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Da coculpabilidade penal

Da coculpabilidade penal

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Analisa-se a corresponsabilidade do Estado e da sociedade na diminuição da autodeterminação de cidadãos marginalizados quando da prática de delitos. A coculpabilidade é princípio constitucional implícito e deveria ser prevista como causa geral de diminuição de pena e, em casos extremos, causa extintiva da punibilidade.

“A cabeça pensa onde os pés pisam.”

(Frei Leonardo Boff, 1997)

Resumo: A coculpabilidade se fundamenta na capacidade da autodeterminação e na influência do meio social no comportamento humano. Considerando que nem todos tem acesso às mesmas oportunidades ao longo da vida, torna-se injusta a expectativa que todos sigam os mesmos padrões comportamentais. Há de se adequar o juízo de reprovação, como parte integrante do conceito analítico de crime, em sua concepção funcionalista teleológica, às oportunidades (não) oferecidas ao indivíduo, em cotejo com as garantia de efetivação/negativação dos direitos constitucionais individuais pelo Estado; logo, a sociedade é corresponsável pela prática de delitos por cidadãos marginalizados, quando deixa de oferecer condições igualitárias de oportunidades para toda a coletividade. Visando à efetivação do Princípio da Individualização da pena, além da proteção dos direitos individuais face ao Estado, imperiosa se faz a existência de um instrumento capaz de dosar a reprovabilidade social da conduta, considerando as desigualdades, evitando que o Direito Penal seja usado como instrumento de controle de classes.

Palavras-chave: Coculpabilidade. Princípio da Individualização da Pena. Direito Penal como controle de classes.

 

Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 CONCEITO. 2.1 Evolução da Teoria do Delito e Funcionalismo Penal. 2.2 Conceito de Coculpabilidade. 3 FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL. 3.1 Fundamento de validade. 3.2 Princípio Constitucional implícito?3.3 Coculpabilidade Como Instrumento de Efetivação do Princípio da Individualização da Pena. 4 ASPECTOS SOCIAIS. 4.1 A Falência do Direito Penal: Instrumento de Controle Social da Classe Dominante . 5 ASPECTOS PRÁTICOS. 5.1 Doutrina. 5.2 Jurisprudência. 5.3 Necessária positivação do princípio da coculpabilidade. 6 TEORIAS CONTRÁRIAS À COCULPABILIDADE. 6.1 Negação à Teoria da Coculpabilidade. 6.2 Coculpabilidade às Avessas. 7 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 

SIGLAS

CP – Código Penal

CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça


1 INTRODUÇÃO

Somos responsáveis por nossas escolhas, mas que escolhas temos?

Até que ponto pode ir o juízo de reprovação no que concerne a condutas delituosas levadas a cabo por cidadãos marginalizados pela sociedade? Quando, como e em que medida se dá a corresponsabilidade do Estado, quando deixa de oferecer condições igualitárias de oportunidades a todos, na prática destes delitos?

O presente trabalho propõe verificar até que ponto hoje, no campo do Direito Penal Pátrio, se reconhece esta corresponsabilidade e, em termos práticos, se efetivamente existe um tratamento jurídico/judicial diferenciado aos indivíduos menos favorecidos, além de observar o aspecto constitucional, principalmente sob a filtragem do Princípio da Individualização da Pena, bem como a eficácia vertical dos direitos fundamentais a fundamentar a Coculpabilidade. 

Cumpre, também, analisar se a o art. 59 do Código Penal, que traz as circunstâncias judiciais para a fixação da pena base, possibilita ao magistrado aplicar uma pena justa, observando a coculpabilidade do Estado, ou se esta deve ser considerada uma circunstância atenuante genérica, com fundamento no art. 66 do Codex Repressivo Pátrio.

O estudo tem o objetivo mostrar que o não reconhecimento da coculpabilidade do Estado tende a transformar o Direito Penal em um instrumento de controle de classe, seletivo e opressivo, que se presta a perpetuar as desigualdades sociais.

Serão utilizados autores como Eugênio Zaffaroni, José Henrique Pierangeli, Grégore Moura, Rogério Greco, Guilherme de Souza Nucci, Paulo Queiroz, Salo Carvalho entre outros.

O trabalho será dividido em capítulos para melhor apresentação e compreensão do tema. O primeiro capítulo, logo após a introdução, irá versar sobre o conceito do Princípio da Coculpabilidade, com um breve resumo acerca da evolução do teoria do delito e uma introdução à concepção funcionalista teleológica do Direto Penal, e da construção conceitual do princípio da coculpabilidade pela doutrina. O segundo versará sobre o fundamento constitucional do aludido princípio, abordando em apertada síntese o papel do Estado Democrático de Direito, além do fundamento de validade do princípio da coculpabilidade, consistente no princípio da igualdade material, objetivo fundamental do Brasil; irá ainda discutir se o princípio da coculpabilidade possui status de princípio constitucional implícito; por fim, irá demonstrar que o princípio da coculpabilidade consiste em instrumento de efetivação do Princípio da Individualização da Pena. O terceiro capítulo tratará dos aspectos sociais legitimadores do Princípio da Coculpabilidade, principalmente a falência do direito penal como instrumento de manutenção da ordem social, e do fato de que o não reconhecimento e efetivação do princípio acarreta a utilização do Direito Penal como instrumento de segregação e de controle de classes. Prosseguindo, o quarto capítulo versará sobre a aplicação prática do princípio, como sugerida na doutrina e como os tribunais pátrios se posicionam em relação a coculpabilidade do Estado no cometimento de alguns delitos por cidadãos marginalizados e mostrará a necessária positivação do princípio e ousa-se sugerir forma de aplicação mais efetiva para o Princípio da Coculpabilidade, visando a efetiva consecução dos fins por ele colimados. No sexto capítulo será abordado o contraponto à Coculpabilidade, com a lição dos doutrinadores que simplesmente negam a existência de um culpa por parte do Estado, e a chamada “Coculpabilidade às avessas”, os delitos marginais e o tratamento dado aos crimes contra a ordem tributária, econômica e financeira. Ao cabo, será apresentada a conclusão do trabalho e as referências bibliográficas utilizadas.


2 CONCEITO

2.1 Evolução da Teoria do Delito e Funcionalismo Penal

Antes de iniciar o estudo da coculpabilidade e como esta pode influir na dosimetria da pena, imperioso se faz esclarecer previamente alguns pontos sobre a evolução da teoria do crime ao longo do tempo, até chegar ao chamado funcionalismo penal, principalmente na vertente elaborada por Claus Roxin, o chamado funcionalismo teleológico, incluindo a reprovabilidade como parte integrante do conceito analítico de crime.

Após a superação da teoria causal da ação, com a transferência dos elementos subjetivos (dolo e culpa) da culpabilidade para o fato típico, proposta por Wezel na concepção finalista da conduta, inaugurou-se uma nova concepção para o conceito de culpabilidade, que passou a ser composto apenas pela imputabilidade, potencial conhecimento da ilicitude (o antes chamado elemento normativo do dolo, e a exigibilidade de conduta diversa. A concepção finalista ainda impera entre os doutrinadores pátrios, sendo adotada em larga escala.

Contudo, o conceito de crime sofreu nova evolução, com as chamadas Teorias Funcionalistas. Se antes o conceito de crime era elaborado com base em estruturas jurídicas, com as novas teorias atenta-se para a finalidade do Direito Penal, com base em estruturas sociológicas. Nas lições de Claus Roxin:

 [O]s defensores desta orientação estão de acordo em rechaçar o ponto de partida do sistema finalista e partem da hipótese de que a formação do sistema jurídico-penal não pode vicular-se a realidades ontológicas precisa (ação, causalidade, estruturas lógico-reais, etc.), senão que única e exclusivamente pode guiar-se pelas finalidades do Direito Penal.[1]

As concepções Funcionalistas surgiram na Alemanha, a partir de 1970, como forma de submeter a dogmática penal aos fins  específicos do Direito Penal.

