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Do Estado Liberal ao Estado brasileiro regulador: escatologia em movimento

Do Estado Liberal ao Estado brasileiro regulador: escatologia em movimento

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A sucessão de sistemas econômicos de assemelha à escatologia, parte da teologia que estuda o fim-do-mundo, como um ponto de mutação para uma situação melhor.

SUMÁRIO: Resumo; 1. Introdução; 2. Visão geral do liberalismo: antecedentes históricos e formação; 2.1. A consolidação do capitalismo; 2.2. As primeiras manifestações do Liberalismo; 3. O sistema Liberal; 3.1. O Liberalismo no Brasil; 4. Mundo em Guerra: os limites do liberalismo; 4.1. A ascensão e derrocada dos EUA no interstício das Grandes Guerras; 5. O Estado de bem-estar social; 5.1. Críticas ao welfare state e fortalecimento do liberalismo; 5.2. A crise econômica mundial; 5.3. Estado de bem-estar social no Brasil; 6. O Estado Regulador no Brasil; 7. Conclusões; Referências.

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo apresentar um panorama histórico acerca da evolução do Estado, partindo dos primórdios do liberalismo e avançando até as digressões do Estado Regulador Brasileiro. Comentam-se as máximas econômicas de Adam Smith, os principais caracteres do Estado de bem-estar social, as premissas teóricas keynesianas, traçando-se um estudo crítico sobre o momento e a conjuntura histórica de cada um destes segmentos. Após delinear a crise econômica internacional de 2008 e suas consequências para os modelos econômicos, parte-se para uma análise específica da ordem econômico-jurídica brasileira, com base na Constituição Federal de 1988. A premissa filosófica do texto é demonstrar que a sucessão de sistemas econômicos de assemelha à escatologia, parte da teologia que estuda o fim-do-mundo, mais especificamente na vertente que o enxerga como um ponto de mutação para uma situação melhor.

PALAVRAS-CHAVE: Estado Liberal; Estado Regulador; Ordem Econômica Constitucional Brasileira.


1. Introdução

Dentre as religiões mundiais, é quase unânime a arraigada crença num expurgo derradeiro, momento em que a divindade desceria à Terra para livrá-la do mal, separar os justos dos injustos, erguer estruturas de poder que manteriam as situações – morais, físicas e espirituais – malignas distantes, além de instaurar o advento de um novo tempo, em que a degradação do ciclo anterior não mais se repetiria. É necessário enfatizar o ponto sinérgico de tais esperanças: a substituição da atual conjuntura ruim por uma melhor, onde as benesses prevaleceriam.

Ao complexo de doutrinas que se dedicam ao estudo do "fim-do-mundo", como a transição é mais comumente conhecida, a teologia dá o nome escatologia, do grego εσχατος, "último", mais o sufixo (-logia). Nas acepções mais contemporâneas do termo, interpreta-se uma passagem do evangelho de João, emblemático quanto aos rumos finais da humanidade (capítulo 14, versículo 12), como um sinal de constante desenvolvimento e aperfeiçoamento infinito do homem: "Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas, porque vou para junto do Pai".

A história das doutrinas econômicas, seja em seu viés político, jurídico ou sociológico, guarda em seu íntimo uma constatação ululante, qual seja, o fato de que os estudiosos da matéria, em determinado ponto de mutação, se debruçam sobre as teorias mais abalizadas em seu contexto, analisam-nas, filtram-nas, depuram-nas e encontram seus acertos e erros, mensurando os impactos de seu alcance junto à sociedade, para depois, apresentar uma forma de (a) manutenir o modelo econômico vigente, sem alterações, (b) adequá-lo às urgentes necessidades ou (c) deixá-lo para trás, rompendo o paradigma imperante.

A observação das linhas mestras que norteiam a teoria, a ideologia e a política da doutrina econômica existente na vasta e profunda ligação entre a fundamentação do Estado Liberal e o Estado Regulador pode, nesse sentido, ser visualizada como uma forma de escatologia em movimento, pois a historicidade presente nas bases desses sistemas econômicos apresenta um padrão bem definido: sempre se busca a implantação de um status melhor que o anterior, sem possibilidade de retorno, com o auxílio de um poder secular. Dentre os liberais, é possível afirmar que a sustentabilidade adviria do indivíduo, alçado ao patamar de deidade; para os reguladores, a presença do Estado é, tal como Sarayu, "a leve e constante brisa oriental que se move".

O objetivo deste estudo, longe de ousar esgotar a matéria, é montar um crítico comparativo histórico entre os ditames que emprestam arrimo aos Estados Liberal (em suas principais vertentes), Estado de bem-estar social e, por fim, Regulador (ênfase econômica do welfare state), enfatizando, quanto a este último, a conjuntura presente no Brasil hodierno.


2. Visão geral do liberalismo: antecedentes históricos e formação

A partir do domínio da agricultura, da fundição de metais e de outras técnicas, começaram a surgir os excedentes de produção, o que motivou os homens a deles se desfazerem em prol de algo que lhes faltasse ou aprouvesse. Era o escambo, a troca de um bem por outro de forma direta. Os conflitos resultantes no ocaso das trocas, oriundos, principalmente, da visualização de uma provável desvalorização de um bem frente a outro fez surgir uma unidade única de padrão para o escambo – surgia o valor de moeda. Dentre os vários matizes desta padronização, destacamos o sal, muito precioso entre os europeus, cuja raiz etimológica originou a palavra latina salário (sale – sal; salariu – ração de sal).

