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Cárcere, estigma e reincidência: o mito da ressocialização

Cárcere, estigma e reincidência: o mito da ressocialização

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O abuso do cárcere é determinante para a reincidência, sendo a prisionização um dos seus efeitos mais nefastos, pois “destreina” o apenado ao convívio em liberdade, agravando sua exclusão. Utiliza-se o conceito de rotulação (Labeling Theory, de Howard Becker), para averiguar como a prisão age sobre a visão que a sociedade tem do internado e a percepção que este tem de si mesmo.

Resumo: A presente monografia propõe-se a relacionar a estigmatização do criminoso com o insucesso do objetivo ressocializador da pena privativa de liberdade, haja vista a diversidade de efeitos negativos da prisionização que dificultam o retorno do indivíduo à sociedade, impelindo-o a assumir a carreira delitiva. Para tanto, utilizou-se o conceito de rotulação oferecido pela Labeling Theory de Howard Becker, a fim de averiguar de que forma a prisão age sobre a visão que a sociedade tem do internado e a percepção que este tem de si mesmo. O objetivo maior deste trabalho é promover o debate multidisciplinar em torno da pena de prisão, utilizando conceitos da Sociologia e da Psicologia para enriquecer e atualizar as Ciências Jurídicas no estudo da criminalidade, de modo a dar subsídios à apresentação de propostas alternativas de execução penal e à prevenção da reincidência. A pesquisa foi conduzida a partir do método categórico-dedutivo, utilizando-se a abordagem fenomenológica, e valeu-se do método exploratório, tendo sido a coleta de dados feita por meio de pesquisa bibliográfica em Direito, Sociologia e Psicologia e na legislação nacional. Os dados coletados foram interpretados qualitativamente, relacionando-se o caráter estigmatizante da prisão com a reincidência e o fracasso da prevenção especial, a partir de sua análise subjetiva. Ao fim, concluiu-se que o abuso do cárcere enquanto pena privativa de liberdade é fator determinante para os altos índices de reincidência no País, sendo a prisionização um dos seus efeitos mais nefastos, porquanto “destreina” o apenado ao convívio em liberdade, agravando sua exclusão.

Palavras-chave: prisão, Labeling Theory, estigmatização, pena, ressocialização.

Sumário: Resumo. 1. Introdução. 2. Funções da pena no Estado Democrático de Direito. 2.1. Teorias absolutas ou retributivas da pena.      2.2. Teorias relativas ou preventivas da pena. 2.2.1. A prevenção geral. 2.2.2. A prevenção especial. 2.3. Teoria mista ou unificadora da pena. 3. História e evolução da pena de prisão.      3.1. A Antiguidade. 3.2. A Idade Média. 3.3. A Idade Moderna. 3.3.1. Causas da transformação da prisão-custódia em prisão-pena. 3.4. Os reformadores: Beccaria, Howard, Bentham. 3.4.1. Cesare Beccaria. 3.4.2. John Howard. 3.4.3. Jeremy Bentham. 4. A Labeling Theory ou Teoria da Rotulação. 4.1. Escorço histórico. 4.2. Outsiders. 4.3. O desvio. 4.4. Carreiras desviantes. 4.4.1. Subculturas desviantes. 4.5. As regras e sua imposição. 4.5.1. Criadores de regras. 4.5.2. Impositores de regras. 5. A recepção da Labeling Theory no Direito Penal. 6. Efeitos criminógenos da prisão.      6.1. A prisionização e seus efeitos. 7. Conclusão. Referências bibliográficas


1. INTRODUÇÃO

A história da humanidade é caracterizada, desde que passou a compor-se de grupos cada vez mais numerosos e perenes de homens em busca de segurança e de melhores condições de vida para o desenvolvimento da espécie, pela defesa da coesão e manutenção da integridade da comunidade. Os atos propensos a pôr em risco sua existência são punidos desde então, de diferentes formas ao longo do tempo.

Em princípio, a punição consistia em pura vingança ao mal praticado; era brutal e imediata, pois partia do próprio ofendido de forma privada, já que não existia uma estrutura punitiva organizada e complexa com tal atribuição. Posteriormente, à medida que a noção de Estado se desenvolveu paralelamente à evolução do próprio homem, o controle social foi sendo paulatinamente atribuído ao Poder Público - abstração responsável pelo bem-estar comum e pela defesa dos interesses sociais -, e as penas passaram a ter a função não só de retribuir o crime, mas de promover a “cura” do delinquente, para que este pudesse voltar a viver em sociedade sem violar o pacto social.

A partir do Iluminismo, com a retomada do antropocentrismo e a valorização do homem como indivíduo, surgiu a necessidade de se racionalizar e humanizar as penas infligidas aos delinquentes, a fim de que sua dignidade fosse preservada e de modo a dar-lhe a oportunidade de recuperar sua cidadania, voltando ao saudável convívio social. A pena de morte, as penas corporais e as infamantes – castigos comuns à época - passaram a ser duramente criticadas por eminentes pensadores da época, e a reforma do sistema punitivo tornou-se premente.

Nesse contexto, em fins do século XVI, o modelo prisional foi proposto como forma alternativa de punição, a partir da criação das primeiras workhouses na Inglaterra. Nelas, buscava-se a correção do delinquente por intermédio do trabalho penoso e da instrução religiosa, modelo que vigeu durante muito tempo. Posteriormente, outros modelos foram desenvolvidos, mas sempre fundamentados basicamente na privação da liberdade, no trabalho e na religião. No entanto, com o passar do tempo, as elevadas taxas de reincidência revelaram que a prisão não cumpre exatamente a função que dela se esperava; ao contrário, mostrou-se uma verdadeira “escola de criminosos”, porquanto favorece o surgimento de subculturas carcerárias de indivíduos que compartilham entre si experiências e conhecimentos sobre como cometer delitos sem ser capturado; dessa integração surgem facções criminosas e delinquentes profissionais, que adotam a carreira delitiva como meio de sobrevivência.

Para explicar a falência da pena de prisão, utilizamos a Labeling Theory - ou Teoria da Rotulação ou da Reação Social -, inaugurada pela publicação do livro Outsiders, do cientista social norte-americano Howard Becker no início dos anos 1960, o qual representou uma verdadeira revolução no conhecimento a respeito do que se entendia por “delinquência”. A transgressão passou a ser vista como desvio social, de modo que este seria resultante de um processo de rotulação que envolveria, além do comportamento dos indivíduos definidos como desviantes, aqueles que formulam as regras sociais e suas sanções, bem como os designados para fazê-las cumprir. Assim, a criminalidade passou a ser entendida como a reação social ao desvio, a partir de regras formuladas por uma parcela reduzida da sociedade que refletem seus próprios valores e interesses.

Com a recepção da Labeling Theory nas Ciências Criminais, surgiu uma nova corrente criminológica – a Criminologia Crítica -, segundo a qual a falência da pena de prisão e a incapacidade do sistema punitivo de promover a ressocialização dos delinquentes acabaram por retirar do Direito Penal vigente a legitimidade a ele atribuída de detentor do poder punitivo; admite, então, que o sistema penal é apenas um instrumento para a manutenção da estrutura vertical da sociedade, marginalizando as classes mais baixas, a fim de que as relações de poder se mantenham sempre em favor das classes de maior poder econômico, que são as responsáveis, afinal, por fazer as regras e definir a quem estas serão aplicadas.

É sob tais fundamentos que desenvolvemos nossa análise, procurando relacionar a estigmatização do criminoso no contexto prisional com o insucesso do objetivo ressocializador da pena, haja vista a diversidade de efeitos negativos, tanto de ordem sociológica quanto psicológica, relacionados ao cárcere, que levam o indivíduo a assumir a carreira delitiva. Dessa forma, o objetivo maior deste trabalho é promover o debate multidisciplinar em torno da pena de prisão, utilizando conceitos da Sociologia e da Psicologia para enriquecer e atualizar as Ciências Jurídicas no estudo da criminalidade, a fim de que sejam estudadas novas propostas viáveis para a execução penal e que cumpram o fim ressocializador da pena.

A pesquisa foi conduzida a partir do método categórico-dedutivo, utilizando-se a abordagem fenomenológica, e valeu-se do método exploratório, tendo sido a coleta de dados feita essencialmente por meio de levantamento bibliográfico nas searas do Direito Penal, da Execução Penal, da Criminologia, da Sociologia e da Psicologia, mormente em livros científicos das referidas disciplinas e na legislação nacional. Os dados coletados foram interpretados qualitativamente, relacionando-se o caráter estigmatizante da prisão com a reincidência, em especial as carreiras delitivas, a partir de sua análise subjetiva. A partir disso, após a comparação dos resultados obtidos na pesquisa bibliográfica com as hipóteses levantadas em nosso projeto monográfico, concluiu-se que o cárcere, ao invés de promover a função de reintegrar o egresso à sociedade, age como verdadeiro fator criminógeno sobre o reeducando, compelindo-o a assumir a identidade de “criminoso” e a reincidir na delinquência.

O trabalho foi desenvolvido em quatro partes: na primeira delas expomos as principais correntes relativas aos fins da pena, a partir de suas origens históricas; na segunda, traçamos as linhas gerais da história e evolução da pena de prisão; na terceira, abordamos a Labeling Theory e o problema da estigmatização; e, por fim, na quarta parte, demonstramos a incompatibilidade hoje existente entre a pena de prisão e o objetivo ressocializador pretendido pelo nosso Código Penal, em virtude de sua própria natureza excludente e desumanizadora.


2. FUNÇÕES DA PENA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Desde há muito na história da civilização humana a pena tem sido utilizada como forma de punição de determinadas condutas repudiadas pelo corpo social; no entanto, somente a partir do surgimento do conceito de Estado a pena passou a ter contornos mais definidos, porquanto está intimamente relacionada ao modelo socioeconômico e à forma de Estado em que se desenvolve.

Segundo Cezar Roberto BITENCOURT (2007, p. 80), a pena tem o condão de “facilitar e regulamentar a convivência dos homens em sociedade”, bem como de “proteger de eventuais lesões determinados bens jurídicos, assim considerados, em uma organização socioeconômica específica”; contudo, tais fins somente são percebidos indiretamente na sociedade. Os fins retributivo e preventivo são, tradicionalmente, os fins da pena por excelência, conforme se verá mais aprofundadamente nas seções seguintes, pois se relacionam mais diretamente com a culpabilidade de quem se pretende punir.

Não obstante existam hoje diversas teorias relativas à função da pena, por questões didáticas analisaremos neste trabalho tão-somente as funções clássicas de retribuição e prevenção, concluindo com a teoria mista ou unificadora, que é a mais difundida e aceita atualmente, inclusive no ordenamento jurídico brasileiro.

2.1. Teorias absolutas ou retributivas da pena

Para melhor compreendermos a ideia de pena em sentido absoluto, iniciaremos sua análise a partir da organização político-social que lhe deu origem - o Estado absolutista.

O absolutismo tem como principal característica a concentração da autoridade do Estado, do Direito, da moral e da religião na pessoa do príncipe, cujo poder era concedido, acreditava-se, diretamente por Deus. Assim, o soberano representava não somente o Estado, mas detinha em si todo o poder legal e de justiça. A concepção que então se tinha de pena era a de que constituía um castigo com o intuito de expiar um mal eventualmente cometido – o pecado -, visto que qualquer transgressão à autoridade do rei consistia, em última análise, numa desobediência ao próprio Deus.

Posteriormente, com o fortalecimento do comércio e a ascensão e consolidação da burguesia como classe dominante, a partir do mercantilismo, surgiu a necessidade de se fazer uma revisão da concepção que se tinha até então de Estado. Este passou a ser visto como expressão soberana da vontade do povo, tendo como fundamento a teoria do contrato social e da divisão dos poderes, cujos postulados foram construídos por expoentes do Iluminismo - movimento que tinha viés político-ideológico eminentemente liberal.

Dessa forma, o crime representava não mais um pecado contra a autoridade divina do soberano, mas uma perturbação da ordem jurídica que fora adotada consensualmente pelos homens no contrato social e firmada pelas leis; a pena deixou de ser expiação e passou a ter o caráter de retribuição pela perturbação à ordem jurídica, e cuja finalidade se refletia na necessidade de restaurar a ordem da interrupção causada pelo crime.

Segundo o pensamento retribucionista, à pena é atribuída a incumbência de realizar a Justiça, compensando a culpa do autor com a imposição de um mal, visto que “o fundamento da sanção estatal está no questionável livre-arbítrio, entendido como a capacidade de decisão do homem para distinguir entre o justo e o injusto” (BITENCOURT, 2007, p. 83), cabendo ao indivíduo manter-se fiel ao contrato social deixando de praticar atos que ponham em risco a integridade da sociedade.

 2.2. Teorias relativas ou preventivas da pena

Muito embora a pena seja entendida, tanto nas teorias absolutas quanto nas relativas, como um “mal necessário”, para estas últimas a pena não visa a retribuir o crime cometido, mas sim a prevenir a sua prática tanto quanto possível. O autor do delito seria punido não pelo simples fato de ter delinquido, mas para que se abstivesse de cometer novos crimes.