Duas vertentes do funcionalismo penal ganharam força, a teoria funcionalista radical, ou sistêmica, elaborada por Gunter Jakobs, que serve claramente aos Estados Totalitários; e a Teoria Funcionalista moderada, ou teleológica, construção do jurista Claus Roxin, que melhor atende aos fundamentos dos chamados Estados Constitucionais de Direitos, tendo em conta até mesmo a evolução da filosofia do direito, com o pós-positivismo e a valorização das garantias individuais em face ao Estado.

Para o funcionalismo teleológico, o conceito de crime se divide não mais em fato típico, ilícito e culpável; e sim em fato típico, ilicitude e reprovabilidade. A inserção da reprovabilidade no conceito analítico de crime não se tratou de mera mudança semântica. A reprovabilidade abarca, além da imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade da conduta diversa, a necessidade da pena. E não apenas isso, o juízo de censura social da conduta é exasperado, passando-se a entender a reprovabilidade, parte do conceito de crime, como juízo de valor, como elemento de dosagem da pena.

Vale transcrever as lições de Francisco Muñoz Conde, analisando o novo conceito de  responsabilidade elaborado por Roxin:

A responsabilidade penal pressupõe não somente a culpabilidade do autor, senão, ademais, a necessidade da pena desde o ponto de vista preventivo geral e especial. A culpabilidade e a prevenção, ao contrário do que sucede, por exemplo, com a colocação de Jakobs, não se fundamenta em uma unidade, senão que se limitam reciprocamente; para Roxin, as necessidades preventivas nunca podem conduzir a imposição de uma pena a um sujeito que não é culpável. Mas a culpabilidade em si mesma tampouco pode legitimar a imposição de uma pena, se esta não é necessária desde o ponto de vista preventivo.[2]

Este juízo de reprovação é individualizado, recaindo exclusivamente sobre cada conduta de cada agente, analisando-se o a necessidade da pena e o grau de censura a ser imposta.

Partindo da premissa básica de que cada ser humano possui suas idiossincrasias, sua personalidade, história, ou seja, que não existem dois homens iguais no mundo, ao se realizar o juízo de reprovação de eventual fato típico e ilícito, todas as peculiaridades devem ser levadas em consideração.

Duas teorias tentam justificar este juízo de reprovabilidade: a primeira, construção da chamada Escola Clássica, apregoa o livre-arbítrio; já a segunda, erigida pela chamada Escola Positiva, traz o chamado determinismo.

O livre-arbítrio consiste no argumento de que o homem é moralmente livre para fazer suas escolhas. Daí que o fundamento da reprovabilidade reside no fato de que a ação levada à cabo pelo agente decorre de sua voluntariedade, vez que se encontra unicamente sobre seu alcance a escolha entre praticar um ato criminoso ou não. Portanto, o fundamento da responsabilidade penal está na responsabilidade moral.

Já para a corrente determinista, as escolhas do homem seriam fortemente influenciadas por fatores externos e internos. Portanto, o homem não seria dotado do poder soberano de liberdade de escolha que defende a corrente clássica.

Assim, o meio social, o nível cultural, a educação, entre outros fatores influenciam as escolhas dos indivíduos.

Em verdade, a aparente dicotomia entre as duas, que as excluiria mutuamente, não existe. Na precisa lição de Rogério Greco, ambas as teorias se complementam. A influência do meio social na prática de determinados delitos é notório, principalmente em pessoas com personalidade mais facilmente influenciáveis. Noutro giro, apesar de todos sermos influenciados pelo meio social em maior ou menor grau, é certo que outros que vivem em um meio social desfavorável venham a cometer delitos. É para aqueles que se aplica o Princípio da Coculpabilidade.

2.2 Conceito de Coculpabilidade

Feitas estas considerações iniciais acerca da evolução da teoria do delito e do juízo de reprovação como parte integrante do conceito analítico de crime, pode-se passar para a análise do conceito de coculpabilidade penal.

A coculpabilidade consiste na corresponsabilidade do Estado, pela prática de condutas criminosas por indivíduos marginalizados, que não tiveram acesso a educação, oportunidades de emprego, saúde, moradia. NUCCI que, vale dizer, não reconhece a existência do princípio, assim a conceitua antes de criticá-la.

98-B. Conceito de coculpabilidade: Trata-se de uma reprovação conjunta que deve ser exercida sobre o Estado, tanto quanto se faz com o autor de uma infração penal, quando se verifica não ter sido proporcionada a todos igualdade de oportunidades na vida, significando, pois, que alguns tendem ao crime por falta de opção[3]

Em que pese o brilhantismo do Magistrado paulista, o conceito de coculpabilidade é melhor delineado pelos criadores do aludido princípio.

A Coculpabilidade penal é construção da cátedra de Eugenio Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, que assim a conceituam:

“Todo sujeito age numa circunstância dada e com um âmbito de autodeterminação também dado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será  possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no memento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’, com a qual a própria sociedade deve arcar”[4]

Destarte, a teoria da Coculpabilidade vem apontar e evidenciar a parcela de responsabilidade que deve ser imputada à sociedade e, em última análise, ao Estado quando da prática de determinados delitos pelos cidadãos marginalizados, que tem a sua autodeterminação reduzida pelo menosprezo de seus Direito Fundamentais pelo Ente Estatal. 


3 FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL

3.1 Fundamento de Validade

Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Este o texto do artigo 3º, III, da Constituição da República Federativa do Brasil.

É o chamado Princípio da Redução das Desigualdades, também chamado de Princípio da Igualdade Material, que constitui princípio fundamental do País, haja vista estar incluído no título I da Carta Magna, “Dos Princípios Fundamentais”.

Vale dizer que o aludido princípio denota bem o espírito de um Estado Social Democrático implantado pelo constituinte originário na Constituição de 1988.

No Estado Social Democrático, emergindo após a decadência do chamado Estado Liberal, na primeira metade do Séc. XX, o Estado abandona sua postura abstencionista, passando a intervir em grande monta na sociedade, na saúde, na economia, educação, sendo criada a chamada 2ª geração, ou dimensão, dos Direitos Fundamentais.

A partir da Constituição de Weimar (1929), que serviu de modelo para inúmeras outras constituições do primeiro pós-guerra, e apesar de ser tecnicamente uma constituição consagradora de uma democracia liberal – houve a crescente constitucionalização do Estado Social de Direito, com a consagração em seu texto dos direitos sociais e a previsão de aplicação e realização pro parte das instituições encarregadas dessa missão. A constitucionalização do Estado Social consubstanciou-se na importante intenção de converter em direito positivo várias aspirações sociais, elevada à categoria de princípios constitucionais protegidos pelas garantidas do Estado de Direito.[5]

 Adotado este modelo de Estado, o ente não pode ser furtar de atuar na sociedade. Muito pelo contrário, a Estado possui o dever, constituindo verdadeiro objetivo fundamental promover a justiça social e reduzir as desigualdades, ou seja, já não basta mais a igualdade formal, trazida pela 1ª geração, ou dimensão, dos Direitos Fundamentais, mas sim a igualdade material, que deve ser promovida pelo Estado com vistas a redução das desigualdades.

Com a evolução da filosofia do direito, acarretando na elaboração epistemológica do chamado pós-positivismo, além de outras nobres concepções, a Constituição ganha força ainda maior, vez que anteriormente a Lei estava no centro do ordenamento jurídico. Contudo, hoje, é a Constituição e os Direitos Fundamentais que formam a base nuclear de todo o ordenamento. Exemplo disso é o chamado princípio da interpretação conforme a constituição, amplamente utilizado pelo Pretório Excelso.

Nesta linha, a constituição deixa de ser considerada mera carta de intenções, passando a ter efetiva eficácia normativa.

