Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/21201
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O guardião da Constituição segundo as concepções de Carl Schmitt e Hans Kelsen

O guardião da Constituição segundo as concepções de Carl Schmitt e Hans Kelsen

Publicado em . Elaborado em .

Kelsen criticava a tentativa de Schmitt de atribuir a guarda da Constituição, em uma república democrática, ao Chefe de Estado, sob a denominação de poder neutro, por entender que essa concepção acabaria por transformar o Presidente do Reich em senhor soberano do Estado.

INTRODUÇÃO

O estudo que se segue procura desenvolver uma reflexão teórica acerca de um tema repleto de complexidades e sutilezas. Seu maior propósito é contribuir para a racionalização do Direito Constitucional, a partir da concepção do Estado Constitucional e de quem seria o guardião da Constituição de acordo com Carl Schmitt e Hans Kelsen.

O guardião da Constituição, de Carl Schmitt, representa uma reafirmação da tese do poder neutral de Benjamin Constant, com base na interpretação do artigo 48 da Constituição de Weimar que, segundo ele, daria ao presidente do Reich poderes excepcionais destinados à guarda da Constituição, conferindo-lhe um poder neutral, ou seja, mediador, regulador e tutelar.

Por outro lado, Hans Kelsen reconhecia como guardião da Constituição o Tribunal Constitucional. Segundo o autor, ao adotar a doutrina do poder neutro do chefe de Estado, Schmitt teria como arcabouço legitimador uma interpretação equivocada da Carta Alemã de 1919. Ao valer-se do preâmbulo constitucional e do artigo 48 para abalizar o Presidente do Reich como guardião da Constituição, Schmitt teria ignorado o disposto no artigo 19, em que estaria fixada a competência do Tribunal Federal para ser o protetor constitucional.

Hans Kelsen salientava que a intenção de Schmitt não era caracterizar o chefe de Estado como um “terceiro mais alto” ou um “senhor soberano do Estado”, um poder “que não está acima, mas sim ao lado dos outros poderes constitucionais”. Interpretando o artigo 48 da Constituição de Weimar, Schmitt ampliaria a competência do Presidente do Reich, “de maneira tal que este não escapa de tornar-se senhor soberano do Estado”.[1]

Discursando acerca da aversão de Carl Schmitt a um Tribunal Constitucional com poder de cassação, que para o jurista alemão caracterizaria um Estado Judicialista, Kelsen alegava que o controle de constitucionalidade difuso diferenciar-se-ia apenas no plano quantitativo, pois anularia a lei inconstitucional no caso concreto, enquanto o controle concentrado dos Tribunais Constitucionais anularia para todos os casos.


1. O guardião da Constituição segundo a concepção de Carl Schmitt

Carl Schmitt nasceu na Alemanha, em 1888. Torna-se doutor em direito já em 1910, momento a partir do qual começa a desenvolver sua crítica veemente ao liberalismo e ao sistema democrático parlamentar alemão, chegando a ser um dos maiores teóricos da ditadura, do regime de exceção e mesmo a integrar os quadros do partido nazista entre 1933 e 1936. Ao contrário da maioria dos intelectuais que aderem ao nazismo, Carl Schmitt não será um político descompromissado com o regime, mas sim reconhecido como um dos mais eminentes teóricos do direito de sua geração.[2]

A Constituição seria a situação total da unidade política. Expressaria seu ser, sua forma e espécie. Compreenderia princípios de unidade e uma instância decisória para resolver conflitos de interesses ou poderes em escala extrema. Ela também seria um sistema fechado de normas. Apresentaria conceitos absolutos que ofereceriam um todo (real ou ideal). Não representaria um fato ou uma dinâmica, mas uma forma absoluta de dever ser. Não seria tampouco um conjunto de várias leis, mas uma normatividade total que dá unidade ao Estado. Todas as demais normas a ela se refeririam. Assim haveria, mesmo que de forma diversa, uma identidade entre Estado e Constituição. O Estado seria um dever ser, um sistema de normas que não teria existência no ser, mas no dever ser.

