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A crise do serviço público e a concepção de Léon Duguit: uma visão finalística

A crise do serviço público e a concepção de Léon Duguit: uma visão finalística

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O elemento finalístico do conceito de serviço público é algo que persiste e deve sempre persistir ante as mudanças e alterações de mercado, economia, política e sociedade.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo expor os principais termos da teoria desenvolvida por Léon Duguit, especialmente na sua concepção e fundamentação do Estado e na noção de serviço público como razão de ser do Estado. Será exposta a questão da denominada “crise da noção de serviço público” ante o novo papel do Estado neo-liberal, analisando esta questão ante o finalismo da teoria duguitiana do Estado/serviço público voltado para a consecução da solidariedade e interdependência social, ou do próprio interesse público, demonstrando-se assim a inexistência desta crise e a plena aplicação desta visão de Duguit considerando-a em seu aspecto finalístico.

Palavra-chave: Léon Duguit. Teoria do Estado e serviço público. Crise da noção de serviço público. Concepção finalística.

Sumário: I. Introdução; II. Breve Biografia de Léon Duguit; III. A Influência do Pensamento de Émile Durkheim; IV. A Base da Teoria do Estado de Duguit; V. A Soberania e o Conceito de Nação; VII.Os Três Fundamentos do Estado de Dugit; VIII. A Crise da Noção de Serviço Público Numa Perspectiva Duguitiana: Uma Análise Finalística; IX.  Conclusão.


I – INTRODUÇÃO

Tema dos mais caros ao Direito Administrativo, desde sua origem enquanto ramo autônomo do Direito até os dias atuais tem sido a questão da conceituação do serviço público, ou da sua noção, como preferem alguns.

Trata-se de categoria das mais importantes para o estudo do Direito Administrativo, chegando quase que a se confundir muitas vezes com o próprio estudo deste ramo do Direito, ante a sua dimensão e importância para a sociedade, além de buscar definir o exato papel do Estado.

Neste contexto avulta a figura de Léon Duguit, proeminente jurista francês, conhecido como o fundador da “Escola de Serviço Público” ou “Escola de Bourdeux”. Duguit não formulou simplesmente uma teoria sobre o serviço público, mas sim reformulou a própria teoria do Estado e as bases do Direito Público, propondo o serviço público como conceito que substituiria o próprio conceito de poder público, constituindo a própria razão de existir o Estado.

Partindo da constatação das profundas mudanças sociais ocorridas no final do século XIX, realidade que fez com que, na sua visão, a proposta liberal não mais oferecesse resposta adequada, Duguit funda sua teoria no solidarismo, com base nas ideias do sociólogo Émile Durkheim. O solidarismo passa a ser o conceito que substituiria, em sua obra, o conceito de soberania.

As ideias de Duguit constituíram verdadeira revolução que atingiram os pilares do Direito Público. Tratava-se de nova concepção do Direito impulsionada por uma nova realidade social, realidade que se consagraria como o Estado Social, marco sociológico e jurídico que ainda mantém sua atualidade no campo teórico e político.

A concepção proposta por Duguit, seja pelo seu caráter inovador e mesmo polêmico, seja pelo pioneirismo e marcante traço ideológico, influenciaram gerações de juristas, sendo estudadas até os dias atuais, defendida o ou criticada, mas reconhecida pelo seu conteúdo e importância para o Direito Público e mais especificamente para o Direito Administrativo.

A par da evolução do conceito ou noção de serviço, que não constitui objeto deste estudo, fala-se numa crise deste conceito ou noção, especialmente nos dias atuais, em que as transformações do Estado, cíclicas e inevitáveis, levam a novas formas de prestação de serviços, novas figuras jurídicas, a um forte traço econômico, marcado pela livre concorrência e atuação do setor privado em áreas até então tipicamente afetas ao Estado através de prestação de serviço público, algo similar ao do sistema das public utilities do Direito anglo-saxônico, e fortemente causado pelas regras do Direito Comunitário Europeu, marcado pelo aspecto concorrencial e econômico.

Visa o presente trabalho apresentar inicialmente as principais ideias de Duguit, de forma evidentemente resumida, porém não se limitando a tratar especificamente da sua noção de serviço público, mas sim das bases de sua construção teórica, desde a influência das ideias de Durkheim no campo sociológico, passando pela reconstrução da teoria do Estado até chegar a importância dentro de sua teoria da noção de serviço público.

Compreendida a teoria de Duguit se verá a questão da crise atual do conceito de serviço público, ante as novas categorias e figuras surgidas da complexidade dos atuais Estados.

Finalmente se fará um cotejo entre a suposta crise da noção de serviço público e a teoria de Duguit, conferindo-se ênfase no aspecto finalístico de sua teoria, demonstrando a atualidade de suas ideias e a aplicabilidade, ao menos em parte, dos pressupostos finalísticos de sua teoria ao atual quadro do serviço público, noção que persiste ao longo das trajetórias político-econômicas dos Estados.


I I– BREVE BIOGRAFIA DE LÉON DUGUIT

Pierre Marie Nicolas Léon Duguit nasceu em 4 de fevereiro de 1859, em Libourne, na França, vindo a falecer em 19 de dezembro de 1928. No ano de 1882 ele foi aprovado no concurso para professor titular (professeur agrégé), também chamado grand concours, o qual era um concurso único para todas as disciplinas jurídicas, demandando conhecimento integrado das ciências jurídicas[2].

No início de sua carreira Duguit foi professor na cidade de Caen, sendo que em 1886 ele retorna para Bourdeux para lecionar Direito Constitucional. Na Faculdade de Direito de Bourdeux Duguit foi professor e também diretor, cargo que exerceu entre 1901 e 1919.