Destarte, o aludido Princípio Fundamental da Igualdade Material deve ser buscado de forma efetiva pelo Estado. Quando o Estado deixa de oferecer oportunidade à todos, perpetuando as desigualdades e a marginalização, afronta diretamente a Constituição.

Posteriormente, quando o indivíduo marginalizado venha a praticar um delito, a parcela de culpa do Estado deve ser avaliada, afinal, o Estado deixou de cumprir a Constituição.

Assim, do art. 3, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil pode se extrair o fundamento de validade do Princípio da Coculpabilidade, o pressuposto de sua existência.

3.2 Coculpabilidade, Previsão Constitucional: Princípio Constitucional Implícito?

Demonstrado o fundamento de validade do Princípio da Coculpabilidade, passa-se a discutir se o aludido princípio possui ou não status constitucional.

Vale destacar que a importância de conferir status constitucional a uma norma consiste no fato de que todas as demais norma que estejam abaixo da constituição na pirâmide de Kelsen, devem ser com aquela compatível, sob pena de serem extirpadas do ordenamento jurídico por vício de constitucionalidade.

Além disso, na visão de Grégore Moura, reconhecer a coculpabilidade como princípio constitucional implícito ‘obriga’ o legislador a realizar modificações no Código Penal, porque apenas deste modo o indivíduo atingiria a plenitude da cidadania.

Ainda na visão de Grégore Moura, em obra específica sobre o princípio da coculpabilidade, este seria sim um Princípio Constitucional implícito, que decorreria do já mencionado art. 3, III da CRFB e do Princípio da Individualização da Pena (Art. 5º, XLVI, CRFB), configurando verdadeiro Direito Fundamental, com fulcro na previsão do art. 5º, §2º, CRFB. Por seu tom professoral, vale transcrever as lições de MOURA:

Aceitar a coculpabilidade como princípio constitucional implícito ‘obriga’ o legislador a modificar o nosso Estatuto Repressivo principalmente porque, só assim, o indivíduo atingirá a plenitude da cidadania, com o respeito ao devido processo legal e ao direito de justiça que é elemento essencial para aplicação de todos os demais direitos.

O reconhecimento do princípio da coculpabilidade é importante instrumento na identificação da inadimplência do Estado no cumprimento de sua obrigação de promover o bem comum, além de reconhecer, no plano concreto um direito fundamental do cidadão, mediante sua concretização no Direito Penal e no Processo Penal, tendo como fundamento o art. 5º, §2º, da Constituição Federal.[6]

Em outras palavras, o princípio da coculpabilidade decorreria do regime adotado pela Constituição da República e dos princípios adotado por ela, mais precisamente princípio da individualização da pena e princípio da igualdade material, ou da redução das desigualdades.

3.3 Coculpabilidade Como Instrumento de Efetivação do Princípio da Individualização da Pena

O princípio da individualização da pena é direito fundamental, insculpido no art. 5º, XLVI da Constituição Federal, assim definido por Nucci.

Princípio da individualização da pena: quer dizer que a pena não deve ser padronizada, cabendo a cada delinquente a exata medida punitiva pelo que fez. Não teria sentido igualar os desiguais, sabendo-se, por certo, que a prática de ideêntica figura típica não é suficiente para nivelar dois seres humanos. Assim, o justo é fixar a pena de maneira individualizada, seguindo-se os parâmetros legais, mas estabelecendo a cada um o que lhe é devido.[7]

 Com a concepção do delito elaborada pelo funcionalismo teleológico de Roxin, a individualização da pena, levando em conta as peculiaridades do indivíduo, ganha ainda maior relevância, haja vista que, caso se conclua pela desnecessidade da pena, esta sequer deve ser aplicada. Acentuando a importância do princípio da individualização da pena para o Direito Penal moderno, leciona Biettol que:

Todo o direito penal moderno é orientado no sentido da individualização das medidas penais, porquanto se pretende que o tratamento penal seja totalmente voltado para características pessoais do agente a fim de que possa corresponder aos fins que se pretende alcançar com a pena ou com as medidas de segurança[8]

Os “fins” mencionados por Biettol é justamente a função do direito penal para aquela sociedade, ou, em outras palavras, o funcionalismo penal de Roxin.

Quando se fala em “individualizar a pena”, confome lecionado por Biettol, pretende-se que o tratamento penal seja totalmente voltado para as peculiaridades do indivíduo.

Daí extrai-se que, se em virtude da inadimplência do Estado em “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, conforme preconiza a Constituição da República, deve acarretar em uma menor responsabilização do autor de um delito que não tenha tido acesso, em condição de igualdade, à educação, saúde, moradia, e outros direitos fundamentais, em relação a outro que, apesar de ter tido acesso a tudo isso, comete um delito.

Como dito, o Estado é corresponsável pelo delito, e deve arcar com sua parcela de culpa, subtraída da parcela de culpa do agente.

Portanto, a verdadeira efetivação do princípio da individualização da pena só se realiza quando se leva em consideração não só o fato criminoso levado à cabo pelo agente, mas também o agente que realizou a conduta criminosa. Incluem-se aí os aspectos sociais, fatores este que acabam por influenciar na manifestação da vontade do autor do delito.

Assim, para se atingir a pena “justa”, verdadeiramente individualizada, a análise da coculpabilidade do Estado em cada caso concreto é imprescindível.


4 ASPECTOS SOCIAIS

4.1 A Falência do Direito Penal: Instrumento de Controle Social da Classe Dominante

O Direito como um todo existe para regular a vida em sociedade. As normas jurídicas se prestam a disciplinar as condutas dos cidadãos, sendo indispensáveis ao convívio coletivo.

Cada sociedade tem seu próprio “direito”. Em outras palavras, as normas de determinado grupo social não podem ser aplicadas a outra sociedade de forma uniforme, pois o fenômeno jurídico apenas pode ser entendido quando se leva em conta a sociedade para o qual se destina e visa regular, conforme ensinamento de Paulo Queiroz, “O direito, que, como norma de conduta, padroniza coercitivamente certos comportamentos, não pode ser compreendido senão em referência (e a partir) ao sistema social em que se insere”.[9]

Nesta seara está inserido o Direito Penal. O Direito Penal, como um todo, nada mais é do que um meio de controle social, junto com os outros ramos do Direito, visto que seu escopo é solucionar conflitos. Cabe ao Direito Penal determinar infrações de natureza penal e suas respectivas sanções, visando tornar possível a convivência pacífica.

Hoje em dia o Direito Penal é praticamente o único ramo do direito a impor pena corporal, consistente em restrição da liberdade de locomoção. Estas penas, ou medidas de segurança se prestam a sancionar condutas previamente eleitas pelo Estado como ilícitas para alcançar o fim precípuo, que é a harmonia na convivência social. Nesse sentido:

O Direito Penal é o setor do ordenamento jurídico que define crimes, comina penas e prevê medidas de segurança aplicáveis aos autores das condutas incriminadas. A definição de crimes se realiza pela descrição de condutas proibidas; a cominação de penas e a previsão de medidas de segurança se realiza pela delimitação de escalas punitivas ou assecuratórias aplicáveis, respectivamente, aos autores imputáveis ou inimputáveis de fatos puníveis.[10]

Vale dizer que o Direito Penal é regido pelo princípio da subsidiariedade. Neste sentido, o Direito Penal é o ramo do Direito que só é utilizado quando os outros ramos falham em coibir uma conduta considerada incompatível com a vida em sociedade. Além disso, decorre da aludida subsidiariedade e também da fragmentariedade do Direito Penal que este deve tutelar apenas os bens jurídicos tidos como mais importante, e punindo apenas as condutas mais danosas.