É necessário portanto, para entender a primeira concepção, distinguir Constituição de leis constitucionais. Estas teriam sua validade na Constituição e a Constituição na decisão da unidade política. A unidade política seria racionalizada pela sua própria existência e não na conveniência ou justiça das normas. Schmitt criticava, então, Kelsen e a Teoria Pura que equiparavam a Constituição à lei constitucional. Considerava sua teoria liberal, pois sendo todos os atos do Estado normas, não havendo atos de governo, todos seriam passíveis de revisão por parte do judiciário. Para Schmitt o Estado seria anterior à Constituição, enquanto para Kelsen seriam simultâneos. Ou seja, a Constituição não seria substância da unidade, mas mera forma, definida a posteriori dela.[3]

Quanto aos direitos fundamentais, Schmitt entendia que estariam fora da Constituição, pois que ela, nesse aspecto, seria mera decisão fundamental sobre a forma de existência do povo. Eles seriam freios do poder público no Estado Liberal, enquanto a Constituição visaria preservar a ordem pública determinando a forma do Estado. A Constituição seria superior aos direitos, pois eles não seriam aptos a construir a unidade política do Estado, ao contrário, enfraqueceriam a unidade, contrapondo a ela o interesse da liberdade individual apolítica. Se uma Constituição liberal entendesse tais direitos como essenciais, estes passariam a integrar a própria substância.[4]

O autor criticava igualmente a criação ou o reconhecimento de um Tribunal Constitucional, que, a seu ver, transferiria poderes de legislação para o Judiciário, politizando-o e desajustando o equilíbrio do sistema constitucional do Estado de Direito.[5]

Em síntese, a doutrina schmittiana da defesa da Constituição é uma reafirmação da tese do poder neutral de Benjamin Constant, com base na interpretação do artigo 48 da Constituição de Weimar que, a seu ver, conferia ao presidente do Reich poderes excepcionais na guarda da Constituição, conferindo-lhe um poder neutral, ou seja, mediador, regulador e tutelar. A tese de Benjamin Constant é chamada de poder neutro ou preservador, que é exercido pelo soberano por meio de uma alienação radical da soberania popular.

A esse poder neutral, Carl Schmitt atribuía também a guarda da Constituição. A tese schmittiana é expressão da crise institucional do seu tempo. Sua preocupação estava centrada nas ameaças à homogeneidade e unidade do povo alemão por parte dos poderes indiretos, ou seja da atuação prática política contra a unidade por parte de partidos políticos, associações profissionais e religiosas. Em última análise, há uma coerência em sua preocupação, tendo em vista que todos aqueles que ameaçam a unidade e a homogeneidade, que em última instância se expressa na própria existência do Estado, devem ser identificados como inimigos políticos. Mas a quem cabe a identificação do amigo e inimigo? Ao titular da soberania, que na interpretação de Schmitt é o Presidente do Reich. Assim, o Chefe de Estado seria um idôneo defensor da Constituição, um poder neutro, uma instância que estaria acima dos titulares dos direitos políticos de caráter decisivo ou influente, um poder político supremo, um terceiro acima de todos os litigantes.[6]

A criação da Carta de Weimar se deu após a Primeira Guerra Mundial, da qual a Alemanha saiu derrotada e devedora dos países vencedores; a Constituição era o símbolo, a diretriz e, principalmente, a esperança de um país destroçado que precisava se reerguer em meio a uma sociedade fragmentada por grupos com interesses diversos que exigiam direitos sociais e desenvolvimento sustentável. O contexto histórico contemporâneo à Carta Alemã de 1919 deve ser lembrado, então, como um período de enfraquecimento das instituições estatais que decorreu da crise socioeconômica que afligia a Alemanha.[7]

Nesse período de pós-guerra, os Tribunais Constitucionais ainda não haviam se consolidado como Guarda da Constituição e as atribuições do protetor da Carta Política estavam suscetíveis a distorções.

Com base nesse contexto histórico, Carl Schmitt inicia sua obra O Guardião da Constituição destacando que o exame judicial material não se constituía na Alemanha em um guardião da Constituição. Em outras palavras, o poder conferido aos tribunais, por meio da decisão de 4 de novembro de 1925, de examinarem as leis ordinárias em sua coerência material com os comandos constitucionais e, em caso de conflito, negarem à lei ordinária sua aplicação, não teria o condão de transformá-los em guardiões da Constituição.

Dessa forma, não obstante o juiz estar vinculado à lei, seria seu dever deixar de aplicar determinada lei ordinária ao caso concreto devido à sua incompatibilidade com a Constituição. Esse exame judicial do tribunal do Reich alemão, todavia, teria uma importância modesta em comparação ao controle judicial de normas exercido pelo tribunal norte-americano. Ele não possuiria como escopo os princípios gerais da Constituição, tais como a boa-fé e a razoabilidade, mas dependeria de normas que possibilitassem uma subsunção correspondente ao fato típico. Tratar-se-ia, portanto, de um controle exercido por qualquer juiz (difuso) e concreto ou incidental (presta-se à solução de determinada lide), exercendo, para as decisões de outras instâncias, um efeito como precedente de certa maneira previsível.

