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A repersonalização das relações de família

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10/05/2004 às 00:00
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A família patriarcal, ao longo do século XX, entrou em crise, culminando com sua derrocada pela Constituição de 1988. Como a crise é sempre perda de fundamentos, a família atual está matrizada em um fundamento que explica sua função atual: a afetividade.

SUMÁRIO: Nota preliminar; 1. Introdução; 2. Função atual da família. Sua evolução; 3. O lugar da família no Estado social; 4/ Limites recíprocos da família e do Estado. 5. A família constitucionalizada; 6. A prevalência dos interesses patrimoniais na legislação brasileira das relações de família; 7. A família atual a partir do censo demográfico de 2000; 8. A repersonalização; 9. Conclusão.


Nota preliminar

Este trabalho foi publicado, pela primeira vez, como capítulo de obra coletiva intitulada O direito de família e a Constituição de 1988, publicada em 1989 (São Paulo: Saraiva), sob a coordenação de Carlos Alberto BITTAR. Por certo, ao menos após a Constituição de 1988, foi o primeiro trabalho a lançar à discussão dos civilistas brasileiros o termo e a idéia de repersonalização das relações civis no âmbito do direito de família, cujos paradigmas foram profundamente alterados pela nova Constituição, que refletiu a força das transformações sociais do fim do século XX. Talvez por esse fato cronológico tenha contado com tantas e honrosas citações dos especialistas.

Nesses quinze anos, o tema do trabalho foi objeto de estudos aprofundados, sob vários ângulos e denominações, seja sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, seja como objeto de estudos da constitucionalização do direito civil, seja como parte das investigações variadas acerca da natureza socioafetiva da família. Destaquem-se as pesquisas realizadas ou orientadas em nível de pós-graduação pelos eminentes civilistas Luiz Edson FACHIN, na UFPR, e Gustavo TEPEDINO, na UERJ, com tantas publicações de escol. A partir de 1997, o direito de família foi enriquecido e renovado com a criação do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM - sob a liderança de Rodrigo Da Cunha PEREIRA e Maria Berenice DIAS - que patrocinou a publicação de obras e da Revista Brasileira de Direito de Família, reunindo especialistas de todo o país, cujos estudos têm privilegiado a pessoa humana como núcleo da aplicação do direito, para além do individualismo liberal e proprietário. São tantos os ilustres autores que sua nominação corre o risco de imperdoável omissão.

Essa produção jurídica rica e variada sobre o tema, após 1989, desaconselharia a atualização do trabalho, que permaneceria situado no tempo de sua elaboração. Fi-lo, todavia, convencido por caros amigos de que a obra originária estava esgotada e suas idéias mereciam ser conhecidas de público mais amplo. Na versão original, tinha utilizado os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE) de 1986 e reflexões críticas sobre os fundamentos do Código de 1916. Na versão a seguir, são apropriados os dados do censo demográfico de 2000 e analisada a pertinência do Código Civil de 2002 com as transformações das relações de família no final do século XX. No mais, manteve-se o texto original.


1. Introdução

A família sofreu, nas últimas décadas, profundas mudanças de função, natureza, composição e, conseqüentemente, de concepção, sobretudo após o advento do Estado social.

O Estado legislador passou a se interessar de forma clara pelas relações de família, em suas variáveis manifestações sociais. Daí a progressiva tutela constitucional, ampliando o âmbito dos interesses protegidos, definindo modelos, nem sempre acompanhados pela rápida evolução social, a qual engendra novos valores e tendências que se concretizam a despeito da lei.

A família atual parte de princípios básicos, de conteúdo mutante segundo as vicissitudes históricas, culturais e políticas: a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a afetividade. Sem eles, é impossível compreendê-la.

A família patriarcal, que nossa legislação civil tomou como modelo, ao longo do século XX, entrou em crise, culminando com sua derrocada, no plano jurídico, pelos valores introduzidos na Constituição de 1988.

Como a crise é sempre perda de fundamentos, a família atual está matrizada em um fundamento que explica sua função atual: a afetividade. Assim enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida não hierarquizada.

