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A teoria da co-culpabilidade como causa de atenuação genérica da pena.

Uma análise do art. 66 do Código Penal brasileiro à luz da Hermenêutica Criminológica e do Estado Democrático de Direito

A teoria da co-culpabilidade como causa de atenuação genérica da pena. Uma análise do art. 66 do Código Penal brasileiro à luz da Hermenêutica Criminológica e do Estado Democrático de Direito

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RESUMO

O presente trabalho acadêmico visa apresentar a justificativa para adoção da Teoria da co-culpabilidade no que toca à atenuação genérica da pena, num contexto em que o capitalismo globalizado dita o modo de vida dos indivíduos, em que o medo, a insegurança e a violência emergem como subproduto de uma sociedade classista e desigual ancorada pelo consumo frenético, apoiados por um discurso criminalizante, aliado à falência do Estado de Bem-Estar Social. Para tanto, far-se-á a interpretação do artigo 66 do Código Penal, numa análise de cunho hermenêutico inserta no movimento da Criminologia Crítica. A técnica de pesquisa baseia-se no estudo de diversas obras doutrinárias, textos legais e jurisprudenciais acerca do assunto, tendo como meta encontrar uma resposta fundamentada no paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito para o problema da investigação em questão.

PALAVRAS-CHAVE: Criminologia Crítica. Hermenêutica Jurídica. Teoria da co-culpabilidade. Atenuação da pena.


INTRODUÇÃO

Inicialmente, antes de adentrar no tema propriamente dito, cumpre salientar que este artigo científico partiu do seguinte problema: é juridicamente plausível, no Estado Democrático de Direito, sustentar a atenuação genérica da pena tendo como pano de fundo a teoria da co-culpabilidade?

A fim de sustentar a hipótese de trabalho - de que é possível sim defender com bons argumentos a atenuação genérica da pena a partir da Teoria da co-culpabilidade -, esta pesquisa valeu-se do raciocínio hipotético-dedutivo: frente à insatisfação teórica no que tange ao fundamento apresentado na sentença condenatória de um magistrado acerca do cálculo do quantum da pena a ser aplicada ao condenado, lança-se a hipótese da atenuação genérica da reprimenda tendo em vista a interpretação do artigo 66 do Código Penal brasileiro à luz da Criminologia Crítica e do Estado Democrático de Direito.

Assim sendo, o artigo se dividiu em três tópicos. No primeiro, analisar-se-á, de modo breve, a evolução do pensamento criminológico sobre a criminalidade, passando pela Escola Clássica do Direito Penal, pela Criminologia Positivista, pela Teoria do etiquetamento (labeling approach) até se chegar à Criminologia Crítica.

Já no segundo tópico, apresentar-se-á a contribuição da Hermenêutica Jurídica, especialmente a Hermenêutica Criminológica, no que tange à interpretação das normas insertas no Ordenamento Jurídico, mormente aquelas constantes do Direito Penal que trazem ambigüidade e vagueza acerca de seu significado, como o artigo 66, que versa sobre a atenução inominada da pena que o julgador pode realizar quando da confecção de uma sentença condenatória dirigida a um infrator.

Por fim, o terceiro e último tópico demonstrará como a controvertida Teoria da co-culpabilidade - tendo em vista as omissões do Estado e da sociedade no campo das políticas públicas sociais - pode e dever interferir no cálculo do quantum da pena a ser aplicada ao infrator pelo magistrado.


1 BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO CRIMINOLÓGICO

Preliminarmente, para que se possa realizar a análise sobre o tema proposto, necessário se faz traçar, de modo superficial, a evolução do pensamento criminológico sobre o fenômeno da criminalidade. Para tanto, apresentar-se-á a Escola Liberal Clássica, passando pela Escola Positiva ou Positivismo Criminológico, para se chegar então à Criminologia Crítica, corrente teórica que funcionará como a espinha dorsal do estudo que ora se inicia.

1.1 ESCOLA LIBERAL CLÁSSICA DO DIREITO PENAL

A Escola Liberal Clássica do Direito Penal surge no século XVIII e desenvolve-se até a metade do século XIX e circunscreve-se na compreensão do delito como um ente jurídico-normativo, isto é, concebe o crime como realidade ontológica preconstituída, ou seja, "[...] significa abstrair o fato do delito, [...] do contexto ontológico que o liga, [...] a toda personalidade do delinquente e a sua história biológica e psicológica [...]". [01] É uma corrente de pensamento influenciada pelo Iluminismo liberal, já que apregoa que o crime é resultado de uma escolha interna do sujeito infrator, isto é, ancora-se no livre-arbítrio de cada indivíduo.

Alessandro Baratta diz que esta matriz teórica

[...] não considerava o delinqüente como um ser diferente dos outros, não partia da hipótese de um rígido determinismo [...] e se detinha principalmente sobre o delito, entendido como conceito jurídico, isto é, como violação do direito e, também, daquele pacto social que estava [...] na base do Estado e do direito. Como comportamento, o delito surgia da livre vontade do indivíduo, não de causas patológicas, e por isso, do ponto de vista da liberdade e da responsabilidade moral pelas próprias ações, o delinqüente não era diferente, segundo a Escola clássica, do indivíduo normal. [02]

Através do exposto, sustenta-se, pela ótica da Escola Liberal Clássica, que as pessoas cometem ilícitos mediante sua vontade livre de delinqüir, fundando, portanto, a ação criminosa numa escolha consciente dirigida à prática de delitos, estando também desvinculada da ideia de que há uma patologia nos indivíduos infratores. Esse pensamento de que existem sujeitos portadores da doença chamada criminalidade é trabalhado pela Criminologia Positivista a qual será apresentada no tópico abaixo.