No entanto, esse exame judicial material não implicaria na politização da justiça, ao invés da juridicização da política? O jurista alemão era contrário à defesa da Constituição por parte do Judiciário porque o mesmo sempre julgaria a posteriori e analisaria apenas a subsunção de um fato a uma norma. Como salienta Bercovici, “como a questão central é a determinação do conteúdo a norma, para Schmitt este problema é da legislação, não da justiça (...) Carl Schmitt entendia que o controle judicial de constitucionalidade só poderia existir em um Estado Judicialista, em que toda a vida política fosse submetida ao controle dos tribunais”.[8] Esclarecendo essa relutância, Gilberto Bercovici ressalta que a concepção de Constituição para Schmitt cria um óbice para a aceitação de um controle de constitucionalidade por parte do Poder Judiciário.[9] O Parlamento seria outro poder inapto para proteger uma Constituição, já que “com a consolidação da democracia de massas, Schmitt afirma que o parlamentarismo tornou-se inviável, pois não há nenhuma força política capaz de se colocar acima das forças sociais que se digladiam no Parlamento”.[0]

A pluralidade parlamentar, tendo o Estado como a auto-organização da sociedade, existiria em função de determinados grupos com correntes ideológicas diversas e, por vezes, colidentes, gerando uma constante indecisão política, a qual impossibilitaria um julgamento de constitucionalidade que refletisse o mesmo momento da unidade política conseguido com o Poder Constituinte Originário e, para Schmitt, representado na figura do Presidente do Reich.[1]

Verifica-se que o juiz deveria sempre decidir com base na lei. No Estado de Direito existiria justiça somente como sentença judicial com base em uma lei. Ocorre que em toda decisão judicial existiria um elemento de pura decisão que não poderia ser derivado do conteúdo da norma, isto é, certa margem de discricionariedade reservada ao juiz ao decidir um caso concreto, mesmo quando se tratasse apenas de subsunção do fato ao tipo legal. O autor referia-se a essa situação como decisionismo.

A primeira condição de uma jurisdição constitucional seria um conceito definido de divergência constitucional que a diferenciasse das demais lides. Pode-se dizer que exame judicial material resultaria de infrações à Constituição ou de casos de dúvida; nesse caso, não se trataria de justiça, mas de uma relação indefinida entre legislação e parecer jurídico. Esse seria o motivo pelo qual não se poderia exigir dos magistrados funções que ultrapassassem a subsunção do fato à norma, pois eles estariam vinculados ao seu conteúdo. O tribunal constitucional deveria se opor a violações constitucionais claras: não se proporia a proferir decisões em caso de dúvida. E o Tribunal Alemão responsável pela solução das contendas constitucionais da época não contava com um conceito definido de divergência constitucional, ou seja, uma competência razoavelmente delimitada.

O segundo ponto que mereceria destaque para a caracterização de uma jurisdição constitucional seria o conceito de Constituição. Se esta fosse compreendida como um contrato, divergências constitucionais seriam aquelas entre as partes do contrato ou acordo constitucional sobre o conteúdo de suas estipulações.

Nesse sentido, na base da Constituição federal encontrar-se-ia um contrato, sobre cuja interpretação e aplicação poderiam surgir divergências que mereceriam solução. O tribunal federal que iria resolver essas divergências dentro de um Estado-membro não poderia, no entanto, se afastar das estipulações da Constituição federal. O tribunal federal apresentar-se-ia, portanto, como guardião tanto da Constituição federal como da estadual, zelando pela observância da homogeneidade constitucional essencial a toda Federação.

Por fim, o terceiro elemento qualificador da jurisdição constitucional seria o elemento pluralista. Por conseguinte, a Constituição seria produto do acordo entre as diversas organizações sociais de poder. Ademais, nas divergências constitucionais poder-se-ia reconhecer que, muitas vezes, as partes dos litígios seriam as coalizões partidárias, de modo que o processo apenas refletiria a estrutura pluralista do Estado.

O Estado alemão da época era considerado dualista, tendo em vista o confronto entre Estado e sociedade. A Constituição era tida como um contrato entre o monarca e o povo. Em verdade, o Estado dualista representava o equilíbrio entre dois tipos de Estado: o Estado dirigente e o Estado legiferante. À medida que o Estado se desenvolvia no sentido da superioridade do parlamento sobre o governo, isto é, da supremacia das leis, ele se tornava cada vez mais legiferante.