Como professor a marca característica de Duguit foi seu espírito crítico e combativo contra as teorias tradicionais do Direito, tendo ainda forte atuação social como membro do Conselho Municipal de Bourdeux e estando a frente de várias obras de proteção a infância.

O consagrado professor de Bourdeux se definia como um positivista que procurava uma concepção científica do direito, perseguindo sempre um método indutivo e experimental. Suas concepções o levaram a ser classificado pelos partidos de direita como “republicano de esquerda” e ao mesmo tempo como “grande burguês” pelos partidos de esquerda.

Em suas reuniões periódicas realizadas em sua casa com colegas de faculdade, tais como o historiador Camille Jullian, o físico Duhem e o sociólogo Émile Durkheim, Duguit recebeu grande influência em seus pensamentos, em especial deste último, conforme se demonstrará.

Os diversos rótulos que lhes são atribuídos por autores diversos demonstram a complexidade do sistema duguitiano: para Bonnard um “positivista agnóstico”, para Gurvitch um “objetivista sensualista”, para Laski o precursor do “pluralismo”, para Hauriou um “monista” e “anarquista da cátedra”, e para Waline um moralista, dentre outros tantos rótulos (Farias, 1999, p.15).

Seus trabalhos vertem para a elaboração de uma doutrina do direito e do Estado fundada na natureza sociológica do fenômeno jurídico. Ele recorre a sociologia para diminuir o afastamento do direito em relação as outras ciências sociais. Assim, a análise do Estado e do direito são essencialmente críticas.

Segundo José Fernando de Castro Farias, as reflexões desenvolvidas por Duguit se dividem em três fases. A primeira é marcada pela influência da filosofia de Spencer[3], adotando um organicismo em que o direito e a economia política são vistas como as duas partes que compõem a sociologia. Na segunda fase, a partir de 1901, há forte influência do pensamento de Durkheim, calcado num sociologismo experimental, recorrendo principalmente ao conceito de solidariedade social para a análise jurídica. Já num terceiro momento, a partir de 1914, ele faz grande apelo ao trabalho de Santo Tomás de Aquino e ao sentimento de justiça (Farias, 1999, p.19-21).

 Algumas de suas obras mais importantes são: Traité du Droit Constitutionel (5 vol., 1911), Les Transformations Générales du Droit Privé depuis le Code Napoleon (1912), Les Transformations Générales du Droit Public (1913), Le Droit Social, le Droit Individuel et les Transformations de l’Etat (1922), Le Pragmatisme Juridique (1923), Lecciones de Derecho Público General(1926)[4].


III– A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO DE ÉMILE DURKHEIM

Apesar de ter sofrido outras importantes influências, o pensamento de Duguit em sua proposta de reformulação do Estado, do fundamento do direito e da relação Estado x indivíduo x sociedade, teve decisiva influência das idéias solidaristas de Durkheim.

Émile Durkheim é considerado um dos pais da moderna sociologia, juntamente com Max Weber. Após ter estudado na École Normale Superieure se formou em filosofia no ano de 1882, tendo ido trabalhar cinco anos mais tarde na Universidade de Bourdeux como professor de pedagogia e ciências sociais, quando então começou seus estudos sociológicos (Pereira, 2002).

Durkheim é o fundador da chamada Escola Francesa de Sociologia, sendo um ferrenho opositor da educação religiosa, defendendo que o método científico era a forma de desenvolvimento do conhecimento. Podemos apontar como principais pontos de sua teoria sociológica:

Existem fenômenos sociais que devem ser analisados e demonstrados com técnicas especificamente sociais;· A sociedade era algo que estava fora e dentro do homem ao mesmo tempo, graças ao que se adotava de valores e princípios morais;· As pessoas se educam influenciadas pelos valores da sociedade onde vivem;· A sociedade está estruturada em pilares, que se manifestam através de expressões (conceito de estrutura);· Divisão do trabalho social: numa sociedade cada indivíduo deve exercer uma função específica, seguindo direitos e deveres, em busca da solidariedade social. Desta forma, pode-se chegar ao progresso e avanço para todos.

Acerca do solidarismo, objeto de interesse para este estudo, Durkheim escreveu em 1893 o livro A Divisão do Trabalho Social, que é sua grande obra de sociologia econômica, fruto de sua tese de doutoramento. Esta tese é uma crítica profunda ao individualismo utilitarista dos economistas da época. Usando suas palavras, a vida econômica não nasceu da vida individual, ao contrário foi a segunda que nasceu da primeira. Ele centra suas atenções nas conseqüências sociais do modo capitalista de organização social e econômica, partindo de uma premissa que os fenômenos econômicos são fruto de um contexto histórico, sendo influenciado pelo comportamento dos indivíduos, os quais influenciam. O individualismo racional seria um fenômeno recente e gradual, característico de sociedades modernas (Silva, 2006).

Partindo de uma análise institucional da economia ele tenta abordar os efeitos desestabilizadores dessa nova sociedade e do capitalismo, tendo como tema central a relação indivíduos x coletividade e a ordem social.

Segundo Durkheim, para que vários indivíduos possam constituir uma sociedade é necessário o estabelecimento de laços de solidariedade, podendo esta solidariedade ser mecânica ou orgânica. A primeira se caracteriza por uma igualdade entre os indivíduos, todos se assemelhando em idéias e valores, enquanto que a segunda é exatamente o oposto, em que o consenso resulta ou é fruto da diferenciação, havendo analogia com o corpo (orgânico), onde o todo depende de cada órgão. As sociedades primitivas tem solidariedade mecânica.

A nova ordem de divisão do trabalho capitalista, especializada, traz, segundo os utilitaristas, maior ganho geral, portanto maior felicidade a todos. Ele contradita esta tese com o argumento de que esta nova ordem na verdade traz novos problemas, necessidades e é motivo de infelicidades, verificada no aumento de suicídios, pois a felicidade esta ligada ao equilíbrio entre as necessidades e os meios para satisfazê-las.

