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A legitimidade democrática da jurisdição constitucional brasileira

A legitimidade democrática da jurisdição constitucional brasileira

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As decisões de caráter político-fundamental tomadas pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos anos não dizem respeito a uma postura ativista da Corte; antes, são decorrência de um sistema arquitetado constitucionalmente.

SUMÁRIO: Introdução. I. O neoconstitucionalismo e a abertura epistêmica do Direito Constitucional. II. Jurisdição Constitucional. III. Fundamentos constitucionais para o destacado papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal na vida institucional brasileira. IV. A legitimidade democrática da Jurisdição Constitucional. V. A judicialização da política e a politização do Judiciário. VI. Ativismo Judicial. VII. Conclusão.

RESUMO

O presente estudo tem como escopo investigar os fundamentos constitucionais da atuação da Jurisdição Constitucional na vida político-social brasileira. O modo de interpretar/aplicar o Direito teve uma guinada na segunda metade do século XX que culminou com o alargamento da esfera jurídica para a entrada em seu bojo de elementos até então alheios ao domínio do Direito, quais sejam: filosofia, política, sociologia e psicologia. O Direito, a partir de então, buscando a aproximação de valores morais e de justiça, atribuiu força normativa aos princípios, o que acarretou poder de criação ao juiz. A ruptura com o modo de interpretar/aplicar o Direito no positivismo clássico, no mesmo sentido, vislumbrou no modelo de Jurisdição Constitucional um instrumento contramajoritário de efetivação dos direitos fundamentais, haja vista as barbáries cometidas em nome da lei (vontade popular). Tal corte histórico ocorre no Brasil, de maneira tardia, a partir do advento da Constituição de 88, que por sua vez ampliou a principiologia do Direito e atribuiu ao Supremo Tribunal Federal a condição de último intérprete do texto constitucional. Daí se dizer que a Corte Constitucional brasileira ocupa hoje destacado papel nos rumos da vida social e institucional do país. Portanto, não há falar que o papel desempenhado pela Excelsa Corte brasileira em nossa realidade institucional é fruto de uma atitude proativa de seus componentes, mas sim do novo desenho orgânico-institucional da Carta de 1988.

PALAVRAS-CHAVE: Abertura epistêmica do Direito Constitucional. Neoconstitucionalismo. Política e Direito. Jurisdição Constitucional. Legitimidade Democrática do Supremo Tribunal Federal. Ativismo Judicial.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como escopo analisar um fenômeno que vem promovendo profundas modificações no desenho institucional brasileiro: a concentração de decisões de forte apelo popular e moral no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

O novo papel exercido pelo Supremo Tribunal Federal em nossa ordem jurídica e social tem sido alvo de calorosas discussões na doutrina constitucional. Digladiam-se, de um lado, os que acusam nosso Tribunal Constitucional de propagar verdadeiro ativismo judicial, afrontando a idéia clássica de separação dos poderes e, de outro, aqueles que compreendem tal fenômeno como conseqüência de um texto constitucional compromissado com a realização de seus fins e que, para tanto, atribuiu papel de fundamental importância ao Supremo Tribunal Federal para dar a última palavra sobre sua interpretação/aplicação.

Nessa toada, o presente trabalho, se filiando a esta última corrente, retrata a ruptura metodológica no modo de interpretar/aplicar o Direito a partir da queda do positivismo clássico-formalista, ressaltando a abertura epistêmica propagada pelo movimento neoconstitucionalista que não só trouxe para a discussão jurídica elementosmorais-valorativos, como também redesenhou a estrutura orgânica do Estado ao vislumbrar no modelo de Jurisdição Constitucional mais um instrumento de proteção dos direitos fundamentais.

Analisar-se-á, também, a relação entre a política e o Direito, asseverando que não se pode fazer uma separação estanque entre estas duas esferas, já que o próprio texto constitucional é, desde seu berço, fruto de uma decisão política fundamental, portanto, quando se interpreta seu texto, inevitavelmente, se faz um juízo político. Mas um juízo político em sentido amplo e abstrato, distante de partidarismos. E dessa maneira, não há negar, o Supremo Tribunal Federal decide politicamente.

O presente estudo cuida, enfim, de reafirmar que o papel exercido pelo Supremo Tribunal Federal na vida social brasileira não é decorrência - em que pese o voluntarismo ocorrido aqui e acolá- do desejo ou do capricho dos 11 (onze) ministros que compõem aquela Corte, antes, porém, do realinhamento institucional propagado pela Constituição Federal de 1988 que absorveu em seu texto os influxos do paradigma neoconstitucionalista.


I. O NEOCONSTITUCIONALISMO[1] E A ABERTURA EPISTÊMICA DO DIREITO CONSTITUCIONAL

O positivismo clássico, inspirado na idéia Kelseniana de pureza do Direito, apregoou, como princípio metodológico fundamental, a libertação do Direito de tudo aquilo que lhe era estranho, deixando a seara jurídica imune a influência valorativa, política e social. O Direito encontrava-se fechado a tudo que lhe era exterior. Interpretar/aplicar o Direito, por este viés, implicava em ignorar searas do conhecimento humano que o circundavam, tais como a psicologia, a sociologia, a política, a filosofia e a moral. Nesse sentido, Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, anotou:

Quando designa a si própria como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe a garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Isto quer dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.[2]

Acontece que este modelo de interpretar/aplicar o Direito serviu de justificativa para muitas barbáries ocorridas no ocidente, em especial, para o massacre de judeus e de outras minorias, efetuado nos campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra Mundial.[3] Este fato histórico, contudo, significou a derrocada do positivismo clássico.

