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Da inimputabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento brasileiro

Da inimputabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento brasileiro

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A imputabilidade de entes concebidos abstratamente, como são as pessoas jurídicas, demonstra-se inserida numa política criminal pública a partir da vontade desenfreada do Estado em punir.

Resumo: Foi realizado um estudo acerca da responsabilidade penal de pessoas jurídicas no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, foi feita uma análise do fenômeno da expansão do Direito Penal especial, contrariando seu caráter subsidiário de ultima ratioe princípios de direito, como o da intervenção mínima e o da intranscendência das penas. Por fim, chegou-se à conclusão que a imputabilidade de entes concebidos abstratamente, como são as pessoas jurídicas, demonstra-se inserida numa política criminal pública a partir da vontade desenfreada do Estado em punir, corrigindo falhas provenientes de outros ramos do direito, prática esta que infringe a Constituição da República de 1988.

Palavras-chave: Direito Penal; Inimputabilidade; Pessoa Jurídica.


A expansão do direito penal especial e sua relação com a política criminal desenvolvimentista estatal

Atualmente, observa-se o fenômeno recorrente da supressão das esferas jurídicas na tentativa de coibir atos dos cidadãos, agora se estendendo às pessoas jurídicas de direito privado, promulgando-se leis que preveem sanções penais em detrimento dos demais ramos de direito vigentes. Como exemplo, podemos citar a enorme quantidade de normas com sanções penais, em detrimento de punições de caráter administrativo, que estão presentes no Código de Trânsito Brasileiro; na Lei 8.176/91, sobre os crimes contra a ordem econômica; na Lei 7.492/86, que dispõe sobre os crimes contra o sistema financeiro; e, por último, os que se apresentam na Lei 9.605/98, que dispõe sobre os crimes ambientais.

Uma das causas que mais contribuíram para a expansão do Direito Penal especialfoi o surgimento de novos interesses gerados com a emergência de novos riscos sociais, econômicos e ambientais. Diante da eminente escassez e da necessidade de preservação derecursos naturais, surgiu em nossa sociedade, por parte do Estado, o dever de preservá-los, garantindo à sociedade uma melhor qualidade de vida. Para isso, foram instituídos os crimes de perigo abstrato,o que de certa forma contribuiu para a expansão do Direito Penal.

No que diz respeito aos crimes contra o Sistema Financeiro, o capitalismo, enquanto um sistema que concentra o poder econômico nas mãos da minoria, é um dos grandes responsáveis pela emergência, em nossa sociedade, de um conjunto de normas que visam a punição de entes, ainda que abstratos, que infrinjam a ordem econômica.

As camadas mais afetadas pelas grandes organizações, que se inserem na parcela excluída pelo sistema capitalista, impulsionadas pelo descrédito das instâncias de proteção, tendem a pressionar o Estado à punição destas organizações, sobretudo na esfera do Direito Penal, em decorrência de crimes ambientais, sociais e econômicos por ela praticados.

Segundo Rômulo Resende Reis (2012),

Nos tempos modernos, com a complexa organização social, bem como, com a necessidade de se tutelar interesses de toda a coletividade, interesses maiores em detrimento do interesse individual, viu-se o Direito na imperatividade de se reconhecer a responsabilidade dos entes coletivos. O interesse maior da coletividade passou a se sobrepor ao interesse destes entes coletivos, os quais, com suas condutas danosas passaram a colocar em perigo interesses sociais básicos, tais como o meio ambiente. Daí a importância de se tutelar penalmente a conduta destes entes.

Essa política criminal adotada pelo legislador brasileiro infringe o caráter de ultima ratio do Direito Penal presente no princípio da intervenção mínima, e que se trata de princípio normativo que reduz o jus puniendi estatal.

Se a intervenção do sistema penal é, efetivamente, violenta, e sua intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda mais violenta, o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquele que, perigosamente, já produz o injusto jushumanista a que continuamente somos submetidos. Por conseguinte, o sistema penal estaria mais acentuando os efeitos gravíssimos que a agressão produz mediante o injusto jushumanista, o que resulta num suicídio. (PIERANGELLI; ZAFFARONI, 2007, p. 73).

A clara conclusão disto é que o sistema penal deve corresponder ao princípio da intervenção mínima na América Latina, não somente pelas razões que se apresentam como válidas nos países centrais, mas também em face de nossa característica de países periféricos, que sofrem os efeitos do injusto jushumanista de violação do direito ao desenvolvimento(Ibid., p. 73. Grifos do autor).

Referindo-se ainda à política criminal, Zaffaroni sugere que, em alguns Estados,

o sistema penal tende, geralmente, a torná-lo [o fenômeno dual “hegemonia-marginalização”] mais agudo, impõe-se buscar uma aplicação das soluções punitivas da maneira mais limitada possível. Igualmente, a constatação de que a solução punitiva sempre importa num grau considerável de violência, ou seja, de irracionalidade, além da limitação do seu uso, impõe-se, na hipótese em que se deva lançar mão dela, a redução, ao mínimo, dos níveis de sua irracionalidade. (Ibid., p. 72. Grifos do autor).

No entanto, conforme dito anteriormente, há alguns anos, em especial ao longo do século XX, o fenômeno emergente no Brasil é oposto ao que prevê o Princípio Penal da Intervenção Mínima e o Princípio da Subsidiariedade da Aplicação das Normas Penais.Essas normas, que até então eram aplicadas de forma subsidiária em relação aos demais ramos do Direito (Tributário, Previdenciário, Trabalhista, Ambiental, Administrativo, entre outros), devido a seu caráter de ultima ratio, cada vez mais estão sendo aplicadas de forma prioritária na solução de conflitos (em caráter de prima ratio ou de sola ratio).

