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A caracterização do uso indevido de informação privilegiada à luz da Lei nº 10.303/2001

A caracterização do uso indevido de informação privilegiada à luz da Lei nº 10.303/2001

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Introdução

            Com a publicação da Lei nº 10.303/01, que alterou e acrescentou dispositivos na Lei nº 6.404/76 (Lei das S.A.) e na Lei nº 6.385/76 (Lei que dispõe sobre o mercado de capitais e que criou a CVM), o uso indevido de informações privilegiadas ("insider trading") passou a ser tipificado como crime, reacendendo no mercado de capitais brasileiro a discussão sobre como caracterizar situações de insider trading.

            Este trabalho tem como principal objetivo definir os agentes passíveis de responder pelo crime de insider trading, bem como analisar as medidas que devem ser tomadas pelos administradores e conselheiros de sociedades de capital aberto para que estes, em suas operações realizadas no mercado, não sejam enquadrados como insider traders.

I - O que é o insider?

            Insider é aquela pessoa de uma determinada companhia que, devido à sua posição em uma função de confiança, tem acesso privilegiado a informações antes que elas sejam de conhecimento público. Diferente do que muitos doutrinadores afirmam, o dever jurídico do insider não é o de guardar sigilo, e sim o de lealdade. Às vezes só será leal se guardar sigilo; outras vezes, se informar amplamente.

            Na legislação brasileira não é possível encontrar-se uma definição clara de insider, mas pela Lei 6404/76, combinando-se seus artigos 145, 155, 157, 160 e 165 subentende-se que o legislador pretendeu incumbir o administrador e pessoas a ele equiparadas ou subordinadas a zelar pelas informações relevantes à situação da companhia ou a seus negócios.

            "Art. 155 : O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado:

            I - usar, em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo;

            II - omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia;

            III - adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que esta tencione adquirir.

            § 1o Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários." (grifo nosso)

            Do parágrafo 1º supra citado depreende-se também o conceito de informação relevante, qual seja, aquela "capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários" de emissão da companhia, alterando a decisão dos investidores no ato de sua operação no mercado de valores mobiliários.

            A Instrução CVM n.º 31, de 08.02.1984, é ainda mais clara ao definir os atos ou fatos relevantes que devem ser comunicados ao mercado.

            "Art. 1º : Considera-se relevante, para os efeitos desta Instrução, qualquer deliberação da assembléia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato ocorrido nos seus negócios que possa influir de modo ponderável:

            I - na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta; ou

            II - na decisão dos investidores em negociar com aqueles valores mobiliários; ou

            III - na determinação de os investidores exercerem quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia."

            Quanto às pessoas admitidas como insiders, a Lei 6404/76 e a Lei 6385/76 consideraram as seguintes pessoas capazes de obter informações privilegiadas da companhia:

            1. administradores (art. 155, §1º da Lei 6404/76), sendo que essa responsabilidade dos administradores aplica-se também a conselheiros e diretores (art. 145 da Lei 6404/76);

            2. membros de quaisquer órgãos, criados pelo estatuto, com funções técnicas ou destinados a aconselhar os administradores (art. 160 da Lei 6404/76);

            3. subordinados ou terceiros de confiança das pessoas relacionadas nos itens anteriores (art. 155, §2º da Lei 6404/76);

            4. membros do Conselho Fiscal (art. 165 da Lei 6404/76);

            5. acionistas controladores (art. 22, inciso V da Lei 6385/76), reiterado pelo art. 9º da Instrução CVM n.º 31: "Cumpre aos administradores e acionistas controladores guardar sigilo as informações relativas a ato ou fato relevante às quais tenham acesso privilegiado em razão do cargo ou posição que ocupam, até sua comunicação e divulgação ao mercado." A nova Lei das S.A. inclui os acionistas minoritários no artigo mencionado da Lei 6385/76, e a Instrução n.º 31 provavelmente precisará ser reformulada.


II - Insider Trading

            Somente possuir informações privilegiadas ou ter acesso a elas não caracteriza o insider trading. É necessário que delas se faça uso no mercado de valores mobiliários em proveito próprio ou de terceiros. É ilegal usar informações privilegiadas para obter ganhos no mercado financeiro. Desta forma, um diretor financeiro de uma determinada empresa não pode negociar no mercado de capitais ações da companhia que dirige com base em informações que não sejam públicas. Em geral, o insider trading aparece ligado aos mercados de ações, futuros e opções, justamente quando ocorre um negócio irregular feito por quem tem esta informação privilegiada ou foi orientado por insider.

