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Trabalho penitenciário: um dever e um direito

Trabalho penitenciário: um dever e um direito

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O Estado segue com seu discurso de ressocialização, de reintegração que é reconhecidamente um fracasso. E assim o é porque já nasceu para fracassar. Não há interesse em ressocializar os excluídos. O sistema capitalista depende deles para sobreviver.

Introdução

Os problemas que assolam os presídios brasileiros transformaram-se em questões de primeira ordem, discutidas por juristas, políticos, estudantes, enfim, por toda a sociedade.

O problema da criminalidade não se resolve com a construção de mais e maiores presídios ou com o recrudescimento das penas. Estas não reeducam e não ressocializam ninguém. Possivelmente, a única função declarada da pena que realmente é cumprida é a retribuição que, na prática, trata-se de verdadeira vingança, não raro, muito mais cruel do que o crime praticado.

De fato, a experiência tem mostrado que construir novos presídios e endurecer as penas não resolve o problema cada vez mais crescente da criminalidade. Quais mudanças positivas ocorreram após a promulgação da lei 8.072 de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos? Constatou-se, na prática, que hediondo mesmo era a referida lei.

As causas da criminalidade não estão no delinquente. Não ajuda em nada manter pessoas presas e depois colocá-las em liberdade nas mesmas condições miseráveis que as levaram à prisão. O que essas pessoas precisam é de políticas públicas que lhes assegurem uma vida digna, com acesso à educação, trabalho, moradia, assistência médica e lazer. A desigualdade e a injustiça social são as principais causas da criminalidade. Isso não é novidade e, tampouco, algo impossível de resolver. O que falta é vontade política, pois o Estado se utiliza de todos os meios de controle social para manter a ordem social injusta, protegendo somente os bens jurídicos dos proprietários. A massa de miseráveis que não produz e para quem não vale a pena produzir, é totalmente excluída, discriminada e perseguida.

Por isso, antes de tratar o tema do trabalho penitenciário, é preciso que se esclareça que a prisão não é, não foi e jamais será instrumento capaz de cumprir os objetivos declarados pelo Estado. Na realidade ela reproduz o modelo mais miserável da vida em sociedade, com violências ainda mais terríveis, humilhações e toda sorte de violações dos direitos da pessoa humana, isso tudo com o único objetivo de intimidar e manter submissa a massa de excluídos para quando esta for posta em liberdade continuar servindo ao sistema capitalista vigente.

A prisão deve ser reservada somente aos crimes cometidos com grave violência à pessoa. Nestes casos, a prisão ainda é uma alternativa necessária. Para todos os demais crimes, a prisão, por sua realidade, torna-se sempre uma pena muito mais cruel do que o crime praticado. No entanto, enquanto algumas condutas já selecionadas pelo direito penal não forem descriminalizadas e novas alternativas à pena privativa de liberdade não forem criadas, é necessário que se busque melhores condições para a população carcerária. É com este enfoque que o trabalho prisional será tratado neste trabalho.


1. Origem do Trabalho Prisional

Inicialmente a pena objetivava apenas a vingança e era imposta de maneira cruel, desumana.

A pena como forma de repressão passou por diferentes etapas. Primeiro, a pena revestiu-se de caráter vingativo individual, caso em que o homem investia-se contra outro para se defender ou vingar-se, obedecendo unicamente a seu instinto. A pena era, então, irracional e bárbara.

A proporcionalidade entre a pena e ação delituosa projetou-se pela pena de talião, pela qual era imposto ao ofensor o mesmo mal que este causara ao ofendido.

No final do século XVIII, juristas e filósofos protestaram pela moderação da pena. Surge, então, a prisão inicialmente como forma preventiva e depois como meio de repressão, porém, ainda não era considerada meio autônomo de punição, de modo que as pessoas além de serem aprisionadas, eram submetidas também a outros castigos, tais como, ficarem sem alimentos, acorrentadas, obrigadas a realizar trabalhos forçados.

As primeiras experiências da prisão como meio autônomo de pena foram registrados na Europa.