A curiosidade do homem sempre o impeliu a buscar bens que não possuía, para prazer pessoal ou satisfação de suas necessidades. A partir das Cruzadas (séculos XI a XIV), expedições militares ao Oriente em que milhares de europeus percorreram terras e mares para libertar Jerusalém (Yerushalaim, a Terra Santa) da dominação dos muçulmanos, o mercado passou a ser fomentado em escala mundial. No percurso, os cavaleiros e seus asseclas precisavam de roupas, alimentos, botas, escudos, armaduras, armas e munições, o que constituía mercado para os comerciantes, que buscavam atender o exponencial aumento da demanda.

É certo que muitos dos que se aventuravam em tais empreitadas o faziam por razões religiosas, altruístas; há relatos de cavaleiros que nada receberam em troca de seus esforços para reaver a Cidade Santa, mas, ao contrário, retornaram arruinados às suas pátrias de origem. Todavia, em contraponto a estes, há, pelo menos, quatro grupos de interesse por trás das Cruzadas. A Igreja Católica, que via na expansão um meio de levar o cristianismo aos recônditos do Oriente; o Império Bizantino, com sede em Constantinopla, desejava proteger seu próprio território; nobres e cavaleiros desejavam aumentar seus patrimônios ou saldar dívidas e, por último, os grandes entrepostos comerciais da época, que desfrutavam da melhor localização geográfica entre a Europa e o mundo conhecido, a saber, Veneza, Gênova e Pisa, cujos dirigentes ansiavam por consolidar e ampliar sua influência.

Ainda era forte, contudo, o regime político feudal, que impedia a existência de uma autoridade central forte e da liberdade necessária aos indivíduos constituírem um potencial mercado interno, já que os povos europeus se encontravam, quase em sua totalidade, submetidos aos laços de suserania e vassalagem. O regime econômico de fins da era feudal era o mercantilismo, o qual se fundava na teoria de que a prosperidade de uma nação decorria de seu estoque de ouro e outros metais preciosos, o qual deveria ser obtido mediante superávits na balança comercial. O governo, para os defensores desta prática, deveria ter forte controle sobre a balança comercial (importações e exportações), favorecendo a saída de produtos do território nacional e impedindo a sua entrada.

O quadro da época era completado pelo corporativismo, consistente em agremiações de profissionais que formavam monopólios entre si, para prestação de serviços e até mesmo venda de mercadorias. O mercado, ainda que se expandisse para o Oriente, estava amarrado em suas fontes.

2.1. A consolidação do capitalismo

Vêm da Inglaterra os direcionamentos que permitiram a superação deste quadro. O esfacelamento da autoridade central começou a ser superado, embora de forma lenta e gradual, com a Carta Magna de 1215, assinada pelo rei João sem Terra e referendada pelos barões feudais da ilha. A partir das garantias elencadas por este documento, estavam lançadas as bases de um sistema de mercado, o qual, adverte Maílson da Nóbrega, é sinônimo de capitalismo. Entendamos melhor.

O mercado, pela ação humana, não é um fim em si mesmo, mas visa uma finalidade específica: crescer e se desenvolver. Isso só é possível mediante a existência de duas condições específicas. A primeira é existência de instituições que estabeleçam direitos individuais seguros e bem definidos, os quais não surgem por natureza, espontaneamente. A propriedade privada deve ser protegida por uma autoridade contra atos de terceiros e dela própria; a presença desses direitos cria os incentivos para a produção, o investimento e o engajamento em transações mutuamente vantajosas para seus participantes.

A segunda condição é a redução substancial de predadores. A ação de saqueadores, guerras de conquista e de "soberanos autocratas que tinham o poder de confiscar bens, mudar as regras no meio do jogo, desrespeitar contratos, decretar moratórias e calotes na dívida pública e esbulhar outros direitos" deveria ser cerceada por um poder central. Ou seja, na medida em que o sistema de mercado é sinônimo de capitalismo, e este é enxergado na história recente da civilização ocidental como o ápice natural das atividades do mercado, é cristalina a relação necessária entre capitalismo e Estado, a autoridade que lhe confere viabilidade.

2.2. As primeiras manifestações do Liberalismo

O capitalismo moderno não surgiu repentinamente, mas teve em sua trajetória avanços e retrocessos seculares. O historiador inglês Eric Hobsbawm apresenta o seguinte questionamento, atinente à nossa reflexão: "Por que a expansão do fim dos séculos XV e XVI não levou diretamente à Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX?". A Carta Magna foi apenas o primórdio do capitalismo como o entendemos. Em verdade, o mercado europeu que se expandia, ainda que sob a truculência do mercantilismo e da fraqueza institucional que imperava nos Estados feudais, singrou os mares na tentativa de se expandir (as grandes navegações e descobrimentos), mas, mesmo diante de tais avanços, foi incapaz de conter uma crise generalizada que se estendeu durante o século XVII.

Deste modo, o capitalismo industrial é o resultado do enfrentamento desta crise, que consistiu na decadência dos grandes mercados tradicionais (o Mediterrâneo e o Báltico), na oscilação para baixo do consumo europeu, abalado por fomes e epidemias e nas crescentes e constantes revoltas populares contra as condições miseráveis que encontravam (a exemplo das frondas francesas e das revoluções no império espanhol). O fato é que, se as grandes metrópoles estavam em crise, o mundo por elas colonizado também se encontrava.