O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalidade de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade. (BITENCOURT, 2010, p. 13).

Juliana Moreira Mendonça (2008) em seu artigo “A responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes ambientais” explica o motivo dessa política criminal:

A preocupação com a tutela do meio ambiente iniciou-se com a mudança do paradigma da sociedade(paradigma científico cartesiano X paradigma científico sistêmico), através do surgimento de um pensamentonovo, voltado para a sociedade de risco, deflagrada, principalmente, a partir da constatação de que ascondições tecnológicas, industriais e formas de organização econômica da sociedade estão em conflito com aqualidade de vida.

Em síntese, ainda segundo Bitencourt (2010, p. 14), “antes de se recorrer ao Direito Penal deve-se esgotar todos os meios extrapenais de controle social”.Após esgotadas todas as vias de direito disponíveis para a resolução do conflito é que se deve, então, utilizar-se dos meios repressivosprevistos na esfera penal. No entanto, o que se tem percebido atualmente é uma transgressão a esse princípio por parte do Estado, por meio sua função precípua de legislar, inerente ao Poder Legislativo.

Proveniente da incapacidade do Estado de prevenir impactos ambientais e crimes contra a ordem financeira, ou de puni-los em outras esferas do Direito (Administrativo, Civil, Tributário), percebemos a emergência de normas jurídicas que preveem, na esfera criminal, punições destinadas às ações praticadas por pessoas jurídicas. Essa possibilidade de punição de um ente abstrato na persecução penal, além de transgredir a teoria finalista sobre o delito adotada por nosso legislador no Código Penal vigente, demonstra-se inconstitucional, conforme será demonstrado ao longo deste trabalho.

Por fim, essa tentativa demasiada de punição de um ente abstrato retrata a vontade de um Estado que se mostra ineficiente em suas funções, administrativa ou política, social oueducacional, legislativa ou judiciária, precisando, em último caso, recorrer ao Direito Penal especial na tentativa de solucionar um problema que pode ser resolvido em esferas anteriores a ele. Para melhor desenvolvimento deste estudo, faz-se necessário conceituar e, posteriormente, distinguir, Direito Penal comum e Direito Penal especial.


Direito Penal comum e Direito Penal especial

Noronha compreende da seguinte forma as diferenças entre o Direito Penalcomum e o Direito Penal especial:

Delimitando o conceito de direito penal, os autores distinguem-no em comum e especial, apresentando este várias subdivisões. A primeira é o direito penal disciplinar. É exercido pela administração e supõe, no destinatário da norma, relação de dependência de caráter administrativo ou de subordinação hierárquica, empregando sanções de caráter meramente corretivo. Ao contrário do direito penal comum, não se exterioriza em figuras típicas, mas as infrações são previstas de modo vago ou genericamente.(NORONHA,2000, p. 9. Grifos do autor).

Noronha (Direito Penal, p. 9) ainda elenca diversos tipos de direito penal especial existentes, quais sejam: a) o direito penal administrativo – “conjunto de disposições que, mediante uma pena, tem em vista o cumprimento, pelo particular, de um dever seu para com a administração”, considerando como seu desdobramento mais importante o direito penal fiscal ou financeiro; direito penal militar – “aplicável somente a determinada classe de pessoas e por órgãos próprios; b) o direito penal econômico – “próprios dos regimes autoritários ou de economia dirigida”; c) o direito penal do trabalho ou corporativo – que vigorou na época do fascismo e que se extinguiu com ele; d) o direito penal político – “em que atua justiça especialíssima, como no caso do impeachment (art. 86, CR/88)”; e) o direito penal industrial e intelectual – “a que se quis dar injustificada amplitude, abrangendo toda a propriedade intelectual, nas suas manifestações industrial, intelectual e artística”; f) o direito penal da imprensa; e, por fim, g) o direito penal eleitoral – que sua especialização, sob sua ótica, não procede, pois se trata de juízes do direito penal comum e as condutas típicas são complementares da legislação penal ordinária.

A expansão do Direito Penal especial, conforme já vimos, é fruto de uma política criminal voltada para a intolerância de atos considerados como criminosos.No entanto, o que se vê é que essa política criminal tem surtido efeito inverso:o que se percebe, como consequência da expansão do Direito Penal especial, é exatamente o seu descrédito, bem como o descrédito da sanção penal, conforme observa César Roberto Bitencourt (2010, p. 14), por perder “sua força intimidativa diante da ‘inflação legislativa’ reinante nos ordenamentos positivos.” O Direito Penal deve ser utilizado para punição das infrações mais graves, sob o risco de se tornar socialmente ineficiente.

O Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, decorrendo daí o seu caráter fragmentário, uma vez que se ocupa somente de uma parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica. Isso, segundo Régis Prado, “é o que se denomina caráter fragmentário do Direito Penal. Faz-se uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se revela dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa”. (BITENCOURT, 2010, p. 15. Grifos do autor).

Para Heleno Fragoso, a política criminal de um Estado deve estar relacionada à política econômica e social adotada por seus governantes:a “Política Criminal é parte da política social, devendo estar integrada nos planos nacionais de desenvolvimento”. (FRAGOSO, 2003, p. 24). Com base nessa afirmação, entende-se que as medidas coercitivas presentes nas sanções penais de combate à corrupção, à degradação ambiental ou à fraude contra o fisco, por exemplo, devem estar atrelados à política criminal adotada pela Administração Pública. Assim, a política criminal a ser adotada por um Estado deve ser pensada em conformidade a sua política de desenvolvimento socioeconômico, uma vez que a expansão econômica e social de um Estado se relaciona ao combate às infrações contra ele cometidas, além, é claro, da punição de seus agentes.