Ocorre que, com o decurso do tempo, essa tensão entre Estado e sociedade, governo e povo, foi se tornando paulatinamente fragilizada. O Estado legiferante foi substituído, então, pela auto organização da sociedade. Com isso, todos os problemas sociais e econômicos passam à esfera de interesse estatal, desaparecendo a diferenciação entre matérias político-estatais e matérias de cunho social e apolítico.

Ademais, o Estado neutro, não intervencionista deu lugar ao Estado total. Percebeu-se que a não intervenção dava margem à assunção e ao monopólio da economia pelos grupos de poder. Dessa forma, a Alemanha tornou-se um Estado assistencial e passou a preocupar-se com o bem estar social. Mas essa transformação não implicou na guarda da Constituição pelo Poder Judiciário, restando inalterado o domínio do Executivo.

Verifica-se a importância da reforma da Constituição então vigente no Reich, posto que ela não era uma Constituição econômica, mas política. Assim, estabeleceu-se a justaposição de dois sistemas políticos diferentes – o atomístico e o orgânico -, atribuindo-se ao sistema orgânico, isto é, de organização estatal, importância secundária. As possibilidades de solução dessa discrepância poderiam ser resumidas em três: harmonização do Estado, deseconomização do Estado ou economização do Estado.

A deseconomização do Estado implicaria na transformação dos partidos políticos em produtos independentes e na criação de incompatibilidades entre o mandato parlamentar, o posto de funcionário e os postos econômicos.

A economização estatal, por sua vez, corresponderia à transformação do Estado em Estado econômico, conferindo-lhe uma autêntica Constituição econômica. Essa opção foi muito criticada, tendo em vista que não teria como objetivo tornar a economia livre e autônoma, mas, ao contrario, de entregá-la na mão do Estado e submetê-la a ele.

A neutralidade da política interna do Reich alemão poderia assumir alguns significados negativos, afastando-se da decisão política. Em primeiro lugar, poderia dizer respeito à não intervenção, isto é, um Estado restrito ao mínimo de conteúdo. Todavia, ele ainda poderia se tornar político, em face da percepção do inimigo, aquele que se opõe à neutralidade do modo de pensar.

A neutralidade poderia ser compreendida, outrossim, no sentido de concepções instrumentais de Estado, para as quais o Estado seria um recurso técnico que deveria funcionar com objetiva calculabilidade e dar a todos igual chance de uso. Seria um modelo de Estado despolitizado.

Ademais, a neutralidade poderia ser caracterizada como o fornecimento de chance igual na volição estatal, na medida em que fosse conferida a paridade no direito de voto e igualdade universal da lei. Dar-se-ia a chance aos partidos de terem votos necessários para alcançarem seus objetivos.

Por fim, haveria a neutralidade no sentido de paridade, isto é, admissão igual de todos os grupos e orientações de interesse, sob condições iguais e com tratamento isonômico na contemplação com vantagens ou demais prestações estatais.

Por outro lado, a neutralidade poderia ser analisada sob a ótica positiva, seja no sentido da objetividade e imparcialidade com base em uma norma reconhecida; neutralidade com base em um conhecimento experto não egoísta e interessado (parecerista e consultor); neutralidade como expressão de uma unidade e totalidade que abrangeria os agrupamentos opostos e, destarte, relativizaria em si todas essas oposições; ou, ainda, neutralidade do estrangeiro que se encontraria de fora e que, na qualidade de terceiro, provocaria, de fora e em caso de necessidade, a decisão e, com isso, uma unidade.

As divergências de opinião e diferenças entre os titulares de direitos políticos de decisão poderia ser resolvidas não judicialmente, mas por meio de um poder político mais forte situado acima das opiniões divergentes, ou mediante um órgão em relação de coordenação com os outros poderes constitucionais, ou seja, um terceiro neutro.

Sob esse prisma, surge com Benjamin Constant a teoria do poder neutro, destinado a solucionar a luta da burguesia francesa por uma Constituição liberal contra o bonapartismo e restauração monárquica. A função do terceiro neutro seria intermediária, defensora e reguladora, ativa apenas em caso de emergência, mediante o poder preservador, uma vez que ela não deveria concorrer com os outros poderes no sentido de uma expansão do próprio poder.

Insta ressaltar que o Presidente do Reich possuía poderes que o tornariam independente dos órgãos legislativos, embora vinculado à referenda dos ministros dependentes da confiança do parlamento. Ora, seus poderes constitucionais corresponderiam aos poderes do chefe de Estado, tal como idealizado por Benjamin Constant. Por isso sua posição só poderia ser construída no cenário da época com a ajuda de uma teoria mais desenvolvida de um poder neutro, sob pena de incompreensão dessa mistura contraditória de determinações constitucionais incompatíveis.

