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Do Estado Liberal ao Estado brasileiro regulador: escatologia em movimento

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11/09/2010 às 14:15
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A sucessão de sistemas econômicos de assemelha à escatologia, parte da teologia que estuda o fim-do-mundo, como um ponto de mutação para uma situação melhor.

SUMÁRIO: Resumo; 1. Introdução; 2. Visão geral do liberalismo: antecedentes históricos e formação; 2.1. A consolidação do capitalismo; 2.2. As primeiras manifestações do Liberalismo; 3. O sistema Liberal; 3.1. O Liberalismo no Brasil; 4. Mundo em Guerra: os limites do liberalismo; 4.1. A ascensão e derrocada dos EUA no interstício das Grandes Guerras; 5. O Estado de bem-estar social; 5.1. Críticas ao welfare state e fortalecimento do liberalismo; 5.2. A crise econômica mundial; 5.3. Estado de bem-estar social no Brasil; 6. O Estado Regulador no Brasil; 7. Conclusões; Referências.

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo apresentar um panorama histórico acerca da evolução do Estado, partindo dos primórdios do liberalismo e avançando até as digressões do Estado Regulador Brasileiro. Comentam-se as máximas econômicas de Adam Smith, os principais caracteres do Estado de bem-estar social, as premissas teóricas keynesianas, traçando-se um estudo crítico sobre o momento e a conjuntura histórica de cada um destes segmentos. Após delinear a crise econômica internacional de 2008 e suas consequências para os modelos econômicos, parte-se para uma análise específica da ordem econômico-jurídica brasileira, com base na Constituição Federal de 1988. A premissa filosófica do texto é demonstrar que a sucessão de sistemas econômicos de assemelha à escatologia, parte da teologia que estuda o fim-do-mundo, mais especificamente na vertente que o enxerga como um ponto de mutação para uma situação melhor.

PALAVRAS-CHAVE: Estado Liberal; Estado Regulador; Ordem Econômica Constitucional Brasileira.


1. Introdução

Dentre as religiões mundiais, é quase unânime a arraigada crença num expurgo derradeiro, momento em que a divindade desceria à Terra para livrá-la do mal, separar os justos dos injustos, erguer estruturas de poder que manteriam as situações – morais, físicas e espirituais – malignas distantes, além de instaurar o advento de um novo tempo, em que a degradação do ciclo anterior não mais se repetiria. É necessário enfatizar o ponto sinérgico de tais esperanças: a substituição da atual conjuntura ruim por uma melhor, onde as benesses prevaleceriam.

Ao complexo de doutrinas que se dedicam ao estudo do "fim-do-mundo", como a transição é mais comumente conhecida, a teologia dá o nome escatologia, do grego εσχατος, "último", mais o sufixo (-logia). Nas acepções mais contemporâneas do termo, interpreta-se uma passagem do evangelho de João, emblemático quanto aos rumos finais da humanidade (capítulo 14, versículo 12), como um sinal de constante desenvolvimento e aperfeiçoamento infinito do homem: "Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas, porque vou para junto do Pai".

A história das doutrinas econômicas, seja em seu viés político, jurídico ou sociológico, guarda em seu íntimo uma constatação ululante, qual seja, o fato de que os estudiosos da matéria, em determinado ponto de mutação, se debruçam sobre as teorias mais abalizadas em seu contexto, analisam-nas, filtram-nas, depuram-nas e encontram seus acertos e erros, mensurando os impactos de seu alcance junto à sociedade, para depois, apresentar uma forma de (a) manutenir o modelo econômico vigente, sem alterações, (b) adequá-lo às urgentes necessidades ou (c) deixá-lo para trás, rompendo o paradigma imperante.

