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Da responsabilidade civil por abandono afetivo, à luz do ordenamento jurídico pátrio

Da responsabilidade civil por abandono afetivo, à luz do ordenamento jurídico pátrio

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É cabível a indenização por danos morais decorrente do abandono afetivo? A questão traz consigo o choque de dois conflitos: de um lado, a liberdade do pai, que consiste na liberdade afetiva, de outro, a solidariedade familiar e a integridade psíquica do filho, inerentes da dignidade da pessoa humana.

Resumo: A importância do presente trabalho vislumbra-se no número cada vez maior de ações buscando a indenização por danos morais em decorrência do abandono afetivo. E não poderia ser diferente, vez que é o afeto a mola propulsora do direito de família, base do princípio da dignidade da pessoa humana. A questão é polêmica, a doutrina e a jurisprudência não se posicionaram de forma definitiva acerca do tema. Assim é que se faz necessário um estudo mais aprofundado sobre a matéria.

Palavras-chave: Direito de família. Afeto. Dignidade da pessoa humana. Indenização. Abandono afetivo.

Sumário: Introdução. 1. A família e sua evolução. 1.1. Considerações gerais. 1.2. Princípios do Direito de Família. 2. Da responsabilidade civil no Direito de Família. 2.1. Considerações gerais. 2.2. Da responsabilidade civil no ordenamento jurídico pátrio. 2.3. Da responsabilidade civil no Direito de Família. 3. Da responsabilidade civil por abandono afetivo à luz do ordenamento jurídico pátrio. 3.1. Considerações gerais. 3.2. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. Conclusão. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo discorrer acerca da responsabilidade civil por abandono afetivo à luz do ordenamento jurídico pátrio.

É cabível a indenização por danos morais decorrente do abandono afetivo?

A polêmica é grande e as correntes de pensamento são conflitantes. Isso porque, a questão traz consigo o choque de dois conflitos: de um lado, a liberdade do pai, que consiste na liberdade afetiva, de outro, a solidariedade familiar e a integridade psíquica do filho, inerentes da dignidade da pessoa humana.

Assim é que se faz necessário um estudo mais aprofundado acerca do tema, o qual tem por objetivo geral estudar a responsabilidade civil por abandono afetivo, à luz do ordenamento jurídico pátrio. Por objetivo específico, responder se é cabível a indenização por danos morais por abandono afetivo.

Quanto aos aspectos metodológicos, as hipóteses do trabalho foram investigadas através de pesquisa do tipo bibliográfica, procurando explicar o problema através da análise da leitura já publicada em forma de livros, revistas e publicações diversas da imprensa escrita pertinente ao tema; e documental, através de leis, normas, pareceres, pesquisas on-line, dentre outros que versam sobre o tema. Quanto à tipologia da pesquisa, esta é, segundo a utilização dos resultados, pura, tendo por objetivo ampliar o conhecimento do pesquisador para uma nova tomada de posição. Quanto aos objetivos, a pesquisa é descritiva, buscando descrever fenômenos, descobrir a frequência que o fato acontece, sua natureza e suas características. Classifica, explica e interpreta os fatos; e exploratória, procurando aprimorar ideias, ajudando na formulação de hipóteses para pesquisas posteriores, além de buscar maiores informações sobre o tema.

A princípio, será analisado o conceito de família, o qual está em constante transformação e evolução, em decorrência das mudanças ocorridas na história da civilização; em seguida, tratou-se da responsabilidade civil no direito de família, questão polêmica e controvertida, vez que não se sabe ao certo até que ponto o Poder Público deve interferir nas relações familiares, nas relações de afeto, na vida íntima das pessoas; considerando as disposições contidas no ordenamento jurídico pátrio e a jurisprudência sobre o tema.

Por fim, considerando as noções de responsabilidade civil, os princípios constitucionais e do direito de família, o trabalho se propõe a verificar se é cabível a indenização por danos morais decorrente do abandono afetivo.


1. A FAMÍLIA E SUA EVOLUÇÃO

1.1. Considerações Gerais

A palavra “família” pode ser empregada em diversas acepções. Nesse sentido, Uadi Lammêgo Bulos (2007, p. 1325) afirma que:

Família, em sentido estrito, designa os laços de paternidade, maternidade e filiação. O ambiente familiar é composto dos pais e filhos, irmãos, do homem e da melhor em união estável, de um dos filhos com ambos os pais ou com apenas um deles.