Para Durkheim a divisão de trabalho com fins a aumento de eficácia, conforme justificado pela teoria econômica, contraria a solidariedade orgânica, pois essas regras não poderia ser explicadas em termos puramente econômicos. Parte Durkheim do pressuposto que assim pensando os indivíduos seriam diferentes conscientemente uns dos outros antes de ter ocorrido a própria diferenciação social. A individualidade não pode ter ocorrido antes da solidariedade orgânica e da divisão de trabalho. A divisão de trabalho deve, assim, ser encontrada na morfologia da sociedade.

Como a sociedade mecânica precedeu a solidariedade orgânica não é possível explicar os fenômenos da diferenciação social a partir dos indivíduos. Na ideia defendida por Durkheim as instituições não tem origem contratual e nem se fundam a partir de acordos que objetivam fins comuns, pelo contrário, elas tem origem em momentos de efervescência social onde as relações entre os homens são mais intensa, qualitativa e quantitativamente (Pereira, 2002).

Nessa ordem de ideias as instituições organizam as relações sociais e atividades econômicas, regulando os conflitos de interesse e permitindo a própria definição dos interesses individuais. As regras sociais nunca terão seu peso diminuído pelo individualismo, havendo, assim, uma prioridade histórica da sociedade sobre o indivíduo, sendo os fenômenos individuais explicados pelo estado da sociedade.

Nas sociedades modernas o problema é a manutenção de um mínimo de consciência coletiva, sem o que haverá desintegração social. O problema central das sociedades modernas é a relação indivíduo x grupo. Para evitar uma anomia própria dessas sociedades é necessário organizar grupos profissionais que favoreçam a integração dos indivíduos na coletividade, sendo verdadeiro antídoto ao progresso da divisão de tarefas econômicas e sociais (Pereira, 2002).


IV – A BASE DA TEORIA DO ESTADO DE DUGUIT.

O Estado de Direito é uma concepção de Estado que surgiu como contraponto ao Estado de Polícia. Este é caracterizado essencialmente pelo poder absoluto do Estado, confundindo-se com arbitrariedade, uma vez que o governante e os agentes do Estado não se submetiam a lei. Com o Estado de Direito tal situação é alterada, passando o Estado a estar sujeito ao império do direito, sujeitando-se as mesmas leis que os cidadãos, que passam a ter uma proteção contra a arbitrariedade do Estado.

Esses movimentos de limitação de poder político do Estado são identificados já mesmo na Carta Magna de 1215, sendo que para além do aspecto político e mais especificamente no campo jurídico o Estado de Direito se liga a Revolução Gloriosa na Inglaterra em 1688, a independência dos Estados Unidos da América em 1776 e na França teve o seu ápice com a Revolução Francesa de 1789.

Teve este movimento de afirmação do Estado de Direito forte apelo liberal, uma vez que os movimentos norte-americano e francês estiveram inspirados no liberalismo enquanto afirmação do indivíduo e do individualismo, especialmente nos seus direitos naturais sagrados contra o Estado[5].

Quando da passagem do final do século XIX para o século XX o cenário político, histórico e social era outro, agora inspirado na revolução industrial, no aumento em quantidade e complexidade da própria função do Estado, na previdência social, no movimento operário e o sindicalismo. A resposta para este quadro era uma readequação da própria teoria do Estado, considerada por alguns como uma evolução do Estado Liberal clássico e por outros como um novo Estado de Direito, calcado na supremacia da lei, porém adotando-se critérios sócio-jurídicos para fundamentar um Estado de Solidariedade.

Segundo Alexandre Santos Aragão (Aragão, 2008, p. 35), a teoria do Estado de Duguit corresponde a uma teorização que visava atender a passagem do Estado monoclasse para o Estado pluriclasse[6], com conseqüências no Direito e no Estado, essencialmente sobre suas ações e fundamentações.

Para Duguit as teorias acerca do Estado de Direito não atendiam a esse novo quadro. Nem a visão de Stahl sobre o Estado de Direito formal, limitador do papel do Estado, nem a visão revolucionária francesa de soberania popular e divisão de poderes, ou ainda a concepção de Carré de Malberg da supremacia do legislador conseguiam responder ao novo quadro social existente. Da mesma forma a teoria alemã da Autolimitação do Estado, formulada por Ihering, que conferia a lei a supremacia absoluta, deixando pouco espaço ao parlamento e conferindo poder a burocracia atendia aos novos tempos, pois segundo Duguit o Estado, nesta concepção, se submetia as leis que ele mesmo estabelecia, mantendo intocada sua soberania. E esta soberania, para esse jurista francês, deveria ser da lei, com base na solidariedade social, prevalecendo sobre o individualismo (Farias, 1999, p. 59 e s.).

Duguit considera que confundir o Estado com o direito, como o fez Kelsen, torna difícil estabelecer o fundamento da limitação do Estado por este direito, pois tudo é o Estado. Isto, para ele, era uma verdadeira negação do direito público. Além disso, tal fórmula não abre espaço ao pluralismo político, pois em sua visão o direito não é uma criação do Estado, mas sim independente deste, impondo-se na verdade ao Estado como se impõe ao indivíduo (Duguit, 2005, pp. 12-25).

Assim também na questão da autolimitação, pois esta limitação, se imposta pelo próprio Estado, modificável a qualquer tempo também pelo Estado, não implica uma subordinação a lei. A Teoria da Autolimitação leva a uma concepção de poder público (puissance publique), que viria a ser superado pela concepção de serviço público de Duguit (Justen, 2003, p. 25)

Propõe Duguit uma reformulação do Estado com base no solidarismo social, o que implicava uma reflexão profunda sobre o próprio Estado Contemporâneo, não se limitando a uma revisão e ajuste do Estado Liberal, mas sim uma nova forma de Estado, com uma radical mudança no plano das práticas sociais, compreendendo uma nova racionalidade político-jurídica.