A impunidade, nesses casos, gera um descrédito por parte de investidores em seu sistema econômico, devido à insegurança de suas finanças, desencorajando-os a aplicarem nesse mercado. Da mesma forma que o desenvolvimento econômico, o desenvolvimento social, relativo à qualidade de vida de sua população e à preservação de seus recursos naturais, fonte de riqueza natural de um Estado, está relacionado à política ambiental adotada por seus governantes. Assim, o rigor na punição das pessoas que destroem o meio-ambiente se insere na política de desenvolvimento adotada por esse Estado. Por fim, como o fisco é uma das fontes de arrecadação do Estado, o rigor no combate à sonegação e à corrupção também se refere à política de desenvolvimento por ele adotado.

No entanto, sanções penais destinadas às infrações descritas acima não têm-se demonstrado eficiente para coibir tais ações. O Estado cria mecanismos penais para coibir tais abusos a fim de compensar sua ineficiência em prevenir a ocorrências destes fatos. Ademais, o sistema penal se mostrou eficiente apenas na punição de agentes pertencentes às classes social e economicamente mais desfavorecidas, em detrimento de infratores que se inserem nas classes socialmente mais privilegiadas, como demonstra Heleno Fragoso em seu livro Lições de Direito Penal:

Na medida em que a moderna criminologia voltou-se para o próprio sistema repressivo e o submeteu a análise e pesquisa, pôde-se verificar que certos princípios gerais admitidos como pressupostos, não correspondem à realidade, e devem ser postos dúvida. O efeito preventivo da ameaça penal não está demonstrado; o efeito ressocializador e preventivo da pena evidentemente não existe, pelo menos no que diz respeito à pena de prisão. O crime está em função da estrutura social, que não se modifica através do Direito Penal. É reduzido, em consequência, o papel que o sistema punitivo do Estado desempenha em termos de prevenção, e, pois, em termos de efetiva proteção e tutela de valores da vida social. Verificou-se, por outro lado, o alto custo social da repressão punitiva, com a estigmatização, a desigualdade, a corrupção, a morosidade e as deficiências do sistema policial, judiciário e penitenciário.

A clientela do sistema é constituída pelos pobres e desfavorecidos. (FRAGOSO, 2003, p. 24. Grifos do autor).

Devido à comprovada ineficiência das sanções penais para a prevenção da ocorrência de novos delitos, a tendência da nova política criminal, segundo Heleno Fragoso, é a redução de seu campo de aplicação. Para isso, espera-se que os Estados, visando coibir a ação de infratores, direcionem suas políticas desenvolvimentistas para outros meios de controle social, e não à esfera coercitiva do Direito Penal.

Uma política criminal moderna, em consequência, orienta-se no sentido da descriminalização e da desjudicialização, ou seja, no sentido de contrair ao máximo o sistema punitivo do Estado, dele retirando todas as condutas antisociais que podem ser reprimidas e controladas sem o emprego de sanções criminais. Trata-se de reduzir ao mínimo a aplicação do instrumento penal, procurando-se recorrer a outros meios de controle social. (FRAGOSO, 2003, p. 24).

No entanto, o que se tem verificado, na prática, é fenômeno contrário a esse. Como nas esferas do Direito Civil, do Direito Tributário e do Direito Administrativoas formas de repressão não têm surtido efeitos desejados pela sociedade, o Estado procura na esfera penal a proteção socialmente desejada para sua política desenvolvimentista referente ao meio-ambiente, à garantia da ordem econômica e do sistema financeiro, ou até mesmopara as infrações de trânsito. (MENDONÇA, 2008).

Nessa vontade desenfreada de punir pessoas,o Estadocria mecanismos coercitivos para seus infratores, ainda que estes sejam seres abstratamente concebidos, como é o caso das pessoas jurídicas, a partir de uma política criminal equivocada, uma vez que frustrados todos os seus meios de prevenção.

Assim, a responsabilidade penal de pessoas jurídicas se mostra uma tentativa desesperadora de um Estado ineficiente em sua política social, econômica e cultural de desenvolvimento, como veremos ao longo deste estudo. Em seguida, a partir da teoria criminal clássica do delito, analisaremos a possibilidade de responsabilização criminal de pessoas jurídicas.


Da inimputabilidade da pessoa jurídica

Sílvio Venosa, em seu livro Direito Civil, define pessoas jurídicas como entes abstratos dotados de capacidade jurídica organizados a partir da necessidade de conjugar esforços, numa união entre os homens, para uma “polarização de atividades em torno do grupo reunido”. (VENOSA, 2010, p. 223). As Pessoas Jurídicas são concebidas, portanto, “ora como conjunto de pessoas, ora como destinação patrimonial, com aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações.” (VENOSA, 2010, p. 223).

Da mesma forma, Caio Mário afirma que, além da aglomeração de pessoas destinada a um objetivo comum, para que haja Pessoa Jurídica é inerente a vinculação psíquica entre os membros que dela fazem parte, atribuindo-lhe “unidade orgânica”. (PEREIRA, 2009, p. 256).

Para que haja a constituição da pessoa jurídica deve ser observada a presença de três requisitos: a vontade humana criadora, observância das condições legais para sua formação e finalidade lícita. Deve-se ressaltar, ainda, que, segundo Caio Mário, em virtude do fator psíquico entre as pessoas, inerente à constituição da Pessoa Jurídica,

assume a entidade criada um sentido existencial que a distingue dos elementos componentes, o que já fora pela agudeza romana assinalado, quando dizia que societas distat a singulis (a sociedade tem existência distinta de seus sócios). Numa associação vê-se um conjunto de pessoas, unindo seus esforços e dirigindo suas vontades para a realização dos fins comuns. Mas a personificação do ente abstrato destaca a vontade coletiva do grupo, das vontades individuais dos participantes, de tal forma que o seu querer é uma “resultante” e não mera justaposição das manifestações volitivas isoladas. (PEREIRA, 2009, p. 256).