Na medida em que as barbáries do holocausto são justificadas pela frigidez formalista, despida de valores humanitários e distante de parâmetros morais, torna-se essencial uma guinada no modo de produção e interpretação do Direito, que amplie a trincheira normativa para a entrada no diálogo jurídico de elementos que lhe dão sentido ético. Daí a penetração do Direito pela moral, a formulação de um epicentro axiológico para o ordenamento jurídico, diga-se, a dignidade da pessoa humana, o vasto alargamento e efetivação de direitos fundamentais, enfim, a compreensão do Direito sob as lentes do humanismo. Este movimento que inspirou as Constituições do pós-guerra foi denominado de neopositivismo ou neoconstitucionalismo. Diz o professor André Ramos Tavares:

E essa abertura possibilitará a evolução do texto constitucional, o acompanhamento do desenvolvimento da realidade, superando-se, assim, a mentalidade que se tinha acerca do sistema jurídico, como um sistema fechado e insensível a estímulos/elementos externos, conforme vigorou no positivismo formalista, em que predominava a infantil crença de que as leis constantes do Codex eram sempre aplicáveis a toda e qualquer situação, por mais nova, estranha ou rara que fosse, porque no corpo normativo estariam já contidas todas as soluções necessárias para a resolução dos conflitos. A Constituição, ao contrário, embora aja como um instrumento de direção social, está aberta às mutações da sociedade.[4]

A partir daí, analisa-se o Direito associado à forte carga da realidade que o circunscreve, e não enquanto uma ciência imaculada pronta a dar soluções pré-concebidas no bojo de um texto legal. Nesse contexto em que as ciências humanas encontram campo fértil, é aberta uma fresta para a “iluminação” do Direito por outros campos do conhecimento humano, daí se dizer que o neoconstitucionalismo promoveu uma abertura epistêmica do Direito Constitucional. No positivismo clássico quando a solução de um conflito não estava pré-pronta no âmbito de incidência de uma regra (easy case), delegava-se ao intérprete oficial (julgador) liberdade para julgar de acordo com sua consciência (hard case), residindo aí a fonte do arbítrio, pois o intérprete não estava vinculado a nenhum princípios fundamental do Estado.

Se na Europa Ocidental há uma ruptura metodológica e epistêmica no modo de interpretar/aplicar o Direito a partir do final da Segunda Guerra Mundial, tal fenômeno somente é recepcionado no Brasil a partir do advento da Constituição Federal de 88. A bem da verdade vivenciava-se, em terrae brasilis, um constitucionalismo de mera fachada[5] em que o Texto Constitucional não era encarado como efetiva norma jurídica.

E é dessa necessidade de compreensão do fenômeno jurídico a partir de um conteúdo ético que exsurge a normatividade dos princípios. Para Barroso (2009, p. 150), “No ambiente pós-positivista de reaproximação entre o Direito e a Ética, os princípios constitucionais se transformaram na porta de entrada dos valores dentro do ordenamento jurídico”.

A força normativa dos princípios permitiu a adoção de métodos mais fluídos de interpretação, eis que trazendo a moral para o debate jurídico, a ponderação passou a ter grande relevância no ambiente neoconstitucionalista, o que teve por conseqüência natural a atribuição de destacado papel para o Poder Judiciário. Embora relevante e necessário a adoção de métodos mais fluidos de interpretação, a prática judiciária brasileira, muitas das vezes, vem corrompendo as raízes do neopositivismo, promovendo um decisionismo avesso aos valores constitucionais. Mas isso é assunto da teoria da argumentação, tema a ser explorado em trabalho vindouro.


II. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

O destacado papel atribuído ao Poder Judiciário no ambiente neoconstitucionalista não foi resultado somente da combinação dos elementos supramencionados, mas da necessidade de se ter um instrumento contramajoritário de proteção dos direitos fundamentais.

Na linha do que diz Streck (2009), enquanto no Estado Liberal o centro de decisões estava no Legislativo (o que não é proibido é permitido); e no Estado Social o foco de atenção estava no Executivo em razão de seu caráter intervencionista e da necessidade de implementação de políticas públicas; no Estado Democrático de Direito há uma virada no centro de decisões que mira a justiça constitucional como solucionadora das tensões institucionais. Nesse momento, a inação tanto do Executivo quanto do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário, através de mecanismos jurídicos estabelecidos justamente pela Constituição que instituiu o Estado Democrático de Direito.

Importante afirmar também que as constituições do período anterior a Segunda Guerra eram tratadas como uma espécie de “carta de intenções”, sem qualquer caráter vinculante e normativo. Todavia, com o advento do Estado Constitucional de Direito, a Constituição passa a valer como norma jurídica, e a atividade legislativa e executiva passam a se sujeitar a normatividade do Texto Maior. Para tanto, tornou-se necessário incumbir a um órgão de poder a função de interpretar e aplicar a Constituição. No caso do Brasil, o modelo de Jurisdição Constitucional se estende para juízes e tribunais, estando o Supremo Tribunal Federal no topo do sistema[6].

Sobre a funcionalidade da Jurisdição Constitucional nas democracias contemporâneas, arremata Daniel Sarmento:

Até a Segunda Guerra Mundial, prevalecia no velho continente uma cultura jurídica essencialmente legicêntrica, que tratava a lei editada pelo parlamento como a fonte principal - quase como a fonte exclusiva - do Direito, e não atribuía força normativa às constituições. Estas eram vistas basicamente como programas políticos que deveriam inspirar a atuação do legislador, mas que não podiam ser invocados perante o Judiciário, na defesa de direitos. Os direitos fundamentais valiam apenas na medida em que fossem protegidos pelas leis, e não envolviam, em geral, garantias contra o arbítrio ou descaso das maiorias políticas instaladas nos parlamentos. Aliás, durante a maior parte do tempo, as maiorias parlamentares nem mesmo representavam todo o povo, já que o sufrágio universal só foi conquistado no curso do século XX. Depois da Segunda Guerra, na Alemanha e na Itália, e algumas décadas mais tarde, após o fim de ditaduras de direita, na Espanha e em Portugal, assistiu-se a uma mudança significativa deste quadro. A percepção de que as maiorias políticas podem perpetrar ou acumpliciar-se com a barbárie, como ocorrera no nazismo alemão, levou as novas constituições a criarem ou fortalecerem a jurisdição constitucional, instituindo mecanismos potentes de proteção dos direitos fundamentais mesmo em face do legislador.[7]


III – FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS PARA O DESTACADO PAPEL DESEMPENHADO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA VIDA INSTITUCIONAL BRASILEIRA

Não há muito tempo que as decisões da Corte Constitucional brasileira passaram a ser objeto do noticiário dos diversos órgãos de imprensa do país. Temas palpitantes que envolvem discussões de âmbito moral e político passaram a fazer parte da agenda decisória do Supremo Tribunal Federal, o que lhe tem rendido a atenção dos holofotes. Vivencia-se – com uma dose de exagero retórico – o protagonismo do Supremo Tribunal Federal na vida institucional brasileira.