Surgiram alguns movimentos com o escopo de humanizar o modelo prisional existente na época. O inglês John Howard destacou-se em defesa da humanização da pena de prisão, protestando pelo fim do pagamento de carceragem, idéia que foi acolhida pelo Parlamento, sendo abolida, então, tal obrigatoriedade. O sistema proposto por John Howard incluía isolamento, silêncio, meditação e trabalho.

O inglês Geremias Benthan criou o sistema panótico, modelo prisional pelo qual o preso era vigiado por tempo integral. Esse sistema previa a ausência de castigos corporais e, para evitar a ociosidade, previa o trabalho prisional.

O sistema prisional que teve como precursor o Coronel Manoel Montesinos y Molina, era um sistema espanhol que enfatizava o sentido regenerador da pena. Criou uma forma de trabalho remunerado, para que o preso não fosse explorado e suprimiu os castigos corporais. "Sua funcionalidade era comparada a de um estabelecimento de segurança mínima, onde, surpreendentemente, eram baixos os números de evasão." [1]

Observando a evolução da pena, verifica-se que desde os primórdios da civilização, o homem que delinqüisse era submetidos às mais variadas formas de castigo e é neste contexto que o trabalho prisional surge. "O trabalho no regime penitenciário tem em sua origem função estritamente punitiva." [2]

A palavra trabalho tem sua origem no latim vulgar "tripalium" que significa pau de três pontas, que era um instrumento utilizado para torturar escravos, forçando-os a trabalhar e para punir os derrotados na guerra.

No Gênesis, o primeiro livro do Pentateuco, o trabalho é imposto a Adão como forma de punição por ter comido do fruto proibido "(...) maldita seja a terra por sua causa. E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, em todos os dias da tua vida." [ 3]

Essa concepção do trabalho mudou muito e atualmente chega-se ao extremo de se considerar o trabalho como a atividade mais digna do homem.

Atualmente é o trabalho e não o ócio, privilégio nestes tempos de desemprego. As prisões cuidam de reproduzir a realidade mais aniquilante da sociedade e no tocante ao trabalho não é diferente. O que se verifica é que nas prisões também o trabalho é privilégio de poucos.

O trabalho é concebido como enobrecedor. O homem que trabalha sente-se honrado, útil, enquanto aquele que não trabalha sente-se humilhado.

A espécie humana, de geração em geração, mantém-se viva pelo trabalho, sob a forma de cooperação ou trabalho coletivo, determinando entre os indivíduos participantes, relações sociais que são de ordem econômica, pela produção, distribuição e troca de produtos; de ordem ética, por normas religiosas morais e jurídicas e que regulam a vida de cada um em meio à corporação, classe ou sociedade.[4]

O trabalho prisional precisa qualificar os presos para o mercado de trabalho e deve cumprir com a determinação legal de assemelhar-se com o trabalho livre. Salvo raríssimas exceções, quando há trabalho nas prisões, este pouco ou em nada se assemelha ao trabalho livre. A realidade prisional está muito distante daquela pretendida pela lei. Falta trabalho nos presídios.

O salário mínimo em nosso país, considerado aquém das necessidades do trabalhador e de sua família, é bem maior que a remuneração do trabalhador preso. É inaceitável que uma pessoa, livre ou não, receba somente três quartos do salário mínimo vigente por seu trabalho.

A remuneração da mão-de-obra da pessoa aprisionada precisa ser repensada com responsabilidade, posto que sem poder ajudar a sua família, esta fica ainda mais vulnerável. O preocupante é que mesmo recebendo tão pouco as oportunidades de trabalho são raras.

Ao falar sobre o trabalho oferecido pela Casa de Detenção José Ricardo Ramalho diz que "oferecia poucas oportunidades de trabalho para os presos. Nesse sentido, a oportunidade de exercer alguma atividade na cadeia adquiria em determinados contextos o caráter de uma regalia, além de significar uma forma de diferenciação entre os presos." [ 5]

As prisões brasileiras nos remetem a tempos remotos. Superlotação, violências inimagináveis e trabalho, quando existente, realizado em condições precárias e em regime de escravidão.