O Direito Penal é a chamada Ultima Ratio, ou, ultima razão do Estado, eis que possui a forma mais violenta de punição e a mais opressora dos meios de controle social. Continuando com as lições de Paulo Queiroz:

O caráter subsidiário do direito penal em face de outras formas de controle social decorre, portanto, de imperativo político-criminal proibitivo do excesso: não se justifica o emprego de um instrumento especialmente lesivo da liberdade se se dispõe de meios menos gravosos e mais adequados de intervenção, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade.[11]

Este caráter subsidiário e fragmentário exige, ou deveria exigir, do legislador maior cuidado ao selecionar bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal.

Assim, dignos ou merecedores de tutela são aqueles bens que integram a ordem constitucional por terem sido reconhecidos em uma dada sociedade como relevantes para sua conservação, observando-se que essa dignidade não é suficiente para justificar a criminalização, fazendo-se ainda mister verificar, no caso concreto, se existe a necessidade da tutela de natureza penal.[12]

Inobstante, na prática, não se verifica a seleção criteriosa de bens jurídicos a serem tuteladas pelo Direito Penal.

Ao contrário, o que se verifica é que a classe dominante é quem determinas quais serão os bens jurídicos tutelados, as condutas proibidas e as penas cominadas, além, é óbvio, quais pessoas serão selecionadas como clientes do Direito Penal.

A bem da verdade, os princípios garantidores do Direito Penal são relativizados em nome da vontade da classe detentora do poder. Notoriamente o Direito Penal é elaborado em prol da classe economicamente dominante em prejuízo dos menos abastados, as classes excluídas e marginalizadas. Este é o entendimento de Grégore Moura, “Esses valores, porém, são escolhidos e determinados pela “classe dominante”, fazendo do sistema penal um produto ideológico, ou seja, reflete a ideologia política, sociológica e filosófica da classe “privilegiada” em determinado período histórico”.[13]

Desta forma, o Direito Penal se apresenta formalmente como um sistema justo e igualitário. Contudo, materialmente, quando posto em prática, demonstra características amplamente discriminatória, haja vista atingir quase que exclusivamente pessoas pertencentes a círculos sociais específicos.

Este é o entendimento de Zaffaroni e Pierangeli:, “[...] o direito é sempre a expressão do poder da classe dominante, que impõe seus valores do bem e do mal às classes dominadas. No século XIX, Marx viria sustentar que o direito é a superestrutura ideológica da classe dominante para submeter as classes exploradas”[14]

Desta forma, a conclusão necessária é a de que o Direito Penal encontra-se carente de legitimação, eis que não se aplica a todos de forma igualitária. Ademais, o Direito Penal desencadeia uma verdadeira desestruturação social, tendo em conta seu caráter criminógeno, seletista e excludente (QUEIROZ, ob. cit.pag. 100).

Esta deslegitimação decorre do fato de que o Direito Penal, na prática, não cumpre sua função de prevenção geral e especial, conforme acentuado por Rogério Greco, “Quando o Estado consegue fazer valer o seu ius puniendi, com a aplicação da pena previamente cominada pela lei penal, essa pena não cumpre as funções que lhe são conferidas, isto é, as funções de reprovar e prevenir o delito”.[15].

A prevenção geral seria aquela dirigida á toda sociedade, reforçando a proteção dos bens jurídicos tutelados e desmotivando a prática delituosa. No entanto, empiricamente se percebe que as pessoas se afastam da prática delituosa por motivos de índole moral, e não apenas pelo fato da lei a proibir e cominar uma sanção.

Já no que diz respeito à prevenção especial, que vem a ser aquela dirigida ao condenado, com o fito de ressocializar e coibir a reincidência, é flagrante a deslegitimação, eis que o tirocínio demonstra a total falência desta missão. O que realmente ocorre é o “estigma” do delinquente.

Tudo isto não é novidade, conforme se depreende dos ensinamentos de Juarez Cirino dos Santos.

[D]epois desses momentos decisivos da história do direito penal e da criminologia, não é mais possível explicar a prisão pela ideologia penal, expressa na teoria polifuncional da pena criminal como retribuição, prevenção especial e prevenção geral do crime; igualmente, não é mais possível explicar a pena criminal pelo comportamento criminoso, porque exprime a criminalização seletiva de marginalizados sociais, excluídos dos processos de trabalho e consumo social, realizada pelo sistema de justiça criminal (polícia, justiça e prisão); enfim, também não é possível explicar o crime pela simples lesão de bens jurídicos, porque exprime a proteção seletiva de valores do sistema de poder econômico e político de formação social. Ao contrário, somente a lógica contraditória da relação social fundamental capital/trabalho assalariado pode explicar a proteção seletiva de bens jurídicos pelo legislador, a criminalização seletiva de sujeitos com indicadores sociais negativos e, finalmente, a prisão como instituição central de controle social formal, da sociedade capitalista.[16]

Para além dos fatores já citados, outro fator que corrobora para o reconhecimento da deslegitimação do Direito Penal é a chamada “cifra oculta, referentes a um volume imenso de fatos que apesar de sua aparente tipicidade não recebem qualquer resposta do sistema penal. Tais cifras, em determinados delitos, alcançam percentuais espantosos”.[17].

Significa dizer que a maior parte dos “fatos criminosos” jamais serão alcançados pelo Direito Penal, geralmente porque desconhecido o fato ou mesmo o autor, podendo-se afirmar que a regra no sistema penal não é a condenação, mas sim a escusa.

Destarte, todo o arcabouço até aqui delineado, demonstrando a falência e elitização do sistema penal, vem a fundamentar e demonstrar a necessidade de institutos tais como o princípio da coculpabilidade, ou mesmo a necessidade da pena, parte integrante da reprovabilidade no funcionalismo penal de Roxin, com vistas a imputar ao Estado e a sociedade a sua parcela de responsabilidade, pelo não cumprimento inclusive de norma constitucional, o princípio da igualdade material.

Tais princípios e teorias visam reerguer e legitimar o Direito Penal, buscando evitar que este continue a ser utilizado para segregar e reafirmar o poder da classe dominante, transformando-o em um sistema igualitário e justo.


5 ASPECTOS PRÁTICOS

5.1 Doutrina

Estabelecida as premissas teóricas do princípio da coculpabilidade, bem como seu fundamento constitucional e os aspectos sociais que culminaram com a construção do aludido princípio, é hora de analisar como se dá a aplicação do princípio da coculpabilidade na prática.

Primeiramente, impende destacar que o princípio da coculpabilidade, como já dito, não é expressamente previsto no ordenamento jurídico pátrio, sendo por completo uma construção dos jurisconsulto, através da interpretação das normas vigentes.

Primeiramente, entende a melhor doutrina que o princípio da coculpabilidade deve servir de parâmetro para o legislador, visando evitar a criação de tipos que venham a perpetuar a exclusão social e a marginalização de parcela da sociedade.

Grégore Moura, em monografia sobre o tema aqui em comento, visualiza a aplicação do princípio da coculpabilidade na criação de um “espírito crítico e responsável” que deve orientar toda a sociedade.

A diminuição do poder de autodeterminar-se deve ser reconhecida por meio da corresponsabilidade do Estado e da sociedade. Acentue-se, no entanto, que o princípio da coculpabilidade não elimina a seletividade do sistema penal, mas atua como princípio corretor dessa seletividade, diminuindo sobremaneira seus impactos, dando ensejo ao desenvolvimento de um espírito crítico e responsável que oriente toda a sociedade.[18]

Como dito, a coculpabilidade consiste no reconhecimento da parcela de culpa do Estado e da sociedade no cometimento de delitos por cidadãos marginalizados e excluídos socialmente.

Contudo, seria impossível, na prática, imputar a conduta delituosa ao Estado, pois, é óbvio, que o Estado, titular do jus puniendi não pode se “autopunir” penalmente. Além do fato de que os outros pressupostos do delito, conduta, elemento subjetivo, e etc, não se verificarem em relação ao Estado.

