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O Ministério Público, o Codecon e a inversão do ônus da prova.

O Ministério Público, o Codecon e a inversão do ônus da prova.

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Sumário: 1. Introdução – 2. Sistema e Tópica – 3. Da Substituição Processual – 4. Da Substituição pelo Ministério Público – 5. Vulnerabilidade e Hipossuficiência –6. Hipossuficiência como Presunção Relativa – 7. Conclusão – 8. Bibliografia.


I. INTRODUÇÃO

O problema da defesa dos interesses transindividuais, em virtude da ausência de um conceito preciso sobre os institutos, está longe do seu término.

Sem embargo, celeuma maior vislumbra-se no momento em que se põe a questão de se saber se, em demandas propostas por entidades legitimadas – em geral, e pelo Ministério Público, em particular – com o fito de defender o consumidor, as prerrogativas materiais e processuais previstas no CDC, que constituem o arcabouço protetivo, aplicar-se-ão igualmente dentro nos casos de substituição processual.

Dessa forma, o presente trabalho tem por escopo perquirir, no particular, sobre a possibilidade de se inverter o ônus probatório dos fatos em razão da hipossuficiência do consumidor sendo que o autor do litígio processual não é o próprio consumidor lesado, traduzindo-se em casos de substituição processual[1] legalmente previstos no Código Consumerista.

O que aparentemente antolha-se fácil, pode efetivamente tornar-se terreno movediço, tendo-se em vista que grassa divergência doutrinária entre os precisos conceitos – assim como o alcance – dos institutos da vulnerabilidade e hipossuficiência.

Em razão disso, traduz-se a problemática num intrincado sistema de aproveitamento das prerrogativas conferidas ao consumidor pela legislação de regência por parte das entidades legitimadas.

Isto porque, ao se aceitar a vulnerabilidade como instituto de direito material, ao passo que a hipossuficiência, de direito processual – o que se demonstrará abaixo, como poder o Juiz autorizar a inversão do onus probandi em favor dos substitutos por força daquela mesma hipossuficiência referente aos substituídos, eis que ausentes da relação jurídica processual exatamente estes, destinatários e titulares dos privilégios deferidos?

Dessarte, percebe-se a dificuldade sistêmica que enfrenta o Ministério Público, assim como as associações legitimadas, quando na defesa dos consumidores.

Sem embargo, escrutando-se com rigor técnico os institutos envolvidos percebe-se a fragilidade imposta, via de regra, na negação do direito à inversão do ônus da prova às entidades legitimadas em virtude de hipossuficiência.

De efeito, o estudo rigoroso dos institutos envolvidos revelará que a negatória à inversão do ônus probatório em virtude da hipossuficiência não passa de mero desvio de perspectiva sobre a realidade subjacente.

Para tanto, lançar-se-á mão da tópica, aplicando-se ao Código de Defesa do Consumidor técnica metodológica idêntica à proposta para a hermenêutica constitucional, assim como do ordenamento jurídico em geral.

E tal metodologia não pode ser considerada absurda sob o ponto de vista técnico. A uma porquanto a defesa do consumidor revela-se como princípio constitucional (art. 5º, XXXII, CF/88) e qualquer interpretação aos institutos consumeristas obrigatoriamente deverá respeitar o supramencionado princípio, uma vez assentada a normatividade dos princípios insculpidos na Constituição pela corrente pós-positivista. A duas porque nada obsta a aplicação do processo hermenêutico sub examine à legislação infraconstitucional, ao revés, tudo recomenda, eis que o aproximará da realidade vivenciada, respeitados, por óbvio, os princípios constitucionais.


II. SISTEMA E TÓPICA

Vislumbrado o Direito (rectius: o ordenamento jurídico) como sistema fechado[2] pelos positivistas racionalistas, a ciência jurídica perdeu muito no aspecto axiológico, culminando a idéia de que a sociedade poderia transformar-se por força exclusivamente da lei na tragédia representada pela Segunda Grande Guerra.

Arrefecidos os radicalismos inerentes a toda corrente sedutora, como ocorrera com o positivismo normativista, renasce a idéia de que a ciência jurídica está interligada a outras, extra-jurídicas, das quais depende e se alimenta num jogo de dar e receber dando acabamento à malha entrelaçada dos sistemas que ordenam a sociedade, sendo o Direito, portanto, um sistema aberto a influências extra-jurídicas.[3]

A tópica, pois, antes de desprezar o método sistemático, colabora na sua clarificação através da inserção de elementos estranhos ao Direito, todavia, necessários para a melhor interpretação da norma escrita, posto que revela-se aí a dinâmica do sistema jurídico.

Diga-se, ab initio, não se tratar de um volver a Escola Sociológica no sentido em que esta diminui a normatividade dos preceitos jurídicos engendrando uma abertura do sistema de normas ao ponto de sobrepor a Sociologia acima do Direito, trazendo subjacente, corolariamente, a insegurança jurídica.

Em verdade, traduz-se na valoração da norma jurídica, admitindo para a constituição desses valores elementos estranhos à Jurisprudência (dogmática jurídica).