Fundada em bases aparentemente tão frágeis, a família atual passou a ter a proteção do Estado, constituindo essa proteção um direito subjetivo público, oponível ao próprio Estado e à sociedade. A proteção do Estado à família é, hoje, princípio universalmente aceito e adotado nas Constituições da maioria dos países, independentemente do sistema político ou ideológico. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, assegura às pessoas humanas o "direito de fundar uma família", estabelecendo o art. 16.3:

A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

Desse dispositivo defluem conclusões evidentes: a) família não é só aquela constituída pelo casamento, tendo direito todas as demais entidades familiares socialmente constituídas [1]; b) a família não é célula do Estado (domínio da política), mas da sociedade civil, não podendo o Estado tratá-la como parte sua; a família é concebida como espaço de realização da dignidade das pessoas humanas.

Direitos novos surgiram e estão a surgir, não só aqueles exercidos pela família, como conjunto, mas por seus membros, entre si ou em face do Estado, da sociedade e das demais pessoas, em todas as situações em que a Constituição e a legislação infraconstitucional tratam a família, direta ou indiretamente, como peculiar sujeito de direitos (ou deveres).

A família, ao converter-se em espaço de realização da afetividade humana e da dignidade cada um de seus membros, marca o deslocamento da função econômica-política-religiosa-procracional para essa nova função. Essas linhas de tendência enquadram-se no fenômeno jurídico-social denominado repersonalização das relações civis, que valoriza o interesse da pessoa humana mais do que suas relações patrimoniais. O anacronismo da legislação sobre família revelou-se em plenitude com o despontar dos novos paradigmas das entidades familiares. O advento do Código Civil de 2002 não pôs cobro ao descompasso da legislação, pois várias de suas normas estão fundadas nos paradigmas passados e em desarmonia com os princípios constitucionais referidos.


2. Função atual da família. Sua evolução

Sempre se atribuiu à família, ao longo da história, funções variadas, de acordo com a evolução que sofreu, a saber, religiosa, política, econômica e procracional. Sua estrutura era patriarcal, legitimando o exercício dos poderes masculinos sobre a mulher - poder marital - e sobre os filhos - pátrio poder. As funções religiosa e política praticamente não deixaram traços na família atual, mantendo apenas interesse histórico [2], na medida em que a rígida estrutura hierárquica era substituída pela coordenação e comunhão de interesses e de vida.

A família atual busca sua identificação na solidariedade (art. 3º, I, da Constituição), como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo triunfante dos dois últimos séculos, ainda que não retome o papel predominante que exerceu no mundo antigo. Na expressão de um conhecido autor do século XIX: "Pode-se expressar o contraste de uma maneira mais clara dizendo que a unidade da antiga sociedade era a família como a da sociedade moderna é o indivíduo". [3]

Por seu turno, a função econômica perdeu o sentido, pois a família – para o que era necessário o maior número de membros, principalmente filhos - não é mais unidade produtiva nem seguro contra a velhice, cuja atribuição foi transferida para a previdência social. Contribuiu para a perda dessa função as progressivas emancipações econômica, social e jurídica femininas [4] e a drástica redução do número médio de filhos das entidades familiares. Ao final do Século XX, o censo do IBGE indicava a média de 3,5 membros por família, no Brasil.

A função procracional, fortemente influenciada pela tradição religiosa, também foi desmentida pelo grande número de casais sem filhos, por livre escolha, ou em razão da primazia da vida profissional, ou em razão de infertilidade, ou pela nova união da mulher madura. O direito contempla essas uniões familiares, para as quais a procriação não é essencial. O favorecimento constitucional da adoção fortalece a natureza socioafetiva da família, para a qual a procriação não é imprescindível. Nessa direção encaminha-se a crescente aceitação da natureza familiar das uniões homossexuais.