Muitas são as razões pelas quais se explica o destacado papel do Supremo Tribunal Federal nos rumos da democracia brasileira, veja-se: Tal fato se atribui, em primeiro lugar, ao deslocamento da Constituição para a posição de centro normativo do ordenamento jurídico, ocasião em que se reconheceu força normativa aos princípios constitucionais; em segundo, ao fenômeno da “Constitucionalização do Direito” fundado e impulsionado pela Constituição Federal de 88, que, pelo seu matiz analítico, estendeu sua força normativa para além das normas consideradas materialmente constitucionais, alçando o direito ordinário à categoria constitucional; em terceiro, pelo destacado papel atribuído pelo Poder Constituinte ao Supremo Tribunal Federal de “Guardião da Constituição”; por último, não se pode olvidar que a ampliação do rol de legitimados para a propositura de ações de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, abriu caminho para que a Excelsa Corte brasileira fosse chamada amiúde a se pronunciar sobre as crises jurídico-constitucionais que afligem o país.[8]

Nessa toada, não há falar que a chamada “hipertrofia do Judiciário” se deveu a um ativismo judicial avesso à separação de poderes, desrespeitoso a soberania popular e desapegado das formalidades constitucionais. Ao contrário, o protagonismo da Jurisdição Constitucional está legitimado pela “vontade” do Poder Constituinte, que descrente das promessas não cumpridas pelo Executivo no paradigma constitucional do Estado Social de Direito, assim como desacreditado com a deficitária representatividade do Legislativo (reforma política já!), atribuiu ao Judiciário o papel de protetor dos direitos fundamentais.

Por esta senda, são acolhidas as palavras de Luís Roberto Barroso:

Nesse contexto, a judicialização constitui um fato inelutável, uma circunstância decorrente do desenho institucional vigente, e não uma opção política do Judiciário. Juízes e tribunais, uma vez provocados pela via processual adequada, não têm a alternativa de se pronunciarem ou não sobre a questão.[9]

O papel auspicioso atribuído a Jurisdição Constitucional não é uma peculiaridade de nosso Estado Democrático e Social de Direito, democracias avançadas do ocidente após as barbáries da Segunda Grande Guerra encontraram no modelo de Jurisdição Constitucional um instrumento de proteção de direitos fundamentais que não seria volátil às decisões da maioria. Nesse sentido, poder-se-ia caracterizar a Jurisdição Constitucional como um instrumento contramajoritário de proteção de direitos fundamentais. Assim, é bom frisar que direitos fundamentais não estão ao sabor de negociações - muitas das vezes espúrias- de congressistas, tampouco, de medidas populares tomadas pelo Executivo no intuito de abrandar os não raros rompantes da efêmera e não menos açodada opinião pública (ou publicada?!).[10]

Tem-se discutido muito acerca da legitimidade democrática do Supremo Tribunal Federal em se pronunciar sobre aspectos da realidade institucional brasileira que envolveriam matérias que geralmente são fruto de um debate público no campo dos poderes de representatividade popular. Diz-se que a Corte Constitucional avoca para si decisões de cunho político fundamental, ocupando um espaço de decisão ilegítimo em razão do elevado grau de discricionariedade e amplitude de seus julgamentos, o que lhe coloca no papel de usurpadora da soberania popular.

Inobstante a aguda crítica, no mesmo passo de Barroso (2010), até se pode cogitar de um Estado Constitucional Democrático sem a atuação de uma Corte Constitucional, mas que esse modelo tem servido bem as democracias, isso não se pode negar. É dizer: se a democracia é a prevalência da escolha da maioria; o constitucionalismo – e sua história mostra isso - é a limitação desse poder, visando à proteção de direitos fundamentais. Nessa esteira, pode-se dizer que Estado Democrático de Direito nada mais é que a conjugação dos seguintes valores: vontade da maioria, limitação de poder e proteção de direitos fundamentais.


IV. A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

Necessário observar também que Jurisdição Constitucional e vontade da maioria não são conceitos que se opõem, antes, porém, que se harmonizam. A opção por uma Jurisdição Constitucional nos moldes postos pela CRFB/88 é fruto justamente do consenso social mais caro às democracias contemporâneas, qual seja, o consenso oriundo do Poder Constituinte. Portanto, não há falar que o exercício da Jurisdição Constitucional é desprovido de legitimidade democrática, já que sua criação é resultado da mais refletida, da mais racional e da mais livre expressão de consenso: a Assembléia Nacional Constituinte.

Repise-se, portanto, que o modelo de Jurisdição Constitucional brasileiro é essencialmente popular já que é fruto do contrato social assinado em 1988, resultado de ampla mobilização popular em torno da construção de um novo paradigma de Estado.

Sobre o caráter político do Poder Constituinte, assevera Carlos Ayres de Britto:

Quando pronunciamos a locução “Poder Constituinte”, sem dúvida que estamos a falar de um poder genuinamente político. Mais até, estamos a falar de um poder exclusivamente político, porque originariamente imbricado em toda a pólis, naqueles raros instantes em que a pólis se sobrepõe ao Estado para dizer, por ela mesma, sob que tipo de Direito-Constituição quer viver. Ela passa a transitar pelo mundo do ser (não do dever-ser jurídico) e por isso pode assumir-se como o amálgama do povo inteiro com o território sobre o qual esse povo inteiro vai constituir o seu particular Estado. Tão penetrado de povo, desde o berço, é esse poder constituinte ou poder de constituir o Estado, tão necessário ele é para a auto-afirmação histórica do povo, que já não pode ser concebido senão como um poder que é parte do povo mesmo. O modo constituinte de ser do povo, no rigor dos termos.[11]

Assim, cogitar da usurpação do poder popular pela Jurisdição Constitucional é um levante contra um dos pilares do constitucionalismo contemporâneo.