Argumenta-se, então, que o guardião da Constituição deveria ser independente e político-partidariamente neutro. Ao rechaçar a possível atribuição da guarda da Constituição ao Judiciário, aduz-se que se a justiça fosse compelida a resolver todas as tarefas e decisões políticas, para as quais fossem desejadas independência e neutralidade político-partidária, ela receberia uma carga insuportável. E mais: essa situação teria como obstáculo o princípio democrático.

Às diversas independências corresponderiam inamovibilidades, imunidades e incompatibilidades. Além disso, a independência poderia corresponder à proteção defensiva e negativa contra a volição política ou, ao contrário, poderia garantir uma participação positiva na determinação ou influência da volição política. A independência dos membros do Judiciário, Legislativo e do Presidente do Reich deveria estar estritamente ligada com a idéia do todo da unidade política. Essa concepção contém uma oposição aos agrupamentos pluralistas da vida social e econômica.

Segundo o autor, a própria Constituição de Weimar já estabeleceria o guardião da Constituição – o Presidente do Reich. Ele representaria o centro de todo o sistema de uma neutralidade e independência político-partidárias, construído sobre uma base plebiscitária, estando dotado de poderes eficientes para uma proteção efetiva da Constituição. Essa previsão apenas materializaria o princípio democrático, sobre o qual se baseava a Constituição de Weimar. Com isso, ela procuraria formar um contrapeso para o pluralismo dos grupos sociais e econômicos de poder e defender a unidade do povo como uma totalidade política.


2. A Jurisdição constitucional de Hans Kelsen

Expoente jurista da República de Weimar, Hans Kelsen também teorizou acerca da guarda constitucional, porém, em oposição à ideia esposada por Carl Schmitt na obra O guardião da Constituição.

Apesar de questionar diversas premissas da teoria da Guarda da Constituição schmittiana, Kelsen concordava quanto à pertinência de uma análise dos limites da jurisdição, enfatizando que, caso se almejasse restringir o poder dos tribunais, não se deveria “operar com chavões vagos como ‘liberdade’, ‘igualdade’, ‘justiça’, etc”, senão poderia ocorrer uma indesejável transferência de poder.[2]

Prosseguindo em seu estudo, Kelsen exteriorizava de forma mais clara que, nos casos mais importantes de violação constitucional, Parlamento e governo seriam partes litigantes, o que justificaria o reconhecimento do Judiciário como o poder neutro livre das tensões entre Parlamento e Governo.

Hans Kelsen mostrava-se contrário à visão schmittiana de ter-se na figura do Presidente do Reich, única e exclusivamente, o Guardião da Constituição que, segundo o autor austríaco, seria um dos guardiões, zelando pelo controle de constitucionalidade sobre os atos emanados do Executivo e às vezes do Legislativo.

A Constituição austríaca possuía duas jurisdições distintas: a jurisdição constitucional e a jurisdição administrativa. A primeira destinava-se ao controle de constitucionalidade dos atos jurídicos, enquanto a segunda limitava-se a aferir sua conformidade às leis. Assim sendo, a jurisdição constitucional era vista como uma jurisdição administrativa especial, pois controlava a constitucionalidade do ato administrativo, e não sua simples conformidade à lei.

Em síntese, o limite teórico-jurídico entre jurisdição constitucional e jurisdição administrativa resultava tão somente da diferença entre constitucionalidade direta e indireta. Todavia, existia um possibilidade mínima de controle a cargo da jurisdição administrativa, tendo em vista a necessidade da autoridade, ao aplicar a lei, verificar se aquilo que se apresentava como lei era de fato uma lei, isto é, se preenchia aos requisitos legais mínimos para sua configuração.

Em caso de um possível conflito entre lei federal e lei estadual, aplicava-se o princípio segundo o qual a lei posterior deveria prevalecer sobre a lei anterior. A Constituição não previa a prevalência da lei federal sobre a lei estadual.

Ademais, a Corte Constitucional podia examinar de ofício a constitucionalidade de uma norma, desde que ela fosse pressuposto para a resolução de determinado caso concreto sujeito a sua apreciação. Da mesma forma, as leis anteriores à vigência da Constituição, que foram recepcionadas por ela, eram consideradas igualmente objeto de controle de constitucionalidade.