Uma vez conceituada pessoa jurídica, passemos à verificação da impossibilidade de sua responsabilização criminal, com base nos institutos clássicos da teoria do crime. Para essa análise, serão revisitados os conceitos de tipicidade, de ilicitude ou antijuricidade e de culpabilidade, vinculando-os às ações praticadas por sociedades empresárias.

Para parte da doutrina, a Constituição da República de 1988, no parágrafo 5º do artigo 173 e no parágrafo 3º do artigo 225, prevê a imputabilidade criminal da pessoa jurídica:

Art. 173, § 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Por outro lado, parte da doutrina discorda desta interpretação do texto constitucional. Para essa parte da doutrina, que defende a impossibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica, a interpretação adequada do § 3º, do artigo 225, da CR/88 é a deque o termo “atividade” se remeteà ação da pessoa jurídica, enquanto que o termo“conduta” se refere à ação praticada pela pessoa física. Dessa forma, as sanções penais se destinam exclusivamente às pessoas físicas e as sanções administrativas às pessoas jurídicas.

Além disso, parte da doutrina do Direito Penal não admite a responsabilidade subsidiária da pessoa natural sobre a pessoa jurídica a que esteja vinculada. Eles fundamentam sua teoria na impossibilidade de punição de pessoas jurídicas por condutas, utilizando-se, para tanto, da “Teoria da Ficção Jurídica” elaborada por Savigny, segundo a qual, as pessoas jurídicas são entes fictícios, criados pelos homens.

Savigny compreendia as pessoas jurídicas como entes abstratos intangíveis e irreais, destituídos de vontade própria. Assim, as leis, segundo essa corrente, ao previrem a possibilidade de punição das pessoas jurídicas, violam os seguintes princípios de Direito: Princípio da Personalidade das Penas ou Princípio da Intranscendência Pessoal da Pena, Princípio da Culpabilidade e Princípio da Intervenção Mínima.

O primeiro princípio transgredido é o Princípio da Personalidade das Penas ou Princípio da Intranscendência Pessoal da Pena, positivado no inciso XLV do artigo 5º da CR/88, que prevê que a pena não deve ultrapassar a pessoa do condenado.

O artigo 24 da Lei 9.605/98 consagra a denominada “pena de morte da pessoa jurídica”, pena esta inconstitucional. Além disso, essa pena viola o Princípio Constitucional da Intranscendência das Penas, previsto no inciso XLV da CR/88, uma vez que os sócios minoritários da empresa – que votaram contra a decisão vencedora, por exemplo –, funcionários e a própria sociedade seriam prejudicados com a liquidação da sociedade.

Conforme Rômulo Resende Reis demonstra em seu artigo “A responsabilidade penal das pessoas jurídicas e a lei de crimes ambientais” a pena de liquidação forçada da empresa infratora, principalmente se tratando de pessoa jurídica irregular, mostra-se ineficiente.

Já a pena da interdição de estabelecimento, obra ou atividade vem de encontro a necessidade de se fazer cessar prontamente a agressão ambiental, quando o estabelecimento, obra ou atividade da pessoa jurídica estiver funcionando de forma irregular, causando o dano ambiental tipificado na Lei. Na maioria das vezes, crimes ambientais são praticados em questão de segundos, razão pela qual a pena vem de encontro a esta necessidade de se fazer parar de pronto a agressão ambiental. (REIS, 2012).

O segundo princípio violado é o Princípio da Intervenção Mínima, que, por sua vez, fundamenta jurídica e filosoficamente o caráter ressocializador da pena. Referente a este último, os adeptos dessa corrente justificam sua inaplicabilidade perante a pessoa jurídica, fundamentando-se na impossibilidade de ressocialização de um ente abstrato e na reflexão de suas ações.

Tem-se, com isso, a impossibilidade da pessoa jurídica exercer um juízo de reprovabilidade de suas condutas, conforme observou Juliana Moreira Mendonça, uma vez que um dos objetivos basilares do Direito Penal é a recuperação do agente delituoso. “Seguindo este raciocínio, impossível seria a ressocialização do ente coletivo, uma vez que o mesmo não seria capaz de emitir vontade, não podendo, portanto, se arrepender do delito praticado. Da mesma forma, não poderia ser reeducado ou intimidado.” (MENDONÇA, 2008).

Outro princípio violado é o Princípio da Culpabilidade, uma vez que as pessoas jurídicas não possuem os atributos da imputabilidade e da potencial consciência da ilicitude, ou seja, a pessoa jurídica não age por si própria, mas pela vontade de seus administradores.

Levando-se em consideração a violação dos princípios acima, é razoável que a responsabilidade da pessoa jurídica de direito privado se restrinja apenas às esferas administrativa, tributária ou civil. Além disso, para que não haja violação a direitos constitucionalmente positivados, as pessoas naturais por ela responsáveis devem responder,na esfera penal, apenas no âmbito de sua parcela de culpa, desde que comprovado o nexo de causalidade entre o dano ou o simples perigo de dano, em caso de crime de perigo em abstrato, e sua ação na pessoa jurídica.Passemos, pois, à análise das funções da pena e à ineficiência de sua inaplicabilidade às Pessoas Jurídicas, por serem entes fictícios de direito.