O grande marco deste enfrentamento é a Revolução Gloriosa ocorrida na Inglaterra do reinado de Carlos I (1625-1649). Este monarca empreendeu uma larga série de medidas que o tornou impopular tanto junto às classes burguesas quanto à classe campônea. Dissoluções do Parlamento, existência de tribunais de exceção e fracasso em campanhas militares em seu próprio território levaram-no a uma situação de instabilidade extrema, a qual desaguou no conflito aberto entre a Coroa e o Parlamento. Este confronto é conhecido como a Grande Rebelião e culminou na decapitação do rei em 1649. Surge, assim, a Commonwhealth, liderada por Oliver Cromwell, chefe das tropas do Parlamento.

Após a estabilização militar da nação, a monarquia volta ao poder, limitada, porém, pela Bill of Rights, considerada pelos historiadores como a constituição inglesa da época (1688). As reformas e garantias que o documento instituiu (limitação da tributação, condições e imperativos de solvência da dívida pública) geraram o cenário favorável para o conjunto de eventos que são denominados por Eric Hobsbawm como o mais importante desde a invenção da agricultura e das cidades: a Revolução Industrial.

É tarefa difícil encontrar um momento específico para situar a gênese de um movimento desta monta, a exemplo do que ocorre com os eventos políticos. Entretanto é possível afirmar que entre 1750 e 1780, com a invenção da máquina a vapor, o aperfeiçoamento de novas máquinas de fiar e tecer e o surgimento das ferrovias, a atividade produtiva foi expandida em nível mundial. Este é o instrumento que consolidou o capitalismo em sua vertente industrial e impulsionou a economia inglesa, tornando-a a maior potência econômica antes do final do século XIX. O modus operandi desse período caracteriza-se pelo emprego intensivo de máquinas e equipamentos, bem como pela adoção crescente de inovações tecnológicas poupadoras de mão-de-obra.

Antes de prosseguirmos, é crucial entendermos que as agitações políticas inglesas que forneceram terreno fértil para a Revolução Industrial tiveram um pano de fundo religioso, escoimado, principalmente, no protestantismo de João Calvino, trazido à Bretanha pelo rompimento do rei Henrique VII com a Igreja de Roma. A Reforma calvinista contribuiu para a difusão do individualismo, mola mestra do pensamento clássico, ao defender o trabalho como vocação e o sucesso pessoal resultante. Quando todos trabalham arduamente para obter maiores salários e maiores lucros, aumenta simultaneamente a riqueza nacional, o que gera novos empregos, maior arrecadação de impostos e o desenvolvimento econômico. A busca de maiores lucros, de fortuna pessoal, é motivada por uma espécie de egoísmo individual, mas que leva ao bem-estar coletivo.

Isto dito, é possível compreender o individualismo que se apresentará fortíssimo no liberalismo econômico que eclode na Inglaterra juntamente com a Revolução Industrial. Com a publicação da Riqueza das nações, em 1776, tendo como experiência a Revolução Industrial inglesa, Adam Smith estabeleceu as bases científicas da teoria econômica moderna. Ao contrário dos Mercantilistas, que consideravam os metais preciosos e a terra, respectivamente, como os geradores da riqueza nacional, para Smith o elemento essencial da riqueza é o trabalho produtivo. Ora, superada por uma robusta teoria está a tese do acúmulo de materiais como produtor, de per si, de fortunas, e o caminho para a crença no indivíduo como chave de progresso se encontra nítido. Entretanto, ainda é preciso definir o papel do Estado dentro do complexo liberal.


3. O sistema Liberal

É possível apresentar uma distinção do que vem a ser o liberalismo? Cabe, na apreensão de um conceito lógico, a vastidão de um movimento que englobou saberes religiosos, sociológicos, técnicos e teóricos? A densidade das digressões de Adam Smith, que criou um molde de Teoria Econômica que vem sendo atualizada até nossos dias, a historicidade das revoluções que tiveram palco na Europa Moderna, os conflitos, as descobertas, as inovações, podem eles ser contidos numa definição completa? Pensamos que não, e, felizmente, nos apoiamos em ombros de gigantes para tal posição.

Em seu Dicionário de Ciências Políticas, Norberto Bobbio apresenta a dificuldade metodológica em se definir o que vem a ser liberalismo:

[...] o Liberalismo se manifesta nos diferentes países em tempos históricos bastante diversos, conforme seu grau de desenvolvimento; daí ser difícil individuar, no plano sincrônico, o momento liberal capaz de unificar histórias diferentes. Com efeito, enquanto na Inglaterra se manifesta abertamente com a Revolução Gloriosa de 1688-1689, na maior parte dos países da Europa continental é um fenômeno do século XIX, tanto que podemos identificar a revolução russa de 1905 como a última revolução liberal. Em terceiro lugar, nem é possível falar numa "história-difusão" do Liberalismo, embora o modelo da evolução política inglesa tenha exercido uma influência determinante, superior à exercida pelas Constituições francesas da época revolucionária. Isto porque, conforme os diferentes países, que tinham diversas tradições culturais e diversas estruturas de poder, o Liberalismo defrontou-se com problemas políticos específicos, cuja solução determinou sua fisionomia e definiu seus conteúdos, que muitas vezes são apenas uma variável secundária com relação à essência do Liberalismo. Acrescente-se uma certa indefinição quanto aos referenciais históricos do termo Liberalismo: tal termo pode, conforme o caso, indicar um partido ou um movimento político, uma ideologia política ou uma metapolítica (ou uma ética), uma estrutura institucional específica ou a reflexão política por ela estimulada para promover uma ordem política melhor, justamente a ordem liberal. Num primeiro momento, é possível oferecer unicamente uma definição bastante genérica: o Liberalismo é um fenômeno histórico que se manifesta na Idade Moderna e que tem seu baricentro na Europa (ou na área atlântica), embora tenha exercido notável influência nos países que sentiram mais fortemente esta hegemonia cultural (Austrália, América Latina e, em parte, a Índia e o Japão).