A declaração de inconstitucionalidade de uma lei acarretava a sua anulação, ou seja, essa decisão operava apenas para o futuro, produzindo efeitos prospectivos, a partir de sua publicação. A referida anulação podia referir-se a toda a norma ou apenas a algumas de suas disposições, bem como a Corte Constitucional podia estabelecer um prazo, nunca inferior a seis meses, para a sua invalidação. Dessa forma, o Poder Legislativo podia, nesse intervalo, editar uma lei compatível com a Constituição.

Insta ressaltar que a decisão de anulação da lei inconstitucional poderia gozar de um certo efeito retroativo, na medida em que a Corte Constitucional, quando examinava e anulava de oficio uma norma que era considerada como pressuposto para a solução de uma lide, não teria mais como aplicar a lei anulada, não obstante o fato correspondente ao mérito da questão tenha ocorrido na vigência da norma.

O Tribunal Constitucional possuía, ainda, o poder de examinar decretos e anulá-los em caso de inconstitucionalidade. Nesse caso, o tribunal ordinário que considerasse que o decreto a ser aplicado no caso concreto era contrário à lei, deveria interromper o processo e submeter à Corte Constitucional o pedido fundamentado de anulação do decreto. Diante dessa situação, todos os tribunais restavam vinculados á decisão da Corte, que produzia efeitos prospectivos.

Ocorre que a Corte Constitucional também podia anular de ofício um decreto em caso de ilegalidade, quando ele fosse pressuposto para a solução de determinado caso concreto. Essa decisão produzia efeitos pro futuro, atingindo sempre o caso pendente de solução que havia motivado o exame. Portanto, não era possível o estabelecimento de prazo para a cessação da vigência de um decreto ilegal.

Como a Constituição regulava a elaboração das leis, a legislação seria, sob esse aspecto, aplicação do direito. Com relação ao decreto e outros atos normativos secundários, a lei seria criação do direito e o decreto seria aplicação do direito com respeito à lei e criação do direito com respeito à sentença e ao ato administrativo que o aplicariam. Por outro lado, enquanto a Constituição, a lei e o decreto seriam normas jurídicas gerais, a sentença e o ato administrativo constituiriam normas jurídicas individuais, de efeitos concretos.

A noção de Constituição, apesar das inúmeras transformações por que passou, teria conservado um núcleo essencial e permanente: ela seria sempre o fundamento do Estado, a base da ordem jurídica que se pretenderia apreender.

A Constituição poderia ser compreendida em um sentido amplo ou restrito. A Constituição em sentido estrito conteria tão somente normas sobre os órgãos e o procedimento da legislação. O sentido amplo, por sua vez, pressuporia não apenas a existência de normas sobre a organização do Estado, mas também normas que trariam direitos fundamentais ou liberdades individuais. Por isso costumava-se distinguir entre inconstitucionalidade formal e inconstitucionalidade material, uma vez que a primeira se trataria de uma violação apenas formal da Constituição, ou seja, de normas de procedimento e organização do Estado; enquanto a inconstitucionalidade material implicaria na violação de normas de conteúdo constitucional.

Por outro lado, distinguia-se entre inconstitucionalidade imediata, porquanto se trataria de normas imediatamente subordinadas à Constituição, e inconstitucionalidade mediata, no caso de atos subordinados à Constituição apenas de forma indireta. Isso porque quando a Constituição estabelecia o princípio da legalidade, essa legalidade estaria ligada à constitucionalidade, de forma indireta. Porém, nem sempre seria fácil distinguir entre inconstitucionalidade direta e indireta.

Outra espécie de norma diretamente subordinada à Constituição seria o tratado internacional, à semelhança das leis. No entanto, como Kelsen era um internacionalista, ele ponderava que, se considerássemos a superioridade do direito internacional sobre a ordem jurídica interna, o tratado internacional não seria equiparado à lei, mas apareceria como pertencente a uma ordem jurídica superior aos Estados contratantes, posicionando-se acima da lei e da própria Constituição. O tratado internacional apenas poderia ser revogado por outro tratado. Sob esse prisma do primado do direito internacional, as normas de direito internacional poderiam ser consideradas como parâmetros de controle de constitucionalidade.

Uma das principais garantias gerais que a técnica jurídica moderna teria desenvolvido quanto à regularidade dos atos estatais em geral seria a independência do órgão jurisdicional, enquanto garantia preventiva, de modo a evitar que ele pudesse ser juridicamente obrigado, no exercício das suas funções, por alguma norma individual de outro órgão. Ele estaria vinculado apenas às normas gerais, essencialmente às leis e aos regulamentos.

Outra garantia que mereceria destaque era a anulabilidade ou nulidade do ato irregular. Os atos das autoridades públicas, ao contrário dos atos dos particulares, gozariam de uma certa presunção de validez e obrigatoriedade até que o ato superveniente de outra autoridade os fizesse desaparecer.