Em sentido amplo, contudo, família é o conjunto de pessoas ligadas pelos laços de parentesco, com descendência comum, e de afinidade (tios, primos, sobrinhos, cunhados etc.).

No Brasil, a primeira Constituição a tratar sobre o tema foi a Carta de 1934. Os Textos de 1824 e de 1891 a ignoraram.

As Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967 faziam referência apenas à família legal, ou seja, aqueles grupos familiares originários do casamento civil.

Segundo a Carta Constitucional de 1988, família não é somente o grupo oriundo do casamento, englobando, também, as uniões fora do casamento, com traços de permanência e continuidade, as quais merecem proteção jurídica.

A verdade é que, a família está em constante transformação e evolução a partir da relação recíproca de influências, bem como às alterações vividas no contexto político, jurídico, econômico, cultural e social no qual está inserida.

A esse respeito, trazemos à baila a lição de Maria Berenice Dias (2009, p. 34):

A entidade familiar, apesar do que muitos dizem, não se mostra em decadência. Ao contrário, é o resultado das transformações sociais. Houve a repersonalização das relações familiares na busca do atendimento aos interesses mais valiosos das pessoas humanas: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor. Ao Estado, inclusive nas funções legislativas e jurisdicionais, foi imposto o dever jurídico constitucional de implementar medidas necessárias e indispensáveis para a constituição e desenvolvimento das famílias.

Assim é que, com as mudanças ocorridas na história da civilização, a família deixou de ser um centro político, econômico, religioso e de procriação, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que envolve seus integrantes.

É o que se depreende da leitura do art. 226. da Constituição Federal de 1988: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Dispõe, ainda, que “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” e que “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

Dessa forma, “o ordenamento jurídico nacional passou a consagrar a família com pluralidade de tipos: a nuclear, que abrange o casal e seus filhos, a monoparental, podendo ser incluída aí também a de origem celibatária, e a patriarcal, voltada à sucessão hereditária e a interesses comuns” (CASABONA, on line, 2010).

Ressalte-se, por oportuno, outras formas existentes de família, como as relações monoparentais surgidas da coabitação de madrasta e enteado, das relações familiares entre irmãos, entre primos, entre tio e sobrinhos, e os relacionamentos afetivos (MADALENO, 2009, p. 6).

Em assim sendo, tem-se que a noção constitucional de família é ampla, não se restringindo somente ao grupo oriundo do casamento. Isso porque a realidade social trouxe novas formas de família, fundadas, especialmente, em laços de afetividade, as quais não podem ser ignoradas pelo ordenamento jurídico pátrio, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana, conforme será visto adiante.

1.2. Princípios do Direito de Família

Visando preservar a coesão familiar e os valores culturais, conferindo à família moderna um tratamento mais consentâneo a realidade social, rege-se o novo direito de família por uma série de princípios, dentre os quais se destaca o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da afetividade e o princípio da solidariedade familiar.

O princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se previsto na Constituição Federal de 1988, conforme art. 1º, inciso III. É o princípio maior, o ”princípio dos princípios”, do qual todos os demais decorrem.

Agrega em torno de si a unanimidade dos direitos e garantias fundamentais do homem, expressos na Constituição de 1988. Por isso, consubstancia o espaço de integridade moral do ser humano, independentemente de credo, raça, cor, origem ou status social.

Sobre o tema, o doutrinador Alexandre de Moraes (2005, p. 128) assim se posiciona:

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

De acordo com Nelson Nery Júnior (2006), “é o fundamento axiológico do Direito; é a razão de ser da proteção fundamental do valor da pessoa e, por conseguinte, da humanidade do ser e da responsabilidade que cada homem tem pelo outro”.

Ao tratar do tema, Maria Berenice Dias (2009, p. 60) anota que:

O princípio da dignidade humana é o mais universal de todos os princípios. É um macroprincípio do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade, uma coleção de princípios éticos.

Vez que o direito de família está umbilicalmente ligado aos direitos humanos, a dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer.

O princípio da afetividade, no âmbito familiar, decorre da liberdade que todo indivíduo deve ter de afeiçoar-se um a outro.

Como vimos, com o passar dos tempos, o conceito de família mudou completamente. Acabou a prevalência do caráter produtivo e reprodutivo da família, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que envolve seus integrantes. Conforme Maria Berenice Dias (2009, p. 54):

A ideia de família normal, cujo comprometimento mútuo decorre do casamento, vem cedendo lugar à certeza de que é o envolvimento afetivo que garante um espaço de individualidade e assegura uma auréola de privacidade indispensável ao pleno desenvolvimento do ser humano. Cada vez mais se reconhece que é no âmbito das relações afetivas que se estrutura a personalidade da pessoa. É a afetividade, e não a vontade, o elemento constitutivo dos vínculos interpessoais: o afeto entre as pessoas organiza e orienta o seu desenvolvimento. A busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade ensejam o reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida. Esse, dos novos vértices sociais, é o mais inovador.