            No começo de vigência da Lei 6385/76 a CVM considerava como passíveis de cometer o insider trading os agentes descritos pelas Leis n.º 6404/76 e n.º 6385/76 listados acima. Mais especificamente era de responsabilidade do administrador evitar o insider trading, e ele seria acionado caso esse ilícito ocorresse. Isso porque o legislador teve o intuito de evitar que o investidor prejudicado ficasse sem saber a quem responsabilizar pelo dano que lhe foi causado. E ao administrador, uma vez responsabilizado, caberia posteriormente reclamar o que pagou a quem efetivamente praticou o insider trading (como estipula o art. 1524 do Código Civil: "o que ressarcir o dano causado por outrem, se este não for descendente seu, pode reaver daquele, por quem pagou, o que houver pago.").

            Porém, ao publicar a Instrução CVM n.º 8 de 08.10.1978, a CVM estendeu aos intermediários e aos demais participantes do mercado a vedação do uso de prática não eqüitativa no mercado de valores mobiliários, que de acordo com a mesma instrução é "aquela de que resulte, direta ou indiretamente, efetiva ou potencialidade, um tratamento para qualquer das partes, em negociações com valores mobiliários, que a coloque em uma indevida posição de desequilíbrio ou desigualdade em face dos demais participantes da operação." E o insider trading nada mais é do que uma modalidade de prática não eqüitativa, já que coloca em posição superior aquele que possui as informações privilegiadas.

            Com isso, ficam não somente administradores e acionistas controladores, como também intermediários e demais participantes do mercado de valores passíveis de sanção aplicada pela CVM, nos termos do artigo 11, inciso I a IV da Lei 6385/76. Isso é importante, pois ainda que o investidor lesado tenha a possibilidade de responsabilizar o administrador pelo ‘vazamento’ das informações privilegiadas, é necessário que a CVM apure e possa responsabilizar também aquele que realmente fez uso das informações relevantes.

            Isso porque podem haver casos em que ninguém da companhia foi o responsável pelo ‘vazamento’ da informação, mas um terceiro pode haver conseguido aquela informação até mesmo por meio ilícito. Neste caso, o terceiro que obteve a informação responderá criminalmente por ter adquirido aquela informação de modo ilícito.

            Resta claro, portanto, que o agente do insider trading pode ser qualquer pessoa que tenha alguma relação com o mercado de valores mobiliários, seja como funcionário de companhia aberta, seja como intermediário ou participante do mercado. Entretanto, para efeito desse trabalho, analisaremos particularmente a situação dos membros da administração da companhia, uma vez que estes em razão de suas próprias funções possuem informações privilegiadas e têm como dever zelar para que essas informações não sejam utilizadas de forma a auferir vantagem para si ou para outrem.

III - Qualificação do insider trading antes do projeto Kandir-Kapaz

            A "Nova Lei das S.A.", resultou de um projeto de lei de autoria dos deputados Antônio Kandir e Emerson Kapaz, que inovaram ao tipificar o uso indevido de informações privilegiadas ("insider trading") como crime. Até então, a CVM tinha que recorrer a enquadramentos não tão claros em nossa legislação para efetuar a repressão desse ilícito.

            A CVM sempre buscou a prevenção (de caráter educativo) para combater o uso indevido de informação privilegiada e isso fica explícito nas medidas que vem tomando. Uma dessas medidas é a proibição ao uso da informação privilegiada, por representar iniquidade no mercado, o que é vedado expressamente pela Instrução CVM n.º 8. A fim de que essas informações não sejam retidas pela companhia, a CVM vem adotando outra medida, que é a determinação de que seja divulgada toda a informação referente a atos ou fatos relevantes, como demonstram os artigos 2º e 4º da Instrução CVM n.º 31:

            "Art. 2º - Cumpre aos administradores da companhia aberta comunicar, imediatamente, à CVM e à Bolsa de Valores em que seus valores mobiliários sejam mais negociados, bem como divulgar pela imprensa, ato ou fato relevante ocorrido nos negócios da companhia."