Cumpre registrar que alguns ordenamentos jurídicos alienígenas já positivaram o princípio da coculpabilidade, a exemplo do código penal peruano de 1991, que em seu art. 45, I, leciona que: “Artículo 45.- Presupuestos para fundamentar y determinar la pena El Juez, al momento de fundamentar y determinar la pena, deberá tener en cuenta: 1. Las carencias sociales que hubiere sufrido el agente; (...).

No mesmo sentido, o Código Penal da Argentina, em seu artigo 41, 1º, traz previsão expressa do princípio da coculpabilidade.

ARTICULO 41.- A los efectos del artículo anterior, se tendrá en cuenta:

[...]

2º. La edad, la educación, las costumbres y la conducta precedente del sujeto, la calidad de los motivos que lo determinaron a delinquir, especialmente la miseria o la dificultad de ganarse el sustento propio necesario y el de los suyos, la participación que haya tomado en el hecho, las reincidencias en que hubiera incurrido y los demás antecedentes y condiciones personales, así como los vínculos personales, la calidad de las personas y las circunstancias de tiempo, lugar, modo y ocasión que demuestren su mayor o menor peligrosidad. El juez deberá tomar conocimiento directo y de visu del sujeto, de la víctima y de las circunstancias del hecho en la medida requerida para cada caso.

Inobstante os exemplos das codificações vizinhas, enquanto não se positiva o princípio da coculpabilidade no ordenamento jurídico brasileiro, sua aplicação prática é construída pela doutrina, não havendo consenso em como esta aplicação se dá.

Para Rogério Greco, o princípio da coculpabilidade ora deve ser uma atenuante genérica, com fulcro no art. 66 do Código Penal, e ora acarreta a absolvição do autor, por conta de seu atuar não culpável.

Mas, na prática, como podemos levar a efeito essa divisão de responsabilidade entre a sociedade e aquele que, em virtude de sua situação de exclusão social, praticou determinada infração penal? Não podemos, obviamente, pedir a cada membro do corpo social que cumpra um pouco da pena a ser aplicada. Assim, teremos, na verdade, duas opções: a  primeira, dependendo da situação de exclusão social que se encontre a pessoa que, em tese, praticou um fato definido como crime será a sua absolvição; a segunda, a aplicação do art. 66 do Código Penal.[19]

Prossegue o ilustre autor, exemplificando sua conclusão:

Suponhamos que, durante uma ronda policial, um casal de mendigos, cuja ‘morada’ é embaixo de um viaduto, seja surpreendido no momento em que praticava relação sexual. Ali, embora seja um local público, é o único lugar onde esse casal conseguiu se estabelecer, em face da inexistência de oportunidades de trabalho, ou mesmo de programas destinados a retirar as pessoas miseráveis da rua a fim de colocá-las em lugar habitável e decente. Poderíamos, assim, atribuir a esse casal a prática do delito de ato obsceno, tipificado pelo art. 233 do Código Penal? Entendemos que não, pois que foi a própria sociedade que o marginalizou e o obrigou a criar um mundo próprio, uma sociedade paralela, sem as regras ditadas por essa sociedade formal, legalista e opressora. Não poderíamos, portanto, no exemplo fornecido, concluir que o casal atuou culpavelmente, quando a responsabilidade, na verdade, seria da sociedade que os obrigou a isso. Pode acontecer, contudo, que alguém pratique determinada infração penal porque, marginalizado pela própria sociedade, não consegue emprego e, por essa razão, o meio social no qual foi forçosamente inserido entende que seja razoável tomar com as próprias mãos aquilo que a sociedade não lhe permite conquistar com seu trabalho. A divisão de responsabilidades entre o agente e a sociedade permitirá a aplicação de uma atenuante genérica, diminuindo, pois, a reprimenda relativa à infração penal por ele cometida.[20]

Seguindo o mesmo raciocínio, Juarez Cirino dos Santos, também defende o reconhecimento da coculpabilidade como circunstância atenuante genérica, com fundamento no mesmo art. 66 do Código Penal.

Finalmente, as circunstâncias atenuantes não-expressas admitidas textualmente no art. 66 do CP, constituem outras características relevantes do fato anteriores ou posteriores ao crime, não previstas legalmente mas capazes de influir no juízo de reprovação do autor pela realização do tipo injusto. Assim, crimes realizados no contexto de condições sociais adversas, por sujeitos marginalizados do mercado de trabalho e do processo de consumo, insuficientes para configurar o conflito de deveres como situação de exculpação, podem caracterizar a circunstância atenuante inominada do art. 66, porque exprimiriam hipóteses de co-culpabilidade da sociedade organizada no poder do Estado, pela sonegação de iguais oportunidades sociais.[21]

Aníbal Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho coadunam da posição dos autores até aqui citados, asseverando que:

Pelos motivos expostos até o momento, objetivaremos nossa hipótese de trabalho na seguinte afirmação: a precária situação econômica do imputado deve ser priorizada como circunstância atenuante obrigatória no momento da cominação da pena. Apesar de não estar prevista no rol de circunstâncias atenuantes do art. 65 do Código Penal brasileiro, a norma do art. 66 possibilita a recepção do princípio da co-culpabilidade, pois demonstra o caráter não taxativo das causas de atenuação. O Código Penal, ao permitir a diminuição da pena em razão de “circunstância relevante” anterior ou posterior ao crime, embora não prevista em lei, já fornece um mecanismo para a implementação deste instrumento de igualização e justiça social.[22]

Vale dizer que praticamente a totalidade da doutrina que admite o princípio da insignificância defende sua aplicação como atenuante genérica, com fulcro no artigo 66 do Código Penal, assim como os autores citados.

5.2 Jurisprudência

Em que pese toda a argumentação até aqui esposada, no sentido da viabilidade e fundamentação teórica para a aplicação do princípio da coculpabilidade a jurisprudência tem se mantido reticente quanto a aplicação do aludido princípio, principalmente ao argumento de que a coculpabilidade não é positivada no ordenamento jurídico pátrio, ou que esta teoria não poderia ser enquadrada como causa atenuante genérica, com fundamento no art. 66 do Código Penal.

Esta tem sido a posição do Superior Tribunal de Justiça.

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. CONDENAÇÃO. APELAÇÃO JULGADA.

PRETENSÕES DE ABSOLVIÇÃO E DESCLASSIFICAÇÃO. VIA INADEQUADA. EXAME APROFUNDADO DAS PROVAS. TEORIA DA CO-CULPABILIDADE DO ESTADO. NÃO CONFIGURAÇÃO. ORDEM DENEGADA.

1.  Hipótese em que as instâncias originárias examinaram, com profundidade, os elementos de convicção produzidos nos autos da ação penal, concluindo pela condenação do paciente. Inviável atender a pretensão defensiva, de absolvição ou desclassificação da conduta, nesta via estreita do mandamus, em que vedado o revolvimento fático-probatório.

2. O Superior Tribunal de Justiça não tem admitido a aplicação da teoria da co-culpabilidade do Estado como justificativa para a prática de delitos. Ademais, conforme ressaltou a Corte estadual, sequer restou demonstrado ter sido o paciente prejudicado por suas condições sociais.

3. Habeas corpus denegado.[23]

CRIMINAL. HABEAS CORPUS. ROUBO. DOSIMETRIA. PENA-BASE FIXADA ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO. TESE NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. TESE DE CO-CULPABILIDADE.

NÃO APRECIAÇÃO PELO JUIZ SINGULAR. AUSÊNCIA DE NULIDADE. SENTENÇA FUNDAMENTADA. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E DENEGADA.

[...]