Depreende-se, pois, a relevância do afeto nas relações familiares. De acordo com Paulo Lôbo (2011, on line), “as relações de consanguinidade, na prática social, são menos importantes que as oriundas de laços de afetividade e da convivência familiar”.

Por derradeiro, Rolf Madaleno (2009, p. 65), diz que “o afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para o fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana”.

Temos, pois, que a doutrina tem se posicionado, de forma torrencial, no sentido de que o afeto é um dos direitos da personalidade do qual todos os seres humanos gozam.

Para Carlos Alberto Bittar, citado por Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf (2011, on line):

Consideram-se como da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos.

Feitas tais considerações, imperioso se faz reconhecer a importância do afeto para a dignidade humana. E não poderia ser diferente, vez que está umbilicalmente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, princípio maior, fundante do Estado Democrático de Direito.

O princípio da solidariedade compreende a fraternidade e a reciprocidade entre familiares. É um sentimento recíproco que estabelece um vínculo moral entre as pessoas e à vida, criando laços de fraternidade.

Conforme Rolf Madaleno (2009, p. 63):

A solidariedade é princípio e oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário.

É em decorrência do princípio da solidariedade que se impõe aos pais o dever de assistência aos filhos (CF 229), o dever de amparo às pessoas idosas (CF 230), a obrigação alimentar entre parentes (CC 1.694), entre outros.


2. DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO DE FAMÍLIA

2.1. Considerações Gerais

Do latim responsabilitatis, a expressão “responsabilidade” tanto pode ser sinônima de diligência e cuidado, no plano vulgar, como pode revelar a obrigação geral de responder pelas consequências dos próprios atos ou pelos de outros, no plano jurídico.

Não são poucas as dificuldades encontradas pela doutrina para conceituar a responsabilidade civil.

Em sua obra Traité Général de La Responsabilité Civile (1911, t. I, n. 1), M. A. Soudart a define como o dever de reparar dano decorrente de fato direto ou indireto.

Há autores, como Roger Pirson e Albert de Villé, que se baseiam, ao defini-la, na culpa, visando que as pessoas respondam pelas consequências prejudiciais de suas ações ou omissões (1935, t. I, p. 5).

René Savatier a considera como a obrigação de alguém reparar dano causado a outrem por fato seu, ou pelo fato das coisas ou pessoas que dele dependam (1951, v. 1, p. 1).

Seguindo a linha de entendimento acima esposada, a doutrina pátria tem se posicionado no sentido de que a responsabilidade civil significa o dever de reparar o prejuízo.

Conforme Adauto de Almeida Tomaszewski (2004, p. 245), “imputar a responsabilidade a alguém é considerar-lhe responsável por alguma coisa, fazendo-o responder pelas consequências de uma conduta contrária ao dever”.

De acordo com Sílvio de Salvo Venosa (2010, p.1):

O termo responsabilidade é utilizado em qualquer situação na qual alguma pessoa, natural ou jurídica, deva arcar com as consequências de um ato, fato, ou negócio danoso. Sob essa noção, toda atividade humana, portanto, pode acarretar o dever de indenizar.

Por derradeiro, Maria Helena Diniz (2003, p. 74) assim define a responsabilidade civil:

A aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar o dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato ou coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva).

Assim é que a responsabilidade civil é a obrigação imposta pela lei de reparar o dano causado a outrem, seja pela inexecução de uma obrigação nascida de um contrato (responsabilidade contratual), seja por um ato danoso praticado com ou sem a intenção de prejudicar (dolo ou culpa), ou ainda pelo fato ocasionado por um terceiro ou por um animal.

2.2. Da Responsabilidade Civil no Ordenamento Jurídico Pátrio

A responsabilidade civil encontra-se consagrada no ordenamento pátrio pelo art. 927. do novo Código Civil: “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

O conceito de ato ilícito encontra-se insculpido no art. 186. do Codex Civilis, segundo o qual: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

O artigo em tela vem sofrendo duras críticas por parte da doutrina, pelos motivos adiante delineados.