As funções da pena e a impossibilidade de ressocialização de pessoas jurídicas

Parte da doutrina, representada por notórios teóricos como César Roberto Bittencourt, Juarez Tavares e Rogério Greco,entende que a Constituição da República de 1988 não prevê a punição de pessoa jurídica. Isso se sustenta com a impossibilidade de punição de pessoa jurídica com penas privativas de liberdade. Mas seriam as penas privativas de liberdade necessárias para que houvesse sanção na esfera penal? Além disso, as penas restritivas de direito ou as multas não possuem a mesma eficiência que a pena privativa de liberdade – se é que a pena privativa de liberdade é eficiente – no processo de ressocialização?

As penas possuem pelo menos quatro funções. Em primeiro lugar, temos a prevenção geral positiva, também conhecida como função integradora, por seu caráter de promover a integração social, a partir da qual se tenta reafirmar a força normativa dos comandos estatais, além do fortalecimento dos valores ético-morais da norma.A prevenção geral negativa, por sua vez, diz respeito à prevenção na ocorrência de novosdelitos, possuindo, portanto, caráter intimidativo.

A prevenção especial positiva se refere ao caráter ressocializadordo condenado. A crítica mais contundente da doutrina relacionada a essa função diz respeito à necessidade de ressocialização do condenado e à capacidade do estado de ressocializar. A quarta e última finalidade da pena é a prevenção especial negativa. Essa função da pena prevê a exclusão do delinquente da sociedade, pregandosua manutenção no cárcere.

As teorias elaboradas sobre as funções da pena encontram seu cume exponencial nas teorias filosóficas kantianas e hegelianas. Para Kant, a pena é um “imperativo categórico”, e possui um fim em si mesmo, não se prestando a interesses sociais e/ou políticos. (QUEIROZ, 2005,p. 20). Para ele, a verdadeira justiça se baseia na Lei de Talião.

Para Hegel, por sua vez, a pena se insere dialeticamente:

O delito é uma violência contra o direito, a pena uma violência que anula aquela primeira violência; é, assim, a negação do direito representada pelo delito (segundo a regra, a negação da negação é a sua afirmação). A pena é, portanto, a restauração positiva da validade do direito. (QUEIROZ, 2005,p. 21).

De fato, a função teleológica da pena não é a realização da justiça, mas a paz social. (Cf. QUEIROZ, 2005,p. 25). Como dizia Foucault, o direito penal integra a “anatomia política”, inerente à “tática política” do Estado. (Cf. FOUCAULT apud QUEIROZ, 2005, p. 30).

O Direito Penal é utilizado pelo Estado como solução fácil para os problemas sociais. Ao invés de se investir em educação, saúde, cultura, investe-se em demasia na segurança. É mais simples tipificar condutas que incriminem pessoas do que investir em ações que visem inseri-las no mercado de trabalho. Diante desta ineficiência do Estado em elaborar políticas preventivas de combate à delinquência ou nas falhas dos demais mecanismos de controle social, recorre-se à opressão do Direito Penal como solução para esses problemas, apostando-se no caráter ressocializador do sistema prisional e na função intimidativa de suas penas.

No entanto, tratando-se de pessoas jurídicas, por sua impossibilidade de privação de liberdade e de ressocialização, a criminalização de suas infrações tem-se mostrado um equívoco por parte da política de nossos líderes públicos. A responsabilização penal de empresas, conforme se verá adiante, tem-se apresentado como um ato de desespero, constituindo-se em nova falha do Poder estatal, na busca desenfreada de se retratar de outras falhas cometidas em suas políticas públicas.

Em oposição àTeoria da Ficção Jurídica, elaborada por Savigny, explicitada anteriormente neste estudo, temos, favorável à responsabilidade penal das pessoas jurídicas, a Teoria da Realidade, criada por Otto Gierke. Para essa teoria, as pessoas jurídicas são entes reais cuja vontade não pode ser tratada como sendo apenas o somatório das vontades de seus dirigentes. Elas possuem vontade e capacidade próprias constituintes do denominado “poder de grupo”. A empresa, para essa parte da doutrina, é o centro de emanação das decisões.

A crítica que pode ser destinada a essa corrente diz respeito à generalização das sanções previstas para as ações das sociedades empresárias por decisões tomadas por seus administradores, prejudicando-se, assim, sempre que as empresas fossem penalizadas, os sócios que votaram contra a decisão vencedora.

Em várias ocasiões, diante da impossibilidade deidentificar de onde partiu a decisão tomada pela empresa –se proveniente de algum membro em particular ou se foi uma decisão tomada na forma colegiada –, nãosendo possível a individualização da responsabilidade penal de seus dirigentes, à sociedade empresária, como um todo, deve ser imputado o delito. Assim, é vasta a possibilidade de justos pagarem pelos erros dos pecadores, retratando a fragilidade desse instituto.

Outro fator importante que deve ser levado em consideração, nesta análise, é que a comunicação do patrimônio dos entes envolvidos não deve ser confundida com o patrimônio das pessoas naturais. Assim, o patrimônio destas não é atingido diretamente nas condenações das empresasque a elas estejamvinculadas. Isso acarretaria na impunidade dos responsáveis pelas ações das sociedades empresárias, pois as pessoas naturais que detêm o controle da sociedade – e, portanto, são os maiores responsáveis pelas ações das pessoas jurídicas – ficariam impunes, uma vez que não responderiam com seu patrimônio pessoal em caso de punição da empresa. Por isso, é razoável que a pessoa jurídica seja punida administrativamente, enquanto que a pessoa natural dos responsáveis pela empresa responda penalmente, na medida de sua culpabilidade.