Este Estado calcado no direito de solidariedade proposto por Duguit propõe o abandono do individualismo liberal, encontrando sua essência no pluralismo, nas diversas forças da sociedade. Os campos político e jurídico tornam-se âmbitos de mediação de valores pessoais e políticos. A soberania passa a ser fundada no direito de solidariedade, sendo criada pela sociedade subjacente a organização estatal. Abandona-se a lógica subjetivista e se passa a uma lógica objetiva, do direito social (Duguit, 2005, pp. 18-23).

O poder, que para o liberalismo clássico é ocupado pelo Estado enquanto representante da sociedade, é externo a sociedade e não a incorpora. Na concepção solidarista este poder é construído dentro da sociedade, em suas múltiplas forças, sempre calcado nas práticas do direito de solidariedade, demandando um Estado que respeite a liberdade na sociedade, efetivamente emancipada, mas que também intervenha na consecução da igualdade social, da solidariedade social.    


V – A SOBERANIA E O CONCEITO DE NAÇÃO

A clássica divisão de soberania a tratava no viés da soberania externa, frente outros países numa visão de direito internacional, e da soberania interna, nacional ou popular, que é atribuída ao Estado em razão do poder concedido a nação. Tais conceitos não servem mais as transformações sociais do século XIX e início do século XX. A crise da noção de Estado e soberania caminhava concomitantemente.

Desde a Revolução Francesa que a noção de soberania nacional se consolidou como um dos fundamentos do direito público, sendo verdadeiro dogma da sociedade francesa. Porém a doutrina contestou tal conceito, a exemplo de Royer-Collard e Guizot, que falavam em uma soberania da justiça e da razão, passando por Carré de Malberg, que dividia a soberania em soberania nacional e soberania do povo, que segundo Bacot implicavam uma única soberania de uma coletividade indivisível de cidadãos atuais, até Saint-Simon e Auguste Comte, que criticavam esta noção como metafísica, distanciada da realidade dos fatos, só tendo significado se contraposta a soberania divina (Farias, 1999, pp. 142-147).

Duguit parte desta linha de crítica de Comte, onde a noção de soberania serve para derrubar a soberania da monarquia do ancien regime, substituindo o poder divino pelo poder do povo. A questão era como tornar efetiva a parte de cada um do povo e como equalizar a relação Estado x indivíduo na nova realidade do século XIX.

A teoria da soberania não rompeu, segundo Duguit, com a lógica anterior. Embora ele não negasse a importância da revolução na substituição da titularidade do Estado, a essência da concepção jurídica da soberania permanecia subjetiva, em razão de sua origem (nação), e não em razão de seu exercício conforme o direito.

Compreende Duguit que a ideia de nação é abstrata e vazia, não atendendo a nova divisão do trabalho e das classes sociais, sendo que a soberania era ilimitada, absoluta, admitindo somente um centro de decisão político. O conceito de nação necessitava empreender a unidade nacional, a coesão social, representando critérios sociológicos, numa nova estrutura social haurida da realidade, e não mais metafísica. A nação é uma realidade que se expressa no laço da solidariedade, atendendo a fragmentariedade da nova ordem social (Farias, 1999, pp. 148-152).

Dessa forma, Duguit propõe a substituição da noção de soberania pela noção de serviço público, uma vez que o poder não pode se legitimar pela causa de sua origem, mas pelo objetivo que persegue, imposto legitimamente pelo direito social. Não há um eu comum, uma personalidade na coletividade com vontade distinta das vontades pessoais.  

Nesta concepção em que a noção de soberania é substituída pela noção de serviço público, há obrigações dos governantes para com os governados, sendo a realização dessas obrigações a conseqüência e o fundamento da força dos governantes. As regras que limitam o Estado e sua força não são as regras comuns, mas a do Direito Administrativo. O Estado, como órgão da vontade dos governantes, se subordina a uma ordem objetiva não criada por ele próprio, que repousa na idéia da solidariedade social. Dessa forma o Estado passa a ser uma realidade distinta do Direito, sendo por ele limitado (Aragão, 2008, pp. 76-80).   

Em seu Tratado de Direito Constitucional ele afirma:

La nocción de servicio público sustituye al concepto de soberania como fundamento Del derecho público. Seguramente esta nocción no es nueva. El dia mismo en que bajo la acción de causa muy diversas, cuyo estúdio no nos interesa en este momento, se produjo  La distinción entre gobernantes y gobernados, La nocción de servicio público nació en el espíritu de lós hombres. Em efecto, desde ese momento se há compreendido que ciertas obligaciones se inponían a los gobernantes com los gobernados y que La realizacción de estos deberes era a la vez y la consecuencia y la justificación de su mayor fuerza. Tal es esencialmente La nocción de servicio público. Lo nuevo es el lugar preferente que esta nocción ocupa hoy en el campo del derecho, y La transformación profunda que por tal camino se produce em el derecho moderno (Duguit, Las Transformaciones del Derecho Público y Privado, 1975, p. 27)


VI – OS TRÊS FUNDAMENTOS DO ESTADO DE DUGUIT

É possível afirma que Duguit elabora sua teoria do Estado com base nos seguintes pilares: 1. substituição do conceito de soberania pelo conceito de solidariedade, 2. substituição do conceito de poder público pelo conceito de serviço público, 3. Substituição do Estado Liberal pelo Estado Social.

Neste sentido, a teoria do jurista de Bourdeaux desconstitui a base do direito público tradicional, pois descartava as noções de soberania e consequentemente de poder público e personalidade jurídica. Para este jurista a limitação do Estado se dá por um direito objetivo, não mais se legitimando o Estado por uma concepção subjetiva, mas objetiva, baseada no direito de solidariedade.