1.2 A ESCOLA POSITIVA DO DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA POSITIVISTA OU POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO

A Escola Positiva do Direito Penal, também conhecida como Criminologia Positivista ou Positivismo Criminológico, surge como ciência autônoma no final do século XIX e início do século XX, cujo cerne "[...] se caracterizava pela aplicação de um método experimental e pela negação da culpabilidade individual e do livre-arbítrio como seu fundamento", [03] tendo como expoentes o médico italiano Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo.

Calha salientar, por oportuno, que esta corrente teórica defende que há uma explicação eminentemente patológica da criminalidade, ancorada nas teses etiológicas do estudo do sujeito infrator, uma vez que "a característica principal do enfoque etiológico é [...] explicar a criminalidade como resultado de uma série de causas biológicas, psicológicas ou sociais". [04]

Acerca deste novo paradigma [05] criminológico, Vera Regina Pereira de Andrade aduz que

[...] a Criminologia (por isso mesmo positivista) é definida como uma ciência causal-explicativa da criminalidade; ou seja, que tendo por objeto a criminalidade concebida como um fenômeno natural, causalmente determinado, assume a tarefa de explicar as suas causas segundo o método científico ou experimental e o auxílio das estatísticas criminais oficiais e de prever os remédios para combatê-la. Ela indaga, fundamentalmente, o que o homem (criminoso) faz e por que o faz. O pressuposto [...] de que parte a Criminologia positivista é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. [06]

Desse modo, tornava-se premente superar aquela idéia de que o delito era um fenômeno natural. Era necessário, pois, construir uma investigação empírica e concreta acerca da criminalidade e do homem infrator. Para tanto, vislumbrando esse problema, o médico italiano Cesare Lombroso, na publicação da 1ª edição da Obra L’uomo delinqüente em 1876, "[...] sustenta, inicialmente, a tese do criminoso nato: a causa do crime é identificada no próprio criminoso". [07]

A partir disso, o delinqüente passa a ser alvo de intensas pesquisas no campo das Ciências Médicas, como a Biologia, a Psicologia e a Anatomia, visto que o infrator é

[...] uma espécie de ser atávico, degenerado, marcado por uma série de estigamas corporais perfeitamente idenficáveis anatomicamente, como anomalias de crânio (enorme fossa occipital e uma hipertrofia do lóbulo, análoga à encontrada nos vertebrados inferiores), fronte esquiva e baixa, grande desenvolvimento dos arcos supraciliais, assimetrias cranianas, fusão dos ossos atlas e occiputal, orelhas em forma de asa, maçãs do rosto proeminentes, braçada superior à estatura etc. [08]

Nessa trilha, Criminologia Positivista embasa sua argumentação no fato de "acentuar as características do delito como elemento sintomático da personalidade do autor, dirigindo sobre tal elemento a pesquisa para o tratamento adequado", [09] haja vista que o delinqüente é tido como doente, pois é portador da criminalidade.

Vera Regina Pereira de Andrade aduz que o objetivo precípuo da corrente positivista apóia-se, sobretudo, num

[...] saber tecnológico: não apenas o diagnóstico da patologia criminal, mas acompanhada do remédio que cura. Instaura-se, dessa forma, o discurso do combate à criminalidade (o ‘mal’) em defesa da sociedade (o ‘bem’) respaldado pela ciência. A possibilidade de uma explicação ‘cientificamente’ fundamentada das causas enseja, por extensão, uma luta científica contra a criminalidade, erigindo o criminoso em destinatário de uma política criminal de base, igualmente, científica. A um passado de periculosidade confere-se um futuro: a recuperação. [10]

Destarte, infere-se que a coluna vertebral do Positivismo Criminológico é considerar o indivíduo delinqüente como sendo uma pessoa doente cujo tratamento célere e eficaz de sua patologia tornava-se extremamente necessário, visto que "[...] pela observação e pesquisa dos criminosos, assim identificados oficialmente, é possível desvendar as causas do crime e extirpá-los da sociedade [...]". [11]

Por derradeiro, ressalta-se que a matriz positivista apóia-se num falseamento da realidade, já que os criminosos tidos como seres atávicos e doentios não passavam de "[...] indivíduos caídos na engrenagem judiciária e administrativa da justiça penal, sobretudo os clientes do cárcere e do manicômio judiciário, indivíduos selecionados daquele complexo sistema de filtros sucessivos que é o sistema penal". [12]

Na sequência, passa-se a discorrer sobre a influência da Teoria do etiquetamento ou reação social - labeling approach [13] - inserta no movimento da Criminologia Crítica para explicitar a atuação seletiva e classista das agências oficiais de poder do sistema penal.

1.3 DO LABELLING APPROACH À CRIMINOLOGIA CRÍTICA

De plano, para se compreender a proposta da Criminologia Crítica, demostrar-se-á que ela sofreu influências da Teoria do etiquetamento ou enfoque da reação social, labeling approach.