Os estudiosos atribuem a formulação mais antiga das teorias preventivas a Sêneca, que afirmou: “nenhuma pessoa responsável castiga pelo pecado cometido, mas sim para que não volte a pecar” (HASSEMER, 1984 apud BITENCOURT, 2007, p. 89). Assim, a necessidade da pena não se fundamenta na ideia de realizar justiça, mas na função de inibir a prática de novos fatos delitivos.

A partir de Feuerbach, a doutrina da função preventiva da pena dividiu-se em duas correntes: a da prevenção geral e a da prevenção especial.

2.2.1. A prevenção geral

Feuerbach formulou a “teoria da coação psicológica”, uma das primeiras proposições jurídico-científicas fundamentadoras da prevenção geral, para sustentar a afirmação de que é através do Direito Penal que se pode solucionar o problema da criminalidade. Este objetivo é alcançado, por um lado, com a cominação penal, ou seja, com a ameaça da aplicação de uma pena às ações tipificadas pela lei como sendo injustas; e, por outro lado, com a aplicação efetiva da pena cominada, a fim de que seja demonstrada a clara disposição do Direito de cumprir a ameaça consubstanciada na lei.

Como bem observa BITENCOURT (2007, p. 90), “[...] Na concepção de Feuerbach, a pena é, efetivamente, uma ameaça da lei aos cidadãos para que se abstenham de cometer delitos; é, pois, uma ‘coação psicológica’ com a qual se pretende evitar o fenômeno delitivo”. Assim, pode-se dizer que a prevenção geral se baseia em duas ideias básicas: a da intimidação criada pela possibilidade de imposição de uma pena, e a ponderação do homem em posicionar-se racionalmente diante da ameaça cominada pela lei, deixando de delinquir.

No entanto, a crítica feita à tese da prevenção geral lembra que, não obstante a cominação da pena possa exercer alguma motivação no homem no sentido de abster-se de praticar crimes, não leva em consideração sua confiança em não ser descoberto ou mesmo se a motivação de agir de acordo com a lei é proveniente, de fato, do temor diante da ameaça da pena. Assim, conclui-se que nem sempre a ameaça de imposição de uma pena é suficiente para impedir o delinquente de realizar o ato delitivo.

Além disso, não se pode pretender solucionar definitivamente o problema da criminalidade por meio da intimidação desmedida, sob pena de instituir-se um Direto Penal do Terror. Contudo, o que se observa na atualidade é que está havendo um agravamento desproporcional das penas em nome de uma discutível prevenção geral (BITENCOURT, 2007, p. 92), em detrimento da justiça na aplicação da pena.

2.2.2. A prevenção especial

Assim como a prevenção geral, a teoria da prevenção especial procura evitar a prática do delito, mas, ao invés de utilizar-se da intimidação, se dirige especificamente ao delinquente em particular, para que este não venha a delinquir novamente.

As ideias que fundamentam a prevenção especial surgiram com a crise do Estado liberal, na transição para o capitalismo industrial. Nesse período, os avanços científicos e tecnológicos, associados ao desenvolvimento industrial, criaram as condições ideais para o crescimento demográfico desenfreado e o êxodo rural massivo, elementos que, aliados à insatisfação popular com as condições precárias de exploração do trabalho, representavam um perigo em potencial para a nova ordem estabelecida pelo capitalismo industrial.

Nesse contexto de insatisfação dos despossuídos, o interesse jurídico-penal deixou de ser a restauração da ordem jurídica ou a intimidação geral dos membros do corpo social e concentrou seus esforços na defesa da ordem social. Assim, “[...] O delito não é apenas a violação à ordem jurídica, mas, antes de tudo, um dano social, e o delinquente é um perigo social (um anormal) que põe em risco a nova ordem” (BITENCOURT, 2007, p. 93).

Segundo Von Liszt, maior expoente da doutrina preventivo-especial, a aplicação da pena deve obedecer a uma ideia de ressocialização e reeducação do delinquente, de intimidação dos que não necessitam ser ressocializados e de neutralização dos criminosos considerados incorrigíveis. Em síntese, sua tese pode ser representada por três palavras: correção, intimidação e inocuização. O fundamento desse pensamento é o de que haveria homens “bons”, ou seja, os considerados normais, que não representam nenhum perigo à sociedade, e homens “maus”, os anormais e perigosos, dos quais a sociedade deve prevenir-se por intermédio da aplicação de medidas ressocializadoras ou inocuizadoras, tendo em vista seus antecedentes no cometimento de atos contrários aos interesses sociais.

Cezar Roberto Bitencourt explica que, considerando que a prevenção especial não busca a intimidação do grupo social nem a retribuição do fato praticado, visando apenas aquele indivíduo que já delinquiu para que não volte a transgredir as normas penais, os defensores da teoria preventivo-especial preferem referir-se à sanção dos crimes como medida, e não pena:

[...] A pena, segundo dizem, implica a liberdade ou a capacidade racional do indivíduo, partindo de um conceito geral de igualdade. Já medida supõe que o delinquente é um sujeito perigoso ou diferente do sujeito normal, por isso, deve ser tratado de acordo com a sua periculosidade. Como o castigo e a intimidação não têm sentido, o que se pretende, portanto, é corrigir, ressocializar ou inocuizar. (BITENCOURT, 2007, p. 94)

Em suma, a teoria preventiva especial representou um grande avanço do ponto de vista político-criminal, pois a pena deixou de ser um mero castigo cruel para se tornar um instrumento de ressocialização do apenado, porquanto possibilita que ele volte a produzir em benefício da sociedade e recupere a cidadania perdida.

2.3. Teoria mista ou unificadora da pena

Dadas as insuficiências constatadas nas teorias monistas de retribuição e prevenção, surgiu na Alemanha, no início do século XX, uma teoria eclética que procurou agrupar em um conceito único os fins retributivos e preventivos da pena - a teoria mista ou unificadora -, partindo do pressuposto que a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial são apenas aspectos distintos que compõem a pena.

Tal tese sustenta que a visão unidimensional da pena não abrange a complexidade dos fenômenos sociais que interessam ao Direito Penal, acarretando graves consequências para a segurança e os direitos fundamentais do homem, razão pela qual procura fundir o ideal de justo (retribuição) com o ideal de útil (prevenção) (YAROCHEWSKY, 2005, p. 180).

BITENCOURT (2007, p. 96) aduz que a teoria mista centraliza o fim do Direito Penal na ideia de prevenção, pois entende que a função do ordenamento jurídico é, antes de tudo, a defesa social, enquanto que o fim retributivo é aceito apenas como limitador, máximo e mínimo, da intervenção da pena como sanção jurídico-penal, seja pelos critérios de culpabilidade ou de proporcionalidade.

No entanto, esta teoria difere das anteriores no fundamento que confere à pena. Segundo seus postulados, sustenta que a sanção punitiva não deve fundamentar-se em nada a não ser o fato delituoso.

Com esta afirmação, afasta-se um dos princípios básicos da prevenção geral: a intimidação da pena, inibindo o resto da comunidade de praticar delitos. E, com o mesmo argumento, evita-se uma possível fundamentação preventivo-especial da pena, onde esta [...] tem como base aquilo que o delinquente “pode” vir a realizar se não receber o tratamento a tempo, e não o que já foi realizado, sendo um critério ofensivo à dignidade do homem ao reduzi-lo à categoria de doente biológico ou social. (BITENCOURT, 2007, p. 95)

Assim, esta tese tem o mérito de reunir em si o que há de mais coerente nas teorias retributivas e preventivas e, de certa forma, fazer com que estas compensem determinadas falhas entre si (a pena não é mero castigo ou ameaça e o homem deixa de ser visto como doente social), motivo pelo qual é a tese mais aceita atualmente, inclusive no Brasil, consubstanciada no art. 59 do Código Penal Brasileiro:

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime [...]

Assim, nosso ordenamento jurídico aceita a retribuição como um dos fins da pena pela reprovação do crime, mas não deixa de considerar a prevenção um objetivo que deve ser alcançado pelo sistema sancionador, tanto em seu aspecto geral como no especial, ou seja, evitando a prática de crimes a partir da intimidação criada pela lei positivada bem como ressocializando aqueles que já cometeram delitos a fim de que não venham a delinquir novamente.


3. HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DA PENA DE PRISÃO

A privação da liberdade como punição surgiu num momento em que a prevenção passou a ser, juntamente com a retribuição, um dos fins que deveriam ser perseguidos pela sociedade ao se aplicar a pena. O castigo meramente vingativo e expiatório cedeu lugar à prisão à medida que o humanismo se desenvolveu com o advento do Iluminismo, pois o que se desejava era a racionalização das penas como forma de valorização do homem, de modo que este fosse punido proporcionalmente ao ato cometido, evitando-se exageros nas punições.

Dessa forma, a prisão tornou-se a pena por excelência, tendo substituído gradativamente a pena de morte, os castigos corporais e as penas infamantes, pois permitia que a retribuição fosse dada de forma eficaz e proporcional ao delito, ao mesmo tempo em que era possível “adestrar” o delinquente, de modo a torná-lo apto ao convívio social. Assim, o surgimento da prisão como pena está muito ligado à atuação da religião na docilização dos delinquentes, de modo que as primeiras experiências carcerárias foram levadas a cabo por eclesiásticos interessados em reformar os homens sem negar-lhes a dignidade. Assim surgiu o termo “penitenciária”, oriundo da palavra penitência – isto é, o reconhecimento pelo preso do erro cometido, a confissão e a aceitação da punição.

Sabe-se, contudo, que o cárcere comporta defeitos de difícil resolução, dada a sua própria natureza opressora e segregatória, razão por que vem sendo duramente criticado desde fins do século XIX até hoje. A crise da prisão originou anseios abolicionistas em um expressivo segmento dos estudiosos do tema, mas o fato é que sua história é marcada pela sua constante reforma, sendo considerada por muitos um “mal necessário”.

3.1. A Antiguidade

A pena tinha, na Antiguidade, a finalidade de expiação daquele que violou as normas de convívio social - ou seja, tinha caráter meramente retributivo. Não se almejava a correção do delinquente ou a ameaça dos indivíduos a fim de que se abstivessem de cometer crimes, mas apenas infligir ao desviante o mal que causou na exata medida da gravidade do crime cometido, a exemplo do que previa a lei de talião (“olho por olho, dente por dente”).

Preferia-se, naquele tempo, infligir dor física ao condenado como forma de justa retribuição pelo dano que causara, sendo que as prisões tinham apenas a função de custódia do réu – era mantido encarcerado até que fosse julgado ou fosse cumprida sua pena, cujas variedades se resumiam à pena de morte, às penas corporais e às infamantes.

A Antiguidade desconheceu totalmente a privação de liberdade estritamente considerada como sanção penal. Embora seja inegável que o encarceramento de delinquentes existiu desde tempos imemoriáveis, não tinha caráter de pena e repousava em outras razões. Até fins do século XVIII a prisão serviu somente aos objetivos de contenção e guarda dos réus, para preservá-los fisicamente até o momento de serem julgados ou executados. Recorria-se, durante esse longo período histórico, fundamentalmente, à pena de morte, às penas corporais (mutilações e açoites) e às infamantes. (BITENCOURT, 2004, p. 04)

As prisões também eram usadas com frequência como sala de torturas com o objetivo de extrair a “verdade” dos réus, e eram localizadas em prédios improvisados, comumente calabouços, aposentos em ruínas ou insalubres de castelos, conventos abandonados, palácios, torres e outros edifícios em condições subumanas de habitabilidade, já que não existia ainda uma arquitetura penitenciária própria naquela época.

Outra forma de prisão comum entre os gregos e romanos era a prisão por dívida, que consistia numa maneira de obrigar o devedor a saldar seu débito para que fosse solto, mas tinha caráter de meio de coerção civil, e não criminal.

Assim, Grécia e Roma utilizavam a prisão com a finalidade eminentemente de custódia, para impedir que o réu se furtasse do castigo a ser-lhe imposto até que houvesse a execução da condenação respectiva. Mesmo na prisão civil, o objetivo era de fazer com que o devedor cumprisse suas obrigações coercitivamente, mas não era concebida como uma pena em si mesma.

3.2. A Idade Média

O fim da Antiguidade é tradicionalmente marcado pela queda do império romano e a tomada da Europa pelos povos germânicos a partir das chamadas invasões bárbaras. Neste período, a instabilidade política reinante levou os governantes a usarem a lei penal como forma de se manterem no poder por meio de torturas, suplícios, amputações e execuções públicas, as quais exerciam ao mesmo tempo a função de intimidar e de distrair a população.

Durante todo esse período histórico a ideia de pena privativa de liberdade não ganhou relevo, e a prisão continuou a ter a finalidade eminentemente custodial que tinha no período anterior - local onde os réus aguardavam o momento em que protagonizariam um espetáculo sangrento para servir de exemplo à população.