Nas proposições de Duguit o Estado se legitima não pela sua origem, mas pela sua função ligada e exercida de conformidade com o direito social. O direito objetivo na sua concepção é uma regra social fundamentada no fato da solidariedade social que une os membros da sociedade.

Em sua teoria Duguit afirma que o Direito é somente o texto posto, formal, tendo por trás uma realidade anterior constante no grupo social, ainda que latente. Esse estado de consciência dos indivíduos é que compõem o Direito, fundando-se a norma social criadora do Direito na interdependência e solidariedade dos indivíduos que compõem a sociedade. Essas normas não são criadas pelo Estado, se impondo a ele objetivamente (Aragão, 2008, pp. 78-80)

Neste contexto o Estado é um fato, ocorrendo quando um indivíduo, grupo ou maioria monopolizam a força maior, passando a haver governantes e governados. Entretanto esta força não é imposta por ordem, mas sim movida legitimamente quando de acordo com o direito (Duguit, 2005, pp. 30-35).

Duguit propõe a substituição dos institutos tradicionais do direito público e do individualismo por um sistema político-jurídico essencialmente realista e socialista, baseados no direito da solidariedade. Assim, o Estado não é mais uma força soberana que comanda, mas sim uma força capaz de criar e gerar serviços públicos. A noção de serviço público se torna fundamental para o direito público.

O Estado não mais é uma pessoa jurídica investida de direito subjetivo de comandar e os governantes não tem mais nenhum direito. Eles exercem, simplesmente, uma função na sociedade, sendo submetidos a uma regra de direito, devendo aplicar a força que dispõem para assegurar essas regras de direito. Ou seja, eles são limitados pelo direito, pelas regras da solidariedade social, e assim devem intervir na sociedade para implantá-la. O Estado tem de ter condições de implantar a solidariedade social, que é um dever seu, exeqüível não somente por uma abstenção, mas por ações concretas (Duguit, 2005, pp. 25-45).

Com base nessas premissas Duguit propõe uma Teoria do Estado fundamentada em três eixos básicos (Farias, 1999, pp. 71-84):

1 – Direito Objetivo: passa o Estado a ser limitado por um direito objetivo, sendo que a legitimidade do Estado não mais se explicaria numa visão subjetivista, mas sim estaria calcado numa concepção jurídica objetiva, associado ao direito de solidariedade. Com isto Duguit não pretende pregar a anarquia ou a negação do poder do Estado, mas sim legitimar o Estado não por sua origem, mas pelo seu objetivo, que deve ser permeado pelo direito social. A regra social é pluralista, unindo todos, perfazendo uma concepção indivíduo x Estado mais estreita. Sendo os governantes investidos de força eles usarão legitimamente esta força quando de acordo com o direito. A concepção individualista de direito assim como a clássica concepção de direito público fundado na soberania cedem a um sistema jurídico-político realista, social, solidário. Disto decorre que a noção de serviço público passa a ser a noção fundamental do direito público. Os governantes, submetidos como todos ao direito, não mais tem direito, mas deveres, dentro de uma lógica de um Estado que tem prestações positivas ante a nova realidade social do final do século XIX e início do século XX.

2 – Descentralização: propugnava Duguit uma descentralização necessária ante os novos fenômenos da sociedade moderna, agrupada em sindicatos e associações. A representação social e política deveria ser repensada, caminhando a sociedade a um federalismo de classes organizadas em sindicatos e associações, onde o Estado passa a ter um papel mais de controle e fiscalização. Aceita Duguit o intervencionismo econômico e social do Estado, considerado inevitável, dentro de uma necessária autonomização e descentralização social, num pluralismo político e jurídico descentralizador que cresceria paralelamente aos serviços públicos. Este aumento do número dos serviços públicos, próprio do progresso da civilização, levaria um aumento de poder dos governantes, contrabalançado pela descentralização. Ele propunha uma participação dos sindicatos na gestão dos serviços públicos, com autonomia maior dos funcionários públicos, além do sistema de concessões. Os grupos sociais organizados passariam a ter maior autonomia frente ao Estado e participação na gestão pública, levando a menos leis e mais convenções, tendo os sindicatos e associações papel de coordenação entre os grupos sociais. O papel dos sindicatos não se resume ao de defesa dos sindicalizados, mas também cumpre papel político de direção e impulso do serviço público. A noção de serviço público visa, ao contrário da soberania, a uma responsabilidade do Estado.

3 – Noção de Serviço Público: surgida da jurisprudência francesa nos casos Blanco, Feurty, Terrier e Thérond, onde se transferiu o contencioso administrativo para a jurisdição administrativa, condenando a distinção entre atos de autoridade e atos de gestão, colocando, com o caso Blanco, o serviço público como base da definição de competência administrativa. Somente após essas diretivas adotadas em 1911 pelo Conselho de Estado Francês que Duguit passou a concentrar-se nesta noção de serviço público, erigindo-a a elemento essencial da teoria do Estado principalmente na obra Lês Transformations du Droit Public, de 1913, embora houvesse tratado do assunto em obras anteriores, especialmente no seu Traité du Droit Constitutionnel, tomo II. Duguit confere a noção de serviço público um caráter de diretiva ou política jurídica, substituindo a noção de soberania pela noção de serviço público como fundamento do direito público, sendo elemento de transformação social. A nova maneira de pensar o Estado sai da soberania e passa para a solidariedade social, passando-se do Estado Liberal para o Estado Social. Sua noção é vaga e flexível:

“toda atividade cujo cumprimento deva ser assegurado, regulamentado e controlado pelos governantes, porque o cumprimento desta atividade é indispensável para a realização e para o desenvolvimento da solidariedade social, e porque ela tem uma natureza tal, que só pode se realizar completamente pela intervenção da força governante.” (Duguit, Manual de Derecho Constitucional, 2005, p. 67) 