2. Trabalho e educação

A população carcerária é composta, na sua maioria, pela massa dos excluídos. Sobre o perfil das pessoas que povoam os estabelecimentos penais de São Paulo, Vinícius Caldeira Brant diz que:

(...) o perfil populacional encontrado difere muito dos preconceitos correntes. Os presos são, em sua maioria, jovens, paulistas ou tendo migrado em tenra idade para o Estado de São Paulo, com um grau de instrução em geral quanto à cor (o que parece decorrer da preferência punitiva contra os não brancos), devendo-se entretanto ressaltar que a classificação dos fenótipos em qualquer pesquisa está sujeita a influências subjetivas de difícil controle. Diferem também quanto à definição religiosa declarada, sendo porém difícil extrair de tal informação alguma conclusão taxativa. Diferem ainda quanto à nupcialidade e à fecundidade, tendendo a casamentos precoces e a baixos índices de procriação.[6]

A cor, idade, local de nascimento, nível de escolaridade, têm relação com o ingresso no mercado de trabalho e com as oportunidades ocupacionais. Estes dados são relevantes na medida em que são indicativos do perfil das pessoas selecionadas e excluídas pelo sistema.

O melhor caminho para evitar a criminalidade é a realização de justiça social, com justa distribuição de riquezas e oportunidades iguais para todos, cuidando para que o ensino no Brasil não seja só uma fachada. É preciso evitar a evasão escolar. A escola precisa ter atrativos, precisa despertar o interesse das crianças. O Brasil tem estado inerte no tocante à resolução do problema educacional. Os professores recebem salários indignos e são constantemente humilhados, desrespeitados. É preciso que se criem escolas com infraestrutura adequada, com professores capacitados e bem remunerados para ensinar as crianças e os jovens.

As ruas estão cada vez mais cheias de menores. Essas crianças crescem na marginalidade, graduam-se na criminalidade e chegará o dia em que serão levadas à prisão, onde serão tratadas de maneira desumana, cruel. Todos os dias, jovens recém-saídos da adolescência, frutos da omissão do Estado, são empurrados para a criminalidade.

Que se arranque a máscara da hipocrisia! A prisão não recupera ninguém. Ela aniquila pessoas. É o maior instrumento de opressão utilizado contra os oprimidos. Nela impera o ócio. As pessoas que lá estão não desenvolvem nenhuma atividade profissionalizante. Não são preparadas para se reintegrarem à sociedade, mas sim para continuarem oprimidas e à margem da sociedade.

As pessoas que passam pela terrível experiência do aprisionamento ficam marcadas. Enfrentam a discriminação e o preconceito. A vida, que antes já não era fácil, fica ainda mais difícil. Não raro, a sociedade volta-lhes as costas. A condição de excluído se agrava e a chance de retorno à prisão aumenta.

O trabalho prisional deve ser implantado de maneira adequada e deve também ser desenvolvido em um ambiente seguro e higiênico. No cotidiano da prisão, o tédio causa no indivíduo um sentimento de desolação muito grande. A ociosidade aumenta a angústia dos que estão presos. Esta constatação se verifica pelas declarações dos próprios encarcerados e pelos motins que ocorrem com freqüência nos presídios brasileiros. No entanto, não basta apenas ter as mãos ocupadas nos afazeres de uma atividade qualquer, é preciso que a cabeça também esteja ocupada.

Muitos aspectos devem ser analisados na implantação do trabalho penitenciário. Quando se afirma que o trabalho prisional deve assemelhar-se ao trabalho executado fora das prisões, não se quer dizer que as diferenças marcantes que distanciam os trabalhadores livres dos aprisionados devam ser esquecidas. É através do reconhecimento dessas diferenças que será possível a adequação do trabalho oferecido, às suas aptidões e capacidade, almejando através do ensino técnico, prepará-los para o mercado de trabalho.