Consoante já expresso na introdução, não é nosso objetivo esgotar a conceituação dos diversos termos que se encontram insertos no âmbito da Economia Política levemente descrita até o momento. De fato, à mingua de uma definição compacta que nos sirva e contemple a complexidade que guarda o sistema liberal, em suas múltiplas dimensões, conforme citado acima, para o escopo deste trabalho limitamo-nos às características que informam o liberalismo como um todo, citadas por Augusto Lanzoni em sua Introdução às Ideologias Políticas, apresentadas com a ligeira advertência de que o "liberalismo tem sua base voltada inteiramente para a ideia de liberdade. É uma filosofia global, que envolve todos os aspectos de um sistema, e não somente o econômico ou o político, como muitos pensam".

Há grande desconfiança do Estado, pois, ao contrário do que aconteceu na Inglaterra, onde a Revolução Gloriosa permeou todos os setores da Administração Pública, a sua herdeira continental, a Revolução Francesa (1789), a qual levou os ideais liberais para os demais países europeus e para o Novo Mundo, por ser protagonizada quase exclusivamente pela burguesia, sem o apoio dos poderes nobre e clerical, teve constantes episódios de traição e opressão por parte dos poderes constituídos. Esse receio, decerto, se espraiou naqueles que se inspiraram no tríplice ideal (liberdade, igualdade, fraternidade), e fundamentou a ojeriza liberal a todo e qualquer poder absoluto. Mesmo o exercício do poder é desencorajado, devendo ser a fiscalização permanente sobre aqueles que o exercem.

O indivíduo é colocado à frente da razão do Estado, acima dos interesses dos grupos, das exigências da coletividade, das organizações, associações, sindicatos. A história é feita por indivíduos, não por forças coletivas, de modo que o apego cego ao passado e às tradições é condenado.

Prega o liberalismo, quanto à estrutura do Estado, a divisão dos Poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário (a clássica crença no checks and balances system), em prol do equilíbrio dos poderes; a existência de uma constituição formal, que se encontra acima de qualquer poder; a descentralização da autoridade em níveis autônomos, cujos limites devem ser respeitados pelo poder central. E, mais importante, o papel do Estado deve ser mínimo no seio da sociedade, quer na esfera econômica quer em outros aspectos, tais como cultura, lazer, entre outros.

Quanto à economia em si, deve-se respeitar a iniciativa privada e individual, a qual evitaria a tutela estatal, fazendo a circulação de mercadorias aumentar, pela criatividade pessoal e incentivo à produção, bem como a livre concorrência, ou seja, a agremiação e captação de mercados sem a ingerência do Estado, pois a disputa entre vários comerciantes e industriais traria benefícios ao povo, que se beneficiaria com as oscilações da lei da oferta e da procura.

Desnecessário dizer, posto ser a História nosso guia, que, muito embora as aspirações liberais tenham se mostrado um bálsamo para o desenvolvimento das nações adstritas ao mercantilismo, eis que representaram um salto de progresso econômico e tecnológico, elas não foram corretamente visualizadas. A burguesia se valeu da inexistência de olhos reguladores para uma finalidade bem diversa da implementação da liberdade em agir, transformando-se em tirânica força de opressão sobre o povo. Com raras exceções, o liberalismo não se tornou sustentável, apesar de suas bases serem incontestáveis luminares da evolução humana. René Remond, apud Lanzoni (op.cit.) afirma:

Quem, então, tira maior partido, na França ou na Grã-Bretanha, do livre jogo da iniciativa política ou econômica, senão a classe social mais rica? A burguesia fez a revolução (francesa) e a revolução entregou-lhe o poder; ela pretende conservá-lo, contra a volta da aristocracia e contra a ascensão das camadas populares. A burguesia reserva para si o poder político pelo censo eleitoral. Ela controla o acesso a todos os cargos públicos e administrativos. Desse modo, a aplicação do liberalismo tende a manter a desigualdade social.

3.1. O Liberalismo no Brasil

É viável a compreensão de que o termo liberalismo, em sua substância semântica, tem um antônimo natural, o conservadorismo. O fato curiosíssimo, em que também nos apoiamos na História, é que o liberalismo pode assumir vieses conservadores, sem sair de sua linha de atuação teórica. A burguesia tem as aspirações de mais multifacetada fundamentação dentro de um grupo humano; seus interesses permitem o deslocamento de atitudes em prol da satisfação de um objetivo definido. Assim, se o liberal prega a liberdade como bem supremo do homem, de um lado, de outro ele limita a ação daqueles que não têm dinheiro; se ele se apresenta como revolucionário e progressista quanto ao rompimento com as práticas mercantilistas, ele é conservador, pouco receptivo às conquistas populares. É o liberalismo, ao mesmo tempo, liberal e conservador.