As milhares de sugestões populares e de entidades voltadas à problemática da família, recolhidas pela Assembléia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição de 1988, voltaram-se muito mais para os aspectos pessoais do que para os patrimoniais das relações de família, refletindo as transformações por que passa. Das 5.517 sugestões recebidas, destacam-se os temas relativos a: fortalecimento da família como união de afetos, igualdade entre homem e mulher, guarda de filhos, proteção da privacidade da família, proteção estatal das famílias carentes, aborto, controle de natalidade, paternidade responsável, liberdade quanto ao controle de natalidade, integridade física e moral dos membros da família, vida comunitária, regime legal das uniões estáveis, igualdade dos filhos de qualquer origem, responsabilidade social e moral pelos menores abandonados, facilidade legal para adoção. [5]


3. O lugar da família no Estado social

O Estado liberal, hegemônico no século XIX no mundo ocidental, caracterizava-se pela limitação do poder político e pela não intervenção nas relações privadas e no poder econômico. Concretizou o ideário iluminista da liberdade e igualdade dos indivíduos. Todavia, a liberdade era voltada à aquisição, domínio e transmissão da propriedade e a igualdade ateve-se ao aspecto formal, ou seja, da igualdade de sujeitos de direito abstraídos de suas condições materiais ou existenciais. Mas a família, nas grandes codificações liberais, permaneceu no obscurantismo pré-iluminista, não se lhe aplicando os princípios da liberdade ou da igualdade, porque, para a ideologia liberal burguesa, ela era concebida como unidade de sustentação do status quo, desconsiderando as pessoas humanas que a integravam.

O exemplo paradigmático foi o Código Civil francês de 1804. No direito de família a igualdade era reduzida aos pais de família proprietários entre si, suficiente para a paix bourgeoise. A família, tida como unidade política e econômica, comandada por um chefe patriarcal, era uma "pequena pátria", segundo a imagem e ao serviço da grande pátria. Marcadamente anti-feminista, o Code via com suspeição o divórcio, a adoção, o filho natural – considerado verdadeiro paria – pois significavam ameaças à ordem social assim estabelecida [6].

O Estado social desenvolveu-se ao longo do século XX, caracterizando-se pela intervenção nas relações privadas e no controle dos poderes econômicos, tendo por fito a proteção dos mais fracos. Sua nota dominante é a solidariedade social ou a promoção da justiça social. O intervencionismo também alcança a família, com o intuito de redução do quantum despótico dos poderes domésticos, da inclusão e equalização de seus membros, e na compreensão de seu espaço para a promoção da dignidade humana. No Brasil, desde a primeira Constituição social, em 1934, até à Constituição de 1988, a família é destinatária de normas crescentemente tutelares, que assegurem a liberdade e a igualdade materiais, inserindo-a no projeto da modernidade.

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É tão notável a influência do Estado na família que se cogitou da substituição da autoridade paterna pela estatal. O Estado social assumiria, também a função de pai. [7] Há um certo exagero nessa perspectiva. O sentido de intervenção que o Estado assumiu foi antes de proteção do espaço familiar, de sua garantia, mais do que sua substituição. Até porque a afetividade não é subsumível à impessoalidade da res publica.


4. Limites recíprocos da família e do Estado

A Constituição de 1988 proclama que a família é a base da sociedade. Aí reside a principal limitação ao Estado. A família não pode ser impunemente violada pelo Estado, porque seria atingida a base da sociedade a que serve o próprio Estado.

Há situações, entretanto, que são subtraídas da decisão exclusiva da família, quando entra em jogo o interesse social ou público. Nesses casos, o aumento das funções do Estado é imprescindível. Como exemplos, têm-se:

a)é social a obra de higiene, de profilaxia, de educação, de preparação profissional, militar e cívica;

b)é de interesse social que as crianças sejam alfabetizadas e tenha educação básica, obrigatoriamente;

c)é de interesse público a política populacional do Estado, cabendo a este estimular a prole mais ou menos numerosa. O planejamento familiar é livre, pela Constituição, mas o Estado não está impedido de realizar um planejamento global;

d)é de interesse social que se vede aos pais a fixação do sexo dos filhos, mediante manipulação genética;

e)é de interesse social que se assegure a ajuda recíproca entre pais e filhos e idosos e que o abandono familiar seja punido;

f)é de interesse público que seja eliminada a repressão e a violência dentro da família.