A defesa do trabalho-ressocializador precisa levar em conta antes o impacto negativo da reclusão sobre os indivíduos, ou seja, é preciso diferenciar trabalho livre do trabalho do preso para perceber que não há como avaliá-los com o que há de comum entre eles, isto é, o trabalho. A cadeia, quando não aumenta a revolta, só consegue instalar uma lógica quantitativa de perdas e danos que não se sustentará diante da perspectiva de um delito melhor elaborado, que acene com a viabilidade da impunidade, dado que, via de regra, as condições externas permanecerão tanto ou mais adversas quanto no passado. Daí que a prisão, além de instrumentalizar para o crime (o preso entra em contato com as tecnicidades de ponta do crime), acaba ensinando que é preciso crimes cada vez mais qualificados para garantir a liberdade. Ou seja, o raciocínio que valida a prisão pelo medo que ela vem produzir no indivíduo dá seus passos em direção à antítese da verdadeira noção de recuperação.[7]

As diferenças entre o trabalho prisional e o trabalho livre são marcantes e inquestionáveis. O trabalhador livre supostamente tem mais oportunidades de se preparar para acompanhar as mudanças e exigências do mercado de trabalho, enquanto o trabalhador preso depende exclusivamente do Estado para enfrentar futuramente este mesmo mercado. Educação e cursos voltados para este fim são fundamentais.


3. Trabalho penitenciário: um dever e um direito.

A ONU ao dispor sobre o trabalho penitenciário diz que este não pode ter caráter aflitivo.

O artigo 28 da lei de execução penal assinala que o trabalho penitenciário é um dever.

Artigo 28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva.

§1º - Aplicam-se à organização e aos métodos de trabalho as precauções relativas à segurança e higiene.

§2º - O trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho.

O trabalho influi de maneira positiva na saúde física e psíquica da pessoa que se encontra privada da liberdade, por isso ter oportunidade de trabalhar é um direito que não pode ser negado.

O artigo 41 da lei 7.210 de 1984 assegura ao preso o direito ao trabalho remunerado, não podendo ser este inferior a três quartos do salário mínimo (artigo 29 da LEP). No entanto, muitas vezes esse trabalho é sequer remunerado.

Além da pífia remuneração atribuída ao trabalho penitenciário, outra característica questionável do mesmo é a sua obrigatoriedade. Conforme o disposto no artigo 50 da Lei de Execução Penal – LEP, constitui falta grave o seu descumprimento.

O cometimento de falta grave é punido com suspensão ou restrição de direitos. Isso implica dizer que se o condenado não executar o trabalho imposto, pode sofrer as sanções previstas no artigo 53 da referida lei.

O artigo 31 da LEP diz que o condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade. Aptidão significa disposição nata, habilidade ou capacidade resultante de conhecimentos adquiridos. Estaria, então, sujeito a sanções disciplinares o preso que se recusar a realizar trabalho para o qual ele não se considere apto? Diante do mencionado artigo, são cabíveis as seguintes interpretações: a aptidão da pessoa condenada é auferida após a sua submissão a cursos técnicos preparatórios para o trabalho a ele destinado ou pela própria declaração deste, que pode se considerar apto por ter tido uma experiência anterior relativa ao trabalho a ele imposto, ou, ainda, pela disposição nata.

O Estado tem o dever de oferecer trabalho à pessoa presa, e não é qualquer trabalho. É necessário que seja um trabalho que efetivamente a capacite para ingressar no mercado de trabalho. Acrescente-se que as condições em que o trabalho é exercido precisam observar regras de segurança e higiene, com remuneração justa, do contrário o trabalho por ser aflitivo, assume o caráter de pena.

Em matéria penal, as normas exigem condutas incompatíveis com a realidade brasileira. Embora seja escancarado o problema de desemprego no Brasil, o nosso ordenamento jurídico considera contravenção a mendicância e a vadiagem. O trabalho, como se sabe, é requisito legal para a obtenção de alguns benefícios concedidos ao preso, como, por exemplo, o livramento condicional e a remição. É como se o legislador ignorasse o que ocorre dentro e fora das prisões.

A falta de trabalho ou o seu exercício sem a observância das normas gerais de saúde e segurança viola a dignidade humana. É descaso aos direitos e garantias conferidos a todos pela Constituição Federal que postula em seu artigo 5º, inciso XLVII, c, ser proibido a pena de trabalhos forçados.