As sanções criminais na Idade Média estavam submetidas ao arbítrio dos governantes, que as impunham em função do status social a que pertencia o réu.  Referidas sanções podiam ser substituídas por prestações em metal ou espécie, restando a pena de prisão, excepcionalmente, para aqueles casos em que os crimes não tinham suficiente gravidade para sofrer condenação à morte ou a penas de mutilação. (BITENCOURT, 2004, p. 09)

No entanto, nessa época surgem duas espécies de prisão que, embora não se caracterizassem como penas privativas de liberdade nos moldes que conhecemos, exerceriam grande influência na constituição da prisão-pena: a prisão de Estado e a prisão eclesiástica.

Segundo BITENCOURT (2004, p. 09), na prisão de Estado “somente podiam ser recolhidos os inimigos do poder, real ou senhorial, que tivessem cometido delitos de traição, e os adversários políticos dos governantes”. Existiam duas modalidades de prisão de Estado: a prisão-custódia, onde o réu aguardava a execução da pena aplicada de fato (em geral mutilações, açoite, morte etc.), e a detenção temporal ou perpétua, que variavam conforme a gravidade do crime, estando o réu sujeito ainda ao perdão real.

A prisão eclesiástica, por sua vez, era destinada “aos clérigos rebeldes e respondia às ideias de caridade, redenção e fraternidade da Igreja, dando ao internamento um sentido de penitência e meditação” (BITENCOURT, 2004, p. 10). Os infratores eram recolhidos em uma ala dos mosteiros para que, por meio da oração e da penitência, se arrependessem dos seus pecados e se corrigissem; no entanto, as condições das masmorras eram tão precárias e a flagelação tão intensa que dificilmente se saía vivo de lá.

O direito medieval caracterizou-se por ser ordálico e profundamente corrompido. Primeiramente, porque a inocência ou culpa dos acusados eram aferidas mediante as chamadas “provas de Deus” – o réu era submetido ao fogo, à água fervente ou ao ferro em brasa e, caso sucumbisse, seria porque Deus o abandonara diante do pecado que cometera. Assim, o castigado se sentia merecedor do castigo e se resignava diante do julgamento de Deus, convencendo-se da própria maldade. Em segundo lugar, porque frequentemente os juízes cobravam dinheiro das partes no processo, de modo que as sentenças tendiam a ser arbitrárias e injustas.

O pensamento cristão, dominante na Idade Média, influenciou determinantemente na evolução das penas e na consolidação da prisão no direito secular. A procura da felicidade e o conceito de que a oração, o arrependimento e a contrição contribuíam mais para a emenda do que a simples dureza do castigo constituiriam as bases dos primeiros sistemas penitenciários, que incorporaram práticas e métodos como o isolamento celular, a escuridão, o jejum e o silêncio como parte do processo de correção do criminoso.

Assim, surgiu a concepção de pena medicinal, que era o fundamento das penas canônicas, pois significava a correção da alma do criminoso por meio do arrependimento sincero e da compreensão da gravidade de sua culpa, sem necessariamente levá-lo à morte.

Santo Agostinho, em sua obra mais importante, A cidade de Deus, afirmava que o castigo não deve orientar-se à destruição do culpado, mas ao seu melhoramento. Essas noções de arrependimento, meditação, aceitação íntima da própria culpa, são ideias que se encontram intimamente vinculadas ao direito canônico ou a conceitos que provieram do Antigo e do Novo Testamento. (BITENCOURT, 2004, p. 13)

Não obstante a penitência tenha sido incorporada ao conceito de pena do direito secular, esta não perdeu seu caráter vindicante, de castigo e expiação, motivo pelo qual, embora seja notável a influência, não se confundem a prisão canônica e a prisão moderna.

3.3. A Idade Moderna

O declínio do feudalismo, o inchamento dos núcleos urbanos, as longas guerras e a pobreza que assolava a Europa em fins do século XVII e início do século XVIII ocasionaram um enorme aumento na criminalidade, em razão da vultosa população de mendigos e vagabundos que circulavam pelas cidades europeias, chegando a representar um quarto da população do continente. Esse contingente provinha das aldeias incendiadas e saqueadas nos constantes conflitos bélicos e da perseguição religiosa, e, embora fosse preciso defender-se desse perigo social, a pena de morte não se apresentava como solução viável, visto que implicaria um verdadeiro massacre.

Nesse contexto, as classes minoritárias da elite inglesa criaram instituições de correção a fim de defender-se contra a criminalidade e de conter seu avanço. A pedido de alguns integrantes do clero inglês, o Rei autorizou a utilização do Castelo de Bridwell para que ali fossem recolhidos os vagabundos, os mendigos, os ladrões e os autores de pequenos delitos.

A suposta finalidade da instituição, dirigida com mão-de-ferro, consistia na reforma dos delinquentes por meio do trabalho e da disciplina. O sistema orientava-se pela convicção, como todas as ideias que inspiraram o penitenciarismo clássico, de que o trabalho e a férrea disciplina são um meio indiscutível para a reforma do recluso. Ademais, a instituição tinha objetivos relacionados com a prevenção geral, já que pretendia desestimular outros para a vadiagem e a ociosidade. (BITENCOURT, 2004, p. 16)

Acredita-se que a experiência levada a cabo no Castelo de Bridwell logrou êxito considerável, já que instituições semelhantes foram sendo criadas por toda a Inglaterra, as quais passaram a ser denominadas houses of correction ou bridwells, seguindo o modelo daquela primeira experiência, baseado no trabalho e na disciplina rígida.

No ano de 1697 surge na Inglaterra a primeira workhouse, casa de trabalho destinada à correção de ociosos e pequenos delinquentes nascida da união de várias paróquias da cidade de Bristol. Assim, “[...] O desenvolvimento e o auge das casas de trabalho terminam por estabelecer uma prova evidente sobre as íntimas relações que existem, ao menos em suas origens, entre a prisão e a utilização da mão-de-obra do recluso, bem como a conexão com as suas condições de oferta e procura” (BITENCOURT, 2004, p. 17).

Em fins do século XVI surgiram em Amsterdam, na Holanda, casas de correção bastante semelhantes às inglesas, umas destinadas somente a homens (rasphuis), outras apenas a mulheres (spinhis) e, por fim, criou-se uma seção especial para jovens. Tinham o mesmo objetivo das instituições inglesas, qual seja o de tratar a pequena delinquência. Assim, os delitos mais graves continuavam a ser combatidos com as penas usuais da época, como o exílio, o açoite, o pelourinho, a morte etc. Não obstante fossem voltadas preponderantemente a pequenos delitos, tendo escala de uso limitada, constituíram importante passo na construção da pena privativa de liberdade moderna.

BITENCOURT (2004, p. 18) explica que a criação dessas instituições procurava alcançar o fim educativo por meio do trabalho constante e ininterrupto, do castigo corporal e da instrução religiosa, instrumentos os quais eram coerentes com o conceito que se tinha na época de correção dos delinquentes e dos meios hábeis para alcançá-la. Tal se dava em razão da influência calvinista, doutrina segundo a qual o trabalho não devia pretender a obtenção de ganhos nem satisfações, mas somente tormento e fadiga.

As prisões de Amsterdam, criadas nesse modelo e contando com um programa de reforma dos internos, foram muito bem-sucedidas no seu intento e foram imitadas em diversos países europeus, cujas experiências tornaram-se famosas pela sua importância histórica na delineação do que se tornaria a prisão como a conhecemos hoje.

3.3.1. Causas da transformação da prisão-custódia em prisão-pena

Antes de analisarmos as diversas causas que levaram à transformação da prisão-custódia em prisão-pena, vale a pena expor mais detidamente o pensamento de alguns autores que defendem posicionamento eminentemente político-ideológico sobre o tema, relacionando o surgimento da pena de prisão com o desenvolvimento do capitalismo.

Sobre as casas de trabalho, Dario MELOSSI e Massimo PAVARINI (1985 apud BITENCOURT, 2004, p. 21-22) afirmam que “[...] a criação desta nova e original forma de segregação punitiva responde mais a uma exigência relacionada ao desenvolvimento geral da sociedade capitalista que à genialidade individual de algum reformador”, pois acreditam que os modelos punitivos se diversificam não por um idealismo pueril ou pela luta por melhores condições das prisões, mas sim com o fim de adestrar a mão-de-obra à lógica capitalista, permitindo a hegemonia da classe dominante, composta pelos proprietários dos bens de produção.

Para Melossi e Pavarini, a prisão surge quando se estabelecem as casas de correção holandesas e inglesas, cuja origem não se explica pela existência de um propósito mais ou menos humanitário e idealista, mas pela necessidade que existia de possuir um instrumento que permitisse não tanto a reforma ou reabilitação do delinquente, mas a sua submissão ao regime dominante (capitalismo). Serviu também como meio de controle dos salários, permitindo, por outro lado, que mediante o efeito preventivo-geral da prisão se pudesse “convencer” os que não cometeram nenhum delito de que deviam aceitar a hegemonia da classe proprietária dos bens de produção. Já não se trata de dizer que a correção sirva para alcançar uma ideia metafísica e difusa de liberdade, mas que procura disciplinar um setor da força de trabalho “para introduzi-lo coativamente no mundo da produção manufatureira”, tornando o trabalhador mais dócil e menos provido de conhecimentos, impedindo, dessa forma, que possa apresentar alguma resistência. (BITENCOURT, 2004, p. 23)

A religião exercia, nesse intuito de disciplinar o trabalhador para o sistema capitalista de produção, a importante tarefa de reforçar os elementos ideológicos que justificariam e fortaleceriam a hegemonia da burguesia capitalista.

O substrato religioso do capitalismo fundamentou-se no calvinismo, doutrina que defende a predestinação dos homens – a desigual distribuição da riqueza, por exemplo, se deve à vontade de Deus, contra a qual não se pode insurgir –, a valorização do trabalho e do sucesso econômico e o ascetismo mundano. Assim, a perda de tempo, a preguiça, o luxo e o ócio eram considerados os piores dos pecados, enquanto que, por outro lado, acreditava-se que o trabalho deveria ser constante e árduo, sempre com o fim de servir a Deus, e não de alcançar satisfação pessoal ou profissional ou mesmo de diversão. Pelo mesmo motivo, os calvinistas condenavam também o teatro, a música, a poesia e as demais manifestações artísticas e estéticas, pois eram atividades que não correspondiam ao ideal de moralidade e ascetismo daquela doutrina (QUINTANEIRO, BARBOSA e OLIVEIRA, 2003, p. 141).

A tese defendida por Melossi e Pavarini parte de um ponto de vista marxista, claramente fundamentado no materialismo histórico-dialético e na luta de classes, pois recusa a ideia de que as casas de correção e de trabalho almejavam a reforma ou emenda do delinquente; serviam, sim, como instrumento de dominação político-econômico-ideológica que favorecia a imposição da hegemonia da classe burguesa sobre o proletariado. Contudo, embora seja inegável a relação entre o desenvolvimento da prisão-pena e o capitalismo, algumas objeções devem ser feitas a este raciocínio.

A primeira ponderação é a de que se deve evitar uma análise unilateral da origem da prisão e de sua função, pois outros fatores, ainda que menos racionais, como a crise da pena de morte e o processo geral de humanização, devem ser tomados em conta. A segunda é de que tal análise parte do pressuposto de que apenas a infraestrutura (econômica) afeta a superestrutura (jurídica), mas jamais o inverso, o que não é verdade, nem mesmo na lógica marxista pura. Deve-se reconhecer, portanto, que a superestrutura tem relativa autonomia em relação à infraestrutura, não sendo suficiente dizer que o surgimento da prisão é simples reflexo do modo de produção capitalista.

Sendo assim, dentre as causas mais importantes que explicam o surgimento da prisão, podemos destacar:

a) a valorização da liberdade e do racionalismo a partir do século XVI, o que fez com que a pena de morte e as penas corporais perdessem espaço paulatinamente;

b) a crise da pena de morte, pois era um instrumento ineficaz contra a crescente criminalidade, que se agravava à medida que as tensões sociais e o número de pessoas em extrema pobreza aumentavam. Notou-se também que a aplicação das penas publicamente gerava mais compaixão e sentimento de injustiça no povo que horror, fazendo com que a criminalidade ganhasse, de certa forma, simpatizantes;

c) a substituição, a partir do século XV, da publicidade de alguns castigos pela vergonha, por um sentimento de culpa do réu. Assim, a prisão prestava-se a ocultar o castigo e a fazer com que o réu caísse no esquecimento do povo, evitando o “contágio moral”;

d) finalmente, o aspecto econômico já referido, segundo o qual a prisão prestou-se muito mais à função de angariar mão-de-obra barata e de servir como válvula de escape contra as tensões sociais que ao ideal de ressocialização dos delinquentes.

Segundo FOUCAULT (1967 apud BITENCOURT, 2004, p. 30), a prisão exercia um duplo papel: em períodos de grande oferta de emprego e salários altos, oferecia mão-de-obra barata às manufaturas; por outro lado, em épocas de crises e tensões sociais, as prisões absorviam as massas de desocupados como forma de dissimular a miséria e evitar o avanço da criminalidade.

A utilidade do trabalho penal? Não é um lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema de submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção. (FOUCAULT, 2007, p. 204)

Diante das razões expostas, fica claro que o surgimento da prisão não se vincula apenas a um sentimento geral de humanidade, ao ideal de correção dos delinquentes e sua ressocialização. Deve-se considerar a influência da estrutura social, política, econômica e ideológica da época, que deram à prisão o caráter de instrumento de dominação da massa operária pela classe dominante.