            "Art. 4º - Os atos ou fatos relevantes podem, excepcionalmente, deixar de ser divulgados se os administradores entenderem que sua revelação porá em risco interesse legítimo da companhia.

            Parágrafo único - Caso a companhia resolva manter sigilo acerca de ato ou fato relevante, os administradores ficam obrigados a divulgá-lo imediatamente, se a informação escapar ao seu controle ou a cotação das ações da companhia apresentar oscilações atípicas."

            Essa obrigação de divulgar é extremamente importante para que todos possam ter acesso à informação ao mesmo tempo, não só em relação aos potenciais investidores, como também quanto a acionistas controladores e minoritários.

            Outras duas medidas aplicadas pela CVM são a apresentação periódica de relatórios – que deixam clara a posição acionária das pessoas diretamente ligadas à companhia, sabendo-se quem deve ser o responsável pelo dever de informar – e a vedação à prática de determinadas operações de mercado – com o intuito de que pessoas que detém uma relação mais estreita com a companhia, como diretores, administradores, conselheiros, etc. e que com isso podem ter uma visão mais global de seu desempenho, operem no mercado com valores mobiliários de sua emissão, com uma superioridade em relação aos demais operadores do mercado. Esse ponto será o norteador desse trabalho e será novamente abordado mais à frente.

            Quando chegava à tona alguma suspeita de insider trading era necessário buscar na legislação brasileira a melhor forma de enquadrá-lo como ilícito. Geralmente a questão era resolvida no âmbito administrativo, com multas aplicadas pela CVM. Era também possível um enquadramento no Código Civil e nos casos mais graves no Código Penal.

            O enquadramento e conseqüências previstas nos diversos textos legais são:

            1) na Lei 6404/76

            O art. 155, §3º estipula que a pessoa prejudicada tem o direito de receber do infrator indenização por perdas e danos. Só que nos parágrafos anteriores do mesmo artigo, somente quem pode figurar como infrator são o administrador (conselheiros e diretores), os membros dos órgãos estatuários com funções técnicas e consultivas e os membros do conselho fiscal, respondendo estes por seus subordinados ou terceiros de sua confiança. Este artigo é demasiadamente amplo e onera sobremaneira o administrador.

            2) na Lei 6385/76

            O art. 9º, inciso V, dispõe que compete à CVM "apurar, mediante inquérito administrativo, atos ilegais e práticas não eqüitativas de administradores, membros do conselho fiscal e acionistas de companhias abertas, dos intermediários e dos demais participantes do mercado". E, como já foi demonstrado, o insider trading nada mais é do que uma modalidade de prática não eqüitativa.

            Verificado o ilícito, a CVM poderá aplicar as punições dispostas no art. 11, de advertência e multa, bem como as penalidades previstas para infração grave, na medida que a Instrução CVM n.º 131 definiu que a violação do art. 155 da Lei 6404/76 se enquadra nesse tipo de infração. Nesse caso, a penalidade pode ser também de suspensão do exercício de cargo de administrador ou de conselheiro fiscal de companhia aberta, de entidade do sistema de distribuição ou de outras entidades que dependam de autorização ou registro na Comissão de Valores Mobiliários e inabilitação temporária, até o máximo de vinte anos, para o exercício dos cargos referidos anteriormente.

            A aplicação de sanções pela CVM tem caráter administrativo, não excluindo a responsabilidade civil e criminal.

            3) no Código Civil

            Ainda que o insider trading não esteja disposto no Código Civil, há dois dispositivos que contemplam uma responsabilidade civil para o insider.

            Um deles é o artigo 94:

            "Art. 94 - Nos atos bilaterais o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela se não teria celebrado o contrato."

            O investidor ao aplicar no mercado com informações privilegiadas está omitindo esta informação dos demais participantes do mercado intencionalmente. A conseqüência da omissão dolosa é dada pelo art. 92:

            "Art. 92 - Os atos jurídicos são anuláveis por dolo, quando este for a sua causa."

            Essa solução civil de anular o ato não é interessante para o mercado, por comprometer seu equilíbrio. Além disso esse tipo de ação deve ser proposta contra quem lhe deu causa, o que poderá ser difícil de se identificar na prática.

            O outro dispositivo aplicado é o artigo 159:

            "Art. 159 - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano."

            Essa solução é mais interessante por ensejar uma indenização e não a anulação do ato, mas ainda assim é complicada na prática por dever igualmente ser proposta a quem deu causa ao dano.