A observação das linhas mestras que norteiam a teoria, a ideologia e a política da doutrina econômica existente na vasta e profunda ligação entre a fundamentação do Estado Liberal e o Estado Regulador pode, nesse sentido, ser visualizada como uma forma de escatologia em movimento, pois a historicidade presente nas bases desses sistemas econômicos apresenta um padrão bem definido: sempre se busca a implantação de um status melhor que o anterior, sem possibilidade de retorno, com o auxílio de um poder secular. Dentre os liberais, é possível afirmar que a sustentabilidade adviria do indivíduo, alçado ao patamar de deidade; para os reguladores, a presença do Estado é, tal como Sarayu, "a leve e constante brisa oriental que se move".

O objetivo deste estudo, longe de ousar esgotar a matéria, é montar um crítico comparativo histórico entre os ditames que emprestam arrimo aos Estados Liberal (em suas principais vertentes), Estado de bem-estar social e, por fim, Regulador (ênfase econômica do welfare state), enfatizando, quanto a este último, a conjuntura presente no Brasil hodierno.


2. Visão geral do liberalismo: antecedentes históricos e formação

A partir do domínio da agricultura, da fundição de metais e de outras técnicas, começaram a surgir os excedentes de produção, o que motivou os homens a deles se desfazerem em prol de algo que lhes faltasse ou aprouvesse. Era o escambo, a troca de um bem por outro de forma direta. Os conflitos resultantes no ocaso das trocas, oriundos, principalmente, da visualização de uma provável desvalorização de um bem frente a outro fez surgir uma unidade única de padrão para o escambo – surgia o valor de moeda. Dentre os vários matizes desta padronização, destacamos o sal, muito precioso entre os europeus, cuja raiz etimológica originou a palavra latina salário (sale – sal; salariu – ração de sal).

A curiosidade do homem sempre o impeliu a buscar bens que não possuía, para prazer pessoal ou satisfação de suas necessidades. A partir das Cruzadas (séculos XI a XIV), expedições militares ao Oriente em que milhares de europeus percorreram terras e mares para libertar Jerusalém (Yerushalaim, a Terra Santa) da dominação dos muçulmanos, o mercado passou a ser fomentado em escala mundial. No percurso, os cavaleiros e seus asseclas precisavam de roupas, alimentos, botas, escudos, armaduras, armas e munições, o que constituía mercado para os comerciantes, que buscavam atender o exponencial aumento da demanda.

É certo que muitos dos que se aventuravam em tais empreitadas o faziam por razões religiosas, altruístas; há relatos de cavaleiros que nada receberam em troca de seus esforços para reaver a Cidade Santa, mas, ao contrário, retornaram arruinados às suas pátrias de origem. Todavia, em contraponto a estes, há, pelo menos, quatro grupos de interesse por trás das Cruzadas. A Igreja Católica, que via na expansão um meio de levar o cristianismo aos recônditos do Oriente; o Império Bizantino, com sede em Constantinopla, desejava proteger seu próprio território; nobres e cavaleiros desejavam aumentar seus patrimônios ou saldar dívidas e, por último, os grandes entrepostos comerciais da época, que desfrutavam da melhor localização geográfica entre a Europa e o mundo conhecido, a saber, Veneza, Gênova e Pisa, cujos dirigentes ansiavam por consolidar e ampliar sua influência.

Ainda era forte, contudo, o regime político feudal, que impedia a existência de uma autoridade central forte e da liberdade necessária aos indivíduos constituírem um potencial mercado interno, já que os povos europeus se encontravam, quase em sua totalidade, submetidos aos laços de suserania e vassalagem. O regime econômico de fins da era feudal era o mercantilismo, o qual se fundava na teoria de que a prosperidade de uma nação decorria de seu estoque de ouro e outros metais preciosos, o qual deveria ser obtido mediante superávits na balança comercial. O governo, para os defensores desta prática, deveria ter forte controle sobre a balança comercial (importações e exportações), favorecendo a saída de produtos do território nacional e impedindo a sua entrada.

O quadro da época era completado pelo corporativismo, consistente em agremiações de profissionais que formavam monopólios entre si, para prestação de serviços e até mesmo venda de mercadorias. O mercado, ainda que se expandisse para o Oriente, estava amarrado em suas fontes.