Esta noção implica necessariamente uma idéia de obrigação positiva, passando-se de um Estado de poder público para o Estado com função social. Isto se assenta na idéia de Durkheim de que todo o direito é público no sentido de que tem uma função social e que todos os indivíduos são, mesmo que a títulos divesos, funcionários da sociedade (Farias, 1999, p. 88). A afirmação de que todo direito é social não evidencia simplesmente uma visão orgânica do direito na sociedade num sentido funcional, mas sim uma lógica de superação do direito privado x direito público pelo direito da solidariedade. O serviço público é a expressão da norma social latente, da solidariedade social, cujas práticas todos, governantes e governados, se submetem, todos compondo os laços da solidariedade social. Os governantes passam a ser os gerentes dos assuntos da coletividade. A intervenção do Estado ante a nova realidade social, política, e econômica demanda intervenção e ações positivas, as quais são submetidas ao direito, numa concepção objetiva, de um conteúdo social realista e não da soberania abstrata. Tudo fundado na noção de serviço público e dentro de uma nova concepção de Estado, que rompe com a clássica concepção liberal, não constituindo evolução desta. O serviço público, entendido como noção, passa a ser um dos elementos do sistema geral do direito de solidariedade, como critério geral sociológico, jurídico e político. O que define se uma atividade é privada ou não passa a ser sua finalidade social, mesmo exercida por particulares.

Neste sentido o Estado passa a prestar não somente os clássicos serviços de defesa interna e externa e justiça, mas outros de ordem técnica, prestados por simples operações materiais.

O serviço público era criado, em sua visão sociológica, não pelo Estado, mas pela sociedade, pela comunhão de opiniões em que determinado serviço era de interesse essencial das pessoas, e, portanto deveria ser garantido pelo Estado/coletividade. Essa garantia de prestação implicava em ser executado em regime de direito público ou privado, por agentes públicos ou particulares, o que era criticado fortemente por Jéze, que entendia que somente era serviço público o que se perfazia por regime de direito público. Para Duguit a caracterização como serviço público não importava monopólio do Estado, sendo que certas atividades, ainda que pudessem ser prestadas pelos particulares, são objeto de serviço público quando prestadas pelo Estado (Aragão, 2008, pp. 80-86)

Todo membro da sociedade, na concepção de Duguit, tem obrigações. E o Estado tem obrigações ainda mais fortes, visando concretizar o solidarismo, sendo limitado pelo direito objetivo, pelas regras de Direito, e não pela puissance publique (Justen, 2003, p. 31).

Como disse Duguit em seu Tratado de Direito Constitucional, o serviço público est indispensable a la realisation et au développement de l’interdépendence sociale, et qu´elle est de telle nature qu´elle ne peut êttre réalisee completèment que par l´intervencion de la force gouvernante (Duguit, Traité du Droit Constitucionnel, T. II, 3ª Ed., 1928, p. 61).   

Para Duguit implicava o serviço público descentralização de três ordens (Farias, 1999, p. 95):

1 – Regional e Patrimonial: afetação de patrimônio autônomo a gestão de determinado serviço público.

2 – Funcional: autonomia e papel de direção a funcionários e sindicatos.

3 – Concessão: a particulares sob o controle de governantes.

Em apertada síntese esta é a concepção da noção de serviço público de Duguit, formulada ante a realidade de seu tempo, concepção que influenciou decisivamente a jurisprudência do Conselho de Estado francês e a doutrina administrativista até a chamada crise desta noção clássica do serviço público.


VII – A CRISE DA NOÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO

A doutrina francesa clássica do serviço público teve inegável influência no desenvolvimento da doutrina acerca do serviço público e do próprio direito administrativo em muitos outros países, embora Mônica Spezia nos advirta que em nenhum outro país esta noção teve tamanha importância como na França (Justen, 2003, p. 19), onde visou ora justificar a existência do Estado, ora fundamentar o Direito Administrativo e finalmente identificar um povo e seus anseios.

Com as transformações sociais e políticas ocorridas ao longo do século XX, a noção de serviço público, surgida fortemente, ao menos na concepção de Duguit, também em momento de mudanças profundas no cenário político e social, teve duas grandes crises.

Após a “consagração” da doutrina francesa do serviço público ocorrida na virada do século XIX para o século XX, a partir da década de 1920 o Estado começa a se imiscuir em áreas tradicionalmente afetas ao setor econômico/industrial, executando-as diretamente, sendo admitido regime de Direito Privado na prestação de serviços, assim como passando a haver a forte participação do setor privado tendo o Estado como gestor/regulamentador. Todo este quadro levou a se afirmar a “crise da noção do serviço público”.

Nos anos 1950, após a segunda grande guerra, houve um novo movimento intervencionista, com estatizações e assunção pelo Estado de inúmeras áreas, o que era necessário para a reconstrução dos países no pós-guerra. Nesta época se revigora a noção do serviço público clássico.

Com as críticas ao Estado Social e sucessivas crises econômicas a partir dos anos 1970 as ideias liberais, agora sob o rótulo de neo-liberais, retornam fortalecidas e pregando privatizações, Estado gerencial, eficiência, desregulação da economia e outras medidas, a título de diminuição de déficit público e eficiência estatal. Tal processo se acentua com a globalização econômica, especialmente no início dos anos 1990, que demandava uma economia cada vez mais aberta, desregulada, e de mercado, sem a presença do Estado (Frieden, 2008, pp. 19-29).

Outro fator preponderante nesta questão são os postulados do direito comunitário europeu, que necessita de livre comércio e livre circulação de bens e serviços na Europa para consolidar a União Européia, portanto sem um Estado interventor.