Mas é necessário dizer mais. É preciso deixar claro que o modelo de Jurisdição Constitucional presente na atual quadra histórica da democracia brasileira, não é uma decisão voluntarista dos 11 (onze) juízes que nos últimos anos ocuparam (am) as cadeiras da Excelsa Corte, mas o resultado da combinação de dois fatores: o avanço qualitativo do diálogo social que não se contentou com o modelo de representatividade popular; e a opção do Poder Constituinte em deixar à cargo da Jurisdição Constitucional a solução das novas querelas advindas da complexa realidade social pós-moderna.

Além disso, assevera Barroso (2010) que é inegável que haja uma verdadeira complacência dos órgãos de representatividade popular em deixar que alguns temas caros ao debate público em que subsista o chamado “desacordo moral razoável”[12] sejam decididos pela Corte Constitucional. Trata-se de uma manobra evasiva dos poderes populares de não se comprometerem com a opinião pública, evitando assim, possível desgaste. Temas como união homoafetiva, interrupção da gravidez de feto anencéfalo e demarcação de terras indígenas já poderiam ter sido alvo de deliberação pelos agentes políticos, todavia, acomodadamente, aguardaram (am) pronunciamento da Excelsa Corte.

Não foi à toa que, diante da incontrastável legitimidade democrática da Jurisdição Constitucional para exercer seu mister quando chamada a se pronunciar sobre uma crise jurídico-político-constitucional, o próprio legislador ordinário, vislumbrando as conseqüências que as decisões da Excelsa Corte pode ocasionar na realidade concreta, criou mecanismos de aprofundamento da legitimidade através de institutos que ampliam a participação comunitária nas decisões da Corte Suprema. O amicus curiae (art. 7º, §2º da Lei 9868/99) e as audiências públicas (art. 6º, §1º, da Lei 9882/99) em casos de grande interesse social fizeram com que as decisões a serem tomadas pelo Supremo Tribunal Federal passassem antes pelo crivo da comunidade.

Nesse sentido, diz Gustavo Binenbojm:

Ao menos em termos ideais, o cidadão é elevado de sua condição de destinatário das normas jurídicas para atuar simultaneamente como intérprete da Constituição e das leis, com direito a ter sua opinião ouvida e devidamente considerada pelo Tribunal Constitucional.[13]

Isto é, no mesmo passo em que se vislumbra o protagonismo do Supremo Tribunal Federal na vida institucional brasileira, encontra-se também mecanismos de controle social da Jurisdição Constitucional. Tais mecanismos de participação social nas decisões da Corte Constitucional são, a bem da verdade, aplicação da idéia de Peter Haberle da “sociedade aberta dos intérpretes da constituição”[14]. Perceba-se, portanto, que o consenso social primário (Poder Constituinte) é respaldado pela participação comunitária presente no exercício da Jurisdição Constitucional.

Interessante ressaltar, assim como fez Barroso (2010), que as audiências públicas e o próprio julgamento da ADI 3510[15] que versava sobre a constitucionalidade de pesquisas em células-tronco embrionárias, teve maior participação e apego popular que a aprovação da lei pelo devido processo legislativo. Isso é uma demonstração da democratização da Jurisdição Constitucional.

Some-se a isso ainda a peculiaridade brasileira de se transmitir ao vivo direto do plenário as sessões de julgamento através do canal público de televisão “TV Justiça”.

Na mesma toada em que a democracia participativa se aprofunda, a Jurisdição Constitucional amplia ainda mais sua legitimidade. É de se concluir que ambas – democracia e Jurisdição Constitucional – não são conceitos estáticos, senão dinâmicos.

Mas os mecanismos de controle de legitimidade do Tribunal Constitucional não param por aí. Há o controle informal pela argumentação. A regra segundo a qual toda decisão judicial deve ser fundamentada, bem como a vinculação dos motivos determinantes em sede de ação direta de inconstitucionalidade (ADI), ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), são inegáveis formas de controle pelo cidadão da aplicação da Constituição. Importante salientar que a partir do momento em que a argumentação principal,diga-se, a ratio decidendi, passa a vincular casos similares, o ônus argumentativo torna-se mais complexo, impulsionando a Corte a proferir decisões mais qualificadas e prudentes com a realidade que a circunscreve. Portanto, não se pode olvidar que o complexo ônus argumentativo da Corte é uma clara fonte de controle pela população dos desígnios da Jurisdição Constitucional. Segundo Barroso:

Na medida em que se reconhece que o juiz participa criativamente da construção da norma, o fundamento de sua atuação já não pode repousar exclusivamente no princípio da separação de Poderes. A argumentação, a demonstração racional do itinerário lógico percorrido, o esforço no convencimento do auditório passa a ser fonte de legitimação e controlabilidade da decisão. [16]

Nesse sentido, inclusive, pode-se afirmar que o controle pelo cidadão das decisões proferidas pela Corte Constitucional se dá de maneira muito mais evidente e racional do que a decisão de um parlamentar de votar num ou noutro sentido, movido sabe lá por qual motivo. Para Robert Alexy apud Garcia (2009, p. 300), “o parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal constitucional argumentativamente”.

Trata-se – outra vez mais – de um controle mais qualificado, todavia, é sabido que tal modalidade informal de fiscalização está muito distante da esmagadora maioria da população que se encontra à mercê de um Estado Constitucional que, tristemente, ainda luta contra o analfabetismo.

É preciso observar, contudo, que ao mesmo tempo em que a argumentação jurídica é uma das formas de legitimação democrática da Jurisdição Constitucional, é também um terreno fértil para arbitrariedades, dada a sua recorrente inexatidão e vagueza. E a questão da fundamentação frágil, da invocação débil de princípios e da prevalência da vontade do julgador dentro da teoria da argumentação será analisada em trabalho distinto, ante ao tímido propósito deste artigo.