Este marco téorico defende que "[...] a criminalidade não é qualidade de uma determinada conduta, mas o resultado de um processo através do qual se atribui dita qualidade, quer dizer, de um processo de estigmatização". [14] Com efeito, isso se mostra no cotidiano da sociedade, uma vez que é uma ínfima parcela da população que é taxada de criminosa, recebendo, portanto, das instâncias oficiais do controle social (Polícia, Ministério Público e Judiciário) o estigma de classe perigosa.

Nessa perspectiva, é certo que "[...] não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais [...]". [15] Para tanto, faz-se necessário perquirir de que forma se dá início à tipificação criminal. Nesse caso tem-se a criminalização primária (abstrata) e a secundária (concreta). [16]

Assim, a criminalização primária é aquela realizada no âmbito do Legislativo, o qual selecionará os bens e as condutas que deverão sofrer a incidência do Direito Penal pela edição de leis incriminadoras. A criminalização secundária, por sua vez, diz respeito à aplicação do comando normativo abstrato pelos órgãos do sistema penal, destacando-se a função do Judiciário dentre as demais (Polícia e Ministério Público), já que este fica com a incumbência de atribuir ou não a etiqueta de criminoso àqueles que transgrediram as regras penais. Logo, o Estado define em lei as condutas tidas como ilícitas para, posteriormente, selecionar aqueles que responderão pelos fatos criminosos caindo na engrenagem do sistema repressivo.

Acerca da criminalização secundária, Alessandro Baratta aponta que

[...] os mecanismos da criminalização secundária acentuam ainda mais o caráter seletivo do direito penal. No que se refere à seleção dos indivíduos, o paradigma mais eficaz para a sistematização dos dados da observação é o que assume como variável independente a posição ocupada pelos indivíduos na escala social. [17]

Por isso, fala-se que "[...] é o Direito Penal que faz o delinqüente, sem nenhum respeito pelo princípio da igualdade, pois recai mais fortemente sobre as camadas sociais mais baixas que sobre as demais". [18] Trata-se da lógica da seletividade da atuação do sistema penal, o qual é entendido como sendo o controle social oficial exercido pelas agências estatais (polícia, Ministério Público e Judiciário), [19] na medida em que o princípio da igualdade – enaltecido por muitos no âmbito da seara penal -, não é aferido na realidade, ficando, portanto, acobertado por um sofisticado e sutil discurso retórico emanado dos detentores do poder para manipular e subjugar os submetidos ao poder.

Ante este tratamento segregador do sistema penal, bem como para fazer frente às teses da Escola Clássica e da Escola Positiva, emerge uma nova forma de se compreender o fenômeno criminal: a Criminologia Crítica.

Para esta corrente de pensamento de viés marxista

[...] a criminalidade não é mais uma qualidade ontológica de determinados comportamentos e de determinados indivíduos, mas se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas. A criminalidade é [...] um ‘bem negativo’, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema sócio-ecônomico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos. [20]

Pelo fragmento exposto, verifica-se que esta matriz teórica debruça-se não mais nas causas da criminalidade ou nas teses etiológicas do delinqüente nato, mas sim volta seu olhar para os processos sociais de criminalização, visto que é através do estigma/etiquetamento que se opera a lógica do tratamento desigual a que são submetidos os socialmente excluídos.

Assim, exposta a teoria crítica que é a bússola deste trabalho, resta colocar a seguinte questão: qual é o objeto de estudo da Criminologia Crítica? Pode-se dizer que a pedra de toque desta corrente crítica é desnudar e deslegitimar discursos ideológicos que ocultam os interesses de uma minoria que sempre esteve no poder, pois "sempre se soube que o discurso penal latino-americano é falso," [21] e "[...] a perversão é a característica que cristaliza a dinâmica discursiva do discurso jurídico-penal, apesar de sua evidente falsidade". [22]

Em linha de princípio, é de bom alvitre revelar as funções não declaradas pelas agências oficiais do controle social, denunciando que numa sociedade capitalista estruturada em classes sociais antagônicas, marcada por uma discrepante concentração de renda e desigualdade de acesso às oportunidades, a repressão penal estatal não se dá de forma equânime, mas sim de forma seletiva alcançando tão-somente a classe pobre a qual é desprovida de poder econômico, político, cultural e jurídico.

Nessa linha de raciocínio, Nilo Batista aduz que "a Criminologia Crítica procura verificar o desempenho prático do sistema penal, a missão que efetivamente lhe corresponde [...]" visto que ela "[...] insere o sistema penal na disciplina de uma sociedade de classes [...] e trata de investigar, no discurso penal, as funções ideológicas de proclamar uma igualdade e neutralidade desmentidas pela prática". [23]

A par disso, a Criminologia Crítica tem como marco teórico o materialismo histórico-dialético de Karl Marx, o qual indica que uma sociedade só pode ser efetivamente compreendida em sua plenitude a partir da análise das relações sociais de produção, ou seja, pela forma como os homens se relacionam para organizarem a produção dos bens materiais que necessitam para viver. [24]

Para tanto, deve-se analisar essa relação de luta dos contrários, daí o termo dialética, [25] para se compreender a atuação do sistema penal, uma vez que o que existe é uma "[...] relação dos mecanismos seletivos do processo de criminalização com a estrutura e as leis de desenvolvimento da formação econômico-social". [26] Noutras palavras, a produção do material legislativo orienta-se, direta ou indiretamente, de acordo com os ditames da economia de livre mercado, [27] ancorando-se numa discrepante desigualdade punitiva na sociedade.