Tudo isto leva a se falar em nova crise da noção de serviço público, pois o Estado se retrai cada vez mais, e como disse José Morenilla, citado por Dinorá Grotti, a crise é material, por se discutir a própria operatividade na articulação das operações, institucional, por se tratar de relativização da especificidade da atuação administrativa, e consequentemente dogmática (Grotti, 2003, p. 73). Esta autora ainda observa, citando José Palasí, que agora a crise se dá não por abuso da noção ou pelo fato de o Estado desenvolver atividades econômicas/industriais, mas ao contrário, por não desenvolver, ele próprio, as atividades típicas do serviço público.

Ainda segundo Dinorá Grotti a crise surge com a alteração dos elementos integrantes da noção de serviço público, em sua concepção subjetiva, material e formal, compreendendo respectivamente quem presta o serviço, qual a atividade prestado e por meio de qual regime jurídico (Grotti, 2003, p. 71).

Diante disto autores como Gaspar Ortiz e Enrique Laso proclamaram o fim desta noção, chegando o primeiro a propor o enterro do conceito, conforme mencionado por Gustavo Pereira em artigo sobre o tema.[7]

A noção de serviço público, polêmica por natureza, que sempre enfrentou dilemas jurídico-filosóficos em sua definição, caracterização e função, passa também a ser considerada por muitos superada ante o chamado Estado Gerencial, que não executa os serviços públicos, mas simplesmente os controla e regula.


VIII – A CRISE DA NOÇÃO DE SERVIÇO PUBLICO NUMA PERSPECTIVA DUGUITIANA: UMA ANÁLISE FINALÍSTICA.

Analisando a diferença entre noção e conceito o professor Eros Grau explica que o conceito é atemporal, tendo a possibilidade de se engendrar uns aos outros no interior de categorias deteminadas. Ele ainda afirma que a história e o tempo não tem como ser objeto, consequentemente de um conceito. Já a noção, segundo este mesmo autor, é o esforço sintético para produzir uma ideia que se desenvolve a si mesma por contradições e superações sucessivas, sendo nesse sentido homogênea ao desenvolvimento das coisas (Grau, 1988, p. 264). Com base nisto este autor trata o serviço público como noção, evitando a sua conceituação.

De fato o serviço público, seu regime, suas características, operabilidade e outros tantos fatores vem sofrendo várias mutações ao longo da história, sofrendo evidentemente, por estar inevitavelmente ligado ao Estado, as variações de governos, sistemas político-filosóficos de governantes, ideologias, além da economia. Seria impossível que tal noção fosse estática.

Apesar disso não se pode ter a pretensão de simplesmente desconstituir tal noção, desprestigiá-la, ignorá-la ou compreendê-la a margem de institutos ligados ao Estado, e assim ao próprio Direito Público. Trata-se de fato mutável ao longo da linha do tempo, com historicidade própria e rica, motivo pelo qual suscita tantos debates e teorias.

Quando da concepção de Duguit acerca do Estado e da fundamentação do Estado com base na noção de serviço público, a realidade social, política e econômica demandava uma resposta para a impossibilidade do Estado Liberal de Direito em tratar esta nova realidade. A visão individualista e a função eminentemente garantidora do Estado não mais se adequavam ao uma sociedade com o traço industrial, com a formação de grandes centros urbanos que demandavam serviços, com o aparecimento de novas classes sociais, especialmente o operariado e a burguesia industrial, e assim por diante.

Duguit teve o mérito inegável de compreender estas transformações, certamente das mais radicais e importantes da história humana, e reconceber o Estado em sua fundamentação, assim como na sua função e relação com o indivíduo/sociedade, além de rever o próprio individualismo vigente ante a sociedade e classes.

Dentro desta concepção duguitiana o serviço público ocupou um papel central, dentro de uma lógica solidarista, numa verdadeira gênese do Estado Social, com fundamentação sólida e adequada as suas proposições. Mais que isto, ele tinha a perfeita consciência da necessidade desta intervenção forte do Estado para prestar os serviços que eram inexistentes ou insuficientemente prestados, serviços básicos que se tornaram num curto espaço de tempo em termos históricos para uma parcela considerável da população.

Ao propor que o Estado não antecede o Direito, sendo um fato, e que ele tem por fundamento não a soberania, mas o serviço público, Duguit legitima o Estado não pela sua origem, mas pela sua função, que é a prestação do serviço público, ele na verdade estabelece uma absoluta noção finalística do Estado e do serviço público, que é atender a solidariedade social.

Esta visão finalística do serviço público talvez seja o traça mais marcante da teoria de Duguit, e neste sentido sua teoria pode ser considerada mais atual que nunca. Não há como se pensar o Estado, seja em que função ou atividade for, senão dentro de uma visão finalística, que é o interesse público. Da mesma forma o serviço público, que numa visão estritamente finalística tem de atender sempre e sempre o interesse público.

Compreendida a teoria de Duguit neste sentido finalístico temos que a questão da crise da noção do serviço público na verdade é uma mutação histórica, ante uma nova realidade político, social e econômica, diante da qual a noção do instituto é adaptada, mantendo-se, porém a questão do fim maior de se ter um serviço público, que é o interesse público ou coletivo, em última análise a interdependência e a solidariedade social.

É interessante notar que este traço finalístico é tão claro na proposição duguitiana que ele mesmo admitia em sua teoria que os serviços públicos fossem prestados por particulares. Neste sentido o que define se uma atividade é privada ou não passa a ser sua finalidade social, mesmo exercida por particulares (Farias, 1999, p. 88 e segs.).