O fundamento utilizado para não remunerar com salário mínimo o trabalho do encarcerado não é legítimo. Embora o trabalhador preso não seja regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas, isso não justifica a exploração de sua mão-de-obra sem justa remuneração. O homem livre que trabalha em situação de periculosidade ou insalubridade recebe adicional por isso, no entanto o homem aprisionado trabalha de forma totalmente precária e não tem direito sequer a um salário mínimo.

O artigo 29, § 1° da LEP, enumera em suas alíneas as destinações da remuneração do preso e são tantas que ele poderia gentilmente ensinar para milhões de brasileiros qual é o segredo de se fazer tanto com tão pouco.

O impacto da perda da liberdade para uma pessoa é tão grande que reflete em sua família. A realidade tem mostrado que quando um homem é preso, sua família fica em total desamparo, fator que leva muitas vezes filhos se encontrarem com pais na prisão.


4. Trabalho prisional e o instituto da remição

A Lei de Execução Penal, com as alterações provocadas pela lei 12.433 de 29 de junho de 2011, prevê em seu artigo 126 a remição de parte da pena através do trabalho e do estudo somente para condenados submetidos ao regime fechado ou semiaberto. "O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena." [8]

O referido instituto destina-se somente aos condenados a cumprir pena em regime fechado ou semiaberto. Discute-se sobre a possibilidade de presos provisórios terem ou não direito à remição. Como se sabe, a prisão provisória compreende a prisão em flagrante; a prisão preventiva; a decorrente de pronúncia; a decorrente de sentença condenatória recorrível e a prisão temporária. Em todos estes casos não há sentença condenatória com trânsito em julgado. O artigo 126 da LEP refere-se ao condenado. Uma interpretação restritiva do supracitado artigo levaria à compreensão de que os presos provisórios não têm direito à remição.

Embora o trabalho não seja obrigatório para os presos provisórios, estes também deveriam ter a oportunidade de trabalhar se assim o quisessem, pois infelizmente com a demora no julgamento dos processos muitas pessoas sem assistência de advogados ficam presas por muito tempo provisoriamente.

A remição da pena pelo trabalho à razão de um dia de pena a cada três dias de trabalho é mais uma boa razão para a existência deste para todos os presos, pois é injusto que somente alguns possam ter a oportunidade de, pelo trabalho, remir parte de sua pena.

Todo trabalho prisional deve ser passível de remição. Embora o artigo 32, § 1º da LEP diga que o trabalho prisional deve ser útil, limitando a atividade artesanal às regiões turísticas, o artigo 126 da mesma lei, é abrangente quando utiliza a palavra trabalho.

Não distingue a lei quanto à natureza do trabalho desenvolvido pelo condenado. Assim, a remição é obtida pelo trabalho interno ou externo, manual ou intelectual, agrícola ou industrial, não se excluindo o artesanal, desde que autorizado pela administração do estabelecimento penal.[9]

Diante dos problemas que assolam as prisões brasileiras, tais discussões não passam de meras idiossincrasias, que nada resolvem. É inaceitável a rejeição do trabalho artesanal, quando há graves problemas como a precariedade do trabalho prisional, sua escassa existência e a superlotação carcerária.

O trabalho artesanal foi relegado a um plano inferior pelo Estado que só reconhece sua importância em regiões turísticas. A visão que o Estado tem do trabalho artesanal é tacanha, pois este em termos de valor pecuniário pode estar em desvantagem em relação a outros trabalhos, mas é talvez o que mais propicia o autoconhecimento. Além disso, ao sobrepujar o trabalho artesanal as aptidões naturais são desrespeitadas.

É dever do Estado atribuir trabalho a todos os presos e, se assim não o faz, a estes deve ser assegurado o direito à remição da mesma forma.