            Um fato importante a ser observado é que a responsabilidade civil só pode ser imputada às pessoas descritas pela Lei das S.A. como aquelas com o dever de lealdade.

            4) no Código Penal

            Assim como no Código Civil, no Penal o insider trading não está especificado. O tipo penal que mais se aproxima dele é o estelionato, por ser um tipo amplo o suficiente para albergar as mais diversas condutas.

            "Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

            Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa."

            O que vem se observando é que os casos de insider trading raramente chegavam à justiça. As questões de Direito Econômico são relativamente novas em nosso país e há um despreparo do Judiciário em lidar com elas, pela complexidade do assunto. Com isso têm-se convencionado resolver essas questões no âmbito administrativo, onde existem pessoas especializadas para lidar com a matéria. Ainda que ninguém possa ser privado de recorrer ao Poder Judiciário, nunca foi de muito interesse das empresas recorrer a ele, pelo fato do órgão administrativo competente ser o convencional para dirimir questões econômicas de maior complexidade. Assim, ao constatar práticas não eqüitativas no mercado de valores, a CVM é o órgão competente para apurar os fatos mediante inquérito administrativo e se considerar o caso de muita gravidade encaminhar ao Ministério Público para que seja feita a proposição de ação penal.


IV - Como fica o insider trading com a Lei nº 10.303/01

            A reforma na Lei das S.A. e na Lei n.º 6385 troxe inúmeros pontos vitais para o mercado financeiro, porém também apresentou algumas questões bastante controversas. Pela reforma, a CVM assumiu o papel de agência reguladora, transformando-se em autarquia desvinculada do Ministério da Fazenda e, portanto, hierarquicamente independente e, com autonomia financeira.

            Um dos pontos inovadores é a tipificação do insider trading como crime, conforme transcrito abaixo:

            "Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários:

            Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime."

            Ainda que já seja um avanço a inclusão do uso indevido de informação privilegiada como tipo penal, o texto legal ainda está longe de ser o mais adequado.

            A tipificação de crimes em leis esparsas não é a forma ideal de se transformar determinada conduta em ilícito penal. Isso diminui a segurança jurídica, uma vez que existe um Código Penal consolidado que alberga a maioria dos delitos e é a forma mais clara de se buscar o enquadramento de uma conduta criminosa. As leis esparsas seriam o meio de se tipificar somente ilícitos administrativos, que por não estarem ainda consolidados na sociedades e dependerem de um determinado contexto sociológico, ainda não foram transformados em ilícito criminal.

            Nesse ponto esbarra-se em outra debilidade do direito brasileiro, que é a confusão feita na legislação entre ilícito administrativo e ilícito criminal. Na Europa esse tema está mais avançado, existindo duas categorias jurídicas de ilícitos: crimes e contra-ordenações. Lá não há dupla apreciação sobre o mesmo tema, ou é crime ou contra-ordenação (correspondente ao nosso ilícito administrativo).

            Ao considerar como crime o insider trading, a Lei n.º 6385 não permite mais que fique a critério da CVM a condução do caso ou não à Justiça Criminal, dependendo da gravidade do ato. Pelo fato de ainda não ter entrado em vigor essa alteração da lei, ainda não é possível se vislumbrar com clareza quais serão os procedimentos adotados pela CVM ao ser constatado o insider trading, no que tange à competência para o julgamento e averiguação de provas.

            Entretanto, com base nos casos já ocorridos na CVM, assim como o procedimento adotado por outros órgão administrativos que contêm um ilícito criminal em suas legislações, é possível que se trace uma analogia.

            Ao serem constatados indícios de insider trading, caberá à CVM a averiguação de provas – que nesse tipo de conduta constituem indícios que poderão ou não ser transformados em presunção, e esta sim será considerada "prova" pelo juiz – mediante inquérito administrativo. O que ocorre atualmente é que o ilícito de insider trading é solucionado administrativamente com os meios já expostos no capítulo anterior deste trabalho. Com essa nova redação, não haverá mais essa possibilidade. Ainda que a CVM decida por aplicar multa ou qualquer outra penalidade, só pelo fato de ter sido configurado no inquérito o delito, o caso deverá ser levado ao Ministério Público para apresentação de denúncia. Quanto à justiça competente para julgar o assunto – estadual ou federal – dependerá das partes envolvidas. Se ambas as partes forem instituições privadas ou estaduais, a competência é da Justiça Estadual. Se uma das partes for uma instituição federal, ou outra exceção prevista em lei, a competência é da Justiça Federal.