Colocando uma pá-de-cal na questão da legitimidade democrática da Jurisdição Constitucional, assentou Luiz Flávio Gomes:

Diante do exposto, quem acusa a atividade judicial, de antidemocrática, pelo fato de que seus membros não são eleitos pelo sufrágio universal, desconhece por completo que sua legitimação democrática formal tem natureza completamente distinta da legitimação política representativa. Desconhece, ademais, que vários membros do Poder Judiciário são oriundos de carreiras distintas, que o ingresso na carreira é concretizado com a participação da OAB (CF, art. 93, I), que pessoas do povo (no Júri) participam da distribuição de Justiça e desconhecem, por fim, a própria natureza dialética da função jurisdicional, que é uma das últimas do Estado moderno cujo pão de cada dia é o diálogo, é o prestar atenção e escutar, a difícil arte de poder escutar!, e sopesar as diversas opiniões assim como os argumentos dos que participam do processo, cumprindo o princípio do contraditório (CF, art. 5.º, inc. LV). Não é preciso, deste modo, que o juiz seja eleito pelo povo, forma de recrutamento, aliás, totalmente alheia à nossa tradição, para ser legitimado democraticamente. Essa legitimação deriva de outras fontes, como, por exemplo, de sua origem social, de seu estrito vínculo à lei e à Constituição e da sua posição de garante dos direitos fundamentais.[17]


V. A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLITIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO

Parafraseando Barroso (2010), o direito não transforma metal em ouro, a alquimia não é um atributo do direito. Tivesse o direito tal poder, tautologicamente, estaríamos imunes as mazelas sociais, a arbitrariedade, a imoralidade pública e privada, ao desrespeito a direitos fundamentais, enfim, viveríamos em plenitude o grande escopo do direito e do estado: a paz social.

Essa pequena e lúdica afirmação serve para dizer que, embora o Direito não tenha dotes tão sofisticados, a Constituição tem poder suficiente para transformar o não-jurídico em jurídico. Tem poder para trazer para o campo da discussão jurídica algo que lhe era estranho. E é nessa esteira que a Constituição transforma a política em Direito.

Nesse sentido, assevera Ney de Barros Bello Filho:

Importante observar que todas as normas constitucionais possuem natureza política. O que caracteriza uma Constituição, muito além de sua gênese formal, é a sua natureza política, e a sua posição como decisão fundamental de um povo. Assim, todas as normas constitucionais fatalmente possuem uma natureza política que lhes é peculiar, muito embora não se trate de um espaço inteiramente político. Não se trata de um espaço puramente político, porque o direito constitucional é o momento do confronto entre o jurídico e o político, mas há uma tonalidade, uma intensidade política superior ao matiz jurídico. Por essa razão, o momento constitucional não é integralmente imune a conteúdo político, ao revés, representa uma verdadeira interpolação de dois conceitos, criando um terceiro, que se denomina sistema constitucional.[18]

Por esta senda, Luís Roberto Barroso vislumbra como fenômeno natural a judicialização das questões de viés político:

Como intuitivo, constitucionalizar uma matéria significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Por exemplo: se a Constituição assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é possível judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate sobre ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas.[19]

Por esta mesma senda, malgrado esboce o seu temor a postura ativista, Lenio Streck assim compreende o papel do poder judiciário:

Em face do quadro que se apresenta – ausência de cumprimento da Constituição, mediante a omissão dos poderes públicos, que não realizam as devidas políticas públicas determinadas pelo pacto constituinte – a via judiciária se apresente como a via possível para a realização dos direitos que estão previstos nas leis e na Constituição. Assim, naquilo que se entende por Estado Democrático de Direito, o Judiciário, através do controle de constitucionalidade das leis, pode servir como via de resistência às investidas dos Poderes Executivo e Legislativo, que representem retrocesso judicial ou a ineficácia de diretos individuais e sociais. Dito de outro modo, a Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a relevante função de proteger os direitos já conquistados. Desse modo, mediante a utilização da principiologia constitucional (explícita ou implícita), é possível combater alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que, legislando na contramão da programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade. [20]

É de se concluir, portanto, que a partir dessa metamorfose, isto é, da transmutação do que era alheio ao Direito para a esfera do jurídico, encontra-se o canal que leva o Judiciário a se pronunciar sobre aspectos políticos[21] da realidade.

A sonhada separação estanque entre política e Direito disseminada pelo positivismo-formalista há muito não prospera, mormente diante do advento do movimento neoconstitucionalista que permitiu a penetração do Direito pela moral, abrindo a discussão jurídica ao intercâmbio com outros campos do saber: a filosofia, a sociologia, a ética e a política.  Nessa toada, o diálogo jurídico torna-se mais complexo, pois uma demanda jurídica dificilmente (ou jamais) será uma questão puramente jurídica, ante a profusão de elementos metajurídicos que interpenetram o Direito.

Assim, quando o Judiciário se pronuncia sobre determinada questão, inevitavelmente, estará fazendo um juízo político.

Na mesma linha, Daniel Sarmento enfatiza o novo espaço ocupado pela Jurisdição Constitucional no ambiente neoconstitucionalista:

Neste contexto, cresceu muito a importância política do Poder Judiciário. Com freqüência cada vez maior, questões polêmicas e relevantes para a sociedade passaram a ser decididas por magistrados, e sobretudo por cortes constitucionais, muitas vezes em razão de ações propostas pelo grupo político ou social que fora perdedor na arena legislativa. De poder quase "nulo", mera "boca que pronuncia as palavras da lei", como lhe chamara Montesquieu, o Poder Judiciário se viu alçado a uma posição muito mais importante no desenho institucional do Estado contemporâneo.[22]

A judicialização, portanto, entendida como a atribuição conferida ao Judiciário de dar a última palavra sobre questões morais, políticas e sociais, dantes de competência exclusiva dos poderes majoritários, não é fruto de uma postura (ativismo judicial) expansionista do Judiciário, mas, sim, resultado do processo de constitucionalização do Direito engendrado pela CRFB/88.