No que se refere à responsabilização da penal das pessoas jurídicas, para que esta seja admitida, a Lei de Crimes Ambientais dispõe sobre o Princípio da Dupla Imputação. Esse instituto prevê que, além do da pessoa jurídica,as pessoas naturais relacionadas àsociedade também devem responder pelos crimes por ela cometidos.

O sistema da dupla imputação, também conhecida como imputações paralelas, que emerge do princípio da co-autoria necessária entre pessoa natural e pessoa jurídica, viola o inciso XLV do artigo 5º da CR/88, que estabelece o Princípio da Intranscedência das Penas ou Princípio da Pessoalidade, cuja pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado.

Com base nesse sistema, as sanções previstas nos crimes que podem ser praticados por pessoas jurídicas devem ser voltadas para as pessoas naturais que estejam com ela (pessoa jurídica) relacionados e neles (crimes) envolvidos. Esse princípio se encontra no artigo 2º da Lei 9.605/98, ao dizer que as sanções dos delitos cometidos pelas pessoas jurídicas devem se destinar ao seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade, enquanto que a pessoa jurídica deveria ser punida administrativamente, quer com multa, com reparação do dano e/ou com a suspensão da licença para desenvolver suas atividades.

Parte da doutrina, cujo principal expoente é o jurista Luís Flávio Gomes, acredita que a Constituição prevê a responsabilização criminal da pessoa jurídica, sendo, num primeiro momento, constitucionalmente admitida. Porém, ainda segundo essa mesma corrente, a Lei 9.605/98 se demonstra deficiente no que tange à imputabilidade penal das empresas, uma vez que não dispõe de forma detida sobre essa matéria, como foi feito nas leis de adaptação vigentes na Europa.

A corrente encabeçada por Luís Flávio Gomes entende que, embora a lei seja insuficiente, no Brasil não há a necessidade de edição de uma lei de adaptação. Isso ocorre uma vez que já vige, no Brasil, outra norma que sucede a Lei de Crimes Ambientais: o Decreto 6.514/08, que faz previsão de todos os crimes previstos na lei ambiental, apesar de não os intitular como crime, mas como simples sanções administrativas.

Esse ponto de vista se demonstra ineficiente, a nosso entendimento, uma vez que o fato de haver um decreto que prevê a aplicação de sanções administrativas a pessoas jurídicas anterior a uma lei, não atribui a ela capacidade de aplicação de sanções penais a entes abstratamente concebidos, exercendo, com isso, a função esta que deveria ser exercida por uma lei de adaptação.

Outra discussão emergente dos três entendimentos acerca da responsabilização de Pessoa Jurídica de direito privado se refere à possibilidade de punição das Pessoas Jurídicas de Direito Público. Diante desse debate, podemos encontrar duas correntes doutrinárias com posicionamentos divergentes entre si.

A primeira corrente doutrinária, encabeçada pelo professor Guilherme de Souza Nucci, entende que é possível a punição no campo penal das pessoas jurídicas de direito público.Isso é possível, segundo ele, porque a lei não faz distinção entre as pessoas: a autonomia da pessoa jurídica de direito publico é menor do que a pessoa jurídica de direito privado.Além disso, ainda segundo ele, a punição das pessoas jurídicas de direito público no Direito Penal promoveria o efeito positivo de fiscalização, educação e controle dos gestores públicos.

A segunda corrente teórica, cujos principais exponenciais são os doutrinadores Fernandes Tourinho Filho e Édis Milaré, entende que não é possível a punição no campo penal das pessoas jurídicas de direito público. Para sustentar seu posicionamento, eles afirmam que não cabe ao magistrado fazer tal interpretação do texto legal. Se a lei não especificou esta possibilidade, ela não é cabível. Para essa parte da doutrina, indiretamente, quem acabaria sofrendo com as medidas seria a própria coletividade, uma vez que ficaria prejudicada pela defasagem na prestação do serviço público.

Outra crítica destinada à criminalização da pessoa jurídica, seja ela de direito público ou privado, diz respeito à denominada “Teoria da Dupla Imputação”. O requisito legal para a responsabilização das pessoas jurídicas é a decisão tomada por um de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade, que deve ser responsabilizado juntamente com a pessoa jurídica a que se vincula, pelos delitos por ela cometidos. Assim, na denúncia oferecida pelo Ministério Público devem estar presentes como réus, ao mesmo tempo, a pessoa jurídica e a(s) pessoa(s) natural(is) responsáveis pela conduta criminosa.

Para exemplificar,utilizaremos a parte final do artigo 2º da Lei 9.605/98 que dispõe: “sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”, consagrando a responsabilidade penal dos administradores de pessoas jurídicas pela omissão relevante.

No entanto, essa responsabilização juridicamente relevante para a esfera criminal deve ocorrer apenas nos casos em que seus responsáveis tiverem conhecimento do fato delituoso e, podendo evitar o resultado, não o fazem. Assim, essa conduta equivale à omissão imprópria prevista no § 2º, do artigo 13, do Código Penal.

Pode-se afirmar, então, que o ideal seria, nesses casos, que seus administradores fossem responsabilizados como garantidores da não-ocorrência do resultado, e não que fossem responsabilizados como autores do delito cometido pela pessoa jurídica. Ademais, da leitura do artigo 2º da Lei 9.605/98 não se pode inferir a responsabilidade penal objetiva dos administradores da pessoa jurídica, uma vez que, para que sejam punidos, três requisitos devem ser rigorosamente observados.