2.1. A consolidação do capitalismo

Vêm da Inglaterra os direcionamentos que permitiram a superação deste quadro. O esfacelamento da autoridade central começou a ser superado, embora de forma lenta e gradual, com a Carta Magna de 1215, assinada pelo rei João sem Terra e referendada pelos barões feudais da ilha. A partir das garantias elencadas por este documento, estavam lançadas as bases de um sistema de mercado, o qual, adverte Maílson da Nóbrega, é sinônimo de capitalismo. Entendamos melhor.

O mercado, pela ação humana, não é um fim em si mesmo, mas visa uma finalidade específica: crescer e se desenvolver. Isso só é possível mediante a existência de duas condições específicas. A primeira é existência de instituições que estabeleçam direitos individuais seguros e bem definidos, os quais não surgem por natureza, espontaneamente. A propriedade privada deve ser protegida por uma autoridade contra atos de terceiros e dela própria; a presença desses direitos cria os incentivos para a produção, o investimento e o engajamento em transações mutuamente vantajosas para seus participantes.

A segunda condição é a redução substancial de predadores. A ação de saqueadores, guerras de conquista e de "soberanos autocratas que tinham o poder de confiscar bens, mudar as regras no meio do jogo, desrespeitar contratos, decretar moratórias e calotes na dívida pública e esbulhar outros direitos" deveria ser cerceada por um poder central. Ou seja, na medida em que o sistema de mercado é sinônimo de capitalismo, e este é enxergado na história recente da civilização ocidental como o ápice natural das atividades do mercado, é cristalina a relação necessária entre capitalismo e Estado, a autoridade que lhe confere viabilidade.

2.2. As primeiras manifestações do Liberalismo

O capitalismo moderno não surgiu repentinamente, mas teve em sua trajetória avanços e retrocessos seculares. O historiador inglês Eric Hobsbawm apresenta o seguinte questionamento, atinente à nossa reflexão: "Por que a expansão do fim dos séculos XV e XVI não levou diretamente à Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX?". A Carta Magna foi apenas o primórdio do capitalismo como o entendemos. Em verdade, o mercado europeu que se expandia, ainda que sob a truculência do mercantilismo e da fraqueza institucional que imperava nos Estados feudais, singrou os mares na tentativa de se expandir (as grandes navegações e descobrimentos), mas, mesmo diante de tais avanços, foi incapaz de conter uma crise generalizada que se estendeu durante o século XVII.

Deste modo, o capitalismo industrial é o resultado do enfrentamento desta crise, que consistiu na decadência dos grandes mercados tradicionais (o Mediterrâneo e o Báltico), na oscilação para baixo do consumo europeu, abalado por fomes e epidemias e nas crescentes e constantes revoltas populares contra as condições miseráveis que encontravam (a exemplo das frondas francesas e das revoluções no império espanhol). O fato é que, se as grandes metrópoles estavam em crise, o mundo por elas colonizado também se encontrava.

O grande marco deste enfrentamento é a Revolução Gloriosa ocorrida na Inglaterra do reinado de Carlos I (1625-1649). Este monarca empreendeu uma larga série de medidas que o tornou impopular tanto junto às classes burguesas quanto à classe campônea. Dissoluções do Parlamento, existência de tribunais de exceção e fracasso em campanhas militares em seu próprio território levaram-no a uma situação de instabilidade extrema, a qual desaguou no conflito aberto entre a Coroa e o Parlamento. Este confronto é conhecido como a Grande Rebelião e culminou na decapitação do rei em 1649. Surge, assim, a Commonwhealth, liderada por Oliver Cromwell, chefe das tropas do Parlamento.

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Após a estabilização militar da nação, a monarquia volta ao poder, limitada, porém, pela Bill of Rights, considerada pelos historiadores como a constituição inglesa da época (1688). As reformas e garantias que o documento instituiu (limitação da tributação, condições e imperativos de solvência da dívida pública) geraram o cenário favorável para o conjunto de eventos que são denominados por Eric Hobsbawm como o mais importante desde a invenção da agricultura e das cidades: a Revolução Industrial.