3.4. Os reformadores: Beccaria, Howard, Bentham

Diante do excessivo rigor imprimido pelas leis penais em meados do século XVIII, surgiu na Europa um movimento liderado por intelectuais inspirados nas correntes iluministas e humanitárias que exigia a reforma do sistema punitivo, defendendo as liberdades do indivíduo e valorizando os princípios da dignidade do homem.

Dentre seus principais teóricos, analisaremos as contribuições de Beccaria, Howard e Bentham, pensadores estes cujas ideias permanecem ainda atuais e relevantes no nosso tempo.

3.4.1. Cesare Beccaria

Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, foi um filósofo italiano que se dedicou a denunciar a crueldade do sistema punitivo europeu do século XVIII, inspirando-se nos grandes pensadores iluministas franceses de sua época, e cujo grande mérito foi a associação do contratualismo e do utilitarismo na reforma do sistema penal.

Seu livro, Dos delitos e das penas, foi lançado em um contexto bastante favorável às ideias nele apresentadas, pois a desumanidade e os abusos cometidos pelo sistema criminal então vigente eram alvo da reprovação da opinião pública, desejosa por mudanças, além de ter forte inspiração nos ideais iluministas em voga à época, fazendo com que a obra repercutisse amplamente, tanto no aspecto político quanto no jurídico.

A obra de Beccaria fundava-se particularmente na teoria do contrato social, segundo a qual os homens se associam livremente entre si em uma sociedade civil, abrindo mão de parcela de sua liberdade em troca da segurança e proteção por ela oferecidas. Essa teoria presume, portanto, a igualdade absoluta entre todos os homens enquanto seres racionais e livres, capazes de se orientar positivamente em relação à lei, a qual tem, por sua vez, a função de garantir a proteção da sociedade. Assim, se um dos integrantes do corpo social descumpre a lei, automaticamente considera-se quebrado o pacto e o infrator se torna inimigo de toda a sociedade, devendo ser punido por suas ações.

Beccaria tinha, no entanto, uma concepção utilitarista da pena. Segundo o autor, “o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já foi cometido”; ela deve “causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado” (BECCARIA, 2003, p. 47-48). Defende, pois, a proporcionalidade da pena em relação ao delito cometido, evitando-se os abusos e a violação da dignidade do homem.

Defendia igualmente a função preventiva da lei, afirmando que “é melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los” (BECCARIA, 2003, p. 92), sendo considerado um dos precursores das teorias relativas da pena, tanto em seu caráter geral quanto especial.

Os postulados do autor podem ser resumidos na sua afirmação de que “para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei” (BECCARIA, 2003, p. 97), contribuições que até hoje permanecem válidas, tanto sob o ponto de vista jurídico como criminológico.

3.4.2. John Howard

John Howard foi um pensador inglês que conheceu a fundo a realidade das prisões europeias, especialmente as inglesas. Foi xerife do condado de Bedford, sendo posteriormente nomeado alcaide da mesma localidade - cargo correspondente a uma espécie de magistrado -, momento em que pôde ter contato com a situação extremamente grave em que se encontravam as prisões.

Publicou um livro no qual expôs sua experiência acumulada ao longo dos anos de prática penitenciária, sendo responsável, involuntariamente, pelo início de uma corrente preocupada com a reforma carcerária, dado o seu profundo senso humanitário e grande entusiasmo em relação à reforma penal.

Howard deu especial ênfase à necessidade de se humanizar as prisões, pois não aceitava as condições deploráveis em que se encontravam os cárceres ingleses, e tampouco admitia que o sofrimento humano fosse consequência implícita da pena privativa de liberdade, embora a reforma do sistema prisional não fosse um tema que atraísse a atenção da opinião pública ou dos governantes.

Naquela época, o industrialismo já estava estabelecido e a Inglaterra havia alcançado elevado desenvolvimento econômico e das condições de trabalho, fato que tirou da prisão a responsabilidade de formar operários dóceis e submissos ao sistema capitalista, passando a servir somente como instrumento de intimidação e controle político. Por tal motivo, seus esforços em melhorar as condições das prisões não obtiveram resultados substanciais, haja vista o interesse do aparelho estatal em mantê-las precárias.

Considerava que o trabalho obrigatório, inclusive penoso, era um instrumento eficaz de regeneração moral do delinquente, bem como a instrução religiosa, haja vista sua crença no calvinismo. Propôs também o isolamento dos encarcerados, com o objetivo de favorecer a reflexão e o arrependimento e evitar práticas promíscuas entre os internos, dando especial importância ao isolamento noturno.

Segundo seu entendimento, as prisões deveriam ser distintas entre aqueles que estão esperando julgamento - cujo encarceramento servia apenas como meio assecuratório de sua punição, e não como castigo -, da prisão aplicada como pena aos condenados, bem como daquela aplicada aos devedores. Defendeu também que as mulheres permanecessem separadas dos homes, assim como os jovens delinquentes dos mais velhos.

Outra grande contribuição de sua obra foi ter chamado a atenção para a necessidade de serem nomeados carcereiros “honrados e humanos” para a administração das prisões a fim de que fossem evitados abusos e arbitrariedades, bem como sugeriu a fiscalização da vida carcerária por magistrados, proposta que delineou a figura do juiz da execução da pena.

Embora tenha apresentado propostas a inúmeros aspectos das prisões a fim de corrigir suas deficiências e priorizar a reabilitação do criminoso, a obra de John Howard teve pouca repercussão nas reformas legislativas de sua época. Contudo, conseguiu abolir o direito de carceragem – segundo o qual o preso deveria pagar pelo aluguel do espaço que ocupava na prisão – e transferiu essa responsabilidade ao Estado, bem como originou o penitenciarismo, marcando o início de uma incansável luta em busca de condições mais dignas nas prisões e a reforma do delinquente.

Por fim, Howard foi o responsável pela separação entre o direito penal e a execução penal - o primeiro deveria manter o caráter retributivo e intimidativo da pena, enquanto que a segunda tinha a função de priorizar a reforma do réu -, distinção esta que constitui hoje o núcleo de grande parte dos sistemas penitenciários vigentes.

3.4.3. Jeremy Bentham

Bentham foi um filósofo e jurista inglês nascido em 1748, de admirável lógica sistemática em seus escritos, afeito à penologia e muito interessado na causa penitenciária, campo em que suas contribuições mantêm-se vigentes até a atualidade.

Dedicou seus esforços à busca de um método de controle do comportamento humano que seguisse um princípio ético, o qual seria proporcionado pelo utilitarismo, corrente filosófica à qual se filiava e que prevê que o bem-estar comum se traduz na procura da felicidade para a maioria. “Um ato possui utilidade se visa a produzir benefício, vantagem, prazer, bem-estar e se serve para prevenir a dor” (BITENCOURT, 2004, p. 45); assim, sobre esse princípio fundamentou sua teoria da pena.

Bentham considerava que o fim principal da pena era o de prevenir crimes semelhantes – dava valor preponderante ao fim preventivo geral da pena, embora reconhecesse e recomendasse seu fim preventivo especial. Dessa forma, a emenda do delinquente não era prioridade na teoria de Bentham, mas sim evitar a prática de delitos futuros.

No pensamento de Bentham, a pena deve ter um aspecto cerimonial e lúgubre, de modo que sua crueldade seja apenas aparente. Com isso, causa maior impressão no espírito do público sem, por outro lado, infligir dor física extrema e desnecessária ao réu. Desse modo, não admitia a crueldade nas penas, pois não via o sofrimento como um fim em si mesmo, muito embora reconhecesse algum fim retributivo na pena, bem como rechaçava também as penas infamantes, porque estas descartam toda possibilidade de reabilitação. Segundo BITENCOURT (2004, p. 47-48), “admitia a necessidade de que o castigo seja um mal, mas como meio para prevenir danos maiores à sociedade”; assim, “foi um avanço importante na racionalização da doutrina penal o fato de Bentham insistir que a função da pena não era a vingança do fato criminoso praticado, mas a prevenção da prática de novos fatos”.

O autor preocupou-se também com uma questão ainda muito discutida atualmente: a assistência pós-penitenciária. Bentham acreditava que o delinquente só poderia alcançar alguma reabilitação caso fosse recebido de volta à sociedade tendo um aparelho de apoio à sua disposição, a fim de que se reintegrasse sem recorrer novamente ao crime.

Por outro lado, preocupou-se ativamente com as condições das prisões e o problema penitenciário, porquanto entendia que as prisões de seu tempo, salvo raras exceções, apresentavam condições tão degradantes que exerciam influência criminógena sobre os encarcerados; a tirania dos carcereiros e os castigos corporais terríveis e constantes os tornavam insensíveis às penas e despertavam neles um sentimento de vingança contra a própria sociedade, além de que acreditava que o tédio, a vingança e a necessidade sofrida pelos internos os desmoralizavam e os educavam para a perversidade.

Seus comentários sobre as condições degradantes da prisão sugerem o que hoje se denomina subcultura carcerária. Bentham percebeu que os homens agregados naquelas condições terminam por assimilar e constituir linguagens e costumes próprios, fazem suas próprias leis e estabelecem uma escala de valores de acordo com seus próprios princípios, tudo dentro de uma microssociedade em que a força física e a violência determinam quem são os mais fortes.

Não obstante tenha sido prolífico defensor da humanização das prisões, a maior contribuição de Bentham foi à arquitetura penitenciária, pois é considerado o idealizador do panóptico. Este modelo de construção de prisões não foi tão amplamente adotado como se esperava, mas é determinante na história da prisão, pois foi o marco inicial dos estudos arquitetônicos dedicados à questão penitenciária desde então, dando origem inclusive ao desenho radial que hoje se adota largamente em várias partes do mundo.

Segundo sua própria descrição, o panóptico é:

[...] Uma casa de Penitência. Segundo o plano que lhes proponho, deveria ser um edifício circular, ou melhor dizendo, dois edifícios encaixados um no outro. Os quartos dos presos formariam o edifício da circunferência com seis andares, e podemos imaginar esses quartos com umas pequenas celas abertas pela parte interna, porque uma grade de ferro bastante larga os deixa inteiramente à vista. Uma galeria em cada andar serve para a comunicação e cada pequena cela tem uma porta que se abre para a galeria. Uma torre ocupa o centro, que é o lugar dos inspetores: mas a torre não está dividida em mais do que três andares, porque está disposta de forma que cada um domine plenamente dois andares de celas. A torre de inspeção está também rodeada de uma galeria coberta com uma gelosia transparente que permite ao inspetor registrar todas as celas sem ser visto. Com uma simples olhada vê um terço dos presos e movimentando-se em um pequeno espaço pode ver a todos em um minuto. Embora ausente a sensação da sua presença é tão eficaz como se estivesse presente. [...] Todo o edifício é como uma colmeia, cujas pequenas cavidades podem ser vistas todas de um ponto central. O inspetor invisível reina como um espírito. (BENTHAM, 1979 apud BITENCOURT, 2004, p. 51)

O desenho do panóptico visa à segurança do estabelecimento, tanto interna quanto externa, bem como a uma tecnologia de dominação, produzindo a submissão forçada dos internos. No entanto, no plano original de Bentham, tinha também a função de propiciar a emenda do preso, motivo pelo qual recusa a ideia do isolamento celular constante: os presos deveriam ser reunidos em pequenos grupos, cujos integrantes seriam previamente classificados de acordo com seu grau de perversidade, a fim de que essas pequenas associações permitissem uma reforma mútua. A ideia da prisão como penitência deixa clara a vinculação que Bentham fazia da instituição prisional a conceitos religiosos da época, muito comum no penitenciarismo clássico.

Michel Foucault atribui ao panóptico de Bentham uma função que vai muito além das prisões: constitui instrumento que permite a automatização e a desindividualização do poder, favorecendo a dominação e a submissão dos observados em diversos contextos sociais, como hospitais, indústrias, escolas, manicômios etc.

Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores. [...] O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto. (FOUCAULT, 2007, p. 166-167)

Seguindo esse raciocínio, Foucault chega à conclusão de que as instituições panópticas fazem nascer uma relação real de sujeição a partir de uma relação, a princípio, fictícia. O poder é exercido sem a necessidade de amarras e grilhões; basta que o observado tenha a certeza de que está submetido ao campo de visibilidade do observador, que ele mesmo se sujeitará espontaneamente à relação de poder, exercendo, simultaneamente, o papel de dominador e de dominado. Em consequência, o poder externo alivia-se da obrigação de impor-se fisicamente sobre o observado, tendendo ao incorpóreo, haja vista o caráter definitivo e constante da relação de poder criada pelo panóptico.

Bentham acreditava também no trabalho como meio de reforma dos delinquentes, pois seria a única forma de conseguirem ter uma vida honrada fora da prisão após sua libertação; assim, opunha-se frontalmente aos trabalhos penosos e inúteis, entendendo que o trabalho deveria ser produtivo e atrativo.