III. A teoria da co-culpabilidade, invocada pelo impetrante, no lugar de explicitar a responsabilidade moral, a reprovação da conduta ilícita e o louvor à honestidade, fornece uma justificativa àqueles que apresentam inclinação para a vida delituosa, estimulando-os a afastar da consciência, mesmo que em parte, a culpa por seus atos.[24]

Vale dizer que os Tribunais de Justiça também não tem adotado a teoria da coculpabilidade, conforme os acórdãos que seguem, a título de ilustração.

ROUBO SIMPLES. RECURSO DEFENSIVO. REJEIÇÃO DA QUESTÃO PRELIMINAR SUSCITADA DE INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 610 DO CPP. CONJUNTO PROBATÓRIO CONTUNDENTE A EMBASAR O ÉDITO CODENATÓRIO. ABRANDAMENTO DA PENA-BASE AO PATAMAR MÍNIMO COMINADO. PLEITO DE APLICAÇÃO DA CAUSA ATENUANTE GENÉRICA QUE NÃO MERECE PROSPERAR. ESTABELECIMENTO DO REGIME PRISONAL ABERTO. O apelante foi condenado pela prática delituosa prevista no artigo 157, caput do Código Penal às penas finais de 04 anos e 08 meses de reclusão, em regime semiaberto, e pagamento de 11 dias-multa. A questão preliminar suscitada pela Defesa de inaplicabilidade do artigo 610 do CPP deve ser rejeitada, sendo certo, que a jurisprudência pátria entende absolutamente cabível e necessária a atuação do Ministério Público nesta instância, como órgão fiscalizador da aplicação da lei penal, que em nada se confunde com sua atuação acusatória no 1º grau de jurisdição. No mérito, constata-se que autoria e materialidade delitivas restaram plenamente demonstradas por meio do robusto conjunto probatório trazido aos autos. Neste contexto, não há que se falar em fragilidade do reconhecimento judicial realizado pela vítima, uma vez que a mesma reconheceu, extreme de dúvidas, o réu, que possui características físicas singulares, como o autor dos fatos narrados na exordial oferecida pelo órgão do parquet. Em relação à dosimetria da pena, verifica-se que o Juiz monocrático utilizou-se de anotações de condenações em 1ª instância, sem trânsito em julgado, para justificar o aumento da pena-base aplicada ao apelante, o que fere o princípio constitucional da presunção de inocência. Assim, a pena-base deve ser redimensionada ao seu patamar mínimo cominado. Precedentes. Descabido o reconhecimento da circunstância atenuante rotulada de coculpabilidade estatal, sendo certo que a Defesa não carreou aos autos elementos que apontem parcela de responsabilidade a ser atribuída ao Estado na conduta do apelante. O regime de cumprimento de pena deve ser abrandado para aberto, face à circunstâncias objetivas e subjetivas previstas no artigo 33 do Código Penal. Face ao exposto, voto pelo conhecimento e parcial provimento do apelo defensivo para acomodar as penas finais do apelante Luis Felipe Del Bosco Fonseca em 04 anos de reclusão, em regime aberto, e pagamento de 10 dias-multa, mantida, no mais, a sentença vergastada.[25]

Mesmo o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conhecido pela posição vanguardista de seus julgamentos, não vem aceitando e aplicado a teoria da coculpabilidade.

APELAÇÃO CRIME. FURTO QUALIFICADO. PERÍCIA. DOSIMETRIA. CULPABILIDADE. COCULPABILIDADE. REINCIDÊNCIA. MULTA. 1. Nos termos dos artigos 158 e 167, do CPP, o exame pericial direto é indispensável nos crimes que deixam vestígios, como é o caso do furto qualificado pelo rompimento de obstáculo. Inexistente esse, imperativo o afastamento dessa qualificadora. 2. Não há valoração negativa da circunstância do art. 59 do CP de culpabilidade aferida em grau médio, visto que pressupõe ser a do homem mediano, sendo neutralizada esta vetorial. 3. Não há previsão legal para a aplicação da "atenuante de coculpabilidade do Estado", não havendo nenhuma circunstância relevante no caso sub judice - esta sim prevista no art. 66 do CP - para a atenuação da pena. Outrossim, é notório que a criminalidade atinge a todas as classes sociais, indistintamente. Também é forçoso reconhecer que o Estado não cumpre com todas as suas obrigações assistenciais ao indivíduo, mas isso não quer dizer que tenha que ser responsabilizado por atos praticados por livre arbítrio dos agentes, não sendo a pobreza fator determinante para o cometimento de crimes. 4. A reincidência prestigia a isonomia, uma vez que confere tratamento desigual e mais gravoso ao réu que ostenta anterior condenação transitada em julgado. Agravante da reincidência aplicada. 6. Inviável substituição de pena, na forma doa RT. 44, II, do CP. 5. A multa é uma das três modalidades de pena cominadas pelo diploma penal e no preceito secundário do tipo no qual foi incurso o acusado está prevista de forma cumulativa, de modo que o seu afastamento implicaria em verdadeira afronta à lei. 6. Pena redimensionada, inclusive a de multa. APELAÇÃO DEFENSIVA PARCIALMENTE PROVIDA.[26]

Pelos julgados acima transcritos, percebe-se que, apesar da eloquência dos argumentos a favor da aplicação do princípio da coculpabilidade, a jurisprudência atual e peremptória em não admitir a aplicação do aludido princípio.

5.3 Necessária positivação do princípio da coculpabilidade

Como visto, a ausência de previsão expressa do princípio da coculpabilidade no ordenamento jurídico vem frustrando sua aplicação prática pelos tribunais pátrios. Sua positivação, a exemplo dos ordenamentos jurídicos de Peru e Argentina, é de suma importância para sua efetividade prática.

Firmada a premissa de que a positivação se faz necessária, a questão passa a ser como este instituto deve ser integrado ao ordenamento jurídico.

O aludido princípio poderia ser integrado ao art. 59 do Código Penal, como circunstância judicial a ser analisada quando da fixação da pena base. Contudo, tendo em conta que a regra é a fixação da pena base no mínimo legal, e que na primeira fase do calculo de pena há impossibilidade de redução da pena aquém do mínimo, a aludida proposta se mostra discreta.

Uma segunda possibilidade seria incluir a coculpabilidade como uma atenuante, no rol das elencadas no art. 65 do Código Penal.

Novamente, tal inclusão não traria grandes utilidades práticas vez que, em que pese o art. 65 afirmar que “são circunstâncias que sempre atenuam a pena” o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacifico (vide súmula nº 231 do STJ), no sentido da impossibilidade de diminuição da pena aquém do mínimo legal nesta segunda fase de aplicação de pena.

Assim, proposta mais ousada consiste em tornar a coculpabilidade causa genérica de diminuição de pena, incluindo o instituto no art. 29 do Código Penal, se a condição de miserabilidade vier a interferir de forma direta no cometimento do delito:

[D]izendo que se o agente estiver submetido a precárias condições culturais, econômicas, sociais, num estado de hipossuficiência e miserabilidade sua pena será diminuída de um 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços). Assim, quanto pior as condições elencadas no supracitado parágrafo, maior seria a redução da pena. [27]

Esta é a posição de Grégore Moura, que prossegue afirmando:

É, a nosso sentir, a melhor hipótese para a positivação da co-culpabilidade, pois é a mais consentânea com o Direito democrático e liberal, na esteira do garantismo penal, uma vez que permite melhor individualização da pena aplicada, além de poder reduzir a pena aquém do mínimo legal, dirimindo qualquer dúvida nesse aspecto, com incidência na terceira fase de sua aplicação.[28]

Contudo, existe ainda uma proposta mais audaciosa, sustentando a positivação da coculpabilidade como causa de exclusão da culpabilidade.