Sobre a politização do Judiciário, necessário salientar que a queda do positivismo- formalista tradicional, que implicava um modo de interpretar/aplicar o Direito com base no modelo de subsunção, ou seja, para cada crise jurídica o Direito teria uma resposta pré-concebida, proporcionou, como dito anteriormente, a entrada no debate jurídico de elementos até então estranhos ao Direito. Esse movimento de ingresso no diálogo jurídico de elementos valorativos significou a atribuição de força normativa aos princípios. E a partir do momento em que se traz para a esfera do jurídico princípios de alta carga axiológica, abre-se espaço para a discussão de ordem moral, em que pese os riscos que isso pode acarretar em um país com uma cultura mambembe de cumprimento das regras.

A partir do momento em que se torna consenso dentro da Teoria do Direito que a norma jurídica não oferece a única resposta correta, e que a operação mecânica do intérprete de encaixar uma crise jurídica dentro da hipótese de solução pré-pronta pela norma não condiz mais com a abertura valorativa do Direito, entra em cena o papel criativo do juiz.

É desse papel de criação do juiz que se retira a politização do Judiciário, pois interpretar não é mais um ato mecânico de ajuste entre o texto legal ao evento da vida, e sim, um ato complexo que envolve diversificadas variantes, tais como a formação moral, ideológica e social do juiz, já que agora o Direito está impregnado desses elementos. E aí o campo se torna fértil para as cosmovisões do juiz. Embora esta seja uma crítica enfrentada pela Teoria da Argumentação, ainda que extrapolando o tímido propósito do presente trabalho, vale a pena salientar que o direito se abriu ao diálogo moral com a comunidade e não com o intérprete individual. Na interpretação adequada constitucionalmente o juiz deve suspender a sua convicção moral e ideológica em favor do sentimento constitucional da comunidade política a que está inserido. Faz-se mister salientar, todavia, que isto não lhe retira o poder de criação diante da norma.

Inobstante a criatividade do juiz que abriu espaço para uma argumentação politizada acerca da seara jurídica, pode-se dizer que o Judiciário é, em si mesmo, um poder político, senão veja-se:

Em princípio, os poderes judiciários não podem deixar de estarem “politizados” no sentido de que cumprem funções políticas. Admitindo-se a separação de poderes no nível especulativo ou, se se preferir, falando-se apenas de separação de funções em razão de que o poder estatal deva ser único, o certo é que sempre que se fala do judiciário se está mentalizando um ramo do governo, e até etimologicamente seria absurdo pretender que haja um ramo do governo (que não pode senão exercer um poder público, estatal) que não seja político no sentido de “governo da polis”. Não se concebe um ramo do governo que não seja político, justamente porque seja governo. O sistema de checks and balances entre os poderes — ou funções, se se preferir — nada mais é do que uma distribuição do poder político. Cada sentença é um serviço que se presta aos cidadãos, mas também é um ato de poder e, portanto, um ato de governo, que cumpre a importante função de prover a paz interior mediante a decisão judicial dos conflitos. A participação judicial no governo não é um acidente, mas é da essência da função judiciária: falar de um poder do Estado que não seja político é um contra-senso. Por conseguinte, não seria possível “despolitizar” o judiciário no sentido amplo da função essencialmente política que ele cumpre.[23]

À título de definição, se a constitucionalização torna o que é político em Direito, levando ao Judiciário questões morais, religiosas, políticas e sociais, movimento este que se convencionou chamar de judicialização da política, na mesma toada, a interpretação de um Direito impregnado de forte carga política, passa, inevitavelmente, por uma análise também política, e isso é o que se denomina de politização do Judiciário.

Por fim, fica fácil deduzir que além da judicialização e da politização serem movimentos de implicação recíproca, ambos nasceram da ruptura com o modelo positivista clássico que traçava uma linha divisória estanque entre o domínio da política e o domínio do Direito, reafirmando idealisticamente a idéia de um Direito puro e de um intérprete neutro. Todavia, tendo como marco histórico as barbáries cometidas na Segunda Grande Guerra em nome da aplicação do Direito posto, nasce o paradigma pós-positivista que traz para o campo do Direito o debate de cunho moral através da normatização de princípios de alta carga valorativa, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, o Estado Democrático de Direito e a igualdade.

Portanto, para concluir, necessário se faz dizer que judicialização e politização não significam necessariamente a adoção de uma postura proativa do juiz nas questões que lhe são levadas a conhecimento, posição esta que ganhou a alcunha de ativismo judicial, mas um fenômeno natural ocorrido nas democracias ocidentais que receberam influência do paradigma pós-positivista. Quer-se advertir com isso que as decisões de caráterpolítico-fundamental tomadas pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos anos não diz respeito a uma postura ativista da Corte, antes, porém, decorrência de um sistema arquitetado constitucionalmente. É bom que se afirme, todavia, que a Excelsa Corte é acometida de rompantes de ativismo, conforme se verá no próximo tópico, mas essa não é sua pauta de atuação.


VI. ATIVISMO JUDICIAL

Ativismo Judicial, lançando mão da definição de Barroso (2010), é entendido como uma postura, uma posição, uma maneira de o Judiciário interpretar e aplicar o Direito, expandindo ao máximo a incidência de preceitos constitucionais, ainda que não expressos claramente. O problema é que, através dessa expansão dos preceitos constitucionais que não estejam expressos claramente somado a uma fundamentação débil em princípios constitucionais, o julgador acaba por deixar vazar mais o seu sentimento pessoal acerca do comando normativo do que a disposição do texto constitucional. Mas o ativismo é mais do que isso. O ativismo judicial é a encampação/penetração eventual pelo Judiciário no domínio de decisão dos poderes eleitos pelo voto popular.

Frise-se que o ativismo judicial por ser uma postura não se confunde com a judicialização, que tem respaldo não em uma atitude proativa, mas numa opção do sistema constitucional vigente. Assim é bom salientar que a significativa participação do Supremo Tribunal Federal em questões de forte apelo popular nos últimos anos (v. todos os casos elencados na nota de rodapé nº 08) não é resultado de uma postura da Excelsa Corte, mas do sistema judicializante da CFRB/88.