Por outro lado, afirmava que a prisão deveria valer-se da severidade no trato com o preso - por exemplo, na comida de má qualidade, nas vestimentas humilhantes e na disciplina rígida -, pois entendia que a vida no estabelecimento prisional deveria ser de privações e limitações. Isso se dava porque acreditava que o interno pobre não poderia gozar de condições de vida melhores que os indivíduos de mesma classe que vivem em um estado de inocência e liberdade (BENTHAM, 1979 apud BITENCOURT, 2004, p. 53), argumentando que as condições de vida penosas favoreceriam a prevenção geral. Muito embora tal tese não possua fundamento empírico, está arraigada até hoje no senso comum e impede a implantação de diversas medidas progressistas em prol de uma reforma penitenciária.

O panóptico não chegou a desenvolver-se completamente nos termos idealizados por Bentham, mas deu origem a diversos modelos semelhantes hoje utilizados principalmente nos EUA e em algumas poucas prisões espalhadas pelo mundo. Além disso, suas ideias tiveram importância incontestável em diversos campos do conhecimento, bem como tem o mérito de ter conseguido reduzir consideravelmente os castigos cruéis nas prisões inglesas.


4. A LABELING THEORY OU TEORIA DA ROTULAÇÃO

Após traçar as funções básicas da pena e fazer uma breve exposição da história da prisão até o que ela mais ou menos representa atualmente, iniciaremos a análise da Labeling Theory ou Teoria da Rotulação, cuja maior contribuição foi ter oferecido um novo ponto de vista ao estudo do desvio e, consequentemente, da criminalidade.

No início dos anos 1960, a publicação do livro Outsiders, do cientista social norte-americano Howard Becker, representou uma verdadeira revolução no conhecimento a respeito do que se chamava delinquência. A transgressão deixou de ser produto de personalidades falhas e de situações sociais adversas e passou a ser vista como desvio social, de modo que este seria resultante de um processo de rotulação que envolveria, além do comportamento dos atores definidos como desviantes, aqueles que formulam as regras sociais e suas sanções, bem como os designados para fazê-las cumprir.

Embora esta teoria tenha recebido diversas críticas num primeiro momento, o livro de Becker tornou-se um marco no interacionismo - corrente sociológica que postula que os indivíduos agem em relação às coisas de acordo com o significado que atribuem a essas coisas, a partir de sua interação com outros indivíduos e com a sociedade como um todo - e constitui um clássico das ciências sociais. A rotulação continua sendo amplamente estudada até hoje, influenciando diversos estudos e pesquisas sobre as sociedades urbanas e seus segmentos, inclusive pela Criminologia, cuja abordagem será examinada posteriormente.

4.1. Escorço histórico

A publicação do livro Outsiders deu-se num momento de crítica e reavaliação das antigas estruturas teóricas da sociologia, em contraposição aos estudos sociológicos tradicionais sobre a criminalidade, que seguiam um rumo completamente diverso.

No início dos anos 60, os sociólogos estudavam o crime e outras formas de transgressão questionando o que levava as pessoas a agirem daquele modo, violando as normas sociais consensualmente aceitas e levando vidas “anormais”. Uns atribuíam o comportamento antissocial a falhas na personalidade do agente, que o faziam “comportar-se mal”; outros culpavam situações em que havia uma disparidade entre o que as pessoas almejavam em termos de ascensão social, conforme lhes haviam ensinado, e o que de fato poderiam alcançar, legitimando-lhes a utilização de métodos desviantes de mobilidade social, como o crime (BECKER, 2008, p. 10).

Essas teorias, porém, não agradavam aos sociólogos de uma nova geração, menos conformistas e mais críticos com relação às instituições sociais da época. Os sociólogos tradicionais consideravam óbvio o fato de que a responsabilidade pelos crimes era dos criminosos, o que os levava a conduzir seus estudos de acordo com o seguinte questionamento: “Por que as pessoas que identificamos como criminosos fazem as coisas que identificamos como crimes?”. Por outro lado, o combate e a repressão do crime ficavam a cargo unicamente do sistema de justiça criminal, como ainda é até hoje, cujas organizações consistiam na única fonte de estatísticas nas quais aqueles estudiosos poderiam basear suas pesquisas.

No entanto, o monopólio da fonte de dados estatísticos gerava graves erros nos resultados das pesquisas, pois a taxa de criminalidade era calculada com base apenas nos crimes denunciados à polícia, desconsiderando os crimes que não eram denunciados. Além disso, havia também os ajustes frequentemente levados a cabo pela polícia, que modificava os números a fim de aparentar ao público, às companhias de seguro e aos políticos que estava fazendo um bom trabalho. Assim, os sociólogos reformadores adotaram uma abordagem alternativa, baseada no interacionismo, segundo o qual as pessoas agem com base em sua compreensão do mundo e do que há nele, a fim de obter dados mais precisos e resultados mais condizentes com a realidade.

A problemática das pesquisas sobre criminalidade no âmbito das ciências sociais passou a ser a questão de como as coisas são definidas, quem está definindo que tipos de atividade e de que maneira.

Pesquisadores que trabalhavam nessa tradição não aceitavam que tudo que a polícia dizia ser crime “realmente” o fosse. Pensavam, e sua pesquisa confirmava, que ser chamado de criminoso e tratado como tal não tinha conexão necessária com qualquer coisa que a pessoa pudesse realmente ter feito. Era possível haver uma conexão, mas ela não era automática ou garantida. Isso significava que a pesquisa que usava as estatísticas oficiais estava cheia de erros, e a correção desses erros podia levar a conclusões bem diferentes. (BECKER, 2008, p. 12)

 No estudo de Becker e de outros estudiosos do tema, o foco deixou de ser a questão de quem comete o crime e passou a ser o desvio. Este termo mostrou-se mais adequado, pois abrange todas as atividades nas quais as pessoas, quando envolvidas em ação coletiva, definem certas atitudes como “erradas”, que não devem ser feitas, e geralmente adotam medidas para impedir que se faça o que assim foi definido; nesse contexto, aquele que infringe as regras adotadas pela coletividade passa a ser um outsider, um indivíduo que não se ajusta às normas estipuladas pelo grupo.

4.2. Outsiders

Becker explica que todos os grupos sociais elaboram regras que determinam situações e tipos de comportamentos a eles apropriados, definindo alguns como “certos” e outros como “errados”, e tentam, em determinadas circunstâncias, impô-las aos indivíduos do grupo. Dessa forma, “quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider” (BECKER, 2008, p. 15).

No entanto, pode ser que a pessoa que infringiu a regra tenha uma opinião diferente sobre a questão e não aceite a regra pela qual está sendo julgada; pode não encarar aqueles que a julgam competentes ou legitimamente autorizados a fazê-lo. Assim, aquele que infringe a regra pode pensar que seus juízes são outsiders, dando um novo sentido ao termo.

O grau em que alguém é considerado outsider, em qualquer dos dois sentidos, varia conforme a gravidade da transgressão e, por conseguinte, a força da regra imposta. Costumamos perceber determinados comportamentos transgressores – como uma infração no trânsito ou alguém que bebe demais numa festa – com certa tolerância, pois, afinal, não somos tão diferentes. Já um ladrão é visto como menos semelhante a nós, e tendemos a puni-lo com severidade. Por fim, crimes como o estupro ou o homicídio causam uma aversão tal que vemos o transgressor como um legítimo outsider, fazendo-o merecedor de uma punição ainda mais severa.

4.3. O desvio

Antes da mudança de paradigma operada pela abordagem da rotulação, os estudos científicos sobre os desviantes procuravam explicar as causas que os levavam a transgredir, aceitando a premissa do senso comum segundo a qual há algo inerentemente desviante - e, portanto, qualitativamente distinto - em atos que infringem ou parecem infringir as normas sociais, além de pressupor que o ato desviante ocorre porque alguma característica da pessoa que o comete torna necessário ou inevitável que ela o cometa. Assim, não se questionava o rótulo “desviante” quando aplicado a atos ou pessoas em particular, e, quando questionado, eram aceitos os valores do grupo que estava formulando o julgamento.

Adotavam-se concepções limitadas sobre o desvio, deixando de lado fatores importantes que levariam a conclusões mais exatas sobre o comportamento desviante. A concepção mais simples de desvio era essencialmente estatística, pois definia como desviante tudo que variava excessivamente com relação à média; assim, ser canhoto ou ruivo seria desviante, porque a maioria das pessoas é destra e morena (BECKER, 2008, p. 18).

Outra concepção de desvio muito comum, embora menos simples, o identificava como algo patológico, um comportamento não-saudável, a partir de uma analogia médica que considerava o corpo social como um organismo. No entanto, é impossível encontrar um consenso quanto ao que constitui um comportamento saudável, pois as pessoas utilizam critérios diferentes para classificar os comportamentos de acordo com o que entendem por “certo” e “errado”, diferentemente do que ocorre com a saúde física, em que são utilizados critérios comumente aceitos por todos para ser aferida.

Uma concepção sociológica mais próxima do pensamento de Becker identificava o desvio como a falha em obedecer a regras do grupo. Dessa forma, descritas as regras que um grupo impõe a seus membros, era possível afirmar com alguma precisão que o comportamento que infringisse aquelas normas seria desviante. Falhava, no entanto, no momento de decidir quais regras deviam ser tomadas como padrão de comparação em relação ao comportamento medido e julgado desviante, tendo em vista que uma pessoa faz parte, dentro de determinada sociedade, de vários grupos, os quais podem ter regras incompatíveis entre si; pressupunha uma homogeneidade nas regras criadas por cada grupo dentro de um grupo maior, o que nem sempre ocorre. Por fim, ao definir o desvio como a infração de alguma regra geralmente aceita, esta concepção tendia a questionar quem infringia as regras e a procurar os fatores nas personalidades e situações de vida dessas pessoas que supostamente poderiam explicar suas infrações, pressupondo que aqueles que infringiram a regra cometeram o mesmo ato desviante.

Baseado em tais concepções, e ciente de suas falhas e limitações, Becker formulou sua própria tese, segundo a qual o desvio é criado pela sociedade - não no sentido de que suas causas estão localizadas na situação social do desviante ou em “fatores sociais” que incitam sua ação infratora, mas que “grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders” (BECKER, 2008, p. 21-22).

Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal. (BECKER, 2008, p. 22)

O desvio é, entre outras coisas, a consequência das reações das pessoas de determinado grupo ao ato de uma em particular, a quem se atribui a infração de uma regra; sendo assim, não se pode supor que um grupo de pessoas rotuladas como desviantes constitui uma categoria homogênea, já que é possível que algumas delas tenham sido rotuladas de desviantes sem ter infringido regra alguma. Por outro lado, nem sempre os que infringem as regras são incluídos na categoria de desviantes, às vezes porque conseguiram escapar à detecção do desvio, ou mesmo em razão de seu status social, por exemplo.

Para que haja desvio, é necessário que exista uma regra que proíba determinado comportamento, que o considere desviante; mas, afinal, quem faz as regras e com que autoridade?

Em qualquer sociedade, por mais simples que seja, existem diversos grupos – étnicos, religiosos, profissionais, estudantis, de lazer, de familiares, amigos etc. -, sujeitos a diferentes regras. Um jovem pode, por exemplo, estar submetido às leis de seu país, ao mesmo tempo em que se sujeita aos mandamentos de sua religião, às normas da Universidade em que estuda e às regras de sua família, por exemplo. No entanto, nem sempre as regras são compatíveis entre si, e pode ser que o sujeito simplesmente não aceite as normas que lhe são impostas.

Podemos citar como exemplo o problema do narcotráfico no Brasil. Existe uma lei formalmente elaborada e promulgada que criminaliza a comercialização de entorpecentes no país, e o Poder Público empreende esforços para combatê-la na medida do possível. No entanto, pode ser que quem as comercializa – desde o “avião” até o dono da “boca-de-fumo” – não reconheça em tal prática um crime; podem vê-la apenas como uma atividade comercial comum, como uma forma de ganhar a vida e até como um serviço de utilidade pública. Não obstante sua resistência em aceitar a norma, não rotulados de desviantes, de traficantes, embora assim não se reconheçam; do seu ponto de vista, outsiders são os outros, aqueles que tentam rotulá-los como tal, pois eles é que não se ajustam às suas próprias normas.

Dessa forma, BECKER (2008, p. 30) chama atenção para o fato de que, além de reconhecer que o desvio é criado pelas reações de pessoas a tipos particulares de comportamento, pela rotulação desse comportamento como desviante, devemos também ter em mente que as regras criadas e mantidas por essa rotulação não são universalmente aceitas – constituem objeto de conflito e divergência, que é parte do processo político da sociedade.