Nesse ponto, passa-se a analisar a contribuição da Hermenêutica Jurídica à luz da Criminologia Crítica no tocante à interpretação das normas penais.


2 A HERMENÊUTICA JURÍDICA NA PERSPECTIVA DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

Inicialmente, esclareça-se que a concepção de Hermenêutica com a qual se trabalhará neste estudo, diz respeito à Teoria dogmática da interpretação jurídica a qual serve de pano de fundo para sustentar uma decisão judicial ideologicamente direcionada.

Nesse caso, entende a Criminologia de viés crítico que a tarefa primordial da Hermenêutica Jurídica não é outra senão a de realizar uma interpretação seletiva das normas penais ocultando os interesses de uma classe dominante emface dos dominados. Esta se dá mediante a escolha prévia, parcial e subjetiva do órgãojulgador nas tomadas de decisões dos conflitos penais, pois, é através da atividade exegética que se mobilizam os mecanismos que atribuirão ou não o status de criminoso a alguém.

Com efeito, cumpre destacar que o órgão julgador, enquanto profere uma sentença penal, a todo instante faz escolhas através de dois códigos: o ideológico e o tecnológico.

O código ideológico é entendido por Alessandro Nepomoceno como sendo

[...] o código social que está ligado às estruturas objetivas da sociedade, sendo que orientará as ações subjetivas do intérprete, esteja ele consciente ou não disso. Basta notar que o sistema penal está assentado numa sociedade estratificada em classes, sendo que estas podem ser divididas pelo seu poder econômico, pelo seu gênero, entre outras estratificações. Assim, fica fácil entender os esteriótipos que permeiam as decisões, bem como o senso comum da criminalidade, a qual está respaldada na exclusão do diferente. [28]

Consoante o fragmento acima, percebe-se que esta ideologia funda-se, tanto no esteriótipo, quanto no senso comum dos indivíduos acerca da criminalidade. Por aquele, constrói-se, antecipada e mentalmente, a figura do delinqüente, como sendo aquele sujeito de cor (negro ou pardo) pertencente a uma classe pobre e marginalizada, a qual é tida como imanentemente perigosa. "Já o senso comum [...] reproduz a ideologia da defesa social, separando a sociedade em honestos e desonestos, maus e bons". [29]

Assim, "cada vez mais ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como o produto de predisposições ou intenções criminosas [...]. Os pobres, longe de fazer jus a cuidado e assistência, merecem ódio e condenação". [30]

Por sua vez, há também a utilização do código tecnológico o qual

[...] orientará a decisão de acordo com a expectativa do operador jurídico sobre o fenômeno criminal e quem dele é regular cliente. Todas as informações e deformações trazidas do âmbito externo ao sistema penal, como aquelas oriundas da formação moral, religiosa, política, ética, entre outras, as quais estão vinculadas às estruturas objetivas que produzem uma seleção sexita, classista e, quanto à repressão na agência policial, a discriminação pela cor. [31]

Nesse sentido, impõe-se uma "roupagem" técnica para mascarar uma escolha prévia, subjetiva, parcial, seletiva e ideológica da decisão por parte do órgão julgador, ancorando-se na legislação, na Dogmática Penal e Procesual Penal e na utilização dos princípios gerais do Direito Penal.

Para se atingir tal desiderato, o juiz trilhará alguns passos para prolatar uma sentença judicial subjetiva e ideologicamente construída. Em primeiro lugar, procurará legitimar seu raciocínio amparado legalmente pelo artigo 386, incisos I a V do Código de Processo Penal; num segundo momento, verificará se o fato é típico, antijurídico e culpável, conforme dispõe a teoria analítica do delito; logo em seguida, analisará se existem irregularidades processuais para que não haja nulidade do processo penal; e, por fim, pesquisará se o princípio de que se valeu foi agasalhado ou não pela doutrina e pela jurisprudência. [32] Dito isso, fica patente que "condenar ou absolver é um mero exercício de querer, o que depende tanto da vontade quanto da ideologia do julgador". [33]

Destarte, os sujeitos que praticam crimes que atentam contra o desenvolvimento do capitalismo (furto, roubo, latrocínio, tráfico de drogas, etc.) serão exemplarmente punidos, ao passo que outras condutas delituosas (corrupção, estelionato, desvio de verbas públicas, tráfico de influências, nepotismo, entre outros) não serão atacadas com mesma intensidade pelas agências do sistema penal.

