não uma relação entre iguais como na democracia. Autocracia e democracia se diferenciam em muitos aspectos – assim como em outros se assemelham – mas a principal diferença está no modo pelo qual o “outro” percebido: como um igual ou como superior/inferior;

A democracia em Kelsen não tem conteúdo, ou seja, é meramente procedimental. Pugna pela observância estrita da forma – efetiva participação dos envolvidos para formação da vontade do Estado – e deixa a responsabilidade pelas escolhas nas mãos de partícipes sociais educados para a democracia – para a liberdade, todavia, tal modelo de democracia pressupõe um cidadão participativo e responsável que não necessita projetar-se metafisicamente em entes divinizados ou superiores.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AFONSO, Elza Maria Miranda. O Positivismo na Epistemologia Jurídica de Hans Kelsen. Belo Horizonte: UFMG, 1984.

BAZOTTO, Luiz Fernando. Positivismo jurídico contemporâneo. São Leopoldo: Unisinos, 1999.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 2006.

CICCO, Cláudio de. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2006.

COMTE, Auguste. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1983.

ORDÓÑEZ, Ulises Schmill. Un Poema de Hans Kelsen. Doxa Doxa: Cuadernos de Filosofia Del Derecho, nº19, 1996, pp.37-39.

PINTORE, Anna. Democracia sin Derechos: em torno al Kelsen democrático. Doxa: Cuadernos de Filosofia Del Derecho, nº23, 2000, pp.119-144.

KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000a.

__________. A ilusão da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000b.

__________. O que é Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

__________. O problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

__________. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

__________. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KOLM, Serge-Christophe. Teorias modernas de justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça na obra de Hans Kelsen. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006

SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

__________. Hans Kelsen: ensaios introdutórios (2001-2005). Lumen Juris, 2007.


Notas

[1] Não se desconhece as críticas que o termo recebe na atualidade, notadamente sobre o alcance do prefixo “pós”. Utiliza-se aqui expressão somente para designar a transição teórica na qual houve um questionamento às pretensões de cunho iluminista sobre o alcance da razão.

[i] Para maiores esclarecimentos, ver Comte, Auguste. Coleção Os Pensadores.

[ii] Ver também KELSEN, Hans. A Democracia na História das Ideias Políticas. In A Democracia.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Juraciara Vieira. Totalitarismo e democracia na obra de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2590, 4 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17113. Acesso em: 25 abr. 2024.