O primeiro requisito se refere ao fato de que os responsáveis pela administração da empresa devem ter ciência da conduta criminosa do agente, que consiste no conhecimento da existência do fato criminoso. Além disso, eles devem ter o poder de evitar a ocorrência do resultado e, para que haja punição criminal dos responsáveis pela administração da empresa, deve haver ainda prova cabal do nexo causal entre a omissão do administrador e o resultado delitivo.

Mas qual seria a culpabilidade da pessoa jurídica como sujeito ativo na prática de delitos, uma vez que ela é desprovida de consciência e de vontade, que se figuram como elementos da conduta na teoria do crime?

No que diz respeito à “Tipicidade”, a culpabilidade das pessoas jurídicas, entretanto, equivaleria à reprovação social aferida segundo o critério pragmático-sociológico ou desvalor de sua conduta. No entanto, sua ação não deveria ser passível de punição na esfera penal uma vez que, para isso, seria necessário que sua ação fosse reprovável, ou seja, seria indispensável a previsão da possibilidade de conduta adversa, uma vez que “a exigibilidade de conduta diversa trata-se do elemento volitivo de reprovabilidade consistente no fato de que o autor devia e podia ter um comportamento de acordo com a norma, ao invés de um comportamento voluntário ilícito.”

Se ação é “atividade humana conscientemente dirigida a um fim”, conforme nos ensina Heleno Fragoso, a pessoa jurídica é impossível de praticá-la. Ademais, a ação se integra

através do conteúdo psicológico desse comportamento, que é a vontade dirigida a um fim. Compreende a representação ou antecipação mental do resultado a ser alcançado, a escolha dos meios e a consideração dos efeitos concomitantes ou necessários e o movimento corporal dirigido ao fim proposto. (FRAGOSO, 2003, p. 181).

A partir do conceito de “ação” exposto pelo teórico Heleno Fragoso, percebe-se a impossibilidade da prática de ações por pessoas jurídicas, enquanto seres fictícios e abstratos voltados para fins lucrativos. Diante da impossibilidade de praticar ações, não há que se falar em resultados provenientes destas ações, muito menos de nexo de causalidade entre a ação e o resultado delitivo.

“Resultado”, segundo Heleno Fragoso (Ibid., p. 181), está “eventualmente ligado à ação por relação de causalidade (nos crimes materiais).” Nos crimes formais e nos crimes de mera conduta “o resultado exterior da ação é indiferente, pois dele não depende a configuração ou a consumação do delito.” (Id., p. 181). No entanto, “ninguém pratica crime enquanto se limita a idealizar ou desejar a realização de uma conduta punível. A ação requer atividade voluntária dirigida a um fim determinado” (Id., p. 181), algo impossível de ser cometido por pessoas jurídicas. Afasta-se, portanto, tipicidade subjetiva das condutas praticadas por pessoas jurídicas. Seguindo-se essa linha de raciocínio, os crimes praticados por estes entes abstratamente concebidos, caso pudessem ser por eles cometidos, deveriam estar previstos apenas na modalidade culposa.

Vejamos o conceito de dolo: “Dolo é a consciência e vontade na realização da conduta típica. Compreende um elemento cognitivo (conhecimento do fato que constitui a ação típica) e um elemento volitivo (vontade de realizá-la).” (FRAGOSO, 2003, p. 209). A partir desse conceito, considera-se impossível a prática de condutas dolosas por pessoas jurídicas, uma vez que “o dolo exige conhecimento da ação e das circunstâncias previstas na incriminação do fato, do resultado e da correspondente relação de causalidade. Deve cobrir inclusive os elementos previstos negativamente.” (FRAGOSO, 2003, p. 209-210).

Também é impossível a ocorrência da “falsa representação da realidade” nas condutas cometidas por pessoas jurídicas.  Como não se pode falar em conduta dolosa, uma vez que esses entes não possuem conduta, não há que se falar em erro de tipo, que são aqueles que versam “sobre elementos da conduta típica, sejam de natureza puramente factual ou jurídica.” (FRAGOSO, 2003, p. 217). O erro de tipo exclui o dolo (que se encontra ausente nas condutas praticadas por pessoas jurídicas).

A ação e a omissão são formas de conduta passíveis de punições, uma vez que há no ordenamento jurídico normas penais que constituem ordens e normas penais que constituem em proibições. No entanto, não há previsão, nos crimes em que pessoas jurídicas podem ser penalmente responsabilizadas, de condutas omissivas do ente abstrato, mas apenas a de seus administradores ou de seus responsáveis.

Ainda segundo Heleno Fragoso, “não pode o crime ser atribuído a quem não for causa dele.” (FRAGOSO, 2003, p. 200. Grifos do autor). A partir dessa tese, Julius Glaser, em 1958, elaborou a teoria da equivalência dos antecedentes, aprofundada posteriormente por Maximilian von Buri, que prevê que tudo que concorre para o resultado é causa dele, e o processo hipotético de eliminação, “segundo o qual causa é todo antecedente que não pode ser suprimido in mente, sem afetar o resultado” (FRAGOSO, 2003, p. 201), apresentado em 1894 por Thyrén.

Para Heleno Fragoso, “inexiste ação se o agente atua sem consciência e vontade.” (FRAGOSO, 2003, p. 181). Sendo assim, as causas que excluem a ação, como a “coação moral irresistível”, no caso de “ação em completa inconsciência” e nos casos de “atos reflexos” não podem ser utilizadas como defesa em casos de responsabilização criminal de pessoas jurídicas.