Observando as funções ocultas que permeiam a ação seletiva, classista e racista do sistema penal, sustentada por uma Economia capitalista de mercado, Alessandro Baratta denuncia que

essas justificações são uma ideologia que cobre o fato de que o sistema penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas. [34]

Nepomoceno corrobora o pensamento de Baratta ao expor que

[...] essa seletividade qualitativa só visa legitimar o sistema penal quanto às suas funções declaradas que jamais serão cumpridas, ou seja, a de combater o crime usando a repressividade para todos que atingirem um bem jurídico, principalmente se for da coletividade. Essas funções jamais serão cumpridas porque a lógica do sistema é a seletividade que atinge setores vulneráveis da camada social. [35]

Impende ainda consignar que a seletividade do sistema punitivo, bem como a interpretação e a aplicação do Direito Penal fere de forma radical o princípio da igualdade inserto no caput do artigo 5º da Constituição da República de 1988, [36] visto que existem, para um mesmo fato criminoso, diversas interpretações a serem instrumentalizadas pela Hermenêutica Jurídica.

Em síntese, o discurso oficial que é emanado com a pretensão de ser justo, igualitário e fundamentado nos pilares constitucionais, padece de credibilidade, pois, através do exercício hermenêutico proposto pela Criminologia Crítica, ele se mostra extremamente seletivo, classista e racista haja vista que oculta a segregação e a neutralização dos excluídos das beneses capitalistas.

Após as considerações anteriormente esboçadas, visa-se neste momento abordar o ponto nevrálgico deste estudo, o qual faz emergir muitas controvérsias, qual seja: a defesa da teoria da co-culpabilidade.


3 A TEORIA DA CO-CULPABILIDADE CONTEXTUALIZADA PELA HERMENÊUTICA CRIMINOLÓGICA E PELO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

De início, cumpre salientar que, em se tratando da teoria da co-culpabilidade "ainda não se dispensou um estudo aprofundado no Direito Penal brasileiro, [...], talvez por ir de encontro aos interesses das classes privilegiadas". [37] À conta dessa parca literatura disponível sobre o tema, ainda não se cunhou um conceito preciso a respeito.

Não obstante isso, depreende-se por co-culpabilidade ou co-responsabilização a influência que o meio social exerce sobre a formação da personalidade humana, comprometendo o âmbito de autodeterminação ligado ao livre-arbítrio de cada ser humano.

Impende aclarar que este conceito foi introduzido no Brasil a partir das idéias de Zaffaroni e de Pierangeli, os quais aduzem que

toda pessoa atua numa determinada circunstância e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade - por melhor organizada que seja - nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em conseqüência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao indivíduo e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’, com a qual a própria sociedade e o Estado devem arcar. [38]

Trata-se, como se vê, da responsabilidade conjunta do tecido societário sobre os atos praticados por seus cidadãos, mormente quando estes sofreram menosprezo em seus direitos fundamentais por parte de um Estado omisso no campo social.

Assim sendo, nada mais justo que repartir com o agente infrator da lei parte da pena a ele imposta pelo próprio Estado - o qual, diga-se de passagem, é quem mais transgride as normas na sociedade -, assumindo este sua mea culpa nas práticas delitivas e, por conseqüência, diminuindo o quantum da pena aplicada ao autor do delito.

No entanto, para que isso seja possível na prática forense, torna-se premente a realização de um exercício hermenêutico de viés crítico do artigo 66 do Código Penal, o qual estatui in verbis: "A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei" (grifo nosso). Mas o que se entende por circunstância relevante? Quem é o intérprete que extrairá o sentido e o alcance destes termos ambíguos e vagos? Certamente é o Judiciário que ficará com esta incumbência na hora de aplicar a norma abstrata ao caso concreto.

Nessa senda, é oportuno destacar que, por razões diversas, o Estado e a sociedade não oferecem de forma igualitária as mesmas oportunidades sociais aos cidadãos para que estes possam ter condições mínimas e dignas de desenvolvimento pessoal, visto que a lógica que impera no tecido societário é a da "[...] desigual distribuição de bens e de oportunidades entre os indivíduos". [39]

Acerca desta realidade, Alessandro Baratta leciona que a base do comportamento desviante encontra-se inserta nessa "[...] desproporção que pode existir entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos, à disposição do indivíduo para alcançá-los [...]". [40] Deste modo, deve a reprovabilidade da conduta dos sujeitos alijados de participarem de forma isonômica no mercado ser atenuada diante do que seria uma co-responsabilização do Estado e da sociedade, na medida em que não lhes são ofertadas as mesmas condições para alçarem uma vida digna relegando-os, tão-somente, a uma vida de miséria e marginalização, fatores estes que contribuem sensivelmente para uma perene e aviltante exclusão social.

Nessa perspectiva, fala-se numa culpabilidade [41] compartilhada entre o delinqüente, o Estado e a sociedade, pois, no exercício do direito de punir, o Poder Público deve reconhecer e inserir também na balança suas próprias falhas e omissões, enquanto sociedade politicamente organizada, por não patrocinar a seus cidadãos alternativas e perspectivas para que não escolham o caminho da criminalidade. Para tanto, "o entorno social [...] deve ser levado em consideração na aplicação da pena [...]", [42] de forma a não transferir unicamente o encargo de uma punição ao sujeito infrator.

Importante frisar que essas falhas e omissões guardam estreita relação com o Estado de Bem-Estar Social, surgido na 1ª metade do séc. XX. Este padrão de dominação jurídico-político relaciona-se com o desenvolvimento do processo de industrialização e com os problemas sociais advindos a partir dele. É basicamente um compromisso assumido pelo Poder Público no qual este pretende assegurar padrões mínimos de: educação, saúde, moradia, trabalho, renda, seguridade social; enfim, garante aos cidadãos um leque de direitos sociais enquanto critério de legitimidade da atuação estatal.