Há assim, uma relação de direitos e deveres entre o Estado e o condenado, em virtude da qual a Administração está obrigada a possibilitar o trabalho ao preso e a este compete desempenhar atividade laborativa. Afirma-se, por isso, que, não se desincumbindo o Estado do seu dever de atribuir trabalho ao condenado, poderá este beneficiar-se com a remição mesmo sem o desempenho da atividade. Não cabendo ao sentenciado a responsabilidade por estar ocioso, não pode ser privado do benefício por falha da administração.[10]

A remição e a remuneração são decorrentes do trabalho prisional e não é justo que por desídia do Estado o preso deixe de se beneficiar com o referido instituto, tampouco é justo que o mesmo deixe de receber pelo trabalho que não realizou porque não lhe foi atribuído.


5. Remuneração

Toda pessoa presa que trabalha deve ser remunerada. É o que preconiza o artigo 29 da LEP. A remuneração do preso, ainda que absurdamente baixa, não é cumprida.

Resta do preceito legal apenas o intuito de animar o condenado a procurar desenvolver a atividade laborativa prisional e reconhecer que, apesar dos pesares, a remuneração não é tão elevada diante da realidade salarial de nosso país. Mesmo assim a lei não é cumprida.[11]

Como se verifica, mesmo sendo tão pouco o estipulado pelo legislador, haja vista o que dispõe o artigo 29 da LEP, ainda assim não se cumpre a lei. A remuneração do trabalho penitenciário deve ter em consideração não só as necessidades do preso, mas também as necessidades da família deste.

Existe um direito ao trabalho que se projeta, inclusive, sobre a família do preso, cujo sustento dele depende. O trabalho é condição de dignidade pessoal. Tem que ser remunerado como trabalho livre, com direito à previdência social e a seguro contra acidente, como garantias efetivas. É justo e conveniente que uma parte do pagamento se destine ao ressarcimento da vítima. O sistema de pecúlio, feito com o desconto de uma parte da remuneração é inteiramente arbitrário, sobretudo quando opera sobre os valores do pagamento atualmente adotados.[12]

Como já foi dito, não é justo que qualquer pessoa que trabalhe receba menos que um salário mínimo. O trabalho prisional não pode continuar sendo visto como tratamento, laborterapia, uma vez que este produz riquezas. Quem trabalha, encarcerado ou não, deve pelo menos receber um salário mínimo. Não é lícito que indivíduos que trabalham em condições que por si só encerram tantas desvantagens, ainda sofram com mais esse absurdo: receber tão pouco ou até mesmo não receber nada.

O trabalho só é condição de dignidade pessoal quando ele faz com que a pessoa que o executa se sinta útil. O homem sente-se orgulhoso do seu trabalho quando é reconhecido por este, quando é valorizado, e isso se dá através da justa remuneração, de condições dignas para a realização das tarefas cabíveis a cada um.

Não é raro presos que afirmam que só trabalham para remir a pena, pois a remuneração não compensa.

Para o homem é importante conseguir manter ou pelo menos ajudar no sustento de sua família. Estar preso e saber que seus filhos estão passando fome, que suas filhas estão se prostituindo para sobreviver é degradante, desesperador. Diante da realidade dos presídios brasileiros, percebe-se que todo discurso sobre recapacitação e reinserção do preso na sociedade não passa de hipocrisia. Não se pode humilhar, despersonalizar um ser humano e depois esperar que ele se comporte como um homem comum, livre de traumas e rancores.


6. Trabalho prisional em regime fechado

Nosso ordenamento jurídico estabelece três espécies de regimes: regime fechado, semiaberto e aberto.

A progressão para o regime aberto só é possível se o condenado estiver trabalhando ou comprovar que poderá trabalhar imediatamente.

Os condenados submetidos ao regime semiaberto cumprem pena em colônia agrícola, industrial ou similar. No entanto há cidades no Brasil que não possuem locais adequados para o cumprimento da pena em regime semi-aberto, o que representa um grave problema.

O regime fechado é o que mais inviabiliza o desenvolvimento do trabalho penitenciário. "as próprias peculiaridades de cada tipo de estabelecimento penal já indicam o favorecimento ou não de determinados tipos de trabalho."[13]

Os presídios são em geral insalubres, superlotados, fétidos. Não é favorável ao desenvolvimento do ensino ou do trabalho. Com o problema das superlotações há sempre o risco dos instrumentos serem usados como armas, caso ocorram as famigeradas rebeliões. Enfim, são muitos os obstáculos ao trabalho prisional nesse tipo de regime.