É tarefa difícil encontrar um momento específico para situar a gênese de um movimento desta monta, a exemplo do que ocorre com os eventos políticos. Entretanto é possível afirmar que entre 1750 e 1780, com a invenção da máquina a vapor, o aperfeiçoamento de novas máquinas de fiar e tecer e o surgimento das ferrovias, a atividade produtiva foi expandida em nível mundial. Este é o instrumento que consolidou o capitalismo em sua vertente industrial e impulsionou a economia inglesa, tornando-a a maior potência econômica antes do final do século XIX. O modus operandi desse período caracteriza-se pelo emprego intensivo de máquinas e equipamentos, bem como pela adoção crescente de inovações tecnológicas poupadoras de mão-de-obra.

Antes de prosseguirmos, é crucial entendermos que as agitações políticas inglesas que forneceram terreno fértil para a Revolução Industrial tiveram um pano de fundo religioso, escoimado, principalmente, no protestantismo de João Calvino, trazido à Bretanha pelo rompimento do rei Henrique VII com a Igreja de Roma. A Reforma calvinista contribuiu para a difusão do individualismo, mola mestra do pensamento clássico, ao defender o trabalho como vocação e o sucesso pessoal resultante. Quando todos trabalham arduamente para obter maiores salários e maiores lucros, aumenta simultaneamente a riqueza nacional, o que gera novos empregos, maior arrecadação de impostos e o desenvolvimento econômico. A busca de maiores lucros, de fortuna pessoal, é motivada por uma espécie de egoísmo individual, mas que leva ao bem-estar coletivo.

Isto dito, é possível compreender o individualismo que se apresentará fortíssimo no liberalismo econômico que eclode na Inglaterra juntamente com a Revolução Industrial. Com a publicação da Riqueza das nações, em 1776, tendo como experiência a Revolução Industrial inglesa, Adam Smith estabeleceu as bases científicas da teoria econômica moderna. Ao contrário dos Mercantilistas, que consideravam os metais preciosos e a terra, respectivamente, como os geradores da riqueza nacional, para Smith o elemento essencial da riqueza é o trabalho produtivo. Ora, superada por uma robusta teoria está a tese do acúmulo de materiais como produtor, de per si, de fortunas, e o caminho para a crença no indivíduo como chave de progresso se encontra nítido. Entretanto, ainda é preciso definir o papel do Estado dentro do complexo liberal.


3. O sistema Liberal

É possível apresentar uma distinção do que vem a ser o liberalismo? Cabe, na apreensão de um conceito lógico, a vastidão de um movimento que englobou saberes religiosos, sociológicos, técnicos e teóricos? A densidade das digressões de Adam Smith, que criou um molde de Teoria Econômica que vem sendo atualizada até nossos dias, a historicidade das revoluções que tiveram palco na Europa Moderna, os conflitos, as descobertas, as inovações, podem eles ser contidos numa definição completa? Pensamos que não, e, felizmente, nos apoiamos em ombros de gigantes para tal posição.

Em seu Dicionário de Ciências Políticas, Norberto Bobbio apresenta a dificuldade metodológica em se definir o que vem a ser liberalismo:

[...] o Liberalismo se manifesta nos diferentes países em tempos históricos bastante diversos, conforme seu grau de desenvolvimento; daí ser difícil individuar, no plano sincrônico, o momento liberal capaz de unificar histórias diferentes. Com efeito, enquanto na Inglaterra se manifesta abertamente com a Revolução Gloriosa de 1688-1689, na maior parte dos países da Europa continental é um fenômeno do século XIX, tanto que podemos identificar a revolução russa de 1905 como a última revolução liberal. Em terceiro lugar, nem é possível falar numa "história-difusão" do Liberalismo, embora o modelo da evolução política inglesa tenha exercido uma influência determinante, superior à exercida pelas Constituições francesas da época revolucionária. Isto porque, conforme os diferentes países, que tinham diversas tradições culturais e diversas estruturas de poder, o Liberalismo defrontou-se com problemas políticos específicos, cuja solução determinou sua fisionomia e definiu seus conteúdos, que muitas vezes são apenas uma variável secundária com relação à essência do Liberalismo. Acrescente-se uma certa indefinição quanto aos referenciais históricos do termo Liberalismo: tal termo pode, conforme o caso, indicar um partido ou um movimento político, uma ideologia política ou uma metapolítica (ou uma ética), uma estrutura institucional específica ou a reflexão política por ela estimulada para promover uma ordem política melhor, justamente a ordem liberal. Num primeiro momento, é possível oferecer unicamente uma definição bastante genérica: o Liberalismo é um fenômeno histórico que se manifesta na Idade Moderna e que tem seu baricentro na Europa (ou na área atlântica), embora tenha exercido notável influência nos países que sentiram mais fortemente esta hegemonia cultural (Austrália, América Latina e, em parte, a Índia e o Japão).

Consoante já expresso na introdução, não é nosso objetivo esgotar a conceituação dos diversos termos que se encontram insertos no âmbito da Economia Política levemente descrita até o momento. De fato, à mingua de uma definição compacta que nos sirva e contemple a complexidade que guarda o sistema liberal, em suas múltiplas dimensões, conforme citado acima, para o escopo deste trabalho limitamo-nos às características que informam o liberalismo como um todo, citadas por Augusto Lanzoni em sua Introdução às Ideologias Políticas, apresentadas com a ligeira advertência de que o "liberalismo tem sua base voltada inteiramente para a ideia de liberdade. É uma filosofia global, que envolve todos os aspectos de um sistema, e não somente o econômico ou o político, como muitos pensam".

Há grande desconfiança do Estado, pois, ao contrário do que aconteceu na Inglaterra, onde a Revolução Gloriosa permeou todos os setores da Administração Pública, a sua herdeira continental, a Revolução Francesa (1789), a qual levou os ideais liberais para os demais países europeus e para o Novo Mundo, por ser protagonizada quase exclusivamente pela burguesia, sem o apoio dos poderes nobre e clerical, teve constantes episódios de traição e opressão por parte dos poderes constituídos. Esse receio, decerto, se espraiou naqueles que se inspiraram no tríplice ideal (liberdade, igualdade, fraternidade), e fundamentou a ojeriza liberal a todo e qualquer poder absoluto. Mesmo o exercício do poder é desencorajado, devendo ser a fiscalização permanente sobre aqueles que o exercem.

O indivíduo é colocado à frente da razão do Estado, acima dos interesses dos grupos, das exigências da coletividade, das organizações, associações, sindicatos. A história é feita por indivíduos, não por forças coletivas, de modo que o apego cego ao passado e às tradições é condenado.

Prega o liberalismo, quanto à estrutura do Estado, a divisão dos Poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário (a clássica crença no checks and balances system), em prol do equilíbrio dos poderes; a existência de uma constituição formal, que se encontra acima de qualquer poder; a descentralização da autoridade em níveis autônomos, cujos limites devem ser respeitados pelo poder central. E, mais importante, o papel do Estado deve ser mínimo no seio da sociedade, quer na esfera econômica quer em outros aspectos, tais como cultura, lazer, entre outros.

Quanto à economia em si, deve-se respeitar a iniciativa privada e individual, a qual evitaria a tutela estatal, fazendo a circulação de mercadorias aumentar, pela criatividade pessoal e incentivo à produção, bem como a livre concorrência, ou seja, a agremiação e captação de mercados sem a ingerência do Estado, pois a disputa entre vários comerciantes e industriais traria benefícios ao povo, que se beneficiaria com as oscilações da lei da oferta e da procura.