A coculpabilidade seria positivada como uma causa de exclusão da culpabilidade, visto que o estado social de miserabilidade e vulnerabilidade do cidadão é tão caótico, proeminente e elevado, que sobre o agente não incidiria qualquer reprovação social e penal, já que seu comportamento, além de ser esperado pelos seus co-cidadãos, é conseqüência exclusiva da inadimplência do Estado.[29]

Ao que parece, é isso que sustenta Regério Greco para alguns casos, como no caso dos mendigos moradores de rua flagrados praticando ato obsceno, trecho já transcrito.

Analisando cada uma das hipóteses sustentadas, é de se concluir que a mais correta e correlata com os princípios constitucionais da igualdade material e da individualização da pena seria a previsão da coculpabilidade como causa geral de diminuição de pena, conforme defende Grégore Moura, além da previsão da exclusão da culpabilidade em casos extremos, como o exemplo trazido por Rogério Greco, dos mendigos totalmente excluídos da sociedade formal, que vivem em um “mundo próprio”, tendo como “lar” o vão de um viaduto.


6 TEORIAS CONTRÁRIAS A COCULPABILIDADE

6.1 Negação à Teoria da Coculpabilidade

Em que pese a lógica dos argumentos até aqui aduzidos a favor da coculpabilidade, que preconiza a atenuação, ou, em alguns casos, até mesmo a isenção da pena daqueles que acabam por cometer crimes por franca influência pela sua situação socioeconômica e cultural, porque vivem completamente à margem da sociedade, boa parcela da doutrina e praticamente a totalidade da jurisprudência atual se mostra reticente quanto à adoção do princípio.

Dentre os doutrinadores que renegam os argumentos da teoria da coculpabilidade, podemos citar Guilherme de Souza Nucci, que em seu Código Penal Comentado assevera que

não nos parece correta essa visão. Ainda que se possa concluir que o Estado deixa de prestar a devida assistência à sociedade, não é por isso que nasce qualquer justificativa ou amparo para o cometimento de delitos, implicando em fator de atenuação da pena. Aliás, fosse assim, existiriam muitos outros ‘coculpáveis’ na rota do criminoso, como os pais que não cuidaram bem do filho ou o colega na escola que humilhou o companheiro de sala, tudo a fundamentar a aplicação da atenuante do art. 66 do Código Penal, vulgarizando-a. Embora os exemplos narrados possam ser considerados como fatores de impulso ao agente para a prática de uma infração penal qualquer, na realidade, em última análise, prevalece a sua própria vontade, não se podendo contemplar tais circunstâncias como suficientemente relevantes para aplicar a atenuação.[30]

Contudo, em que pese o brilhantismo do renomado autor e magistrado, não andou bem em comparar o Estado com outros organismos do corpo social. Isto porque o Estado, ao contrário dos demais, avocou para si a responsabilidade de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais”, conforme preconiza o art. 3º, III da Constituição da República.

Deste compromisso Constitucional decorre a corresponsabilização do Estado quando descumpre seu objetivo fundamental a tal ponto que acaba por influenciar na própria autodeterminação do cidadão marginalizado que comete um delito.

Uma outra parcela da doutrina vislumbra um outro argumento, visando rechaçar o princípio da coculpabilidade. Segundo alguns doutrinadores, a coculpabilidade partiria de pressupostos falaciosos, qual seja, de que criminalidade decorre da pobreza e, em última análise ao próprio sistema capitalista, ao imputar o motivo pela prática do delito a situação econômica do autor. Assim:

Lógico que a estrutura capitalista, atualmente renovada pelo discurso único da globalização neoliberal, produz miséria econômica e social. No entanto, estabelecer relações assimétricas e deterministas entre o modelo econômico e os índices de criminalidade é retomar, desde outro local, método (etiológico) tão caro aos seguidores de Ferri, Lombroso e Garófalo.[31]

Destarte, os argumentos falaciosos da coculpabilidade  consistiriam em: “a) permanecia extremamente vinculada à ideia de que a criminalidade é efeito da pobreza; b) subestimava ou relevava a seletividade criminalizante, o que pressuporia aceitar o funcionamento igualitário e até natural do sistema penal”[32].

Contudo, também não assiste razão a estes argumentos. Isto porque a coculpabilidade não visa premiar, conceder um salvo conduto, ou atenuar a sanção penal de “pessoas pobres”.

Absolutamente, a coculpabilidade visa mais do que isso. A teoria foi construída para proteger aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade. Este conceito de vulnerabilidade é muito mais largo que a simples análise da situação econômica.

Entende-se por situação de vulnerabilidade aquela na qual a pessoa se coloca quando o sistema penal a seleciona e a utiliza como instrumento para justificar seu próprio exercício de poder, pois é o grau de vulnerabilidade ao sistema penal que decide a seleção e não o cometimento do injusto, porque há muitíssimos mais injustos penais iguais e piores que deixam o sistema penal indiferente.[33]

Vale dizer que, apesar de eventual discussão de cunho etimológico, esta culpabilidade pela vulnerabilidade e coculpabilidade são conceitos sinônimos, conforme conclui Grégore Moura:

Entendemos ser a co-culpabilidade sinônimo de culpabilidade pela vulnerabilidade, visto que a inadimplência do Estado, ou seja, a co-culpabilidade é que leva o agente a ser mais vulnerável ao poder punitivo. Além disso, o conceito de culpabilidade não deve ser aplicado apenas aos mais vulneráveis, já que deve ser considerado como terceiro elemento do conceito analítico de crime tanto para os mais vulneráveis, quanto para aqueles que não se encontram nesta situação.[34]

Destarte, em que pese o brilhantismo dos argumentos contrários a coculpabilidade, a aplicação do princípio não prescinde de verificar-se todo o arcabouço social do autor do delito, não se reduzindo unicamente à situação econômico/financeira, tendo por finalidade alargar o debate da dogmática acerca do alcance das causas atenuante, ou mesmo exculpantes.

6.2 Coculpabilidade às Avessas

A chamada coculpabilidade às avessas, mais que uma construção teórica, é uma constatação da praxe adotada pelo ordenamento jurídico pátrio.

Como visto, a coculpabilidade defende a atenuação ou até mesmo a extinção da pena daqueles que praticam crimes em decorrência do estreitamento de sua autodeterminação em virtude de sua situação de vulnerabilidade perante a sociedade e o sistema penal, vivendo à margem da sociedade.

Esta atenuação ou mesmo extinção da pena, ainda que não positivada, é defendida por boa parte da doutrina.

Contudo, o que se observa ou analisar a legislação brasileira é a existência de um mens legis contrário à coculpabilidade, que pode ser designado por “coculpabilidade às avessas”. Segundo Grégore Moura, a coculpabilidade às avessas pode se manifestar com “a tipificação de condutas dirigidas a pessoas marginalizadas, ou aplicando penas mais brandas aos detentores do poder econômicos, ou ainda como fator de diminuição e também aumento da reprovação social e penal”[35].

Um dos exemplos mais claros desta coculpabilidade às avessas é a tipificação, na Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei nº 3.688/41) de condutas tais como a mendicância (art. 60 da LCP, hoje revogado pela Lei 11.983/2009) e a vadiagem.

A tipificação de tais “condutas” demonstra de forma límpida a existência de uma coculpabilidade às avessas, tendo em conta que se dirige a um publico alvo, qual seja, justamente os marginalizados e excluídos do convívio em sociedade.

Portanto, “conclui-se, assim, que a criminalização da mendicância e da vadiagem, além de ser resquício da odiosa culpabilidade do autor, é expresso reconhecimento da incapacidade do Estado em prover as necessidades de sua população.”[36]

Outra vertente da “coculpabilidade às avessas” pode-se vislumbrar no que diz respeito aos crimes contra a ordem tributária. Nestes delitos a reparação do dano consubstancia-se em causa de extinção da punibilidade, com fulcro no art. 168-A, §2º do Código Penal.

A sinecura da lei em relação aos detentores do poderio econômico é notória. Isto porque os crimes contra a ordem tributária também possuem público alvo definidos, ou seja, em regra são cometidos pelas classes mais abastadas. Daí se denota a preferência do legislador pela classe dominante, da qual faz parte.