A principal objeção à existência de uma jurisdição constitucional, isto é, um tribunal constitucional encarregado da anulação dos atos inconstitucionais, seria a ofensa à soberania do Parlamento. Todavia, não haveria de se falar da soberania de um órgão estatal particular, pois a soberania pertenceria à ordem estatal como um todo.

Em segundo plano, a objeção referente à separação dos poderes tampouco mereceria prosperar, uma vez que a anulação de atos inconstitucional pelo tribunal constitucional não representaria uma função verdadeiramente jurisdicional, mas legislativa, ao criar uma norma geral com sinal negativo, declarando-a inconstitucional para todos os efeitos.

Reafirmando a necessidade de uma jurisdição constitucional, Kelsen considerava que esta adquiriria maior importância no Estado federativo, devido a sua forma de organização descentralizada, em que algumas matérias seriam tratadas pela União, e outras estariam sob a competência dos Estados-membros. Dessa forma, tanto uma lei estadual poderia usurpar a competência da União, como uma lei federal poderia avançar os limites dos Estados-membros. Ambos os casos deveriam ser analisados pelo tribunal constitucional.

As regras de direito, segundo Kelsen, seriam normas gerais, enquanto os atos jurídicos seriam especiais. Não obstante essa diferença, ambos possuiriam um traço comum o qual nos permitiria agrupá-los numa mesma hierarquia: seu caráter de normas. Nesse sentido, o autor se contrapunha a Duguit, que não admitia a reunião das regras e dos atos jurídicos em uma mesma categoria, portanto, a seu ver, não haveria de se falar em hierarquia entre eles.

Kelsen argumentava que a declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais ordinários poderia acarretar a incerteza e insegurança do Direito, ao dar margem a sentenças contraditórias a serem proferidas pelos diversos tribunais. Assim sendo, a jurisdição constitucional serviria principalmente para a centralização do contencioso e, em segundo plano, para o alcance geral do julgado, não se limitando somente ao caso concreto submetido ao exame.

Kelsen voltava-se contra a supremacia e onipotência parlamentar, em especial contra a liberdade quase ilimitada de legislar atribuída constitucionalmente ao Parlamento. Defendia a mudança na visão que se tinha do parlamento, de forma a lhe atribuir o papel de autoridade que exerceria suas funções sobre o império de uma lei constitucional que seria, de fato, o ato de vontade primitivo, fundamental e limitador do verdadeiro soberano.

A Constituição representaria as forças políticas de determinado povo, isto é, a situação de equilíbrio relativo na qual os grupos em luta pelo poder permaneceriam até nova ordem. Caso houvesse necessidade de alteração da Constituição, isso significaria que esse equilíbrio de forças estaria abalado, buscando uma nova organização no plano constitucional. E nessa tentativa de alteração da Carta Política, dever-se-ia considerar não apenas a representação do grupo político detentor do poder no parlamento e sua influência sobre os poderes executivo e judiciário, mas também a amplitude e a natureza das camadas sociais que seriam dominadas pela ideologia desse grupo político. Com efeito, essa ideologia constituiria a força e o instrumento de sua organização.

O controle de constitucionalidade não deveria ser confiado a um dos órgãos cujos atos deveriam ser analisados em face de sua compatibilidade com a Constituição, ou seja, o legislativo e o executivo. Isso porque ninguém poderia ser juiz em causa própria.

O autor criticava a tentativa de Schmitt de atribuir a guarda da Constituição, em uma república democrática, ao Chefe de Estado, sob a denominação de poder neutro, elaborada por Constant, por entender que essa concepção acabaria por transformar o Presidente do Reich em senhor soberano do Estado, não obstante a recusa de Schmitt em encarar a situação como uma possível ditadura do executivo, o qual afirmava que o temor de uma violação constitucional dirigir-se-ia tão somente contra o legislador.

Um dos argumentos rechaçados por Kelsen refere-se ao pressuposto adotado por diversos doutrinadores de que entre a função jurisdicional e a função política existiria uma contradição essencial, sendo que a declaração de inconstitucionalidade consistiria em ato político, e não jurídico. Ocorre que, como afirmava o autor, o exercício do poder não se restringiria ao processo legislativo, mas teria início com os órgãos executivos e com o próprio judiciário, uma vez que toda sentença seria composta por um elemento decisório, um elemento de exercício do poder, ainda que em menor grau. O caráter político da jurisdição variaria de acordo com o poder discricionário que a legislação lhe cedesse. Ao decidir um caso concreto, o juiz estaria autorizado a criar direito, não se restringindo a função jurisdicional à mera aplicação do direito. Dessa forma, a lei conferiria à jurisdição o mesmo caráter político que possui a legislação.