Rui Stoco (2007, p. 120) afirma que “a só violação do direito já caracteriza o ato ilícito, independentemente de ter ocorrido o dano”.

Diverso não é o entendimento de Ruy Rosado de Aguiar Dias (2005, p. 5-14):

Diferentemente do que constava no Código Civil de 1917, a indenização não integra o conceito de ato ilícito, mas decorre de outra norma que dispõe sobre a obrigação que lhe é consequente. Isto é, a indenização é efeito do ato ilícito.

No mesmo sentido, Flávio César de Toledo Pinheiro (2002):

A leitura do art. 186. do novo CC, que deverá entrar em vigor em janeiro de 2003, sugere uma nova definição de ato ilícito, que se afasta do racional, do natural e conduz ao absurdo de considerar ato ilícito somente a violação de direito que cause dano. Jamais a doutrina brasileira condicionou a violação de direito à existência de dano ou prejuízo.

Em que pesem as críticas ao dispositivo, a jurisprudência é pacífica no sentido de que não basta o ato ilícito. Deve decorrer um dano, seja de ordem material ou moral. Inexistindo o liame de causalidade não há que se falar na obrigação de indenizar.

Como visto, duas são as modalidade de responsabilidade civil adotadas pelo Código Civil de 2002: responsabilidade civil objetiva e responsabilidade civil subjetiva.

Em geral, o Código Civil de 2002 adota a teoria da responsabilidade civil subjetiva, fundada na teoria da culpa. Em assim sendo, a fim de que haja o dever de indenizar, necessária se faz a existência do dano, do nexo de causalidade entre o fato e o dano e a culpa lato sensu (culpa ou dolo) do agente.

Ou seja, a partir do momento em que alguém, mediante conduta culposa, viola direito de outrem e causa-lhe dano, está-se diante de um ato ilícito, do qual exsurge o dever de indenizar.

Subsidiariamente, há casos em que a responsabilidade civil será objetiva, independentemente de dolo ou culpa. É o que prevê o parágrafo único do art. 927. do Código Civil: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

Mais uma vez, os ensinamentos de Maria Helena Diniz (2008, p. 50):

O dever ressarcitório, estabelecido por lei, ocorre sempre que se positivar a autoria de um fato lesivo, sem necessidade de se indagar se contrariou ou não norma predeterminada, ou melhor, se houve ou não um erro de conduta. Com a apuração do dano, o ofensor ou seu proponente deverá indenizá-lo.

Ainda nesse sentido, a Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado perante terceiros que sofreram danos decorrentes de ação ou omissão estatal. É o que diz o art. 37, parágrafo 6º da Constituição Federal:

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Trata-se da teoria do risco administrativo, que estabelece a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviços públicos, por ato de seus agentes.

Assim, provados o fato, o dano e o nexo causal, surge o dever de reparar os danos pelo Estado, em face da responsabilidade objetiva.

Esclareça-se, por oportuno, que se adotou apenas a teoria do risco moderado ou mitigado e não do risco integral, que não admite qualquer causa de exclusão da responsabilidade.

2.3. Da Responsabilidade Civil no Direito de Família

A responsabilidade civil no direito de família é questão polêmica e controvertida. Isso porque, não se sabe ao certo até que ponto o Poder Público deve interferir nas relações familiares, nas relações de afeto, na vida íntima das pessoas.

Como vimos, com o advento do novo modelo de família, novos questionamentos surgiram, dentre os quais a questão da responsabilidade civil no direito de família.

A polêmica é grande e as correntes de pensamento são conflitantes.

A doutrina majoritária é no sentido de que ninguém pode ser considerado culpado por deixar de amar. Descabido impor obrigação de caráter indenizatório pelo fim do afeto.

Conforme Moacir César Pena Júnior (2008, p.27), não deve haver indenização pecuniária pelo fim de uma relação de afeto, vez que o amor não tem preço.

Em sentido contrário, Maria Berenice Dias (2009, p. 115):

Há uma acentuada tendência de ampliar o instituto da responsabilidade civil. O eixo desloca-se do elemento do fato ilícito para, cada vez mais, preocupar-se com a reparação do dano injusto. O desdobramento dos direitos de personalidade faz aumentar as hipóteses de ofensa a tais direitos, ampliando-se as oportunidades para o reconhecimento da existência de danos. A busca de indenização por dano moral transformou-se na panaceia para todos os males. Visualiza-se abalo moral diante de qualquer fato que possa gerar algum desconforto, aflição, apreensão ou dissabor. Claro que essa tendência acabou se alastrando até as relações familiares. A tentativa é migrar a responsabilidade decorrente da manifestação de vontade para o âmbito dos vínculos afetivos, olvidando-se que o direito das famílias é o único campo do direito privado cujo objeto não é a vontade, é o afeto. Como diz João Baptista Villela, o amor está para o direito de família assim como o acordo de vontades está para o direito dos contratos. Sobe esses fundamentos se está querendo transformar a desilusão pelo fim dos vínculos afetivos em obrigação indenizatória.