Nos crime comuns a reparação do dano gera uma diminuição de pena, seja como causa geral de diminuição de pena (art. 16 do CP), seja como causa atenuante (art. 65, III, “b”, do CP).

Já nos crimes contra a ordem tributária, a reparação do dano gera outra benesse, com previsão da extinção da punibilidade com o pagamento do tributo devido.

Vale destacar que é notória a falta de coerência e unidade no ordenamento jurídico, que, com tais previsões, “propaga a discriminação social e econômica mediante a discriminação legal em afronta direta a igualdade material”[37], perpetuando, na prática, o que se denomina “coculpabilidade às avessas”.


7 CONCLUSÃO

O presente trabalho visou a analisar a existência de uma corresponsabilidade do Estado e da sociedade na diminuição da autodeterminação de cidadãos marginalizados quando da prática de delitos.

Isto porque, na moderna dogmática penal, com a evolução da teoria do delito, a necessidade da pena e o juízo de reprovabilidade devem ser individualizados e pormenorizados, para se concluir qual a real parcela de culpa e a necessidade da pena para o autor do fato delituoso, ao ponto de que se a pena não for necessária sequer deve ser aplicada.

O próprio Estado elencou para si, como objetivo fundamental, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais”, é o chamado princípio da igualdade material.

Quando o Estado descumpre seu objetivo fundamental, não proporcionando a todos as mesmas condições, chegando ao ponto de deixar vulneráveis ao sistema penal repressivo determinadas situações deve arcar com parcela de culpa pela infração ao ordenamento jurídico.

Conforme demonstrado, o princípio da coculpabilidade possui status de princípio constitucional implícito, decorrente do próprio princípio da igualdade material e da individualização da pena, se constituindo em verdadeiro instrumento de efetivação da individualização da pena.

A criação e aplicação do princípio da coculpabilidade se faz necessária ante a total falência do Direito Penal em cumprir sua missão precípua na sociedade, qual seja, exercer o controle social.

Contudo, como o Direito Penal é imposto pela classe dominante, que é quem efetivamente cria os tipos penais e todo o sistema de aplicação das norma de Direito Penal, esta classe seleciona os destinatários deste ramo do ordenamento jurídico.

Essa seleção arbitrária dos rcebedores das normas penais gera uma flagrante deslegitimação deste, pois a aplicação da pena, ao contrário de ressocializar, serve para estigmatizar o cidadão que comete um delito. Esta deslegitimação decorre também da chamada cifra oculta do crime, que consiste em delitos que jamais chegam ao conhecimento da autoridade policial, quem dirá do poder judiciário.

Assim, a criação doutrinária da coculpabilidade vem ao socorro do direito penal, junto com outros princípios, tentar resgatar e novamente legitimar o direito penal, para que este não permaneça como um mero instrumento de segregação entre as classes dominantes e dominadas.

Também restou demonstrado que, apesar da força da construção doutrinária da coculpabilidade, na prática os tribunais não vem aceitando e aplicando o aludido princípio, principalmente sob o argumento de que este não se encontra positivado no ordenamento jurídico.

A doutrina então sugere a positivação da coculpabilidade, apresentando, na esteira de Grégore Moura, três opções para a positivação.

A primeira seria acrescentar a coculpabilidade nas circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, a exemplo do que se tem nos Diplomas Repressivos de Argentina e Peru.

A segunda opção seria acrescentar a coculpabilidade como uma causa atenuante expressa.

Já a terceira opção seria tornar a coculpabilidade uma causa geral de diminuição de pena, prevista no art. 29 do Código Penal. Além disso, para casos mais extremados, como no exemplo dos mendigos que vivem sob o viaduto, trazido por Rogério Greco, o coculpabilidade deveria acarretar na extinção da punibilidade. Esta opção, embora mais ousada, é a mais condizente com a realidade social vivida hoje em nosso país.

Assim, a coculpabilidade deveria ser prevista como causa geral de diminuição de pena e, em casos extremos, causa extintiva da punibilidade.

Em que pese a força lógica e sociológica dos argumentos que defendem a coculpabilidade, parcela de doutrina nega esta corresponsabilidade do Estado, conforme visto. Ao que parece estes insignes autores se olvidam de que o próprio estado chamou para si a responsabilidade de promover a erradicação da pobreza e marginalização, além de negar a força do meio social na formação do indivíduo.

Além de tudo isto, foi visto que, na prática, as Leis do Brasil estabelecem uma “coculpabilidade às avessas”, tipificando conduta que apenas “pessoas pobres” podem cometer, tais como mendicância e vadiagem, e garantindo benesses aos crimes que apenas pessoas abastadas cometem, como a extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária, quando do pagamento do tributo.

Analisando tudo isto, o que se percebe é que a coculpabilidade do Estado existe sim, e não pode ser negada, se fazendo imperioso um esforço para ver sua positivação e uma mudança de mentalidade do legislador penal e dos tribunais pátrios, visando resgatar o próprio sistema penal como fator social, para que o Direito Penal deixe de ser um sistema de controle de classe e passe a cumprir sua função social.


REFERÊNCIAS

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ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. Tradução: Vania Romano. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 268.


Notas

[1] ROXIN, Claus. Derecho Penal – Parte General. Tomo I, Civitas, Madrid, 1997,  p. 203

[2] MOÑOZ CONDE, Francisco Apud in GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral Volume I, 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, p. 393.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2010, p. 234.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte Geral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 610-611.

[5] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009, p. 4.

[6] MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade no direito penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 113.

[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 46.

[8] BIETTOL, Giuseppe Apud in GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral Volume I. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, p. 71.

[9] QUEIROZ, Paulo. Direito penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva. 2001, p. 8.

[10] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: Lumen Juris, 2007, p. 3.

[11] QUEIROZ, Paulo. Direito penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 13.

[12] PASCHOAL, Janaína Conceição. Constitucionalização, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 51.

[13] MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade. Niterói: Impetus, 2006, p. 106.

[14] ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 73.

[15] GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 4. ed. Niterói: Impetus, 2009, p. 76.

[16] SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: IPCP, Lumen Juris, 2005, p. 42.

[17] BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito Penal Fundamentos para um Sistema Penal Democrático. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 13.

[18]  MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade. Niterói: Impetus, 2006, p. 98.

[19] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral Volume I. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, p. 426.

[20]  GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral Volume I. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, p. 426.

[21]SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: Lumen Juris, 2007, p. 588.

[22] CARVALHO, Aníbal Bueno de; CARVALHO,Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 74.

[23] HC 187.132/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 05/02/2013, DJe 18/02/2013

[24] HC 172.505/MG, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 31/05/2011, DJe 01/07/2011

[25] TJRJ - 0012227-73.2012.8.19.0203 – APELACAO – Relatora DES. ELIZABETE ALVES DE AGUIAR - Julgamento: 03/04/2013 - OITAVA CAMARA CRIMINAL.

[26] Apelação Crime Nº 70051355337, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francesco Conti, Julgado em 12/12/2012.

[27] MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade. Niterói: Impetus, 2006, p. 94.

[28] Idem, p. 95.

[29] Ibidem, p. 95.

[30] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 234.

[31] CARVALHO, Aníbal Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 85.

[32] Ibidem, p. 85.

[33] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. Tradução: Vania Romano. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 268.

[34] MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade. Niterói: Impetus, 2006, p. 4.0

[35] MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade. Niterói: Impetus, 2006, p. 44.

[36] Ibidem, p. 100.

[37] MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade. Niterói: Impetus, 2006, p. 100-101.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOLDRINI, Luan Campos. Da coculpabilidade penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3794, 20 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25909. Acesso em: 26 abr. 2024.