Diante disso, fica claro a urgência em se resolver o problema da superlotação que, como já foi dito, não será solucionado com a construção de mais presídios, pois o que deve ser combatido é o motivo que determina o aumento da criminalidade, da reincidência, ou seja, a injustiça social. Nesse panorama desalentador temos a progressão de regimes que possibilita ao condenado que cumpriu os requisitos objetivos e subjetivos, passar para outro regime mais brando onde há ou deveria haver mais oportunidades de trabalho.

O trabalho prisional extramuros ou intramuros deve ser realizado nas mesmas condições em que é realizado o trabalho livre.

O trabalho penitenciário, principalmente pela semelhança que deve manter com o trabalho livre, submete os presos e os internados aos mesmos riscos deste, de modo que, havendo os mesmos perigos para os trabalhadores presos e livres, devem existir também as mesmas proteções. É necessário, assim, estabelecer para o trabalho do preso as mesmas exigências do ponto de vista de higiene que existem no trabalho livre (asseio, imunização, aeração etc) e as prescrições preventivas de segurança (dispositivos de segurança).[14]

A Constituição brasileira assegura a todos, homens e mulheres, independente de estarem livres ou não, direitos e garantias. Segurança à integridade física e moral é exemplo de algumas dessas garantias.

O artigo 5º, inciso XLIX da Constituição Federal diz: "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral."

O direito à saúde, segurança, dignidade, não se extingue com a sentença, ao cumpri-la o condenado está rodeado de garantias constitucionais que se consolidam com o caráter jurisdicional da execução penal. Nesse contexto conferir ao trabalhador preso direitos que são conferidos ao trabalhador livre, como segurança, higiene, remuneração não inferior a um salário mínimo vigente no país é um dever legal e o seu não cumprimento é ofensa à Constituição.


7. Conclusão

O trabalho prisional se insere no sistema punitivo como elemento destinado a cumprir com os objetivos declarados pelo discurso oficial do Estado, apresentado por este como importante instrumento capaz de ajudar na ressocialização do preso. Cabe agora, com embasamento nas considerações já feitas, concluir o presente trabalho fazendo as seguintes ponderações: Fatores sociais como a má distribuição de riquezas, o desemprego e a educação deficiente são determinantes para o crescimento da criminalidade. A miséria causa desajuste familiar e empurra várias pessoas para a criminalidade.

É a injustiça social a principal responsável por aumentar a criminalidade. Quando uma pessoa comete um crime, o fato de ter sido vítima da injustiça social não impede que ela vá para a prisão. Se um indivíduo furtou, ainda que tenha sido para matar a sua fome, isso não importa, é bandido, é ladrão. Assim, as vítimas do sistema capitalista seguem pela vida, marcadas, rotuladas, perseguidas e discriminadas. O mesmo, no entanto, não ocorre com o político corrupto, com o empresário que sonega impostos. Estes passam incólumes e nada que eles façam, por mais terrível que seja, parece ser capaz de denegrir as suas "ilustradas" figuras.

Percebe-se que o Estado, guardião dos bens jurídicos, não protege todo e qualquer bem jurídico. Ele não protege a vida dos homens e mulheres que praticam crimes, muitos são executados pelo Estado sem sequer serem julgados. Não protege a infância e a adolescência de meninos e meninas, do contrário eles não estariam morando nas ruas, excluídos de tudo. Em nome da defesa da ordem pública, a massa de miseráveis é atirada na prisão para que não avance sobre o patrimônio alheio. A sociedade brasileira é desigual e injusta, logo o Estado protege uma sociedade desigual e injusta. E é em nome da manutenção dessa ordem injusta que o Estado lança os excluídos na prisão e tudo que lá se passa é com o único objetivo de manter essas pessoas submissas ao sistema opressor.