5. A família constitucionalizada

As constituições modernas, quando trataram da família, partiram sempre do modelo preferencial da entidade matrimonializada. Não é comum a tutela explícita das demais entidades familiares. Sem embargo, a legislação infraconstitucional de vários países ocidentais têm avançado, desde as duas últimas décadas do século XX, no sentido de atribuir efeitos jurídicos próprios de direito de família às demais entidades socioafetivas, incluindo as uniões homossexuais. A Constituição brasileira inovou, reconhecendo não apenas a entidade matrimonializada mas outras duas explicitamente, além de permitir a interpretação extensiva, de modo a incluir as demais entidades implícitas. [8]

As constituições brasileiras reproduzem as fases históricas que o país viveu, em relação à família, no trânsito do Estado liberal para o Estado social. As constituições de 1824 e 1891 são marcadamente liberais e individualistas, não tutelando as relações familiares. Na Constituição de 1891 há um único dispositivo (art. 72, § 4º) com o seguinte enunciado: "A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita". Compreende-se a exclusividade do casamento civil, pois os republicanos desejavam concretizar a política de secularização da vida privada, mantida sob controle da igreja oficial e do direito canônico durante a colônia e o Império.

Em contrapartida, as constituições do Estado social brasileiro (de 1934 a 1988) democrático ou autoritário destinaram à família normas explícitas. A Constituição democrática de 1934 dedica todo um capítulo à família, aparecendo pela primeira vez a referência expressa à proteção especial do Estado, que será repetida nas constituições subseqüentes. Na Constituição autoritária de 1937 a educação surge como dever dos pais, os filhos naturais são equiparados aos legítimos e o Estado assume a tutela das crianças em caso de abandono pelos pais. A Constituição democrática de 1946 estimula a prole numerosa e assegura assistência à maternidade, à infância e à adolescência.

A Constituição de 1988 expande a proteção do Estado à família, promovendo a mais profunda transformação que se tem notícia, entre as Constituições mais recentes de outros países. Alguns aspectos merecem ser salientados:

a)a proteção do Estado alcança qualquer entidade familiar, sem restrições, explicita ou implicitamente tutelada pela Constituição;

b)a família, entendida como entidade, assume claramente a posição de sujeito de direitos e obrigações;

c)os interesses das pessoas humanas, integrantes da família, recebem primazia sobre os interesses patrimonializantes;

d)a natureza socioafetiva da filiação prevalece sobre a origem exclusivamente biológica;

e)consuma-se a igualdade entre os gêneros e entre os filhos;

f)reafirma-se a liberdade de constituir, manter e extinguir entidade familiar e a liberdade de planejamento familiar, sem imposição estatal;

g)a família configura-se no espaço de realização pessoal e da dignidade humana de seus membros.

Caio Mário da Silva PEREIRA adverte para o novo sistema de interpretação do direito de família, em que "destacam-se os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, os quais se impõem aos interesses particulares, prevalecendo a constitucionalização do direito civil", muito mais exigente com o advento do Código Civil de 2002. Segundo o autor,

Ao mesmo tempo que os direitos fundamentais passaram a ser dotados do mesmo sentido nas relações públicas e privadas, os princípios constitucionais sobrepuseram-se à posição anteriormente adotada pelos Princípios Gerais do Direito". [9]


6. A prevalência dos interesses patrimoniais na legislação brasileira das relações de família

Os autores sempre afirmaram que o direito de família disciplina direitos de três ordens, a saber, pessoais, patrimoniais e assistenciais, ou, ainda, matrimoniais, parentais e protectivos. Sempre se afirmou, igualmente, que esses direitos e situações são plasmados em relações de caráter eminentemente pessoais, não sendo os interesses patrimoniais predominantes. Seria o direito de família o mais pessoal dos direitos civis. As normas de direito das coisas e de direitos das obrigações não seriam subsidiárias do direito de família.

Entretanto, os códigos civis da maioria dos povos ocidentais desmentem essa recorrente afirmação. Editados sob inspiração do individualismo liberal, alçaram a propriedade e os interesses patrimoniais a pressuposto nuclear de todos os direitos privados, inclusive o direito de família. Segundo PORTALIS, um dos autores dos trabalhos preparatórios do Código Civil francês de 1804, "o corpo inteiro do Código Civil é consagrado a definir tudo aquilo que possa assegurar o direito de propriedade; direito fundamental sob o qual todas as instituições sociais repousam". [10] O que as codificações liberais sistematizaram já se encontrava na raiz histórica do próprio conceito de família. Lembra PONTES DE MIRANDA [11] que a palavra família, aplicada aos indivíduos, empregava-se no direito romano em acepções diversas. Era também usada em relação às coisas, para designar o conjunto do patrimônio, ou a totalidade dos escravos pertencentes a um senhor.