Duguit ainda falava em garantia de prestação, podendo ser executado em regime de direito público ou privado, por agentes públicos ou particulares. Para ele a monopólio estatal não caracterizava o serviço público, sendo que certas atividades, ainda que pudessem ser prestadas pelos particulares, são objeto de serviço público quando prestadas pelo Estado (Aragão, 2008, pp. 80-86)

Nesta linha de raciocínio, as novas formas adotadas pelo Estado para cumprir e executar a solidariedade social, o interesse público, essencialmente pelo Estado regulador, não refogem a visão finalista de Duguit. Além disso o Estado continua prestando obrigações positivas em prol da consecução de Direitos Sociais, prestações que mesmo numa visão neo-liberal são necessárias.

Odete Medauar fala nesta evolução da noção de serviço público, compreendendo a questão comunitária europeia muito mais no aspecto da necessidade econômica, mantendo-se atuais as concepções de Duguit sobre serviços essenciais, falando ainda no conceito de universalidade do direito comunitário europeu (Medauar, 2003, pp. 534-538), pelo qual o serviço tem de ser disponível a todos.

Esta questão da universalidade, que tem como traço marcante alcançar toda a coletividade, substitui, na visão de Dinorá Grotti, citando Morenil, o conceito de público, mantendo-se uma concepção finalista e substantiva do serviço público, sendo excluído o papel da Administração em executar esses serviços (Grotti, 2003, p. 81), tendo sim o papel de regulação e disciplina, assegurando esta universalidade, a acessibilidade, continuidade, igualdade, responsabilidade e garantia.

Se depreende de tudo isto que apesar da evolução dos institutos, movida em regra pelas mudanças políticas, sociais e econômicas, a interdependência social, o solidarismo e o interesse público hão sempre de prevalecer, cabendo ao Estado, em última análise, sua garantia, seja gerindo ou executando serviços públicos assim considerados finalisticamente, assegurando ainda a sua universalidade e consentâneos desta.


IX – CONCLUSÃO.

Os enunciados de Duguit constituem verdadeiro marco no campo do Direito de Estado, Direito Público e mais especificamente do Direito Administrativo, tendo ainda importância fundamental nos primórdios do estabelecimento teórico do chamado Estado Social.

Mais que elaborar uma teoria Duguit elaborou um sistema, e para tanto fez o que é necessário em mudanças de paradigmas nas ciências sociais: propôs uma ruptura com o clássico Estado de direito liberal. Não por outro motivo foi alvo de tantas críticas e até hoje é estudado e debatido pelos estudiosos do tema.

Talvez o mais marcante em sua visão seja a plena consciência da necessidade imperiosa de se alcançar a solidariedade social, fato que mesmo o neo-liberalismo não pode ignorar. Pensar o Estado de outra forma implica relegar muito do que é básico a existência humana condigna ao mercado, e as consequências podem ser terríveis, haja vista a atual crise europeia.

Sua consagração finalística da questão do serviço público é algo que persiste e deve sempre persistir ante as mudanças e alterações de mercado, economia, política e sociedade.

A noção de serviço público, atendido o seu sentido finalista de alcançar a solidariedade social e o interesse público, tem espaço para evoluir ainda mais.


BIBLIOGRAFIA

 

Aragão, A. S. (2008). Seviço Público. Rio de Janeiro: Forense.

Duguit, L. (2005). Fundamentos do Direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris.

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Farias, J. F. (1999). A Teoria do Estado no Fim do Século XIX e no Início do Século XX . Rio de Janeiro: Lumen Juris.

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Pereira, H. C. (2002). Durkheim: solidariedade Orgânica e Mecânica. Acesso em 03 de janeiro de 2012, disponível em http://docentes.esgs.pt/csh/PSI/docs/se_A12.pdf.

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Silva, C. D. (2006). O Princípio da Solidariedade. Acesso em 12 de setembro de 2011, disponível em http://www.rzoconsultoria.com.br/resources/multimidia/files/1164885118_Art20_PrincipioDaSolidariedade.pdf.


Notas

[1] Aluno do Curso de Mestrado em Direito e Políticas Públicas do UniCEUB ([email protected]).

[2] Vide http://www.ugr.es/~redce/REDCE4/articulos/17duguit.htm

[3] Herbert Spencer foi um filósofo inglês representante do positivismo, considerado o pai do “Darwinismo social”, aplicando as ideias de Darwin aos demais campos da atividade humana.

[4] Vide http://maltez.info/biografia/duguit.pdf.

[5] O liberalismo clássico, em seus primórdios, teve como expoentes nomes como John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Kant (1774-1804), Adam Smith (1723-1790), Humboldt (1767-1835), Benjamin Constant (1767- 1830), Alexis Tocqueville (1805-1859) e John Stuart Mill (1806-1873). O ideário liberal se desenvolveu fortemente nas colônias americanas e na França, podendo ser sintetizado pelas ideias da defesa da Liberdade, Tolerância, Defesa da Propriedade Privada, Limitação do poder e Individualismo.

[6] Concessão de poder político a todas as classes sociais através do sufrágio universal. Esta participação gerou mudanças nas funções do Estado e no próprio Direito, pois tiveram que passar a ser finalísticos, a atender finalidades sociais concretas, a atender a acordos políticos do parlamento. Os serviços públicos passam a ser direitos de cidadania e as atividades econômicas passam a ter de atender a todas as camadas (água, luz, telefonia, etc.)

[7] Vide http://www.unibrasil.com.br/arquivos/direito/20092/gustavo-alberine-pereira.pdf.


Autor

  • Disney Rosseti

    Disney Rosseti

    Mestrando em Direito e Política Públicas pelo UniCEUB, foi Diretor da Academia Nacional de Polícia e Superintende da Polícia Federal no Distrito Federal. É professor de Inteligência Policial na Escola Superior de Polícia da Academia Nacional de Polícia. Delegado de Polícia Federal

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ROSSETI, Disney. A crise do serviço público e a concepção de Léon Duguit: uma visão finalística. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3396, 18 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22834. Acesso em: 26 abr. 2024.