            Assim restará o equívoco de se penalizar o agente duas vezes: uma na instância administrativa, outra na criminal.

            Outro ponto importante desse novo tipo penal é a não caracterização de quem é o sujeito ativo do crime, ou seja, quem é passível de ser incriminado por insider trading. No dispositivo lê-se que é crime "utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo". Ao mencionar o termo "ter conhecimento" o dispositivo abre a todos a possibilidade de ser enquadrado no tipo penal, tanto administradores - e aqueles a ele equivalentes - quanto quaisquer pessoas que por algum motivo obtenham informações privilegiadas da empresa e dela se utilizem para auferir vantagem no mercado de valores. Porém, como a lei menciona também "da qual deva manter sigilo", volta-se à questão já abordada de quem são as pessoas que possuem o dever de manter sigilo. Somente as pessoas designadas pela Lei das S.A, e já mencionadas no item I acima, possuem o dever de guardar sigilo. Neste ponto é importante ser observado que os demais participantes do mercado que de alguma forma obtenham informação privilegiada da empresa não têm o dever de informar, muito pelo contrário, podem até causar algum mal à companhia se divulgarem a informação. Neste caso a saída que lhes resta é atentar para o dever ético de se abster de negociar com os papéis da empresa enquanto a informação privilegiada que possuem não seja divulgada ao mercado. Ao meu ver, a não ser que a CVM lance uma regulamentação estendendo também aos demais participantes do mercado o dever de manter sigilo caso obtenham alguma informação privilegiada da empresa, eles não serão atingidos pelo tipo penal. E por sinal nem pela responsabilidade civil, como já foi explicado acima.


V - Meios de prova nos casos de insider trading

            A prova na Justiça depende de dois aspectos: objetivo, que é o meio pelo qual se demonstra a existência ou a inexistência do fato; e subjetivo, que é a convicção do próprio juiz. A prova é tão importante para o processo que, sem ela, este não poderia subsistir: qui probare non potest nihil habet (quem não pode provar nada tem). Entretanto, há casos em que a prova não tem como ser composta por documentos escritos, ou por uma confissão. Especialmente no insider trading a prova se dá por meio de indícios, que irão conduzir a uma presunção.

            O indício é o ponto de partida; já a presunção são conseqüências deduzidas de um fato conhecido, não destinado a funcionar como prova, para chegar a um fato desconhecido. Como explica Moacyr Amaral Santos, em seu livro "Prova judiciária no cível e comercial", "o indício é o fato conhecido do qual, em virtude do princípio da causalidade, se induz o fato desconhecido, ao qual se atribui a função de causa ou efeito em relação ao fato conhecido".

            No curso do inquérito e processo administrativo instaurado pela CVM serão aceitas todas as provas admitidas em direito (art. 12 da Res. 454/77 – BACEN). E os Códigos Civil e de Processo Civil autorizam a presunção como meio de prova. No Código Civil temos o art. 136 que dispõe que:

            "Art. 136 - Os atos jurídicos, a que se não impõe forma especial, poderão provar-se mediante:

            I - confissão;

            II - atos processados em juízo;

            III - documentos públicos ou particulares;

            IV - testemunhas;

            V - presunção;

            VI - exames e vistorias;

            VII - arbitramento." (grifo nosso)

            Já no Código de Processo Civil, 3 artigos autorizam o uso de presunção como meio de prova:

            "Art. 131 - O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento."

            "Art. 332 - Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa."

            "Art. 335 - Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial."

            O uso da presunção, ainda que válido para que se possa comprovar um ato observado no mercado, mas sem documento que o comprove, é bem mais nocivo para o réu. Isso porque o agente que, por exemplo, possui cargo no conselho de administração de uma empresa e aplica em bolsa nas ações dessa mesma empresa é forte candidato a acusado de insider trading. Mesmo que ele tenha aplicado no mercado sem informações obtidas por sua função no conselho, mas somente com base nos conhecimento dele - resultante de estudos avançados do mercado de valores mobiliários -, diante dos indícios contra ele e do nexo de causalidade que esses indícios possuem com o fato dele obter lucro no mercado, o agente poderia facilmente ser acusado de haver se utilizado de informações privilegiadas para obter vantagem indevida. E com certeza seria demasiado penoso ao agente demonstrar o contrário.