Vê-se, pois, que não há consenso quanto à questão da responsabilidade civil no direito de família. A questão será tratada com mais vagar adiante, em capítulo à parte.


3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

3.1. Considerações Gerais

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, dispõe que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Trata-se da proteção integral à criança e ao adolescente, a doutrina acolhida pelo nosso ordenamento jurídico, conforme se verifica no art. 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A doutrina da proteção integral absorve os valores insculpidos na Convenção dos Direitos da Criança. Em assim sendo, crianças e adolescentes passam a ser titulares de direitos fundamentais, como qualquer ser humano. Substituiu-se o Direito do Menor pelo Direito da Criança e do Adolescente.

No dizer de Andréa Rodrigues Amin (2008, p. 14):

A conjuntura político-social vivida nos anos 80 de resgate da democracia e busca desenfreada por direitos humanos, acrescida da pressão de organismos sociais nacionais e internacionais levaram o legislador constituinte a promulgar a “Constituição Cidadã” e nela foi assegurado com absoluta prioridade às crianças e adolescentes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Paulo Afonso Garrido de Paula (p. 31) indica que a locução “proteção integral” é autoexplicativa, indicando-a como “finalidade política do Direito da Criança e do Adolescente e que ela faz parte de sua própria essência. Os princípios da ‘prioridade absoluta’ e ‘respeito à condição peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento’ fazem do Direito da Criança e do Adolescente um ramo do direito cuja disciplina inspira a proteção integral da infância e adolescência”.

A doutrina baseia-se na concepção de que criança e adolescente são sujeitos de direitos universalmente reconhecidos, não apenas de direitos comuns aos adultos, mas, além desses, de direitos especiais provenientes de sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento que devem ser assegurados pela família, Estado e sociedade.

Seguindo esse entendimento, o Código Civil de 2002, em seu art. 1.634, I e II, que diz que compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, dirigir-lhes a criação e educação, e tê-los em sua companhia e guarda.

Tratando-se de pais separados, fica limitado o direito de um deles de ter os filhos em sua companhia, sendo assegurado ao outro o direito de visitas.

Ocorre que, atualmente, no propósito dos interesses prioritários dos filhos, parte da doutrina tem se posicionado no sentido de que o direito de visitas é um direito/dever dos pais.

Conforme Rolf Madaleno (2009, p. 354), trata-se de um direito dos filhos manterem rotineira comunicação com ambos os pais, a fim de favorecer as relações humanas e de estimular a corrente de afeto entre o titular e o menor.

De acordo com Maria Berenice Dias (2009, p. 415):

A Constituição (CF 227) e o ECA acolheram a doutrina da proteção integral. Modo expresso crianças e adolescentes foram colocados a salvo de toda forma de negligência. Transformaram-se em sujeitos de direito e foram contemplados com enorme número de garantias e prerrogativas. Mas direitos de uns significam obrigações de outros. Por isso a Constituição enumera quem são os responsáveis a dar efetividade a esse leque de garantias: a família, a sociedade e o Estado.

O ECA, ao regulamentar a norma constitucional, identifica, entre os direitos fundamentais dos menores, seu desenvolvimento sadio e harmonioso (ECA 7º). Igualmente lhes garante o direito a serem criados e educados no seio de sua família (ECA 19). O conceito atual da família, centrada no afeto como elemento agregador, exige dos pais o dever de criar e educar os filhos sem lhes omitir o carinho necessário para a formação plena de sua personalidade, como atribuição do exercício do poder familiar. A grande evolução das ciências que estudam o psiquismo humano veio a escancarar a decisiva influência do contexto familiar para o desenvolvimento sadio de pessoas em formação.

Não se podendo mais ignorar essa realidade, passou-se a falar em paternidade responsável. Assim, a convivência dos filhos com os pais não é direito, é dever. Não é direito de visitá-lo, é obrigação de visitá-lo. O distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de ordem emocional e reflexos no seu sadio desenvolvimento. O sentimento de dor e abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida.