ENGELS [12] esclarece que a palavra família não pode mesmo ser aplicada, em princípio, aos próprios romanos, ao casal e aos filhos, mas somente aos escravos. Famulus quer dizer escravo e família era o conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem. Ainda no tempo de Caio, a família id est patrimonium (quer dizer, parte da herança) era transmitida testamentariamente. Segundo esse autor, a expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social cujo chefe tinha sob suas ordens a mulher, os filhos e um certo número de escravos, submetidos ao poder paterno romano, com direito de vida e morte sobre todos eles. Essa família seria baseada no domínio do homem, com expressa finalidade de procriar filhos de paternidade inconstestável, inclusive para fins de sucessão. Foi a primeira forma de família fundada sobre condições não naturais, mas econômicas, resultando no triunfo da propriedade individual sobre a compropriedade espontânea primitiva.

É na origem e evolução histórica da família patriarcal e no predomínio da concepção do homem livre proprietário que foram assentadas as bases da legislação sobre a família, inclusive no Brasil. No Código Civil de 1916, dos 290 artigos da parte destinada ao direito de família, 151 tratavam de relações patrimoniais e 139 de relações pessoais. A partir da década de setenta do século XX essas bases começaram a ser abaladas com o advento de nova legislação emancipadora das relações familiares, que desmontaram as estruturas centenárias ou milenares do patriarcalismo.

No que se refere à filiação, a assimetria do tratamento legal aos filhos, em razão da origem e do pesado discrime causado pelo princípio da legitimidade, não era inspirada na proteção da família, mas na proteção do patrimônio familiar. A caminhada progressiva da legislação rumo à completa equalização do filho dito ilegítimo foi delimitada ou contida pelos interesses patrimoniais em jogo, sendo obtida a conta-gotas: primeiro, o direito a alimentos, depois, a participação em ¼ da herança, mais adiante, a participação em 50% da herança.

O Código Civil de 2002, apesar da apregoada mudança de paradigma, do individualismo para a solidariedade social, manteve forte presença dos interesses patrimoniais sobre os pessoais, em variados institutos do Livro IV, dedicado ao direito de família, desprezando-se o móvel da affectio, inclusive no Título I destinado ao "direito pessoal". Assim, as causas suspensivas do casamento, referidas no art. 1.523, são quase todas voltadas aos interesses patrimoniais (principalmente, em relação a partilha de bens). Da forma como permanece no Código, a autorização do pai, tutor ou curador para que se casem os que lhe estão sujeitos não se volta à tutela da pessoa, mas ao patrimônio dos que desejam casar; a razão da viúva estar impedida de casar antes de dez meses depois da gravidez não é a proteção da pessoa humana do nascituro, ou a da certeza da paternidade, mas a proteção de seus eventuais direitos sucessórios; o tutor, o curador, o juiz, o escrivão estão impedidos de casar com as pessoas sujeitas a sua autoridade, porque aqueles, segundo a presunção da lei seriam movidos por interesses econômicos. No Capítulo destinado à dissolução da sociedade conjugal e do casamento ressaltam os interesses patrimoniais, sublimados nos processos judiciais, agravados com o fortalecimento do papel da culpa na separação judicial, na contramão da evolução do direito de família. Contrariando a orientação jurisprudencial dominante, o art. 1.575 enuncia que a sentença importa partilha dos bens. A confusa redação dos preceitos relativos à filiação (principalmente a imprescritibilidade prevista no art. 1.601) estimula que a impugnação ou o reconhecimento judicial da paternidade tenham como móvel interesse econômico (principalmente herança), ainda que ao custo da negação da história de vida construída na convivência familiar. Quando cuida dos regimes de bens entre os cônjuges, o Código (art. 1.641) impõe, com natureza de sanção, o regime de separação de bens aos que contraírem casamento com inobservância das causas suspensivas e ao maior de sessenta anos, regra esta de discutível constitucionalidade, pois agressiva da dignidade da pessoa humana, cuja afetividade é desconsiderada em favor de interesses de futuros herdeiros [13]. As normas destinadas à tutela e à curatela estão muito mais voltadas ao patrimônio do que às pessoas dos tutelados e curatelados. Na curatela do pródigo, a proteção patrimonial chega ao paroxismo, pois a prodigalidade é negada e a avareza premiada.