Devido a este avanço do setor industrial houve a necessidade de ampliação dos serviços públicos, abarcando diversas áreas sociais. Com efeito, o Estado passou a intervir fortemente na seara econômica com vistas a regulamentar as atividades produtivas com o objetivo de assegurar a geração de riquezas materiais paralelo à diminuição das desigualdades sociais entre os indivíduos.

Para tanto, diversos direitos sociais foram reconhecidos e incorporados nos textos constitucionais depois uma série de manifestações advindas principalmente do proletariado, devido às condições subumanas em que se encontrava nas indústrias, para que se pudessem amenizar os efeitos nocivos advindos do novo contexto por que passava a sociedade, ancorada no aumento da divisão do trabalho decorrente da expansão do sistema capitalista.

Todavia, para uma parcela da população - os socialmente excluídos - esses direitos sociais declarados pelo Estado não foram efetivamente concretizados, fator que contribui, sobremaneira, para que muitas pessoas não tenham oportunidade sequer de melhorar suas condições de vida, restando a elas apenas miséria, marginalização e exclusão social.

Diante tal situação, resta evidenciado que "o Estado intervencionista do bem-estar social foi mais uma configuração do poder instituído que primou por defender os interesses do capital em detrimento dos interesses sociais", [43] não cumprindo, portanto, com o compromisso firmado de melhora das condições de vida dos cidadãos.

Dito isso, será que é humana e juridicamente razoável se cogitar a exigibilidade de conduta diversa daqueles indivíduos que se encontram numa aviltante e perene situação de miserabilidade e de segregação social? O que se sabe é que um ser humano com frio, com fome, com sede, enfim, sem um mínino de direitos assegurados para se ter dignidade na sua existência, não é livre o bastante para se autodeterminar da mesma forma que uma pessoa que sempre teve uma boa condição material de vida.

Em síntese, tendo em vista as omissões na efetividade dos direitos sociais declarados pelo Estado de Bem-Estar Social, emerge o Estado Democrático de Direito o qual "[...] contém em seu núcleo a ideia de que o ente estatal está juridicamente vinculado a uma finalidade: a promoção da transformação da sociedade". [44] Nesse novo marco constitucional, o Estado deve concretizar as normas inseridas na Carta Política para que o compromisso assumido por ele possa, efetivamente, transformar vidas, futuros, pessoas, enfim, reduzir as desigualdades existentes e promover o bem de todos no tecido societário.

Acerca disso, torna-se premente analisar, no plano concreto, a maneira pela qual os alguns tribunais brasileiros interpretam a Teoria da co-culpablidade. Para tanto, apresentar-se-ão trechos de dois acórdãos que dizem respeito à temática proposta neste tópico.

3.1 A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA DA TEORIA DA CO-CULPABILIDADE NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

Para se atingir o objetivo proposto neste subtópico, faz-se imperioso analisar a forma pela qual os tribunais brasileiros vêm interpretando a Teoria da co-culpabilidade nos casos que se lhes apresentam.

À conta disso, serão destacadas algumas passagens da Apelação Criminal nº 2006 06 1 000699-5 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), julgada pela sua 1º Turma Criminal; bem como trechos da Apelação Criminal nº 70014561898 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRGS), julgada pela sua 2ª Câmara Criminal. (grifos nossos)

Nesse sentido, debruçando-se sobre o voto do Desembargador Mario Machado, Relator da Apelação Criminal nº 2006 06 1 000699-5 do TJDFT, resta evidenciado que a Teoria da co-culpabilidade não foi recepcionada por ele, senão veja-se:

[...] O apelante Leobaldo requer a redução da pena com base na teoria da co-culpabilidade do Estado. A defesa pleiteia a aplicação da atenuante genérica do artigo 66 do Código Penal, porque o apelante, desde a sua infância, foi uma pessoa marginalizada, possuindo menor capacidade de autodeterminação. Dessa forma, por motivos de eqüidade, em face da co-responsabilidade da sociedade, a pena deve ser atenuada. Ocorre que, de início, nada consta dos autos que leve a concluir que o apelante é ou foi um pessoa marginalizada pela sociedade ou que teve suas necessidades básicas negadas pelo Estado, o que impede, amparado nessa tese, o reconhecimento da referida atenuante. Ademais, verifico que o réu tinha plena capacidade de autodeterminar-se, pois, no seu depoimento (fl. 23), afirmou que estudou até a 6ª série do ensino fundamental, que vive com sua companheira há cerca de 10 anos e tem uma filha. A carência do Estado em prover meios que possibilitem a todos os indivíduos galgarem o status de cidadãos, sujeitos de direitos e cientes de seus deveres, não pode ser utilizada como escusa para a prática de crimes. Caso contrário, a omissão estatal conduziria à dupla punição da sociedade, já vítima constante da criminalidade e, ao mesmo tempo, responsabilizando-a pela conduta dos que fazem da criminalidade um modo de vida, assim como o acusado em tela. (Grifos nossos)

Do exposto, cuida-se da tese apresentada pela defesa do condenado para que haja a redução do quantum da pena aplicada ao apelante, ancorando-se na Teoria da co-culpablidade do Estado e da sociedade, tendo por fundamento legal o artigo 66 do Código Penal brasileiro, o qual versa sobre a atenuação inominada ou genérica da pena.