            A responsabilidade do agente pode ser entendida como objetiva – quando a única coisa necessária para condená-lo é o nexo de causalidade entre o dano verificado e uma conduta antijurídica do agente – ou subjetiva – quando além do nexo de causalidade é necessário que se apure se houve culpa ou dolo por parte do agente. Nos casos de insider trading essa discussão sobre qual é a responsabilidade tomada como base não me parece vital, uma vez que em todos os casos há uma presunção de culpa dada pelo dever de informar. De qualquer forma, observa-se que no caso do insider trading o mais importante é o nexo de causalidade, que se baseará em indícios. Deve ser observado também que nesses casos é invertido o ônus da prova: não cabe ao órgão acusador provar a responsabilidade do insider, e sim ao insider provar a ausência de sua responsabilidade administrativa, civil ou criminal.

            Por isso é tão vital que aquele que, por sua função, é enquadrado pela Lei n.º 6.385/76 e pela Lei n.º 6.404/76 como passível de obter informação privilegiada em uma determinada empresa deve manter-se afastado da compra, pelo menos direta, dos papéis dessa empresa negociados no mercado.


VI - Casos já ocorridos e julgados pela CVM de insider trading

            Ainda que até a promulgação da "Nova Lei das S.A." (que alterou também a Lei da CVM) os casos de insider trading não eram considerados como crime, a CVM sempre os averiguou mediante processo administrativo, e nos casos mais graves remetia ao Ministério Público para que fossem tomadas as medidas legais, como já foi exposto.

            Nos casos de inquérito para a averiguação de uso de informação privilegiada encontramos 4 defesas mais comumente utilizadas pelos acusados:

            1. o acusado tenta provar que, ainda que fosse uma das pessoas da administração da companhia, não tinha acesso à informação privilegiada;

            2. as pessoas que compraram ou venderam ações no período objeto da acusação da CVM não tiveram prejuízo real com a atuação do insider no mercado;

            3. o acusado tenta provar que suas negociações no mercado não objetivavam lucro ou prejuízo, uma vez que ele tinha a necessidade urgente de se desfazer das ações para atender compromissos financeiros;

            4. o acusado é um participante ativo do mercado de capitais, negociando rotineiramente inclusive com as ações da companhia, e não faria sentido ele parar de negociar só porque é um insider.

            O interessante ao se observar os casos já ocorridos é averiguar o entendimento do órgão julgador quanto ao assunto. A CVM já se manifestou afirmando que publicará novas Instruções mudando a regulamentação em vigor de forma a se adaptar às novas regras da Lei das S.A., reavaliando inclusive a Instrução CVM n.º 31, que trata do fornecimento de informações privilegiadas. Porém ao se analisar inquéritos administrativos já julgados, pode-se obter uma boa perspectiva de qual é o entendimento da CVM acerca do assunto e os rumos que ela provavelmente tomará.

            No famoso caso da empresa Supergasbrás, Inquérito CVM n.º 14/80, temos uma exposição de argumentos muito interessante por parte do acusado e o afastamento desses mesmos argumentos pela CVM. A Supergasbrás comunicou em 31/10/78 à BVRJ o fato relevante relativo à venda de 2 prédios à IBM, o que gerou um lucro 2 vezes e meia superior ao lucro operacional da cia. Só que no início de 1978 houve uma inusitada movimentação com as ações da companhia, o que fez com que as ações, até então de pouca liquidez, tivessem seu preço disparado, chegando a um patamar tal que não havia mais como subir quando foi divulgado o fato relevante. A CVM entendeu que houve um vazamento de informação e ainda que outras pessoas, além do acusado que é membro do Conselho de Administração da Supergasbrás, também tenham comprado ações no período, supostamente de posse da mesma informação, elas não foram arroladas no processo administrativo por não serem administradores da empresa vendedora do imóvel. (isso foi alterado com a Instrução CVM n.º 31/84, que estipulou que o insider trading também "aplica-se a quem quer que tenha conhecimento de informação referente a ato ou fato relevante, sabendo que se trata de informação privilegiada ainda não divulgada ao mercado.") O acusado argumentou que: ele era contra a venda do imóvel e achava que essa venda depreciaria a imagem da empresa; ele investiu nas ações da companhia seguindo recomendações de um expert no assunto; ele voltou a operar na bolsa depois da notificação do fato relevante, comprando ações ao preço que as vendeu; a cotação subiu antes da divulgação da informação e se a informação vazou, causando essa subida na cotação, ela perdeu o caráter de privilegiada. A CVM derruba todos esses argumentos, alegando que se a informação vazou, é bem provável que tenha sido através do acusado, ele mesmo um comprador das ações da empresa. Além disso o bem tutelado pela CVM "é a confiabilidade do mercado de ações e o acionista minoritário, vítima, muitas vezes, da falta de escrúpulo do administrador ganancioso", e com isso não importa se a cotação subiu antes ou depois da divulgação do fato relevante, uma vez que a caracterização do ilícito – "relação de causalidade entre o conhecimento da informação pelo administrador e sua iniciativa de comprar e vender valores mobiliários de emissão da sociedade" com intenção de obter vantagem patrimonial dessa operação - ocorreu claramente. Assim, além de aplicação de multa a CVM estipula que a SMI deverá cientificar os vendedores das ações compradas pelo acusado no período apontado do conteúdo da decisão do inquérito, para que, se quiserem, fazerem valer seus direitos perante o Poder Judiciário.