Segundo Barroso (2010), o ativismo judicial encontra terreno fértil em situações em que há um encolhimento, um acanhamento, uma contração, dos órgãos de representatividade popular em efetivar as atribuições que lhes foram conferidas pelo texto constitucional, deixando aberto um espaço a ser preenchido, no caso, pelo Judiciário.

Inquestionavelmente que a prática do ativismo, dentro de um ambiente institucional em pleno funcionamento, promove o esvaziamento de sentido do poder popular, o que nunca se justificará num Estado Democrático de Direito, até porque, lançando mão da expressão cunhada por Sarmento (2009), a ditadura de toga não é melhor que a ditadura de farda.

Acontece que, na atual quadra histórica brasileira, enxerga-se um Legislativo refém das demandas imediatistas do Executivo por Medidas Provisórias, o que o leva a abandonar suas prerrogativas mais comezinhas, em detrimento da efetivação de direitos da coletividade que se encontra à mercê da inércia de seus representantes. É preciso dizer mais. É preciso dizer que não é só pela subserviência ao Executivo que o Legislativo não cumpre suas atribuições, também é pela acomodação voluntária em não colocar em pauta assuntos que são caracterizados pelo “desacordo moral razoável” dentro da sociedade. E não é só isso. Não legislam também por atender mais aos anseios do Poder Público do que ao interesse público primário[24]. Veja-se o exemplo da ausência de lei que regulasse a greve dos servidores públicos, aqui, não havia sequer desacordo moral razoável, mas o Congresso se manteve inerte. O Supremo, nesse caso, depois de muitos anos adotando postura tradicional de autocontenção judicial[25], resolveu adotar a teoria concretista geral e garantiu a aplicação da lei de greve dos trabalhadores da iniciativa privada para o serviço público.

Na linha do que alertou Barroso (2010), há que se advertir que a prática do ativismo judicial é de uso tópico e ocasional, nunca podendo ser utilizada de maneira contínua e irrestritamente. A postura proativa do Judiciário, além de ser eventual, deve se restringir a proteger dois valores constitucionais: a efetivação de direitos fundamentais e proteção do regime democrático. Fora disso, seu uso é pernicioso e enfraquece a democracia. 

Contudo, na ilustração de Barroso (2010), além do caso da greve de servidores públicos, há exemplos de posturas ativistas do Supremo Tribunal Federal no contexto atual, tais como: a questão da perda de mandato por infidelidade partidária foi uma interpretação expansiva do texto constitucional, pois não havia disposição expressa para tanto; a questão da proibição do nepotismo extensivo aos Poderes Legislativo e Executivo; a declaração de inconstitucionalidade de novas regras eleitorais que seriam aplicadas a menos de um ano de sua aprovação; bem como o reconhecimento de união estável entre casais homoafetivos.

Ocorre que, embora nos casos acima mencionados se tratasse de uma aplicação expansiva da constituição em que o Supremo não rompera teleologicamente com o que se ousou chamar de “sentimento constitucional” da comunidade, os problemas oriundos da prática do ativismo judicial são intermináveis. O maior deles diz respeito a vulnerabilidade da comunidade que fica à mercê de uma decisão que sobrevalora a visão individual do “justo”, diante de uma argumentação jurídica vacilante, em detrimento do imperativo constitucional construído por consenso democrático.


CONCLUSÃO

Ao fim e ao cabo do presente estudo, pode-se concluir que a legitimidade democrática do Supremo Tribunal Federal em se pronunciar amiúde sobre temas controversos da realidade nacional tem como fundamento a própria Constituição de 1988 que, sob os influxos do paradigma neoconstitucionalista, rompeu com o positivismo formal, abrindo as “janelas” do Direito para uma reflexão sintonizada com a realidade e os valores que orbitam em torno da questão jurídica, abrindo também, por conseguinte, as “portas” do Judiciário para demandas cada vez mais complexas do ponto de vista moral e ético. Tudo isso, necessário dizer, ampliou a visibilidade de nossa Corte Constitucional, que passou a ter um controle social mais efetivo, aproximando-se dos poderes populares. Saliente-se que tal visibilidade soaria estranha não exercesse a Jurisdição Constitucional um poder eminentemente político, como todos os outros, estando, contudo, encarregada de dar a última palavra sobre o texto constitucional e de garantir direitos fundamentais.

Outra constatação que pode ser feita é a de que as decisões que vêm sendo tomadas pela Corte Suprema, ainda que muitas vezes contrárias ao senso-comum majoritário e à grande mídia, não têm rompido com o consenso social. Dito de outro modo, as decisões do Supremo Tribunal Federal podem até contrariar a sociedade analisada de maneira quantitativa – ou mesmo qualitativamente, quando contraria segmentos sociais – mas tais decisões não têm causado abalos ou crises de identidade social que coloquem em xeque a legitimidade do Supremo Tribunal Federal de interpretar/aplicar o texto constitucional. Pode-se dizer, inclusive, que a abertura da Corte Constitucional à participação comunitária seja através das audiências públicas, seja pela intervenção do amicus curiae, ou mesmo pela transmissão ao vivo do plenário, tem erguido suas decisões a um grau de conformação social inquestionável.

Para terminar, embora no decorrer do presente trabalho tenha sido defendido que o destacado papel desempenhado pela Corte Constitucional brasileira nos rumos do país seja absolutamente legítimo, tendo como respaldo o sistema constitucional adotado pela Carta de 88, que trouxe em seu bojo o paradigma neopositivista, embora também neste tópico derradeiro fosse aplaudida a postura casualmente ativista do Supremo Tribunal Federal, não se pode olvidar que, assim como alertara Barroso (2010), exceto em prol da efetivação de direitos fundamentais e da defesa do princípio democrático, numa democracia que tem como fundamento o pluralismo político, o papel principal da vida política do Estado deve ser exercido pelos poderes de representatividade popular, isto é, por aqueles que recebem a chancela do povo para decidir.


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Notas

[1] Neoconstitucionalismo e neopositivismo serão termos utilizados de maneira indiscriminada no presente trabalho, pois não se vislumbra uma distinção conceitual que possa acarretar desvio teórico.

[2] KELSEN, 1998, p. 12.