Peculiar é a situação quando se nos apresenta um governante monárquico com concepções liberais, a exemplo de Dom Pedro I, primeiro regente do Brasil enquanto Estado-Nação independente. Como sucessor de um monarca subscritor da Santa Aliança – Dom João VI – cujo objetivo era o de restaurar as monarquias absolutistas pela Europa e manter o mundo americano na condição de colônia, vem ao Brasil e mantém a forma monárquica de governo, ainda que limitado por uma constituição (ortorgada e composta por membros da elite que detinha a confiança do imperador, ao invés do parlamento, que fora dissolvido), expressão de sua vontade. Os poderes são separados, mas surge a apócrifa figura do Poder Moderador, braço do monarca nos Poderes Legislativo e Judiciário. Sobre este controle, ensina Boris Fausto, em sua História do Brasil:

O Poder Moderador provinha de uma ideia do escritor francês Benjamin Constant, cujos livros eram lidos por Dom Pedro e por muitos políticos da época. Benjamin Constant defendia a separação entre o Poder Executivo, cujas atribuições caberiam aos ministros do rei, e o poder propriamente imperial, chamado de neutro ou moderador. O rei não interviria na política e na administração do dia-a-dia e tria o papel de moderar as disputas mais sérias e gerais, interpretando "a vontade e o interesse nacional". No Brasil, o Poder Moderador não foi tão claramente separado do Executivo. Disso resultou uma concentração de atribuições nas mãos do imperador. Pelos princípios constitucionais, a pessoa do imperador foi considerada inviolável e sagrada, não sujeita a responsabilidade alguma.


4. Mundo em Guerra: os limites do liberalismo

Embora não trace um panorama histórico específico, o que se apresenta mais útil ao presente estudo, tendendo mais para um ensaio bem-humorado acerca da economia política, a obra A Riqueza e a Pobreza das Nações, de David S. Landes nos oportuniza uma reflexão deveras pontual acerca do estado de espírito que a tergiversação dos ideais liberais nas mãos de alguns governantes e burgueses tresloucados foi capaz de provocar:

O século XX divide-se nitidamente em dois pontos: 1914 e 1945. A primeira data marcou o início da chamada Grande Guerra – um dos mais absurdos conflitos na história humana. Esses quatro anos de combates deixaram dez milhões de mortos e um número muito maior de mutilados e doentes mentais. Também tornaram uma Europa próspera e em franco progresso e deixaram-na prostrada. A tragédia reside na estupidez de reis, políticos e generais que desejaram e avaliaram erroneamente as proporções que o conflito iria assumir, e a simplória vaidade de pessoas que pensavam que a guerra era uma festa – um caleidoscópio de charmosos uniformes, coragem masculina, admiração feminina, desfiles de modas e a alegre despreocupação da juventude imortal.

[...] Comandantes obtusos calcularam com impecável lógica que venceria o exército que tivesse seus soldados de pé e atirando. Os generais obtiveram promoções, medalhas, e estátuas, usualmente equestres. Seus homens morreram na lama.

É fato que, para se sustentar dentro dos ideais liberais, uma nação deve ter um sistema de mercado forte, com circulação de bens e serviços de forma fluida. Entretanto, não deixa de ser importante a observação cautelosa da balança comercial, em especial se os detentores do poder econômico, a classe burguesa, puder maximizar seu lucro a partir dela. Já ficara provado, ainda no auge histórico do mercantilismo, que a existência de colônias submetidas a uma metrópole favorecia esta sobremaneira, na medida em que aquela era fonte de matérias-primas de custo próximo ao zero e mercado consumidor necessário, posto que dependia do comércio metropolitano pela força das leis, armadas e exércitos. Importar a baixo custo, industrializar e revender a preços exorbitantes configurava um dos pilares do sistema liberal.

Sem incorrer na logística do conflito, conhecida à saciedade, limitamo-nos a relembrar que a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi uma guerra de colônias, em que as principais potências da época brigaram pelo controle de terras sob submissão, além de exercitarem ódios antigos. O império austro-húngaro foi esfacelado, a Alemanha foi reduzida a escombros e sua população jogada à miséria pelo conjunto de tratados mais comumente conhecidos como Tratado de Versalhes. A Europa, berço do liberalismo, estava arrasada.

4.1. A ascensão e derrocada dos EUA no interstício das Grandes Guerras

Graças ao desfecho da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos, força decisiva na vitória, se colocou no centro do capitalismo mundial. Os ideais liberais importados da técnica inglesa e aprimorados pelo espírito de lutas e conquistas da Revolução Francesa encontraram terreno fértil no solo norte-americano, que foi fundado já sob a égide de uma constituição formal. Com o advento de um mercado consumidor de todas as espécies de gêneros de produtos – a Europa destruída – a economia americana parecia absolutamente sólida e em ordem. A classe média e os ricos do país gozavam de um estilo de vida elevado, e o american way of life atingia seu patamar máximo.

Os motivos desta ascensão são vários, e vão desde os elementos de uma contínua política liberal empreendida pelas elites americanas até a virtual ausência de concorrência no âmbito do capitalismo mundial, passando pelo mercado consumidor europeu, que, como já se disse, estava carente de tudo após a Grande Guerra. Em 1929 assumiu a presidência dos Estados Unidos o liberal Herbert Hoover, que encontrou um país de aparência sólida, inabalável. Em um momento especulativo, isto é, em que se fomenta o ganho nas bolsas de valores com base em conjecturas e dados de projeção, os negócios realizados subiam vertiginosamente, e era cada vez maior o número de investidores querendo tomar parte nos lucros exorbitantes daí advindos. Acontece que a especulação elevou sobremaneira o valor real de propriedades e ações negociadas, gerando um estouro da bolha especulativa, uma crise de desconfiança que levou todos a quererem vender seus papéis. Pela lei da oferta e da procura, com papéis demais no mercado, retração do consumo e a consequente perda de riqueza por parte dos investidores, os bens representados pelos documentos negociados passaram a valer muito pouco ou nada.