Como se pode inferir, o julgador foi bem enfático ao aduzir que não constavam dos autos daquele processo-crime, provas capazes de sustentar as alegações de que o apelante foi um ser humano marginalizado pelo corpo social ou que teve as suas necessidades básicas não providas pelo Poder Público. Nesse caso, verifica-se que não basta alegar que é miserável e marginalizado, tem de provar que o seja. Mas como, se o indivíduo não tem sequer condições econômicas para se alimentar? Como irá produzir as provas a que alude o eminente julgador?

Além disso, assevera o Relator que o réu tem a plena capacidade de autodeteminar-se já que havia estudado até a 6ª série do ensino fundamental! Com efeito, será que é razoável aduzir que um indivíduo que possui uma irrisória e precária educação (6ª série do ensino fundamental), seja realmente capaz de autodeterminar-se como apontou o julgador?

Acerca das passagens acima, bem como as palavras do órgão julgador, será mesmo que algum ser humano escolhe a criminalidade como forma de vida e a carreira criminosa como profissão? Será que as circunstancias que o rodeiam (miserabilidade, exclusão social, desestruturação familiar, marginalização, omissão estatal, etc.) não acabam, de alguma forma, conduzindo-o a delinqüir, reduzindo, assim, a sua capacidade de se autodeterminar?

Em consonância com essa perspectiva, passa-se analisar trechos do voto da Desembargadora Marlene Landvoigt, Relatora da Apelação Criminal nº 70014561898 do TJRGS, para também demonstrar a rejeição da Teoria da co-culpabilidade por aquela julgadora, senão veja-se:

[...] Da mesma forma, bem decidiu o eminente juiz ao aumentar a pena em razão da alta lesividade da droga apreendida, pois, ainda que a lei não traga expressamente prevista a possibilidade de tal diferenciação, também não impõe qualquer vedação a isso, restando, portanto, tal hipótese abarcada na consideração das circunstâncias do crime, contida no artigo 59 caput da Lei Substantiva Penal. (grifos nossos)

Do fragmento aludido acima, infere-se que a douta Relatora aduz que inobstante haver expressamente na lei permissão para que o juiz aumente a pena tendo em vista o alto poder lesivo da droga, também não há qualquer vedação por parte da norma quanto ao seu emprego.

Ocorre que, no mesmo acórdão analisado, a ilustre julgadora adota um raciocínio um tanto quanto contraditório quando se refere ao acolhimento da atenuação da pena do réu tendo por base a Teoria da co-culpablidade. Acerca disso, a magistrada diz que

[...] quanto à atenuante de co-culpabilidade suscitada, novamente sem razão o acusado, não se sustenta a alegação defensiva na medida em que não encontra amparo na parte geral do Código Penal, nem no sistema legal, além de, a idéia de que a sociedade e seus segmentos constitui motivo relevante para que os menos favorecidos tenham legitimidade para praticar delitos é demasiadamente absurda, pois o crime atinge todos os níveis sociais. (Grifos nossos).

Ora, já que a co-culpabilidade não se encontra expressa na parte geral do Código Penal, e tampouco no sistema legal, por que não lhe foi dada a mesma interpretação pela Relatora no que tange à permissão do agravamento da pena tendo por base o alto poder lesivo da droga (crack)? O raciocínio é o mesmo. Assim, se o Ordenamento Jurídico brasileiro não vedou expressamente a utilização da Teoria da co-culpabilidade, mister se faz adotar o mesmo entendimento esposado anteriormente pela douta Desembargadora-Relatora da Apelação Crime sob análise, ou seja, a de permitir o seu emprego como fundamentação legal argüida pela defesa do apelante.

Por fim, vale destacar que, em que pese a criminalidade ser democraticamente distribuída, conforme expôs a eminente Relatora, a repressão aos delitos não se dá de forma isonômica, mas altamente seletiva, classista e racista pelo Sistema Penal, consoante exposto alhures, atingindo, como é cediço, apenas uma ínfima parcela do tecido societário, os socialmente excluídos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto, cumpre asseverar que, uma vez demonstrada na persecução penal circunstâncias suficientes para convencer o julgador de que aquele réu - tendo em vista as circunstâncias judiciais elencadas no artigo 59 do Estatuto Repressivo brasileiro (Lei n. 2.848/41) - sofreu constante exclusão, tanto pelo Estado como também pela sociedade, dos direitos e serviços públicos essenciais garantidos a todas as pessoas (arts. 5º e 6º da Lei Maior de 88) e, não obstante ser sua conduta típica, ilícita e culpável, deve ter assegurado o direito à atenuação de sua reprimenda com base no art. 66 do Código Penal adotando-se, para tanto, por intermédio da Hermenêutica Criminológica, a teoria da co-culpabilidade na fundamentação judicial do caso concreto.

Perfilhando este entendimento, deve ser reconhecida a teoria da co-culpabilidade (ou co-responsabilidade) como pano de fundo de uma decisão jurisdicional em consonância com o Estado Democrático de Direito vigente, o qual vincula as ações tanto do Poder Público como também de todo o tecido societário, os quais, ainda que de modo indireto, também contribuíram para a marginalização do condenado e o colocaram em situação de risco social diminuindo, assim, sensivelmente a sua capacidade de autodeterminação e de livre escolha de seus atos.