Contudo, o Estado segue com seu discurso de ressocialização, de reintegração que é reconhecidamente um fracasso. E assim o é porque já nasceu para fracassar. Não há interesse em ressocializar os excluídos. O sistema capitalista depende deles para sobreviver. Apesar dessa constatação, é necessário que se dê uma resposta concreta, urgente para as pessoas que estão presas. É com inteira consciência dessa realidade que se exige que, enquanto novas alternativas não forem criadas para tirar esses miseráveis da prisão, sejam cumpridas as promessas feitas pelo Estado aos condenados que se encontram no cárcere. É nesse contexto que se protesta por trabalho digno e em condições seguras, por remuneração justa e por educação para os oprimidos que se encontram privados de suas liberdades.

Num país com alto índice de desemprego, como é o caso do Brasil, onde pessoas bem qualificadas sofrem pela falta de trabalho, não é difícil imaginar o que ocorrerá com uma pessoa que é posta em liberdade depois de passar anos na prisão. Além de toda a discriminação sofrida, contará, ainda, com a falta de preparo para enfrentar o mercado de trabalho. A reincidência nestes casos é certa, pois, quando o indivíduo é posto em liberdade ele volta para o mesmo meio em que vivia antes de ter sido preso, para as mesmas condições. A impossibilidade de se sustentar honestamente acaba com seus propósitos de não praticar crimes para sobreviver, por mais firmes que sejam.

A prisão é naturalmente uma violência contra o ser humano que nasceu para ser livre. A prisão que não oferece segurança, trabalho e educação é tortura. Trabalho que não se presta a capacitar para um mercado competitivo e que não remunera com justiça é trabalho forçado.

O trabalho prisional representa muito para o indivíduo que está preso. Representa a oportunidade única que este tem de ver sua pena reduzida. Se o Estado não oferece oportunidade de trabalho, o correto é que a remição seja possível da mesma forma. Por outro lado, trabalhar para não receber ou receber uma remuneração simbólica é desestimulante e injusto.

Todos têm direito a uma vida com dignidade. Trabalho, educação, lazer e saúde são direitos que devem ser assegurados a todos e não somente às classes hegemônicas.


8. Bibliografia

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1998.

______. Lei n. 7.210 de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasil. Brasília, DF: Senado, 1984.

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6. Notas

  1. OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 2. ed. Santa Catarina: Editora da UFSC, 1996, p. 52.
  2. MARCHETTI, Maria Ricarda. O tratamento penitenciário: o trabalho em função reeducativa. Revista da Faculdade de Valença. Rio de Janeiro: 1998, p. 61.
  3. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução pelos Missionários Capuchinhos. Lisboa, 1971-72. 1249 p. Gênesis, 3:17.
  4. FERRARI, Irany et al. História do trabalho do direito do trabalho e da justiça do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2002, pp. 23-24.
  5. RAMALHO, José Ricardo. O mundo do crime: a ordem pelo avesso. 3. ed. São Paulo: IBCCRIM, 2002, p. 120.
  6. BRANT, Vinícius Caldeira. O trabalho encarcerado. Rio de Janeiro: Forense, 1994, pp. 44-45.
  7. HASSEN, Maria de Nazareth Agra. O trabalho e os dias: ensaio antropológico sobre o trabalho, crime e prisão. Porto Alegre: Tomo Editorial, 1999, p. 179.
  8. BRASIL. Lei n. 7.210 de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasil. Brasília, DF: Senado, 1984
  9. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: comentários à lei n. 7.210, de 11-07-84, 2. Ed. São Paulo: ATLAS, 1998, p. 321.
  10. Op. cit., pp. 323-324.
  11. Op. cit., p. 91.
  12. FRAGOSO, Heleno et al. Direitos dos presos. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 33.
  13. CHIES, Luiz Antônio Bogo. Revista de estudos criminais, 7-2002 – Doutrina, p. 73.
  14. Op. cit., p. 89.

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ARAÚJO, Neli Trindade da Silva de. Trabalho penitenciário: um dever e um direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3073, 30 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20537. Acesso em: 23 maio 2024.