Desnecessário dizer, posto ser a História nosso guia, que, muito embora as aspirações liberais tenham se mostrado um bálsamo para o desenvolvimento das nações adstritas ao mercantilismo, eis que representaram um salto de progresso econômico e tecnológico, elas não foram corretamente visualizadas. A burguesia se valeu da inexistência de olhos reguladores para uma finalidade bem diversa da implementação da liberdade em agir, transformando-se em tirânica força de opressão sobre o povo. Com raras exceções, o liberalismo não se tornou sustentável, apesar de suas bases serem incontestáveis luminares da evolução humana. René Remond, apud Lanzoni (op.cit.) afirma:

Quem, então, tira maior partido, na França ou na Grã-Bretanha, do livre jogo da iniciativa política ou econômica, senão a classe social mais rica? A burguesia fez a revolução (francesa) e a revolução entregou-lhe o poder; ela pretende conservá-lo, contra a volta da aristocracia e contra a ascensão das camadas populares. A burguesia reserva para si o poder político pelo censo eleitoral. Ela controla o acesso a todos os cargos públicos e administrativos. Desse modo, a aplicação do liberalismo tende a manter a desigualdade social.

3.1. O Liberalismo no Brasil

É viável a compreensão de que o termo liberalismo, em sua substância semântica, tem um antônimo natural, o conservadorismo. O fato curiosíssimo, em que também nos apoiamos na História, é que o liberalismo pode assumir vieses conservadores, sem sair de sua linha de atuação teórica. A burguesia tem as aspirações de mais multifacetada fundamentação dentro de um grupo humano; seus interesses permitem o deslocamento de atitudes em prol da satisfação de um objetivo definido. Assim, se o liberal prega a liberdade como bem supremo do homem, de um lado, de outro ele limita a ação daqueles que não têm dinheiro; se ele se apresenta como revolucionário e progressista quanto ao rompimento com as práticas mercantilistas, ele é conservador, pouco receptivo às conquistas populares. É o liberalismo, ao mesmo tempo, liberal e conservador.

Peculiar é a situação quando se nos apresenta um governante monárquico com concepções liberais, a exemplo de Dom Pedro I, primeiro regente do Brasil enquanto Estado-Nação independente. Como sucessor de um monarca subscritor da Santa Aliança – Dom João VI – cujo objetivo era o de restaurar as monarquias absolutistas pela Europa e manter o mundo americano na condição de colônia, vem ao Brasil e mantém a forma monárquica de governo, ainda que limitado por uma constituição (ortorgada e composta por membros da elite que detinha a confiança do imperador, ao invés do parlamento, que fora dissolvido), expressão de sua vontade. Os poderes são separados, mas surge a apócrifa figura do Poder Moderador, braço do monarca nos Poderes Legislativo e Judiciário. Sobre este controle, ensina Boris Fausto, em sua História do Brasil:

O Poder Moderador provinha de uma ideia do escritor francês Benjamin Constant, cujos livros eram lidos por Dom Pedro e por muitos políticos da época. Benjamin Constant defendia a separação entre o Poder Executivo, cujas atribuições caberiam aos ministros do rei, e o poder propriamente imperial, chamado de neutro ou moderador. O rei não interviria na política e na administração do dia-a-dia e tria o papel de moderar as disputas mais sérias e gerais, interpretando "a vontade e o interesse nacional". No Brasil, o Poder Moderador não foi tão claramente separado do Executivo. Disso resultou uma concentração de atribuições nas mãos do imperador. Pelos princípios constitucionais, a pessoa do imperador foi considerada inviolável e sagrada, não sujeita a responsabilidade alguma.

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Sobre o autor
Alberto Dias de Souza

Advogado. Especializando em Direito Constitucional pela Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA (CE); Membro do Grupo de Pesquisa em Moral, Direito e Política da mesma instituição.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Alberto Dias. Do Estado Liberal ao Estado brasileiro regulador: escatologia em movimento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2628, 11 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17372. Acesso em: 24 abr. 2024.

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