Trata-se, pois, de um múnus do poder familiar, complexo de direitos e deveres pessoais e patrimoniais com relação ao filho menor, não emancipado, e que deve ser exercido no melhor interesse deste último.

E não poderia ser diferente, vez que somente o equilíbrio e a harmonia dos papéis dos genitores trazem ao filho de pais separados um desenvolvimento físico e mental adequado.

Assim é que o abandono afetivo tem merecido cada vez mais atenção por parte dos operadores do direito. A necessidade afetiva passou a ser reconhecida como bem juridicamente tutelado.

3.2. Doutrina e Jurisprudência acerca do tema

A questão da responsabilidade civil em decorrência do abandono afetivo é polêmica não somente na doutrina como também na jurisprudência.

No que diz respeito ao abandono afetivo paterno-filial, objeto do presente estudo, a doutrina majoritária vem se posicionando de maneira negativa, aduzindo, para tanto, falta de previsão legal no nosso ordenamento jurídico para este tipo de conduta. A única obrigação do pai ou da mãe é o sustento, guarda e educação dos filhos.

De acordo com essa corrente doutrinária, não pode a lei obrigar o responsável a sentir afeto pelos filhos; tal laço é componente que advém do espírito, do psíquico humano, não podendo a lei determinar a sua criação ou extinção.

Nesse sentido os seguintes julgados:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - ABANDONO AFETIVO - ATO ILÍCITO - INEXISTÊNCIA - DEVER DE INDENIZAR - AUSÊNCIA. A omissão do pai quanto à assistência afetiva pretendida pelo filho não se reveste de ato ilícito por absoluta falta de previsão legal, porquanto ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor. Inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 186. do Código Civil, eis que ausente o ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como passível de indenização.

(TJMG - Ap. Cível nº 1.0024.07.790961-2/001, Rel. Des. Alvimar de Ávila, DJ 11/02/2009).

APELAÇÃO CÍVEL. ALIMENTOS E INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO. OBRIGAÇÃO AVOENGA. CARÁTER EXCEPCIONAL E SUBSIDIÁRIO. AUSÊNCIA DE PROVA DA IMPOSSIBILIDADE DOS GENITORES. A obrigação alimentar dos avós só tem cabimento quando esgotadas as possibilidades de prestação alimentar pelos pais. No caso, diante da ausência de tal prova, deve ser reformada a decisão recorrida. REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS DECORRENTES DE ABANDONO. INOCORRÊNCIA. Sendo subjetiva a responsabilidade civil no Direito de Família, o dever de indenizar pressupõe o ato ilícito. Ausente a prova do ato ilícito e, mais do que isso, comprovado nos autos que o recorrente contou com a figura de pai, que inclusive contribuiu financeiramente com a criação do filho, sequer há indícios de dano moral efetivo. Portanto, deve ser confirmada a sentença de improcedência. DERAM PROVIMENTO AO APELO DO RÉU E NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DO AUTOR.

(Apelação Cível Nº 70030142285, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em 30/07/2009)

ALIMENTOS. FILHO MAIOR E CAPAZ. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ABALO EMOCIONAL PELA AUSÊNCIA DO PAI. 1. Sendo o filho maior, capaz, apto ao trabalho e com receita própria, com plenas condições de prover seu próprio sustento, descabe impor ao genitor encargo alimentar ou mesmo a obrigação de custear-lhe os estudos ou visando, ainda, o pagamento de prestações pretéritas da sua faculdade. 2. O pedido de reparação por dano moral no Direito de Família exige a apuração criteriosa dos fatos e o mero distanciamento afetivo entre pais e filhos não constitui situação capaz de gerar dano moral, nem implica ofensa ao (já vulgarizado) princípio da dignidade da pessoa humana, sendo mero fato da vida. 3. Embora se viva num mundo materialista, nem tudo pode ser resolvido pela solução simplista da indenização, pois afeto não tem preço, e valor econômico nenhum poderá restituir o valor de um abraço, de um beijo, enfim de um vínculo amoroso saudável entre pai e filho, sendo essa perda experimentada tanto por um quanto pelo outro. Recurso desprovido. (SEGREDO DE JUSTIÇA)

(Apelação Cível Nº 70032449662, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 26/05/2010)

Em sentido contrário, os defensores da responsabilidade civil por abandono afetivo alegam que a afetividade é um dever imposto aos pais em relação aos filhos, em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, preceito fundamental a partir do qual emanam todas as demais garantias legais e constitucionais (art. 1º, III, do Constituição Federal de 1988).