Em 29 de outubro de 1929, a bolsa de Nova York, em decorrência do volume de ações disponíveis para venda, quebrou, ou seja, não teve em seu interior mais circulação de dinheiro por causa do valor insignificante que as ações atingiram. Era o início da Grande Depressão Americana, a qual levou boa parte da nação à miséria.

O governo Hoover preferiu crer na auto-regulamentação do mercado, o que agravou seriamente a situação. Seu sucessor, o democrata Franklin Delano Roosevelt, por outro lado, com base nas ideias de John Maynard Keynes, iniciou um programa efetivo de intervenção estatal na economia, que significou o marco histórico mais sensível da doutrina do Estado de bem-estar social (welfare state). Em 1935, graças às medidas adotadas, os Estados Unidos começaram a sair da crise econômica que por pouco não o aniquilou.

A hegemonia conquistada com a vitória em 1945, a qual significou não apenas uma demonstração superior de estratégia militar, mas de poderio bélico de destruição em massa, fez com que os Estados Unidos se tornassem o centro de progresso mundial durante o século XX.


5. O Estado de bem-estar social.

A escola keynesiana se baseia no princípio de que o ciclo econômico não é auto-regulador como pensavam os neoclássicos, os liberais de então, mas é determinado pelo que Keynes chamou de "espírito animal" dos empresários. Este fator, aliado à patente incapacidade do capitalismo de ocupar toda a mão-de-obra que se lhe apresenta são os mais importantes elementos de impulso que justificam a intervenção do Estado na economia.

Ao conjunto destas intervenções é que denominamos Estado de bem-estar social, doutrina econômica que perpassou a maior parte do século XX. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida e saúde social, política e econômica do país, em relação íntima com sindicatos e empresas privadas. Segundo Maílson da Nóbrega, podemos sintetizar os fins desta vertente da seguinte forma:

O Estado de bem-estar social cumpre essencialmente o objetivo de minimizar os efeitos negativos da pobreza, de amparar os que são temporariamente atingidos por infortúnios provocados por acidentes no trabalho e pelo desemprego, mas a ideia de que ele pode também redistribuir renda permeia o discurso político, particularmente o da esquerda. Os críticos admitem a existência de redes de proteção social, nos casos em que o crescimento da economia não seja suficiente para reduzir os níveis de pobreza, mas relutam em aceitar a ação direta do Estado para distribuir renda.

Esse é o primeiro grande problema do Estado de bem-estar social. A distribuição de renda por meio da tributação, geralmente onerosa, provoca descontentamento em massa no seio das classes tributadas. É bem verdade que, em alguns países europeus da década de 80 do século antecedente havia alíquotas marginais de até 90% sobre um determinado valor oriundo de um fato gerador, o que, sem dúvida, constituía um inequívoco desestímulo à produção. Contudo, nos parece que a taxação apenas serve de óbice ao lucro desmedido que certos setores produtivos almejam; deve certamente existir a observação à capacidade econômica de cada segmento tributado, outrossim.

Há alguns outros problemas que se encontram muito presentes na logística do bem-estar social. O custo da administração estatal é gigantesco (o que justifica, de certa forma, a elevada tributação), eis que, numa nação envelhecida, por exemplo, a repartição simples de renda entre os idosos que saem da faixa etária de dedicação ao trabalho produtivo gera efeitos devastadores na previdência estatal.

5.1. Críticas ao welfare state e fortalecimento do liberalismo

Afirma Norberto Bobbio, em sua obra Estado, Governo e Sociedade, que "a julgar pelo estado atual do debate, a crítica de esquerda teve por efeito não o início de uma mais profunda transformação do Estado, chamado depreciativamente de ‘assistencial’, num estado com maior conteúdo socialista, mas o despertar de nostalgias e esperanças neo-liberistas". Sabendo que o autor escreveu estas linhas em fins de 1985 e que o termo neo-liberistas, segundo o tradutor da obra, "refere-se ao universo do liberalismo econômico e basicamente à restauração do livre-cambismo", vemos que o Estado de bem-estar social foi duramente cristicado após perfazer seus propósitos, quais sejam, retirar o mundo da derrocada econômica das décadas de 30 e 40 do século XX e estabilizar o progresso das nações.

O neoliberalismo seguiu como cartilha econômica dos principais governos da direita internacional, embora o seu principal triunfo tenha vindo por meios indiretos, menos por seus próprios méritos do que pelas consequências do colapso das economias burocráticas na virada dos anos 1980 e 1990. Produzido numa época em que o retorno ao classicismo liberal era a política oficial e a ideologia dos principais governos ocidentais (Reagan nos EUA e Margaret Tatcher na Grã-Bretanha), o colapso da antiga URSS e seu bloco oriental pareceu confirmar a inviabilidade das economias com forte participação do Estado, em que os mecanismos de mercado não podem se expressar de forma livre e direta, sem as mediações postas pelas formas do planejamento econômico.

O que se viu então a partir daí foi a aceleração dos projetos privatistas e a financeirização da economia, num contexto de rápida transformação da tecnologia produtiva poupadora de mão de obra e geradora de altas taxas de desemprego, e de globalização acelerada dos mercados pela ação de gigantescas empresas transnacionais e de agentes financiadores institucionais e privados.