            Outro interessante caso é o Inquérito CVM n.º 29/82. A BVRJ remeteu à CVM relatório relativo a operações com ações ON da White Martins S.A. entre 02 e 31.03.81, onde se constatou a atuação de membro do Conselho de Administração e da diretoria entre os compradores em dias anteriores à divulgação de fato relevante ao mercado – que era a apuração de elevados lucros da companhia no corrente exercício social. O membro do Conselho argumentou que: não houve uso de informação relevante nem obtenção de vantagem; ele era um investidor habitual dos papéis da companhia e todos os anos adquiria papéis dela; ele comprou quando o mercado se tornou vendedor e mesmo após a divulgação dos resultados continuou adquirindo ações da companhia; a informação tida pela CVM como privilegiada já era de seu conhecimento desde o início do ano, mas isso não o fez operar naquele período; sua participação no capital social era insignificante (0,04%). O diretor argumentou que: ele só tomou conhecimento da informação com a publicação dos resultados da companhia, não lhe cabendo deliberar sobre destinação de lucros, aumento de capital, etc (atribuições do Conselho de Administração); a companhia já demonstrava publicamente seu bom desempenho financeiro, não sendo isso uma informação privilegiada; a compra de ações da companhia foi resultado de análise da conjuntura econômica e não de conhecimento desigual de informações da companhia; ele não se desfez das ações que comprou e abriu seu sigilo bancário para comprovar sua argumentação. A CVM reconheceu a qualidade das argumentações, aceitando algumas e refutando outras. Um entendimento da CVM é que o prejuízo exigido pelo ilícito de insider trading não precisa ser diretamente ao vendedor (acionista minoritário), bastando que ele seja potencial, ou seja, o fato do vendedor não saber da informação privilegiada já caracteriza o prejuízo potencial; o fato do vendedor declarar não se sentir prejudicado só afasta a possibilidade de que ele busque perdas e danos, mas o prejuízo objetivo já foi materializado. Esse entendimento, porém, não é unânime, o que leva alguns diretores da CVM a votar pela absolvição dos 2 acusados. A participação no capital social da cia também foi considerada irrelevante pela CVM. O argumento de que o acusado é um investidor habitual, ainda que tenha gerado admiração por parte da CVM, não convenceu seus diretores. O que gerou a absolvição do diretor da companhia foi o argumento dele de que, por não ser do Conselho de Administração, não possuía conhecimento das deliberações desse órgão. O que se nota nesse caso é uma divergência até mesmo dentro da CVM quanto à caracterização do ilícito de insider trading. Em todo caso, duas opiniões de membros da CVM valem a pena ser destacados: o Presidente Herculano Borges da Fonseca em seu voto expõe que nos casos de insider o que interessa não é o subjetivismo, já que o "fato objetivo a que o órgão público deve se ater é a operação de compra e venda de ações que, com base em informações privilegiadas, gera lucros." O relator Diretor Paulo de Tarso Medeiros ao explicar o porquê do argumento de coincidência da compra de ações e da ocorrência de fato relevante ter sido refutado diz que "coincidências podem ocorrer, daí o cuidado que os participantes do mercado têm que ter em evitar situações de aparente conflito de interesse. É quase impossível o julgador conhecer a motivação do investidor. Tenta, quando muito, deduzi-la de um comportamento. O melhor antídoto continua sendo, entretanto, a limitação consciente de sua atuação no mercado."