De acordo com Paulo Lôbo (2008, p. 284):

O artigo 226 da Constituição não se resume ao cumprimento do dever de assistência material. Abrange também a assistência moral, que é dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória.

Para Maria Berenice Dias (2009, p. 416), a falta de convivência entre pais e filhos, em face do rompimento do elo de afetividade, pode vir a causar severas sequelas psicológicas e comprometer seu desenvolvimento saudável. A figura paterna é responsável pela ruptura da intimidade mãe-filho e pela introdução do filho no mundo transpessoal, dos irmãos, dos parentes e da sociedade, um mundo onde imperam ordem, disciplina, autoridade e limites, de modo que a ausência da figura do pai desestrutura os filhos, tira-lhes o rumo da vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida.

Como não poderia deixar de ser, a lei obriga e responsabiliza os pais no tocante aos cuidados com os filhos. Ausentes esses cuidados, resta configurado o abandono moral, violando a integridade psicofísica dos filhos, bem como o princípio da solidariedade familiar, valores protegidos pela Constituição Federal de 1988. Esse tipo de violação configura dano moral. E, como se sabe, quem causa dano é obrigado a indenizar.

Nessa esteira, a jurisprudência a seguir:

ECA. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. DESCUMPRIMENTO DO DEVER INERENTE AO PODER FAMILIAR. ADOLESCENTE QUE PRETENDE APROXIMAÇÃO COM O PAI. ABANDONO AFETIVO POR PARTE DO GENITOR. INFRAÇÃO AO ART. 249. DO ECA CARACTERIZADA. CONDENAÇÃO QUE SE PÕE COMO DEVIDA. MULTA NO MÁXIMO COMINADA. REDUÇÃO, PORÉM, QUE SE RECOMENDA PARA O MÍNIMO LEGAL. VALORAÇÃO DAS DIRETRIZES BALIZADORAS. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.

(Apelação Cível Nº 70037322781, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Ari Azambuja Ramos, Julgado em 12/08/2010)

A respeito do tema, merece destaque a Apelação Cível n° 20000.00.408550-5, proveniente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a primeira a chegar ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça.

In casu, sustentou o autor que desde o divórcio de seus pais, seu pai deixou de lhe prestar assistência psíquica e moral, evitando-lhe o contato, além de ignoradas todas as tentativas de aproximação do pai, quer por seu não comparecimento em ocasiões importantes, quer por sua atitude displicente, situação causadora de extremo sofrimento e humilhação.

Em primeira instância, o Juiz de Direito da 19ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, Minas Gerais, julgou improcedente o pedido inicial, salientando:

Não obstante a relutância paterna em empreender visitações ao filho afete-lhe negativamente o estado anímico, tal circunstância não se afigura suficientemente penosa, a ponto de comprometer-lhe o desempenho de atividades curriculares e profissionais, estando o autor plenamente adaptado à companhia da mãe e de sua bisavó.

Inconformado, o autor interpôs apelação. A Sétima Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais deu provimento ao recurso para condenar o recorrente ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 44.000,00 (quarenta e quatro mil reais), entendendo configurado nos autos o dano sofrido pelo autor em sua dignidade, bem como a conduta ilícita do genitor, ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio com o filho e com ele formar laços de paternidade.

Eis a ementa do acórdão referido acima:

INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.

No entanto, o Superior Tribunal de Justiça entendeu de modo diverso. Para o STJ, escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo. Em assim sendo, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de indenização.

Ressalte-se, por oportuno, o voto vencido do Ministro Barros Monteiro, segundo o qual o genitor, ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e afeto com o filho, deixando assim de preservar os laços da paternidade, está incorrendo em conduta ilícita, que tem o dever de dar assistência moral ao filho, de conviver com ele, de acompanhá-lo e de dar-lhe o necessário afeto, considerando, pois, ser devida a indenização por dano moral, evidenciado com o sofrimento, com a dor, com o abalo psíquico sofrido pelo autor.

Ademais, não há que se falar no princípio da liberdade, a fim de justificar a conduta omissiva do pai em relação ao seu filho. Isso porque, em havendo colisão de princípios, deve-se resolver o conflito por meio da ponderação de interesses. E, como não poderia deixar de ser, o princípio da dignidade da pessoa humana, por sua essência e valor, se sobrepõe a todos os demais.