O professor Alessandro Baratta destaca o estudo de Edwin M. Lemert, cuja teoria do desvio baseia-se na perspectiva da reação social, distinguindo o desvio “primário” do desvio “secundário”:

Lemert sustenta que são dois os principais problemas de uma teoria da criminalidade: o primeiro é “como surge o comportamento desviante”; o segundo, “como os atos desviantes são ligados simbolicamente, e as consequências efetivas desta ligação para os desvios sucessivos por parte da pessoa”. Enquanto o desvio primário se reporta, pois, a um contexto de fatores sociais, culturais e psicológicos, que não se centram sobre a estrutura psíquica do indivíduo, e não conduzem, por si mesmos, a uma “reorganização da atitude que o indivíduo tem para consigo mesmo, e do seu papel social”, os desvios sucessivos à reação social (compreendida a incriminação e a pena) são fundamentalmente determinados pelos efeitos psicológicos que tal reação produz no indivíduo objeto da mesma; o comportamento desviante (e o papel social correspondente) sucessivo à reação “torna-se um meio de defesa, de ataque ou de adaptação em relação aos problemas manifestos e ocultos criados pela reação social ao primeiro desvio”. (BARATTA, 2002, p. 90)

Assim, por diversos motivos e em muitos casos, a infração de uma regra e, principalmente, a aplicação eficaz do rótulo de “desviante” conduz o sujeito a uma situação em que as condições sociais se tornam tão hostis que não lhe resta muito que fazer senão recorrer ao desvio novamente, utilizando-o como instrumento de adaptação e mobilidade social, constituindo o que Becker denomina carreira desviante.

4.4. Carreiras desviantes

O primeiro passo na maioria das carreiras desviantes é o cometimento de um ato não apropriado, que infringe algum conjunto de regras em particular. Nem sempre esse ato é motivado, realizado com o propósito consciente de infringir a regra; outras vezes, nasce do conflito de interesses do agente, que, embora aceite a regra que proíbe determinado comportamento, age contrariamente visando a um bem que julga maior; por fim, pode resultar, ainda, da mera não-aceitação da regra imposta.

No entanto, um dos elementos mais decisivos no processo de construção de um padrão estável de comportamento desviante é ser rotulado publicamente de desviante, por meio da imposição da regra que foi violada. Ainda que ninguém descubra que foi cometida determinada impropriedade, ou deixe de impor a regra, o indivíduo que a cometeu pode, ele próprio, impor-se a regra, marcando a si mesmo como desviante em razão do que fez e punindo-se de uma maneira ou de outra por seu comportamento.

Ser marcado como desviante tem importantes e profundas consequências para a participação social e a auto-imagem do indivíduo. A mais importante é uma mudança drástica em sua identidade pública; cometer o ato impróprio e ser apanhado lhe confere um novo status. É rotulado, por exemplo, de criminoso e, via de consequência, tratado como tal (BECKER, 2008, p. 42).

Muitas vezes o rótulo de desviante compreende não só o traço principal que caracteriza o desvio, mas abrange também traços auxiliares que reforçam o estigma. Assim, “a posse de um traço desviante pode ter um valor simbólico generalizado, de modo que as pessoas dão por certo que seu portador possui outros traços indesejáveis presumivelmente associados a ele” (BECKER, 2008, p. 43).

Para ser rotulado de criminoso só é necessário cometer um único crime, isso é tudo a que o termo formalmente se refere. No entanto a palavra traz consigo muitas conotações que especificam traços auxiliares característicos de qualquer pessoa que carregue o rótulo. Presume-se que um homem condenado por arrombamento, e por isso rotulado de criminoso, seja alguém que irá assaltar outras casas; a polícia, ao recolher delinquentes conhecidos para investigação após um crime, opera com base nessa premissa. Além disso, considera-se provável que ele cometa também outros tipos de crime, porque se revelou uma pessoa sem “respeito pela lei”. Assim, a detenção por um ato desviante expõe uma pessoa à probabilidade de vir a ser encarada como desviante ou indesejável em outros aspectos. (BECKER, 2008, p. 43).

Ao se tratar alguém como desviante em geral, segundo o diagnóstico popular que descreve sua maneira de ser, e não particularmente desviante em relação a determinado fato, põe-se em movimento diversos mecanismos que agem sobre a pessoa de forma a moldá-la segundo a imagem que os outros têm dela, produzindo um desvio crescente. Isso ocorre porque, após ser identificada como desviante, ela passa a ser isolada dos grupos mais convencionais, inclusive dos quais fazia parte, e acaba por encontrar dificuldades em se conformar a outras regras que não tem a intenção de infringir, tornando-se forçosamente desviante também em relação a essas últimas, em um impulso desesperado de sobrevivência.

Dessa forma, fica claro que o comportamento desviante é, muitas vezes, uma consequência da reação pública ao desvio, e não um efeito das qualidades inerentes ao ato desviante. A questão é que o tratamento dado aos desviantes lhes nega os meios comuns de levar adiante as rotinas da vida cotidiana acessíveis à maioria das pessoas e, em razão dessa negação, o desviante é levado a desenvolver rotinas ilegítimas para sobreviver, gerando um ciclo progressivo de desvio. No entanto, evidentemente nem sempre aquele que comete um ato desviante e recebe o respectivo rótulo é vítima da inevitabilidade da carreira desviante; é possível que, no momento em que a regra lhe é imposta pela primeira vez, ainda tenha a possibilidade de seguir por caminhos diversos que não o da transgressão, dependendo da força do estigma que recebeu.

4.4.1. Subculturas desviantes

O último estágio dentro da carreira desviante é a participação em um grupo desviante organizado, a qual exerce forte impacto sobre a concepção que o desviante tem de si mesmo. Por terem o desvio em comum, os membros de grupos desviantes organizados desenvolvem um sentimento de pertença em relação àquele grupo; sentem que estão no mesmo “barco” e acreditam que devem enfrentar os mesmos problemas juntos, o que os leva a criar uma cultura própria baseada na perspectiva que têm do mundo, solidificando a identidade desviante de cada um.

Os grupos desviantes organizados tendem a racionalizar sua posição, desenvolvendo justificativas históricas, psicológicas e até legais para a atividade desviante; assim, a primeira consequência que se opera na carreira do desviante a partir do momento em que passa a fazer parte de um grupo organizado é a internalização de tais justificativas, fundamentando sua permanência na atividade desviante. A segunda consequência surge quando o novato aprende o repertório de soluções de problemas que os mais experientes oferecem, de modo a aperfeiçoar sua atuação na atividade desviante.

Assim, o desviante que ingressa num grupo desviante organizado e institucionalizado tem mais probabilidade que nunca de continuar nesse caminho. Ele aprendeu, por um lado, como evitar problemas; por outro, assimilou uma fundamentação para continuar. (BECKER, 2008, p. 49)

Dessa forma, surgem as subculturas desviantes, organizações de outsiders baseadas em atividades transgressoras, fundamentadas no repúdio geral às normas convencionais e em justificativas que legitimam a atividade desviante.

4.5. As regras e sua imposição

Feitas algumas considerações sobre os outsiders e seu processo de rotulação, examinaremos brevemente os responsáveis pela elaboração das regras e sua imposição.

A simples existência de uma regra não assegura sua imposição; para BECKER (2008, p. 129), “não é possível dizer que a ‘sociedade’ é prejudicada a cada infração e age para restaurar o equilíbrio”. Em regra, é necessário que algo provoque a sua imposição, a qual, portanto, requer explicação.

A justificação da imposição das regras baseia-se em quatro premissas fundamentais: a) a imposição da regra é um empreendimento - é necessário que alguém tome a iniciativa de punir o culpado pelo descumprimento da regra; b) a infração deve ser tornada pública por aqueles que desejam ver a regra cumprida - depois que a infração é do conhecimento de todos, não pode mais ser ignorada; c) a possibilidade de obter vantagem com o cumprimento da regra estimula os delatores a tomar a iniciativa de sua imposição, a qual se dá segundo seu interesse pessoal; e, por fim, d) o tipo de interesse pessoal que leva à imposição varia conforme a complexidade da situação em que a imposição tem lugar.

Em sociedades mais simples, onde há pouca divergência em relação às regras, basta que alguém se sinta prejudicado pelo seu descumprimento e torne tal fato público; logo, os outros membros do grupo se mobilizarão a fim de punir o infrator, eliminando a tensão e restabelecendo o equilíbrio social. Em contrapartida, em sociedades urbanas mais complexas, nas quais há possibilidade de interpretações divergentes da infração, é possível que haja conflitos com relação à imposição da regra; a punição depende mais da disputa de interesses entre grupos antagônicos que do mero descumprimento da norma.

Pode acontecer que a infração ocorra dentro de uma mesma organização na qual há dois grupos que, em tese, apresentam interesses diversos um do outro, como, por exemplo, em um supermercado. É muito comum que os auxiliares desses estabelecimentos cometam pequenos furtos sem que haja qualquer tipo de repreensão pela gerência, a qual, muito embora procure conter as infrações, não as torna públicas. Essa tolerância tem lugar devido ao fato de que a gerência sabe que os auxiliares recebem baixos salários e trabalham arduamente, criando um sistema de compensação que favorece às duas partes.

Quanto maior o número de grupos rivais envolvidos na situação, mais difícil se torna conciliar seus interesses e alcançar o equilíbrio de poder entre eles, fazendo com que a solução do conflito se torne impossível. Nessas circunstâncias, a publicidade da infração torna-se uma variável importante, pois aqueles aos quais não interessa impor a regra tentam como podem impedir a notificação das infrações. Isso ocorre, por exemplo, nos acordos feitos entre políticos, polícia e bicheiros, quando aqueles fazem vista grossa à prática do jogo do bicho a fim de obter vantagem para si; dessa forma, todos saem ganhando por meio de uma prática corrupta, mas que corresponde aos interesses de todos. No entanto, se o acordo é descoberto e divulgado por uma organização da sociedade civil que repudia tal prática, logo surgirá um movimento anticorrupção encarregado de extirpá-la e puni-la.

Em resumo, podemos dizer que:

A iniciativa, gerada por interesse pessoal, armada com publicidade e condicionada pelo caráter da organização, é portanto a variável-chave na imposição da regra. A iniciativa opera da maneira mais imediata numa situação em que há acordo fundamental em relação às regras a serem impostas. Uma pessoa com um interesse a ser atendido divulga uma infração e providências são tomadas; se nenhuma pessoa com iniciativa aparecer, nenhuma providência é tomada. Quando dois grupos competem pelo poder na mesma organização, a imposição só ocorrerá quando falharem os sistemas de conciliação que caracterizam sua relação; de outro modo, o interesse de todos será mais bem atendido permitindo-se que as infrações continuem. Em situações que contêm muitos grupos de interesses rivais, o resultado é variável, dependendo do poder relativo dos grupos envolvidos e de seu acesso aos canais de publicidade. (BECKER, 2008, p. 135-136)

Em sendo as regras produto da iniciativa de alguém – os chamados empreendedores morais - podemos definir claramente duas categorias nesse processo: os criadores de regras e os impositores de regras.

4.5.1. Criadores de regras

De modo geral, as regras se originam da iniciativa de pessoas que - por acreditarem poder, de alguma forma, contribuir para extirpar o mal da sociedade – empreendem verdadeira cruzada moral contra as situações que lhes parecem insustentáveis ao bem-estar da comunidade, de acordo com sua própria concepção de valores. Não é que o cruzado moral tente impor sua própria moral aos outros, apenas; ele acredita que, se as pessoas agirem de acordo com o que julga certo, isso será bom para elas também, revelando uma motivação humanitária em seu intento (um exemplo é o caso de Glória Perez, roteirista de novelas da Rede Globo que utilizou a mídia para angariar o apoio popular a fim de incluir o homicídio qualificado no rol da Lei dos Crimes Hediondos após o assassinato de sua filha Daniella Perez, atriz da mesma emissora, no que foi exitosa).

Nem sempre a cruzada moral é bem-sucedida a ponto de criar uma nova regra, válida para todos. Por outro lado, quando a regra é estabelecida, cria-se um verdadeiro aparato de imposição da norma, e a cruzada torna-se institucionalizada. Assim, “o que começou como uma campanha para convencer o mundo da necessidade moral de uma regra torna-se finalmente uma organização dedicada à sua imposição” (BECKER, 2008, p. 160). O resultado final da cruzada moral é, então, o surgimento de uma força policial.

4.5.2. Impositores de regras

O policial impositor da regra difere sensivelmente do cruzado moral. Enquanto este último se preocupa com o conteúdo da norma e defende sua criação e imposição fervorosamente, chegando por vezes a ser hipócrita, o policial dispõe de uma visão neutra e objetiva de seu trabalho, que é impor a regra; dessa forma, o impositor “pode não estar interessado no conteúdo da regra como tal, mas somente no fato de que a existência da regra lhe fornece um emprego, uma profissão e uma raison d’être” (BECKER, 2008, p. 161).

A atividade de imposição da regra é condicionada por dois interesses básicos do impositor: a) sente a necessidade de justificar a existência de sua posição; e b) deve ganhar o respeito daqueles com quem lida.

Segundo Becker:

Ao justificar a existência de sua posição, o impositor de regras enfrenta um duplo problema. Por um lado, deve demonstrar para os outros que o problema ainda existe; as regras que supostamente deve impor têm algum sentido, porque as infrações ocorrem. Por outro lado, deve mostrar que suas tentativas de imposição são eficazes e valem a pena, que o mal com que ele supostamente deve lidar está sendo de fato enfrentado adequadamente. (BECKER, 2008, p. 161-162)

Dessa forma, as organizações encarregadas de impor as regras oscilam entre duas posturas. Por vezes afirmam que, em razão de seus esforços, o problema está próximo de ser solucionado; em outros momentos, dizem que o problema está mais grave que nunca – embora não por culpa sua -, e que é necessário renovar e intensificar os esforços para mantê-lo sob controle. Assim, os impositores fornecem uma boa razão para que sua posição continue a existir.