Nada obstava o retorno aos matizes mais clássicos do liberalismo, permeado pelo "espírito animal" a que Keynes se referia com relação aos capitalistas, mesmo que se tivesse de lidar com a – ainda – presente atuação do Estado na sociedade, da qual a maioria da população das democracias ao redor do mundo não estava disposta a abrir mão (e eliminaria do jogo político qualquer indivíduo que pretendesse fazê-lo). No entanto, mais uma vez, nos Estados Unidos, ocorreu o evento capaz de refrear o liberalismo.

5.2. A crise econômica mundial

Em meados de 2008, em decorrência de mais uma crise especulativa de capital, oriunda, desta feita, da desvalorização das hipotecas imobiliárias da classe média e pobre superior, feitas às milhares nos Estados Unidos, por investidores atraídos por promessas de crédito fácil, ganho financeiro astronômico e possibilidade de ascensão social, a Bolsa de Nova York passou pela maior queda desde a quebra de 1929. Um estado de pânico se generalizou na nação, ao passo em que grandes especuladores e membros diretores de instituições financeiras voltaram seus olhos ao Estado, até aquele exato momento visto como um ente de crucial e necessário distanciamento, e solicitaram ajuda para recuperação.

O governo de George W. Bush, alimentado pela crença de que a injeção de mais de 100 bilhões de dólares do tesouro público na economia seria a chave para contornar a recessão, ainda que não este capital não fosse revertido, sob nenhuma forma, para recuperação dos pequenos investidores que perderam suas casas, mas revertido para as instituições financeiras responsáveis pelas atitudes especulativas que geraram os eventos de recessão de 2008, foi derrotado pelo democrata Barack Obama, que, juntamente com o primeiro-ministro inglês Gordon Brown, fundamentam planos de governo que repercutirão em escala global com base nos modelos keynesianos. O futuro nos dirá acerca de seus acertos ou insucessos.

A crise econômica atingiu o planeta e gerou a maior onda de desempregos da história humana. Só o colapso da bolha imobiliária deslocou 34 milhões de pessoas de seus postos de emprego. A recessão dela decorrente ajudou a gerar a incrível marca de 212 milhões de pessoas na Terra sem emprego, o que representa ociosidade de 6,6% da força produtiva global. Os dados são da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em fins de 2009. seu diretor-geral, Joan Somavia, afirma que "assim como se tomaram decisões para salvar os bancos, necessitamos da mesma vontade para salvar e criar postos de trabalho e ajudar as pessoas".

5.3. Estado de bem-estar social no Brasil

No Brasil, o welfare state sofre distorções derivadas da ação de grupos e políticos comprometidos em clamar para si a gratidão e subserviência das camadas favorecidas pelas ações positivas do Estado. Entre nós, sob máscaras de auxílio real aos necessitados, é a classe média que se vê privilegiada. Exemplo dessa realidade é a proposta de destinação, pelo governo Lula, de 75% do orçamento federal de educação para as universidades federais, que não são ocupadas pelas classes pobres da nação.

Não há dúvida de que a melhor combinação de instrumentos de promoção social é aquela constituída de gastos eficientes em educação, redes de proteção social e ações para ampliar o potencial de crescimento da economia, particularmente a geração de incentivos corretos à inovação, ao investimento e, em geral, ao florescimento dos negócios sob uma economia orientada pelo mercado. Em sendo assim, cremos, nem mesmo os críticos do Estado de bem-estar social deixariam de apoiar as ações diretas do Estado focalizadas no combate à pobreza.


6. O Estado Regulador no Brasil

O Estado de bem-estar social, quando analisado em sua vertente de intervenção na economia, é comumente denominado de Estado Regulador. A ação regulatória do Estado pode ser considerada como um conjunto de técnicas administrativas de intervenção sobre a economia. Ao definir o conteúdo da regulação, a Administração pode escolher diferentes técnicas para gerar efeitos sobre a economia. Cada técnica tem uma lógica própria que está relacionada ao tipo de estrutura ou relação econômica a ser regulada e aos objetivos da regulação, considerando os efeitos almejados (política industrial, correção de falhas de mercado, estímulo ao desenvolvimento regional, à concorrência, etc.).

A regulamentação econômica no Brasil se dá através da proibição e punição de práticas anticoncorrenciais (Lei 8.884/94), que podem ser, dentre outras, formação de cartel, venda casada, dumping (venda de um produto importado por um preço mais baixo do que no país de origem sem que isso reflita menores custos), política de preços predatórios (determinada empresa mantém o preço de um bem abaixo do custo de produção por um período, até eliminar seu concorrente), discriminação de preços em mercados diferentes, exigência de exclusividade e fixação de preços de revenda.

Cita-se, ademais, a regulamentação do uso de serviços de caráter público. A partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, a prestação de muitos serviços públicos, anteriormente responsabilidade de empresas estatais, passou para o setor público. Entre as privatizações de maior vulto, podemos elencar o setor de transportes, energia elétrica e telecomunicações, sendo que estes dois últimos foram inteiramente repassados à gestão do capital privado. Desse modo, exsurgiu a necessidade, oriunda da permanência da natureza pública de tais prestações, de um controle específico sobre os novéis responsáveis por sua implementação – são as agências reguladoras, órgão públicos destinados à fiscalização do cumprimento dos contratos de concessão, das metas acordadas e da qualidade do serviço prestado.