A diferença entre um tribunal constitucional e um tribunal ordinário, civil, criminal ou administrativo seria o fato de que, apesar de ambos serem aplicadores e criadores do direito, o segundo produziria apenas normas individuais, enquanto o primeiro, ao declarar a incompatibilidade de uma norma com a Constituição, eliminaria uma norma geral, atuando, pois, como um legislador negativo.

Kelsen também não aceitava o argumento de que o Presidente do Reich possuiria melhores condições para ser o guardião da Constituição, visto que, a seu ver, ele não gozaria da independência necessária à consecução desse fim, tampouco estaria revestido da neutralidade imprescindível para o desempenho desse papel. Por outro lado, o tribunal constitucional seria a melhor solução para esse dilema, uma vez que o juiz, além de gozar de independência funcional, seria impelido à neutralidade já por sua ética profissional.


CONCLUSÃO

Tão instigante quanto complexa, no âmbito do Direito Constitucional, é a questão da legitimidade democrática do sistema de controle de constitucionalidade das leis, chamado de jurisdição constitucional. Afinal, como pode um corpo reduzido de magistrados declarar inválidas as leis editadas pelos representantes do povo, sem ferir o princípio democrático?

A questão do controle de constitucionalidade pressupõe o estudo de quem seria o verdadeiro guardião da Constituição, isto é, aquele responsável pela análise de sua eventual violação pela edição de leis e atos normativos. Com base no caráter contramajoritário da jurisdição constitucional, Carl Schmitt defendia que o controle judicial abstrato das leis pelas Supremas Cortes guardaria grave tensão com a democracia, eis que atribuído a um reduzido número de indivíduos. Percebe-se que Schmitt procurava opor o político ao jurisdicional, como o exercício do poder em face o exercício do direito.

Por outro lado, Hans Kelsen defendia a existência de um Tribunal Constitucional que assumiria a função de guardião da Constituição. Para o autor, o legislador autorizaria o juiz a utilizar uma espécie de poder legiferante, permitindo que os magistrados criassem o direito dentro de limites. Dessa forma, o judiciário exerceria uma função política, diferenciando-se do legislativo apenas quantitativamente, não qualitativamente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DI LORENZO, Wambert. O pensamento político de Carl Schmitt: uma breve introdução. Instituto Jacques Maritain do Rio Grande do Sul. Disponível em www.maritain.com.br.

KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ROMANO, Roberto. Conservadorismo romântico: origem do totalitarismo. 2. ed., São Paulo: Editora da Unesp,.

SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.


Notas

[1] KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 246.

[2] ROMANO, Roberto. Conservadorismo romântico: origem do totalitarismo. 2. ed., São Paulo: Editora da Unesp, 1997.

[3] DI LORENZO, Wambert. O pensamento político de Carl Schmitt: uma breve introdução. Instituto Jacques Maritain do Rio Grande do Sul. Disponível em www.maritain.com.br.

[4] Idem, Ibid.

[5] SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. xi.

[6] DI LORENZO, Wambert. Op. cit.

[7] Nesse sentido, esclarece Bercovici: “O papel de Carl Schmitt na crise final da República ainda é controverso. Há três correntes interpretativas: uns afirmam que Schmitt sempre foi nazista; outros, que ele era contrário à Constituição e queria o sistema presidencial autoritário, mas não tinha aderido, ainda, ao nazismo e, finalmente, há aqueles que, seguindo a interpretação do próprio Schmitt, afirmam que ele propôs o regime presidencial para tentar salvar a República”. Na opinião de Bercovici: “Schmitt teve um papel ativo na crise final de Weimar, influenciando na escolha de saídas autoritárias para a crise, ao apoiar os gabinetes presidenciais para instrumentalizar suas ideias na direção da ditadura presidencial e da dissolução da Constituição” (BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 141).

[8] BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In: LIMA, Martonio Mont’ Alverne Barreto et. al. Teoria da Constituição: Estudos sobre o Lugar da Política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 75.

[9] Idem, Ibid, p. 77.

[10] BERCOVICI, Gilberto. Op. cit., p. 79.

[11] Idem, ibid, p. 81.

[12] KELSEN, Hans. Op. cit., p. 262-263.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DORES, Camilla Japiassu. O guardião da Constituição segundo as concepções de Carl Schmitt e Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3167, 3 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21201. Acesso em: 5 maio 2024.