Outra característica desses profissionais é a tendência a formar uma visão pessimista da natureza humana; atribuem as constantes infrações que presenciam à maldade do homem e à sua incapacidade de cumprir regras, motivo pelo qual são céticos em relação a tentativas de reformar os infratores. Seu pessimismo e ceticismo podem ser explicados, no entanto, pelo fato de que, fossem as pessoas perfeitas, e fosse possível corrigi-las permanentemente, seu trabalho deixaria de existir.

O impositor sente também necessidade de impor respeito em relação àqueles com quem lida, pois, caso contrário, perde o sentimento de segurança e torna-se muito difícil realizar seu trabalho. Dessa forma, boa parte da atividade de imposição é dedicada não à aplicação da regra em si, mas à imposição de respeito aos infratores, o que indica que uma pessoa pode ser rotulada de desviante não porque infringiu uma regra, mas porque demonstrou desrespeito pelo impositor. Caso o impositor tenha a opção de impor ou não a regra, sua postura será baseada na atitude do infrator em relação a ele; assim, “se o infrator for respeitoso, o impositor pode suavizar a situação. Se for desrespeitoso, as sanções poderão lhe ser aplicadas” (BECKER, 2008, p. 164).

Por ter uma postura profissional em relação às regras que impõe, bem como por estar ciente de que seus recursos são, em geral, escassos, o impositor age com calma na aplicação da regra, pois sabe que não poderá resolver o problema sozinho; o combate ao comportamento desviante requer tempo e só produz resultado em longo prazo. Para trabalhar com eficiência, o impositor estabelece prioridades, lidando com uma coisa de cada vez, enfrentando primeiramente os problemas mais urgentes e deixando os menos graves para depois, o que acaba por relativizar a atividade de imposição das regras.

Um dos critérios que o impositor usa em sua ponderação de prioridades é a existência de um “intermediário” – pessoa de influência política ou know-how que presta serviços, mediante pagamento, a infratores normalmente experientes, que utilizam seus serviços a fim de evitar a imposição da regra. Desse modo, os infratores menos experientes costumam receber a imposição eficaz da regra, enquanto que aqueles experientes e gabaritados, respaldados por um “intermediário”, frequentemente escapam ilesos da punição.

Os impositores, portanto, respondendo às pressões de sua própria situação de trabalho, aplicam as regras e criam outsiders de uma maneira seletiva. Se uma pessoa que comete um ato desviante será de fato rotulada de desviante depende de muitas coisas alheias a seu comportamento efetivo: depende de o agente da lei sentir que dessa vez deve dar alguma demonstração de que está fazendo seu trabalho a fim de justificar sua posição; de o infrator mostrar a devida deferência ao impositor; de o “intermediário” entrar em ação ou não; e de o tipo de ato cometido estar incluído na lista de prioridades do impositor. (BECKER, 2008, p. 166)

Pelo exposto, podemos concluir que o desvio é sempre o resultado de um empreendimento; não se caracteriza somente pela simples infração da regra, mas principalmente por quem faz as regras e pelo modo como se dá sua imposição.


5. A RECEPÇÃO DA LABELING THEORY NO DIREITO PENAL

A partir dos estudos de renomados sociólogos de tradição interacionista e fenomenológica, a Labeling Theory passou a ser aplicada ao estudo do Direito Penal pela Criminologia Crítica – nova corrente criminológica que propõe a mudança de seu objeto de estudo, em oposição às escolas tradicionais.

Na criminologia tradicional, mormente a positivista e a liberal clássica, o crime é fruto de condições patológicas do delinquente, o qual possui características inerentes que o levam a cometer o ato delituoso; assim, a criminologia positivista atribui uma perspectiva etiológica à criminalidade, reconhecendo-a como realidade preexistente à sua criminalização e assumindo como certos os valores do contexto social em que é analisada.

A Criminologia Crítica, em contraposição às antigas escolas criminológicas e influenciada pelas teorias da reação social – a Labeling Theory -, operou uma verdadeira mudança de paradigma no estudo do crime, pois defende que não se pode compreender o fenômeno da criminalidade sem analisar o sistema penal, desde as normas abstratas até as instâncias oficiais de imposição da norma (polícia, juízes, instituições penitenciárias), porquanto a aplicação do status social de delinquente pressupõe a atividade desse sistema.

O salto qualitativo que separa a nova da velha criminologia consiste, portanto, principalmente, na superação do paradigma etiológico, que era o paradigma fundamental de uma ciência entendida, naturalisticamente, como teoria das causas da criminalidade. A superação deste paradigma comporta, também, a superação de suas implicações ideológicas: a concepção do desvio e da criminalidade como realidade ontológica preexistente à reação social e institucional e a aceitação acrítica das definições legais como princípio de individualização daquela pretendida realidade ontológica [...]. (BARATTA, 2002, p. 160-161)

Na perspectiva da Criminologia Crítica a criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante um processo de dupla seleção: a seleção dos bens juridicamente protegidos e dos comportamentos ofensivos a estes e a seleção dos indivíduos estigmatizados entre aqueles que realizam infrações a normas penalmente sancionadas. Essa seleção, por sua vez, cabe à classe dominante, que lança mão de seu prestígio social e do poder econômico para atender a seus próprios interesses em detrimento das classes menos favorecidas, que passam a ser marginalizadas e, consequentemente, criminalizadas.

Um dos aspectos apontados por essa escola concernente à necessidade de rever os antigos conceitos arraigados em nosso sistema penal é o relativo aos “crimes de colarinho branco” e a chamada “cifra negra”. Segundo Alessandro Baratta, fundamentando-se nas pesquisas do sociólogo Edwin Sutherland, os crimes de colarinho branco – aqueles cometidos por pessoas de alta posição social – são um fenômeno característico das sociedades de capitalismo avançado que tem crescido sobremaneira nas últimas décadas, mas que não tem tido a devida resposta penal.

BARATTA (2002, p. 103) explica que esses crimes representam nas estatísticas criminais uma parcela muito inferior ao que realmente são na realidade, devido a fatores de natureza social (prestígio dos autores e ausência de estereótipo), de natureza jurídico-formal (a competência de comissões especiais, ao lado da competência de órgãos ordinários, para certas formas de infrações) ou mesmo de natureza econômica (possibilidade de recorrer a bons advogados e de exercer pressões sobre os denunciantes), que acabam por distorcer as estatísticas oficiais, originando a chamada “cifra negra”. Como consequência, atribui-se a criminalidade às classes sociais mais baixas e, portanto, a fatores pessoais e sociais correlacionados com a pobreza, originando uma justiça penal seletiva, que pune os pobres e beneficia os ricos.

Estas conotações da criminalidade incidem não só sobre os estereótipos da criminalidade, os quais, como investigações recentes têm demonstrado, influenciam e orientam a ação dos órgãos oficiais, tornando-a, desse modo, socialmente “seletiva”, mas também sobre a definição corrente de criminalidade, que o homem da rua, ignorante das estatísticas criminais, compartilha. Realmente, esta definição de criminalidade, e as correspondentes reações não institucionais por ela condicionadas (a reação da opinião pública e o alarme social), estão ligadas ao caráter estigmatizante que a criminalidade leva, normalmente, consigo, que é escassíssimo no caso da criminalidade de colarinho branco. Isto é devido, seja à sua limitada perseguição e à relativamente escassa incidência social das sanções correspondentes, especialmente daquelas exclusivamente econômicas, seja ao prestígio social de que gozam os autores das infrações. (BARATTA, 2002, p. 103)

BARATTA (2002, p. 106) chama atenção ao fato de que, se observarmos a seleção da população criminosa, considerando a interação e as relações de poder entre os grupos sociais, reencontraremos “os mesmos mecanismos de interação, de antagonismo e de poder que dão conta, em uma dada estrutura social, da desigual distribuição de bens e de oportunidade entre os indivíduos”, o que explicaria o fato de que a população carcerária nos países capitalistas é constituída, em sua grande maioria, por pessoas das classes de menor poder econômico, da classe obreira. Assim, a criminalidade nada mais é que um “bem negativo”, análogo aos bens positivos - como o patrimônio, a renda e o prestígio social -, sujeito aos mesmos mecanismos de distribuição, e “distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema sócio-econômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos” (BARATTA, 2002, p. 161).

Diante de tais razões, a Criminologia Crítica nega que o fim ressocializador da pena possa ser alcançado numa sociedade capitalista, pois entende que a prisão funciona tão-somente como instrumento de controle da classe operária e de manutenção das desigualdades sociais; o sistema penal permite a estrutura vertical da sociedade marginalizando as classes mais baixas, a fim de que as relações de poder se mantenham sempre em favor das classes de maior poder econômico, que são as responsáveis, afinal, por fazer as regras e definir a quem estas serão aplicadas. Assim, conduz-se o delinquente a um progressivo processo de marginalização e criminalização, que dificulta seu retorno ao seio social, fazendo com que reincida e, finalmente, adote a carreira delitiva.

Embora defenda a superação do paradigma etiológico em favor de uma perspectiva sócio-econômica como explicação da criminalidade, Baratta reconhece que a Labeling Theory é uma teoria de médio alcance, que não abrange todo o complexo fenômeno que é o crime. Dessa forma, acredita que ambas as teses se complementam, visto que cada uma delas aborda o tema de pontos de vista diferentes.

Bitencourt, comentando as proposições de Baratta para a reforma do sistema penal, entende que sua contribuição ao Direito Penal é inegável e irreversível, porém discorda da ideia de que a criminalidade explica-se somente pela luta de classes:

A proposição de Baratta oferece algumas dificuldades teóricas e práticas, na medida em que não se pode afirmar que toda delinquência das classes inferiores seja uma resposta às condições de vida que o sistema capitalista impõe; existem outros aspectos individuais no ato delitivo que não podem dissolver-se numa explicação estrutural. Embora o político esteja presente em todos os atos do indivíduo e em todos os fenômenos sociais, isso não quer dizer que as outras facetas do homem e da vida social devam ser absorvidas pelo problema do poder e da luta de classes. (BITENCOURT, 2007, p. 120)

Esse é, também, o nosso posicionamento a respeito do tema, pois atribuir a criminalidade à luta de classes parece-nos conclusão por demais simplista, já que existem outros fatores que contribuem para a ocorrência do fenômeno criminal. Por tal motivo, não se pode prescindir da perspectiva etiológica, já que esta busca as causas do crime interiores ao homem, enquanto a teoria da reação social busca explicá-lo em suas causas exteriores.


6. EFEITOS CRIMINÓGENOS DA PRISÃO

A partir das lições oferecidas pela Labeling Theory acima comentadas, podemos concluir que a prisão possui peculiaridades que exercem sobre o preso diversos efeitos de ordem sociológica e psicológica, em decorrência da relação de opressão com a equipe dirigente, da arquitetura carcerária, da repressão sexual e incontáveis outras razões, as quais contribuem, de uma maneira ou de outra, para a progressiva degradação do interno e, por conseguinte, o fracasso de sua recuperação.

Muito embora exista uma vasta lista de efeitos criminógenos da prisão, nos limitaremos aqui a tratar da prisionização, que é, de fato, o efeito mais nefasto e que traz as piores consequências aos internos, além de que guarda forte relação com a estigmatização, tema central de nosso trabalho.

6.1. A prisionização e seus efeitos

Alguns tratam da prisionização como uma espécie de “aculturação” do encarcerado (SÁ, 2010, p. 112); outros, como GOFFMAN (2008, p. 23), preferem referir-se a ela como “desculturamento” ou “destreinamento”, haja vista ser um processo mais limitado que a aculturação ou a dessocialização. O fato é que o conceito de prisionização trata da adaptação do interno aos hábitos, usos e costumes da prisão, ou seja, à cultura carcerária, levando-o a substituir, pouco a pouco, a cultura da sociedade em que vivia livre pela cultura da instituição total na qual passou a viver.

Esse processo tem como resultado a mortificação do eu do internado (GOFFMAN, 2008, p. 24), pois é submetido a humilhações tais que o conceito que tinha de si próprio se modifica:

O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo que se tornou possível por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Começa a passar por algumas mudanças radiais em sua carreira moral, uma carreira composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que têm a seu respeito e a respeito dos outros que são significativos para ele. (GOFFMAN, 2008, p. 24)

Uma das primeiras mutilações do eu é a perda de alguns papéis sociais do internado em razão das barreiras que a instituição total impõe para separá-lo do mundo externo. A separação constante do mundo mais amplo faz com que o preso deixe de manter as antigas ligações que tinha com sua família, seu trabalho, seu círculo de amizades e até mesmo seus hobbies, fazendo com que ocorra o despojamento de alguns papéis que o identificavam e constituíam sua personalidade.

Assim, o isolamento e a opressão não permitem que o preso seja pai, marido ou trabalhador; quanto menos sua personalidade se destacar da dos outros internos, e quanto maior o distanciamento do mundo externo, melhor para a manutenção da homogeneidade e da ordem na instituição.