Quanto à “Ilicitude” ou “Antijuricidade”, segundo os ensinamentos de Bitencourt, a ilicitude ou antijuricidade, concebida como a relação de contrariedade entre o fato e a norma juridicamente positiva, tem sido equivocadamente definida por parte da doutrina como “puramente objetiva”.Portanto, indiferente é a relação anímica entre o agente e o fato justificado. (BITENCOURT, 2010, p. 327). Todavia, este não é o entendimento predominante na doutrina das Ciências Penais:

No entanto, segundo o entendimento majoritário, assim como há elementos objetivos e subjetivos no tipo, originando a divisão em tipo objetivo e tipo subjetivo, nas causas de justificação – que excluem a antijuricidade – há igualmente componentes objetivos e subjetivos. Por isso, não basta que estejam presentes os pressupostos objetivos de uma causa de justificação, sendo necessário que o agente tenha consciência de agir acobertado por uma excludente, isto é, com vontade de evitar um dano pessoal ou alheio. (BITENCOURT, 2010, p. 327).

Além disso, ainda segundo Bitencourt,

a partir do momento em que se adota uma concepção do injusto que distingue o desvalor da ação do desvalor do resultado, é necessária a presença do elemento subjetivo em todas as causas de justificação, isto é, não basta que ocorra objetivamente a excludente de criminalidade, mas é necessário que o autor saiba e tenha a vontade de atuar de forma autorizada, isto é, de forma juridicamente permitida. [...] Mutatis mutandis, como se exige o dolo para a configuração do tipo, exige-se igualmente o mesmo “dolo” de agir autorizadamente. (BITENCOURT, 2010, p. 327-328. Grifos do autor).

Dessa forma, se não há como a pessoa jurídica agir com dolo em sua conduta, como já foi demonstrado anteriormente, não há que se falar em conduta antijurídica, muito menos em causas de exclusão da antijuricidade/ilicitude nas ações praticadas por pessoas jurídicas, que são causas de justificação da conduta típica permitida por lei, como a legítima defesa, o estado de necessidade, o exercício regular de direito, o estrito cumprimento de dever legal e o consentimento do titular do bem jurídico.

No que se refere à “Culpabilidade”,com o advento concepção normativa “pura” da culpabilidade, após a contribuição dada pelo finalismo, deslocando o dolo e a culpa para o injusto, conforme nos ensina Bitencourt (Cf. BITENCOURT,2010, p. 369), na culpabilidade se concentram somente circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da conduta contrária ao Direito. A culpabilidade é, então, “a reprovação pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito, embora houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez.” (BITENCOURT,2010, p. 370). “Segundo Welzel, culpabilidade é a reprovabilidade da configuração da vontade. Portanto, toda culpabilidade é culpabilidade de vontade, ou seja, somente se pode reprovar ao agente, como culpabilidade, aquilo a respeito do qual pode algo voluntariamente.” (BITENCOURT,2010, p. 371. Grifos do autor).

Levando-se em consideração o conceito de culpabilidade acima, não há que se falar em culpabilidade da pessoa jurídica, uma vez que um ente abstratamente concebido por pessoas naturais não possui consciência de suas próprias condutas e, além disso, tampouco se pode falar em reprovabilidade de suas ações. Como não se pode falar em privação da liberdade de pessoas jurídicas, conclui-se, portanto, a inaplicabilidade, em favor de empresas, do habeas corpus, enquanto “remédio constitucional”, ou do sursis, como medida descarcerizante.


Considerações Finais

A partir deste estudo, percebe-se que há a inobservância do princípio da subsidiariedade, extrapolando-se o caráter de ultima ratio do Direito Penal. Observa-se, ainda, que os principais obstáculos acerca da responsabilização penal da pessoa jurídica, ente abstrato criado por pessoas naturais com a finalidade de exercer uma atividade lucrativa, encontram-se na teoria clássica do Direito Penal, em especial nos conceitos de tipicidade e de culpabilidade, de individualização das penas e no caráter ressocializador das sanções criminais.

Também se observa a ineficiência da imputação penal às pessoas jurídicas devido à impossibilidade de privação de sua liberdade, o que afeta consideravelmente a parte dispositiva do tipo legal, na qual se encontra a sanção. Conforme nos ensinou Hans Kelsen, uma norma sem sanção é uma norma inócua.

O sistema da dupla imputação, que surge com a adoção do princípio da co-autoria necessária entre pessoa natural e pessoa jurídica, demonstra-se inconstitucional, uma vez que viola o Princípio da Intranscedência das Penas ou Princípio da Pessoalidade, cuja pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado, com fundamento no inciso XLV do artigo 5º da CR/88. Verifica-se que os mais prejudicados com a liquidação da empresa infratora são os funcionários, os sócios minoritários e a própria sociedade.

Por fim, tem-se a impossibilidade da pessoa jurídica exercer um juízo de reprovabilidade de suas próprias condutas, conforme observou Juliana Moreira Mendonça, uma vez que um dos objetivos basilares do Direito Penal é a recuperação do agente delituoso e que a pessoa jurídica não possui consciência de suas condutas, mostrando-se incapaz de emitir vontades.


Inimputability the criminal entity in the Brazilian legal system

Abstract: A study about the penal responsibility of legal entities in the Brazilian Legal regulation was carried out. Besides, an analysis of the special Penal Law expansion phenomena was done, opposing its subsidiary character of ultima ratio and law principles, such as the minimum intervention and the intransigent penalties. Finally, we came to the conclusion that the imputability of the entities conceived abstractly, such as the legal entities, shows itself inserted in a public criminal politic from the unrestrained will of the State to punish, correcting flaws from other law branches, a practice that infringes the republican Constitution of 1988.

Key-words: Criminal Law; Inimputability; Legal Entitie.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

Da inimputabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3435, 26 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23097. Acesso em: 26 abr. 2024.