Nesse sentido, Daniel Sarmento (A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 76):

A dignidade da pessoa humana afirma-se como o principal critério substantivo na direção da ponderação de interesses. Nenhuma ponderação pode implicar em amesquinhamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que o homem não é apenas um dos interesses que a ordem constitucional protege, mas a matriz axiológica e o último desta ordem.

Igualmente, não há que se falar em cumprimento das obrigações materiais como forma de esquivar-se da responsabilidade civil, vez que a paternidade não gera apenas deveres de assistência material, existe um dever, a cargo do pai, de ter o filho em sua companhia.

Outrossim, cumpre-nos ressaltar que não se vislumbra o caráter punitivo na indenização por dano moral em decorrência do abandono afetivo. No dizer de Maria Celina Bodin de Moraes (Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 85):

Não se trata, pois, de condenar um pai que abandonou seu filho (eventual dano causado), mas de ressarcir o dano sofrido pelo filho quando, abandonado pelo genitor biológico, não pôde contar nem com seu pai biológico, nem com qualquer figura substituta.

Em verdade, a indenização conferida nesse contexto atende duas relevantes funções, além da compensatória: a punitiva e a dissuasória.

Nesse sentido, a lição de Cláudia Maria da Silva (Descumprimento do Dever de Convivência Familiar e Indenização por Danos á Personalidade do Filho, in Revista Brasileira de Direito de Família, Ano VI, n° 25 – Ago-Set 2004):

Não se trata, pois, de “dar preço ao amor” – como defendem os que resistem ao tema em foco - , tampouco de “compensar a dor” propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave.

Assim é que, em que pese não se poder obrigar ninguém ao cumprimento do dever de afeto, seu titular pode sofrer as consequências do abandono afetivo, podendo vir a ser responsabilizado civilmente por sua omissão.


CONCLUSÃO

No decorrer do presente trabalho, analisou-se a evolução do conceito de família, a qual deixou de ser um centro político, econômico, religioso e de procriação, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que envolve seus integrantes.

Viu-se, pois, a importância do afeto nas relações familiares, condição “sine qua non” para o sadio desenvolvimento do ser humano, vez que o homem é um ser social por natureza, e é por meio do afeto que ele se sente querido, se sente importante para os que o rodeiam.

Indubitavelmente, a falta de afeto por parte dos pais para com os filhos, ainda mais em se tratando de pessoas na mais tenra idade, frágeis como são, geram problemas de ordem psicológica, os quais podem nunca vir a ser sanados.

Eis a importância do afeto para com o desenvolvimento do ser humano. Não à toa, a ausência deste fere de morte o princípio da dignidade da pessoa humana, vez que, sem afeto, a criança se sente indesejada, rejeitada, não amada por seu pai.

E é o princípio da dignidade da pessoa humana o mais importante dos princípios, ao qual todos os outros estão vinculados.

Em assim sendo, data vênia, ouso discordar do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o qual encontra-se em desacordo com os princípios norteadores do direito de família, quais sejam, o princípio da afetividade, o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da solidariedade.

Não pode o pai que priva seu filho de conviver consigo alegar que tem a liberdade de assim proceder, vez que sua liberdade de opção colide frontalmente com o direito do filho de receber afeto, e o afeto é a pedra basilar do direito de família, intrinsecamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana.

É certo que não se pode obrigar uma pessoa a amar a outra, por ser o amor um sentimento. Para que seja genuíno, deve partir por livre iniciativa do pai. No entanto, uma vez gerada a criança, não pode o pai ausentar-se de proporcionar-lhe todos os meios possíveis para que cresça de forma saudável, sentindo-se querida e amada.

A indenização por abandono afetivo busca incutir nos pais a importância do afeto para a boa formação de seus filhos. Daí porque se faz tão importante o presente estudo.

No caso em tela, é inegável que houve o dano moral, vez que houve a violação de aspectos que compõem a dignidade da pessoa humana, quais sejam, o direito à paternidade, ao amor, ao convívio familiar. Trata-se de caso claro de responsabilidade civil subjetiva, em face da negligência do pai para com o filho.

Por todo o exposto, conclui-se que é cabível, sim, a indenização por danos morais decorrente de abandono afetivo, por ser o afeto um dos direitos da personalidade do qual todos os seres humanos gozam, sendo, pois, indispensável para o desenvolvimento sadio do ser humano, ainda mais em se tratando de crianças, ainda em estágio de desenvolvimento.


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SILVA, Thomas de Carvalho. Da responsabilidade civil por abandono afetivo, à luz do ordenamento jurídico pátrio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3830, 26 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26239. Acesso em: 26 abr. 2024.