Em termos quantitativos, como vimos, o Código Civil de 1916 destinava a maioria dos artigos relativos ao direito de família aos interesses patrimoniais ou econômicos. Comparativamente, o Código Civil de 2002, de um total de 273 artigos, reserva 112 aos interesses patrimoniais. Assim, ao menos em relação à proporção de artigos voltados predominantemente às pessoas humanas integrantes das relações familiares, o Código de 2002 contemplaria mais a diretriz da repersonalização. Para efeito de análise, destaque-se a exclusão dos 20 artigos que disciplinavam de modo desigual os direitos e deveres do marido e da mulher e a transferência para a Parte Geral dos 18 artigos que tratam da ausência, todos de fundo patrimonializante. Em contrapartida, o bem de família que, no Código de 1916, era disciplinado na Parte Geral em 4 artigos, passou a ser parte do Direito Patrimonial do Livro IV do Código de 2002, com 12 artigos.

Em resumo, a distribuição dos artigos predominantemente patrimonializantes do Livro IV do Código Civil de 2002, assim se apresenta (na ordem do Código) [14]:

a) Casamento: 3 (de 80);

b) Parentesco (incluindo filiação): nenhum (de 48);

c) Regime de bens: 50 (de 50);

d) Usufruto e administração dos bens dos filhos menores: 5 (de 5);

e) Alimentos: 17 (de 17);

f) Bem de família: 12 (de 12);

g) União estável: 1 (de 5);

h) Tutela e curatela: 24 (de 56).

Na perspectiva qualitativa, todavia, o quadro se altera pois muitos dispositivos do Código Civil de 2002, que formalmente tutelam direitos pessoais, mascaram os interesses patrimoniais prevalecentes. Tomem-se quatro exemplos: o casamento, a culpa, a contestação da paternidade e a natureza da filiação: a) o Código mantém a primazia do casamento (dos 273 artigos, 80 são relativos ao casamento), sem referência às demais entidades familiares, em seus múltiplos arranjos, na parte destinada aos direitos pessoais. A organização da família em torno do casamento resulta ainda da concepção individualista liberal da unidade política e econômica de preservação do patrimônio familiar, mas que não corresponde aos princípios de liberdade, igualdade e, acima de tudo, de ampla garantia da dignidade de seus membros; b) a impressionante revalorização do papel da culpa, promovida pelo Código de 2002, desconsidera as tendências doutrinárias, legislativas e de sentimento popular, no Brasil e nos países ocidentais, com forte impacto nas separações judiciais, nos alimentos e nas sucessões. Por trás da imputação da culpa estão os interesses patrimoniais [15]; outro exemplo, não menos impressionante, é o da imprescritibilidade da contestação da paternidade (art. 1.601), cuja interpretação literal conduz à negação do estado de paternidade e de filiação que se tenha constituído na convivência familiar, desestruturando laços afetivos, quando os interesses patrimoniais se fizerem determinantes; d) do mesmo modo, a primazia da origem biológica, estimulada pelo Código de 2002, contrariando o estado de filiação socioafetiva, favorece a prevalência dos interesses patrimoniais, como se estes fossem a finalidade do direito de família. É, portanto, resistente o paradigma patrimonializante individualista-liberal em nossa legislação infraconstitucional, indiferente ao postulado fundamental da dignidade da pessoa humana proclamado na Constituição de 1988.

O censo demográfico relativo à última década do século XX, organizado pelo IBGE, demonstra que a pirâmide da perversa distribuição de renda no Brasil exclui a grande maioria da população da incidência das normas da legislação civil voltadas à tutela do patrimônio [16]. A realidade palpável é a de o Código Civil permanecer impermeável - inclusive no que concerne às relações de família - aos interesses da maioria da população brasileira que não tem acesso às riquezas materiais.

Evidentemente, as relações de família também têm natureza patrimonial. Sempre terão. Todavia, quando os interesses patrimoniais passam a ser determinantes, desnaturam a função da família, como espaço de realização da dignidade da pessoa humana na convivência e na solidariedade afetiva.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. A repersonalização das relações de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 307, 10 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5201. Acesso em: 19 abr. 2024.

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