Demais disso, faz-se pertinente extirpar aqueles anacrônicos discursos oportunistas de poder, que sempre fizeram parte, e ainda fazem, da história política brasileira, os quais se valem de uma retórica bem elaborada de cunho estritamente ideológico, vindicativo, criminalizante e classista de base eleitoreira, utilizando-se da ferramenta mais gravosa de que dispõe o Estado - o Sistema Penal -, de forma simbólica, promocional e acrítica com o pretenso intuito de conter a criminalidade, a violência e o medo na teia social.

Ante tudo o que foi esboçado, em que pese ainda existir a pena privativa de liberdade, visto que até hoje ainda não se encontrou um sistema eficaz e capaz de substituí-la, ela deve ser aplicada de maneira justa, prudente e racional, sustentada numa leitura constitucional do arcabouço jurídico e principiológico que informa a aplicação da sanção jurídica àquele sujeito excluído socialmente, que transgrediu as normas impostas pelo Estado e pela sociedade, mormente no que diz respeito à viga mestra de todo o Ordenamento Jurídico: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, inserta no art. 1º, III, da Carta Magna brasileira.


REFERÊNCIAS

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NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

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ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991

______. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. Vol. I. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.


Notas

  1. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 38.
  2. Id. Ibid., p. 31, grifos nossos.
  3. CONDE, Francisco Muñoz; HASSEMER, Winfried. Introdução à Criminologia. Trad., apres. e notas de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 25.
  4. Id. Ibid., p. 20.
  5. Acerca do conceito de paradigma conferir Thomas Kunh apud MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade no Direito Penal. Niterói: Impetus, 2006, p. 03.
  6. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: Códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 35.
  7. Id. Ibid., p. 35.
  8. CONDE, Francisco; HASSEMER, Winfried. op. cit., p. 24-25, nota 5.
  9. BARATTA, Alessandro. op. cit., p. 39, nota 3.
  10. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. op. cit., p. 38, nota 8, grifos nossos.
  11. THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. O crime e o criminoso: entes políticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 21.
  12. BARATTA, Alessandro. op. cit., p. 40, nota 3, grifo nosso.
  13. Sobre o labeling approach conferir ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: Códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 39.
  14. CONDE, Francisco; HASSEMER, Winfried. op. cit., p. 111, nota 5.
  15. BARATTA, Alessandro. op. cit., p. 86, nota 3.
  16. Acerca da criminalização primária e secundária conferir NEPOMOCENO, Alessandro. Além da Lei. A face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 55-58.
  17. BARATTA, Alessandro. op. cit., p. 165, nota 3, grifo nosso.
  18. CONDE, Francisco; HASSEMER, Winfried. op. cit., p. 112, nota 5, grifo nosso.
  19. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 63.
  20. BARATTA, Alessandro. op. cit., p. 161, nota 3.
  21. ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 14.
  22. Id. Ibid., p. 29.
  23. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica do Direito Penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 32-33.
  24. QUINTANEIRO, Tânia; BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia Gardênia Monteiro de. Um toque de clássicos. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 38.
  25. Acerca do conceito de dialética ver GALLIANO, Alfredo Guilherme. Introdução à Sociologia. São Paulo: Harbra, 1981, p. 93.
  26. BARATTA, Alessandro. op. cit., p. 15, nota 3.
  27. VILA NOVA, Sebastião. Introdução à Sociologia. 4. ed. rev. e aum. São Paulo: Atlas S/A, 1999, p. 74-75.
  28. NEPOMOCENO, Alessandro. Além da Lei. A face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 62, grifo nosso.
  29. Id. Ibid., p. 64, grifo nosso.
  30. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 57.
  31. NEPOMOCENO, Alessandro. op. cit., p. 63, nota 30.
  32. NEPOMOCENO, Alessandro. op. cit., p. 85-86, nota 30.
  33. Id. Ibid., p. 86.
  34. BARATTA, Alessandro. op. cit., p. 165, nota 3, grifo nosso.
  35. NEPOMOCENO, Alessandro. op. cit., p. 64, nota 30, grifo nosso.
  36. Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
  37. MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade no Direito Penal. Niterói: Impetus, 2006, p. 01.
  38. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. op. cit., p. 645, nota 21, grifos nossos.
  39. BARATTA, Alessandro. op. cit., p. 106, nota 3.
  40. Id. Ibid., p. 63.
  41. "Trata-se de um juízo de reprovação social, incidente sobre o fato e seu autor, devendo o agente ser imputável, atuar com consciência potencial de ilicitude, bem como ter a possibilidade e exigibilidade de atuar de outro modo (conceito finalista)". NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 251.
  42. CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 73.
  43. GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 214.
  44. DOS SANTOS, Sérgio Roberto Leal. Manual de Teoria da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 57, grifo nosso.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROZÁRIO, Charles Francisco. A teoria da co-culpabilidade como causa de atenuação genérica da pena. Uma análise do art. 66 do Código Penal brasileiro à luz da Hermenêutica Criminológica e do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2618, 1 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17315. Acesso em: 26 abr. 2024.