 Ainda que o interno possa restabelecer determinados papéis se e quando solto, algumas dessas perdas são irrecuperáveis, como o tempo não empregado no progresso educacional ou profissional, da educação dos filhos, no namoro etc., e são dolorosamente sentidas por ele. Outras têm até mesmo repercussão jurídica semelhante à da morte civil: “os presos podem enfrentar, não apenas uma perda temporária dos direitos de dispor do dinheiro e assinar cheques, opor-se a processos de divórcio ou adoção, e votar, mas ainda podem ter alguns desses direitos permanentemente negados” (GOFFMAN, 2008, p. 25).

Um aspecto determinante para a supressão da identidade do interno nas instituições totais é o processo de admissão ao qual é submetido. Nele, o preso é despojado de todos os seus bens, inclusive os de uso pessoal, os quais são acondicionados e armazenados até sua liberação, ou entregues à família. Em seguida, sofre um processo de padronização quase que industrial: em regra, recebe um número de identificação, um conjunto de roupas idênticas às dos outros presos e é conduzido à cela que ocupará, provavelmente, pelo resto de sua estada, sem qualquer direito de escolha.

Todos nós depositamos em nossos pertences algum sentimento e atribuímos-lhes valor, porquanto representam parte de nós e, de certa forma, nos identificam. Assim, a perda do direito de propriedade do preso, por si só, leva consigo boa parte de sua identidade. A maior perda, no entanto, é imaterial:

O processo de admissão pode ser caracterizado como uma despedida e um começo, e o ponto médio do processo pode ser marcado pela nudez. Evidentemente, o fato de sair exige uma perda de propriedade, o que é importante porque as pessoas atribuem sentimentos do eu àquilo que possuem. Talvez a mais significativa dessas posses não seja física, pois é o nosso nome; qualquer que seja a maneira de ser chamado, a perda de nosso nome é uma grande mutilação do eu. (GOFFMAN, 2008, p. 27)

Dessa forma, a maior perda sofrida pelo internado é possivelmente a do nome, pois a forma como somos chamados é, mais que tudo, o que nos distingue dos outros. Essa progressiva homogeneização, inclusive na denominação, atinge a psique do preso e acarreta profundas mudanças em seu autoconceito, pois é despojado de seu livre-arbítrio e de sua personalidade e passa a ser propriedade da instituição.

Uma forma regularmente utilizada nas prisões para atingir esse efeito é a distribuição de bens de uso pessoal substitutos aos dos presos, como roupas, escovas de dente e pentes. Além de serem nitidamente identificados como sendo propriedade da instituição, são regularmente recolhidos e substituídos, a fim de evitar o sentimento de pertença aos usuários desses bens. Além disso, são usualmente produtos de baixa qualidade e muitas vezes desajustados às necessidades dos presos, como roupas frouxas, rasgadas ou insuficientes para proteger o corpo do frio, por exemplo.

Outro modo de degradação do eu nas prisões é a desfiguração pessoal do preso. A apresentação pessoal constitui importante elemento de identificação do indivíduo, pois é através dela que exprimimos boa parte de nossa personalidade e provocamos as primeiras impressões nas outras pessoas. Ao ingressar na prisão, o internado deixa de exercer controle sobre sua aparência; perde o acesso aos produtos cosméticos que utilizava, às suas roupas e, por conseguinte, é forçado a abrir mão de seu estilo. A desfiguração pessoal acarreta a perda do conjunto de identidade, pois o internado não se reconhece na aparência que lhe é atribuída pela instituição.

Outra característica das prisões responsável pela degradação do eu do internado são as frequentes indignidades físicas e o tratamento humilhante a que é submetido. A posição de constante submissão do preso dá-lhe a sensação de que não exerce poder sobre si próprio, de que não dirige sua vida. É obrigado a tratar seus superiores sempre por “senhor” ou alguma outra forma respeitosa e nitidamente hierárquica de tratamento; caso não demonstre respeito pela equipe dirigente, é severamente castigado e rebaixado. Mais que isso, é comum que o preso seja forçado a assumir um papel na prisão com o qual não se identifica, que não corresponde às suas crenças e valores, como o de dedo-duro ou de capataz de outros presos.

Qualquer que seja a forma ou a fonte dessas diferentes indignidades, o indivíduo precisa participar de atividade cujas consequências simbólicas são incompatíveis com sua concepção do eu. Um exemplo mais difuso desse tipo de mortificação ocorre quando é obrigado a executar uma rotina diária de vida que considera estranha a ele – aceitar um papel com o qual não se identifica. Nas prisões, a negação de oportunidades para relações heterossexuais pode provocar o medo de perda da masculinidade. (GOFFMAN, 2008, p. 31)

Goffman refere-se a outro conceito para explicar a mortificação do eu do internado, a partir de situações a que este é exposto que violam sua identidade: o de exposição contaminadora.

O primeiro exemplo que oferece de exposição contaminadora é a exposição moral do preso no processo de admissão. Ao entrar, é criado um dossiê do internado contendo fatos passados (normalmente desabonadores), suas posições sociais e o histórico de seu comportamento, cujas informações ficam à disposição da equipe dirigente. O poder de coação da instituição aumenta consideravelmente quando tem a posse de tais informações, pois pode complementá-las ao seu alvedrio e utilizá-las contra o preso.

Outro tipo de exposição muito comum é ao próprio ambiente infecto das prisões de uma forma geral. As instalações são usualmente precárias e malcuidadas, e os presos são obrigados a usar utensílios desgastados e anti-higiênicos, com sujeira acumulada e propícios à proliferação de doenças. O preparo das refeições muitas vezes não observa aos padrões mínimos de higiene, sendo comum encontrar cabelos e insetos nos alimentos. Nas celas, a situação não é muito diferente; os presos dormem amontoados uns sobre os outros, muitas vezes no chão, devido à superlotação, e a satisfação das necessidades fisiológicas é feita de maneira precária e degradante. Essas condições, no entanto, são justificadas pela premissa do senso comum de que o preso não merece conforto, pois está ali para pagar pelo mal que cometeu, revelando um nítido agravamento desproporcional do caráter retributivo da pena.

As revistas periódicas somam-se ao rol de exposições morais sofridas pelo preso. Não bastasse ser despojado de seus bens ao entrar na instituição, o interno sofre frequentes revistas em seu corpo e sua cela, sob o argumento de que pode estar escondendo objetos que permitiriam uma possível fuga ou outras atividades ilícitas dentro da prisão. A constante invasão da privacidade do preso viola sua dignidade e, por conseguinte, aprofunda a desintegração do seu eu.

No momento da admissão, os bens de uma pessoa são retirados e indicados por um funcionário que os enumera e prepara para armazenamento. O internado pode ser revistado até o ponto [...] de um exame retal. Posteriormente, durante sua estada, pode ser obrigado a sofrer exames em sua pessoa e em seu dormitório, seja de forma rotineira, seja quando há algum problema. Em todos esses casos, tanto o examinador quanto o exame penetram a intimidade do indivíduo e violam o território de seu eu. (GOFFMAN, 2008, p. 35)

A mistura de grupos étnicos, etários e raciais nas celas também pode causar desconfortos no interno, pois é possível que ele considere determinada companhia indesejável. Pode acontecer, por exemplo, de o preso não compartilhar da religião ou da opção sexual de seu companheiro de cela, o que pode vir a ocasionar inclusive agressões e até a morte dos desafetos. A constituição forçada de grupos heterogêneos como os citados, principalmente por razões ideológicas, agrava a dessocialização do preso, pois a tendência natural do ser humano é de reunir-se em grupos que compartilham afinidades, e não o contrário. Além disso, o problema de superlotação das prisões é outro fator que contribui para a supressão da personalidade do internado, pois o espaço pessoal é tão reduzido que a intimidade simplesmente inexiste, favorecendo a promiscuidade e, consequentemente, provocando distúrbios psicológicos de ordem sexual.

Por fim, a leitura pública das correspondências completa o ciclo de exposição contaminadora, pois além de revelar a intimidade do preso, o sujeita à zombaria por parte dos outros internados e até mesmo da equipe dirigente. O mesmo acontece com as visitações, porquanto têm caráter público; sendo assim, a família do preso é exposta e a conversa entre visitante e internado limita-se a assuntos corriqueiros e de pouco valor, visto que há sempre um guarda vigiando-os, a fim de evitar que determinados objetos e/ou informações sejam trocados entre um e outro. Com a visita íntima não é diferente, pois em prisões superlotadas ou nas que não há cela específica para este tipo de visita, a namorada ou esposa do preso submete-se às provocações dos outros internados, eliminando qualquer possibilidade de efetiva intimidade.

Tudo o que foi dito até aqui contribui para a degradação do eu do preso e para seu “destreinamento” à vida em sociedade, dificultando sua ressocialização. Os obstáculos enfrentados pelo egresso, quando retorna ao seio social, acabam por induzi-lo a querer voltar à prisão, que se tornou o único ambiente ao qual se sente adaptado. Segundo GOFFMAN (2008, p. 69), “a liberação tende a ocorrer exatamente quando o internado finalmente aprendeu a manejar ‘os fios’ no mundo interno, e conseguiu privilégios que descobriu, dolorosamente, que são muito importantes”. Assim, “pode descobrir que a liberação significa passar do topo de um pequeno mundo para o ponto mais baixo de um mundo grande”.

Essa angústia da modificação de status é provocada pela desculturação do ex-preso promovida pela prisão, que não consegue adquirir os hábitos exigidos na sociedade mais ampla, bem como pelo estigma negativo que o identifica, o de criminoso. A rotulação do indivíduo, além de provocar-lhe inúmeras dificuldades à sua ressocialização – como candidatar-se a um emprego ou na busca de um lugar para viver -, muitas vezes preenche o vazio de personalidade deixado pela instituição total da prisão; assim, o indivíduo aceita o estigma e passa a identificar-se com o rótulo que lhe foi conferido, tornando-se um desviante contumaz e assumindo a carreira delitiva.

Além disso, a prisão favorece o surgimento das temidas organizações criminosas, que nada mais são que subculturas desviantes forjadas no interior dos presídios a partir do compartilhamento de experiências e ideais entre os internos, os quais passam a pertencer a um novo grupo social com regras próprias, paralelamente à sociedade formal opressora que os marginalizou a partir da imposição de regras não aceitas universalmente.


7. CONCLUSÃO

Com fundamento em tudo o que foi exposto, concluímos que a prisão nos moldes atuais representa uma instituição total tão opressora e infecta que, ao invés de proporcionar aos internados meios de adequar seu comportamento ao convívio social em liberdade, os dessocializa e estigmatiza profundamente, pois lhes retira a individualidade e modifica o conceito que têm de si próprios, compelindo-os a aceitar e assumir a identidade de “criminosos”. Essa mudança na psique dos delinquentes, associada ao convívio forçado com outros desviantes, favorece o surgimento de subculturas carcerárias e compele os egressos à carreira delitiva.

Dessa forma, há uma evidente incongruência entre a realidade que a prisão nos apresenta e seu suposto fim ressocializador, pois atua mais como fator criminógeno que como solução para o problema da criminalidade. De acordo com notícia publicada na página eletrônica do Supremo Tribunal Federal (2009), o índice de reincidência entre os egressos do sistema prisional chegava a 70% no ano de 2009, um dos mais altos do mundo, ao passo que uma pesquisa promovida pelo Grupo Candango de Criminologia, da Universidade de Brasília (UnB), apontou que esse índice cai para menos da metade entre os apenados com penas alternativas (ESTUDO..., 2010), já que estas permitem que o reeducando mantenha contato com a sociedade, de modo a facilitar sua reintegração após o cumprimento da pena. A prisão atua de modo diametralmente inverso, pois isola os apenados do convívio social saudável, submetendo-os a indignidades tais que reduzem drasticamente a possibilidade de ressocialização.

No entanto, muito embora a prisão encerre em si graves defeitos de difícil resolução, gerando descrédito nas penas privativas de liberdade entre boa parte dos estudiosos da questão penitenciária, acreditamos ser inviável sua supressão no atual estágio em que se encontra nossa sociedade. A abolição da prisão requereria a modificação de todo o atual aparato punitivo do Estado, por intermédio de novas políticas públicas de prevenção e combate à criminalidade, o que exige tempo, recursos e interesse político. No entanto, acreditamos ser imprescindível a sua reforma, a fim de que o fim preventivo-especial seja novamente uma meta a ser alcançada pelo nosso sistema penal. Para tanto, é necessário que o Direto acompanhe os avanços obtidos nas Ciências Sociais em geral e, mais especificamente, incorpore as contribuições oferecidas pela Sociologia e pela Psicologia, para que, por meio do estudo interdisciplinar da criminalidade e das formas de controle social, possa chegar a propostas inovadoras e eficazes de resposta penal, respeitando a dignidade do reeducando e proporcionando-lhe meios de ser reintegrado à sociedade.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Sergio Enrique Ochoa. Cárcere, estigma e reincidência: o mito da ressocialização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3672, 21 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24285. Acesso em: 17 maio 2024.