[3] Em sede de julgamento pelo Tribunal de Nuremberg, os generais nazistas fundamentaram suas atrocidades no puro cumprimento da lei.

[4] TAVARES, 2008, p. 333, grifo nosso.

[5] Expressão utilizada por Daniel Sarmento em “O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e Possibilidades”, 2009, p.43.

[6] No presente trabalho a menção a Jurisdição Constitucional será sempre para se referir ao Supremo Tribunal Federal, malgrado sua definição inclua o controle de constitucionalidade exercido de maneira difusa por Tribunais e juízes de primeiro grau.

[7] SARMENTO, 2009, p. 34.

[8] Nesse sentido a ilustração de Luís Roberto Barroso (2010, p. 08): “Como consequência, quase todas as questões de relevância política, social ou moral foram discutidas ou já estão postas em sede judicial, especialmente perante o Supremo Tribunal Federal. A enunciação que se segue, meramente exemplificativa, serve como boa ilustração dos temas judicializados: (i) instituição de contribuição dos inativos na Reforma da Previdência (ADI 3105/DF); (ii) criação do Conselho Nacional de Justiça na Reforma do Judiciário (ADI 3367); (iii) pesquisas com células-tronco embrionárias (ADI 3510/DF); (iv) liberdade de expressão e racismo (HC 82424/RS – caso Ellwanger); (v) interrupção da gestação de fetos anencefálicos (ADPF 54/DF); (vi) restrição ao uso de algemas (HC 91952/SP e Súmula Vinculante nº 11); (vii) demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol (Pet 3388/RR); (viii) legitimidade de ações afirmativas e quotas sociais e raciais (ADI 3330); (ix) vedação ao nepotismo (ADC 12/DF e Súmula nº 13); (x) não-recepção da Lei de Imprensa (ADPF 130/DF). A lista poderia prosseguir indefinidamente, com a identificação de casos de grande visibilidade e repercussão, como a extradição do militante italiano Cesare Battisti (Ext 1085/Itália e MS 27875/DF), a questão da importação de pneus usados (ADPF 101/DF) ou da proibição do uso do amianto (ADI 3937/SP). Merece destaque a realização de diversas audiências públicas, perante o STF, para debater a questão da judicialização de prestações de saúde, notadamente o fornecimento de medicamentos e de tratamentos fora das listas e dos protocolos do Sistema Único de Saúde (SUS).”

[9] Ibidem

[10] Segundo Daniel Sarmento (2006, p. 281): “Hoje, a opinião pública resulta cada vez menos do embate de ideias entre cidadãos bem informados, sendo cada vez mais definida pelos veículos de comunicação de massa.O sujeito real da democracia contemporânea não é, infelizmente, o cidadão participativo, mas o consumidor apático, que, no intervalo entre a novela e o filme enlatado, assiste no jornal da TV às notícias sobre o último escândalo político. Neste contexto, a mídia assumiu um enorme poder na fixação das agendas de discussão social, na seleção e apresentação dos pontos de vista que serão ouvidos sobre estes temas, e na própria realização das escolhas por cada indivíduo. A opinião pública, dizem os mais céticos, é a opinião publicada.” (grifo inserido)

[11] BRITTO, 2006, p. 31.

[12] Segundo Luis Roberto Barroso (2010, p. 24): “Além dos problemas de ambiguidade da linguagem, que envolvem a determinação semântica de sentido da norma, existem, também, em uma sociedade pluralista e diversificada, o que se tem denominado de desacordo moral razoável. Pessoas bem intencionadas e esclarecidas, em relação a múltiplas matérias, pensam de maneira radicalmente contrária, sem conciliação possível. Cláusulas constitucionais como direito à vida, dignidade da pessoa humana ou igualdade dão margem a construções hermenêuticas distintas, por vezes contrapostas, de acordo com a pré-compreensão do intérprete. Esse fenômeno se revela em questões que são controvertidas em todo o mundo, inclusive no Brasil, como, por exemplo, interrupção de gestação, pesquisas com células-tronco embrionárias, eutanásia/ortotanásia, uniões homoafetivas, em meio a inúmeras outras. Nessas matérias, como regra geral, o papel do direito e do Estado deve ser o de assegurar que cada pessoa possa viver sua autonomia da vontade e suas crenças. Ainda assim, inúmeras complexidades surgem, motivadas por visões filosóficas e religiosas diversas.”

[13] BINENBOJM, 2010, p. 99.

[14] HÃBERLE, 1997.

[15] A ação, movida pelo então Procurador Geral da República Cláudio Fonteles, versava sobre a inconstitucionalidade do art. 5º da Lei 11.105 (Lei de Biossegurança), tendo por fundamento a violação ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana. O relator do caso, o ministro Carlos Ayres Britto, em razão da importância da matéria, julgou adequado ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade, garantindo, assim, uma maior participação da sociedade. A ação foi julgada improcedente sob o argumento de que a pesquisa em células-tronco embrionárias obtidas a partir de embriões humanos produzidos através de fertilização in vitro só poderá ser realizada mediante prévia autorização e aprovação por um Órgão Central de Ética e Pesquisa, o qual deverá ser vinculado ao Ministério da Saúde.

[16] BARROSO, 2009, p. 172.

[17] GOMES, 1997, p. 123.

[18] BELLO FILHO, 2003, p. 231.

[19] BARROSO, 2008, p. 03.

[20] STRECK, 2009, p. 53.

[21] Entende-se aqui por “político” tudo aquilo que está fora do campo do Direito.

[22] SARMENTO, 2009, p. 37.

[23] ZAFFARONI, 1995, p. 94.

[24] Nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello (2009, p. 99), interesse público primário “é o pertinente à sociedade como um todo, e só ele pode ser validamente objetivado, pois este é o interesse que a Lei consagra e entrega a compita do Estado como representante do corpo social”.

[25] Segundo Barroso (2010) a autocontenção judicial é a conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Allender Barreto Lima da; BRAGA, Marina Lisboa. A legitimidade democrática da jurisdição constitucional brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3294, 8 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22156. Acesso em: 28 abr. 2024.