Entre as principais agências reguladoras no Brasil, podemos apontar a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Agência Nacional do Petróleo (ANP), a Agência Nacional da Saúde (ANS) e a Superintendência de Seguros Privados (Susep).

Esses são os exemplos mais evidentes da atividade regulatória estatal. No entanto, o espectro do Estado Regulador é bem mais amplo. Previstas do artigo 172 a 176 da Constituição Federal estão as normas constitucionais da atividade econômica, voltadas à regência da atividade financeira do Estado, o que se afigura, afinal, a nosso ver, a mais cogente forma de intervenção na economia.

Antes de adentramos na sistemática dos artigos amiúde referidos, é necessário esclarecer que a atividade regulatória brasileira não se restringe à direta intervenção na economia. Ao contrário, a regulação também reafirma princípios liberais, cumprindo e cristalizando, em primeiro lugar, a função que o liberalismo alocou para o Estado. Consubstanciados no artigo 170 da Carta Maior se encontram os princípios gerais da atividade econômica, que permeiam o modo pelo qual a economia é guiada no país.

A valorização do trabalho humano e da livre iniciativa (CF, art. 170, caput) assegura o labor do homem como valor constitucional supremo em relação aos demais valores integrantes da economia de mercado; por seu turno, a livre iniciativa é limitada pela dignidade da pessoa humana, posto que se encontram em mesma hierarquia (fundamentos da República, artigo 1º da CF), e, na possibilidade de colisão, deverão ser interpretados de modo a asseverar a prevalência da dignidade, pela defesa do consumidor (art. 170, V), pelo direito de propriedade (art. 5º, XXII) e pela igualdade de todos perante a lei (isonomia legal; art. 5º, caput).

A liberdade de exercício de atividade econômica (art. 170, § único) permite a todos o exercício de empresa cujo objeto não seja vedado por lei ou, por sua imposição, dependa de autorização do poder público para funcionamento. A existência digna e a justiça social (art. 170, caput) nos remetem para o fato de que a atividade estatal deverá atentar, sempre, pela primazia da dignidade da pessoa humana, muito embora as injustiças oriundas do regime capitalista por várias vezes opressor impeçam a eficácia destes princípios.

A soberania nacional econômica visa garantir a existência de um formato de capitalismo nacional autônomo, sem ingerências externas (art. 170, I); a defesa da propriedade privada (art. 170, II) limitada pela função social que a mesma deve exercer (art. 170, III) se encontram esculpidas no texto constitucional, ainda que sob fortes críticas liberais. A livre concorrência, já exposta, também tem proteção constitucional (art. 170, IV).

O consumidor e o meio-ambiente são fortemente defendidos na ordem econômica constitucional brasileira (art. 170, V e VI), uma vez que são considerados vulneráveis diante da sistemática capitalista, em especial no que se refere às relações de consumo em que figuram grandes corporações e usuários individuais e na prática do modo de produção linear, em que não se contempla a inerente finitude dos recursos naturais.

Num último bloco, temos a visão de redução das desigualdades regionais e sociais por meio da atividade econômica, com vistas ao desenvolvimento, a busca do pleno emprego (talvez a mais inócua exigência constitucional do contexto) e o tratamento diferenciado às empresas de pequeno porte (artigo 170, VII, VIII e IX).

O poder público interfere diretamente na economia através de regulamentação acerca da remessa de lucros (investimentos e reinvestimentos de capital estrangeiro; art. 172), da exploração direta de atividade econômica – empresas públicas e sociedades de economia mista –, se esta não comprometer a soberania brasileira e os interesses da sociedade (art. 173), da normatização de determinados elementos ligados à ação econômica, v.g., o horário de funcionamento de comércio local (art. 174), na exploração de serviços públicos, não limitados aos expostos acima, objeto de regulamentação acirrada do Estado (a estrutura cartorária é exemplo de serviço público remunerado e explorado pelo Estado). A exploração dos recursos minerais e da energia hidráulica também é garantida ao Estado, ressalvada, quanto aos primeiros, a preferência em favor de cooperativas de garimpeiros (art. 176).


7. Conclusões

Do mercantilismo ao liberalismo, perpassando o liberalismo industrial; do liberalismo ao Estado de bem-estar social; deste ao neoliberalismo, qualquer que seja a pluralidade de seus significados; da mescla entre Estado Regulador e tendências liberais para o futuro: temos a sorte de sermos testemunhas, em nosso tempo de vida, da escatologia que se segue à crise mundial de 2008. A história econômica é uma história de superações, de engenho humano aplicado ao progresso. Como não poderia ser diferente num contexto historicista, há a presença de setores que mascaram suas intenções sob o manto do bem comum.

Mas a marcha da humanidade prossegue. Estamos às voltas, no momento, com a virtual falência econômica do berço da cultura ocidental, a Grécia, e, pensamos, não poderia haver ímpeto mais simbólico para um momento de renovação do que este que se nos apresenta com tal episódio. A Europa se retrai sobre si mesma, os Estados Unidos vivem sob o comando de um democrata negro e o Brasil, nossa amada terra, se vê às vésperas da eleição mais plural (convergente em embates econômicos, sociais e políticos) em vinte anos de democracia.

Que o nosso momento de escatologia tenha um epílogo e estejamos aptos a vê-lo é a esperança destas conclusões.


Referências

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Alberto Dias de. Do Estado Liberal ao Estado brasileiro regulador: escatologia em movimento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2628, 11 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17372. Acesso em: 26 abr. 2024.