VII - Contradição entre o crime de insider trading e a Instrução CVM n.º 302/99

            Não fica claro na legislação pertinente quem são as pessoas que naturalmente obtém informações privilegiadas devido a suas funções dentro da companhia. No começo desse trabalho já foram delimitadas as pessoas nas Leis n.º 6404/76 e 6385/76 que são passíveis de obter informações privilegiadas – administradores, sendo que essa responsabilidade dos administradores aplica-se a conselheiros e diretores - ; membros de quaisquer órgãos, criados pelo estatuto, com funções técnicas ou destinados a aconselhar os administradores; subordinados ou terceiros de confiança das pessoas relacionadas nos itens anteriores; membros do Conselho Fiscal e acionistas controladores (com a nova lei, também os minoritários).

            Isso engloba praticamente todos os membros da companhia, o que não permite uma visão clara da questão.

            Fazendo-se uma analogia, observa-se que na Instrução CVM n.º 302/99 há um artigo que, ainda que não tenha sido elaborado com o intuito de evitar o insider trading, pode ser aplicado a ele.

            "Art. 86. O fundo não pode deter mais de dez por cento de seu patrimônio líquido em títulos ou valores mobiliários de emissão do administrador ou de empresas ligadas, vedada a aquisição de ações de emissão do administrador.

            §1º - …………………………………………………………………………………………

            § 2º Considera-se empresa ligada aquela em que o administrador do fundo ou o gestor da carteira, seus controladores, administradores ou respectivos cônjuges, companheiros ou parentes, até o segundo grau, participem em percentagem superior a dez por cento do capital social, direta ou indiretamente, individualmente ou em conjunto, ou na qual ocupem cargo de administração."

            Esse dispositivo permite que o administrador de um fundo compre valores ou títulos de uma empresa ligada a ele até o limite de 10%. Sendo o administrador ou gestor do fundo também controlador ou administrador de uma empresa ele obtém informações privilegiadas dessa empresa decorrente de sua função. E quando através do fundo ele compra títulos e valores dessa empresa ele está usando informações privilegiadas para auferir vantagem, o que caracteriza o crime de insider trading. Só que esse tipo de operação está amparada legalmente, até certo ponto, pela Instrução CVM n.º 302/99, uma vez que o artigo 86 permite que o fundo possua até 10% de seu patrimônio líquido nessa situação.

            Com isso observa-se uma contradição na legislação. Não deveriam haver brechas para o crime de insider trading, portanto uma das duas legislações deveria ser alterada. Ou se admite que o crime de insider trading só se caracteriza ao se manipular um determinado número de ações no mercado – o que soa inverossímil -, ou se revoga o dispositivo da Instrução n.º 302/99 que está em contradição.


Bibliografia

            ALMEIDA, Ricardo Jose De, BUENO, Artur Franco e BRAGA, Régis Fernando De Ribeiro. IV SEMEAD - Teste sobre a Eficiência Informacional do Mercado Brasileiro em Relação ao Anúncio ou Divulgação de Fusões/Aquisições no Período entre maio de 1995 e janeiro de 1998, outubro de 1999;

            EIZIRIK, Nelson. Insider Trading e Responsabilidade Civil de Administrador de Companhia Aberta. Revista de Direito Mercantil, São Paulo: nº 50, pp.42-56, abr./jun. 1983;

            LIMA, Osmar Brina Corrêa. Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade Anônima;

            MÜSSNICH, Francisco A.M. A Utilização Desleal de Informações Privilegiadas – Insider Trading – no Brasil e nos Estados Unidos. Revista de Direito Mercantil. São Paulo: n° 34, pp.31-51, abr.- jun. 1979;

            PARENTE, Norma Jonssen. Aspectos Jurídicos do Insider Trading. Superintendência Jurídica da CVM, junho de 1978;

            SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e no Criminal.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Denise Figueiredo de Paula. A caracterização do uso indevido de informação privilegiada à luz da Lei nº 10.303/2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2600. Acesso em: 28 abr. 2024.