Por conseguinte, Fernando Noronha tecendo comentários sobre a jurisprudência dos valores afirma que:

"...sua formulação mais acabada se deve essencialmente a outro Mestre alemão, Josef Esser, e que, no fundo, representa mero desenvolvimento da idéia básica da jurisprudência dos interesses: se o legislador fez prevalecer na norma concreta um certo interesse, é porque ele procedeu a uma determinada valoração de tais interesses, que lhe permitiu selecionar aquele que, a seu juízo, se afigurava mais merecedor de tutela. Atrás dos interesses estão, portanto, valores, que os precedem e que, por isso, devem orientar todo o pensamento jurídico." [4]

Dessarte, a obediência aos princípios constitucionais – cuja normatividade encontra-se fora de discussão na corrente pós-positivista – constitui ponto de orientação desse método hermenêutico.

Trata-se, portanto, de não haver soluções preconcebidas dentro no sistema jurídico para resolução de conflitos da vida real. Ao revés, os conflitos existentes no seio da sociedade serão solucionados como problemas precedentes ao sistema, influenciados também por questões extra-jurídicas relevantes. Isolando-se a questão posta em exame, constitui-se de uma técnica de chegar ao problema onde ele se encontra, elegendo o critério ou os critérios recomendáveis a uma solução adequada.[5] A razão do método tópico mostrar-se mais eficaz não apresenta complexidade alguma: o sistema jurídico é inepto para prever todas as situações da vida cotidiana, resultando, como a História demonstra, em flagrantes injustiças no caso concreto quando da utilização do positivismo racionalista.

"Os limites da tópica se encontram já na sua função instrumental. Ela é uma técnica que simplesmente ajuda a descobrir que conhecimentos e interrogações podem em cada caso desempenhar determinado papel, sem contudo por si mesma – como simples técnica de debate – oferecer sozinha o suficiente fundamento da solução." [6]

De efeito, a tópica é uma "técnica de pensar o problema", isto é, "técnica mental que se orienta para o problema" [7]


III. DA SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL

Faz-se mister, ab ovo, precisar a natureza pela qual as entidades legitimadas atuam nas demandas coletivas insculpidas no Código de Defesa do Consumidor.

É assente em doutrina e jurisprudência que tais entidades – aí incluído o Ministério Público – ao proporem demandas coletivas na defesa de consumidores agem em nome próprio, todavia, na proteção de interesses alheios, que lhes são inerentes.

Em escólio, assevera Eduardo Gabriel Saad, citando Ugo Ruffolo:

"Ugo Ruffolo (‘Interessi collettivi o diffusi e tutela del consumatore’, Milano, Giuffré, 1985, pág. 67) confessa-se adepto da tese de que os consumidores devem ser defendidos em juízo por meio de uma ação coletiva, mas garante que mais útil que a class action será a norma legal que permita ao ‘ente intermediário’ (associações de consumidores) propor diretamente a ação judicial, como substituto processual daqueles que foram prejudicados por um produto ou serviço defeituosos ou com vícios de qualidade ou quantidade." (g.n.)[8]

E arremata no concernente ao Parquet que "criou a figura do legitimado mencionado no artigo sob comentário, como um substituto processual dos consumidores implicados na mesma relação jurídica." (g.n.)[9]

Fixada, portanto, a natureza processual das entidades legitimadas quando em juízo, assim como do Ministério Público, como substituto processual na defesa de interesses alheios, cabe escrutar o conceito dessa legitimação anômala.[10]

Assim, com sua notória percuciência, Francesco Carnelutti ensina que:

"Existe substituição quando a ação no processo de uma pessoa diferente da parte se deve, não à iniciativa desta, e sim ao estímulo de um interesse conexo com o interesse imediatamente comprometido na lide ou no negócio." [11]

Em continuação, assevera que:

"A substituição fundamenta-se então, na conexão dos interesses, e por reflexo, na conexão das relações jurídicas (supra, nº 15), e em relação ao grau desta se pode diferenciar em duas espécies, que proponho que se chamem absoluta ou relativa segundo a tutela do interesse do substituto esgote ou não totalmente a do interesse do substituído; o sintoma normal da diferença está em que o processo provocado pelo substituto possa ou não se realizar sem a participação do substituído." [12]

Ressalte-se que, no tema sob comentário, releva de importância a distinção.

Pode-se, de efeito, inferir-se que a defesa do consumidor pelas entidades associativas e o Ministério Público – consoante a lição supra – se perfaz através da substituição processual absoluta, posto que a atuação dos entes intermediários esgota, satisfaz o interesse dos substituídos, prescindindo da sua aparição na relação jurídica processual, a despeito de ser, no particular, tal substituição também concorrente.

De efeito, não há mister a ocorrência de litisconsórcio entre o substituto e o substituído, nem mesmo a propositura de demanda por parte do consumidor a posteriori.

Frise-se, por fim, sendo de extremada relevância sua observação, que, nas relações processais consumeristas inauguradas por entes intermediários (associações e Ministério Público), está em jogo também os interesses dos consumidores, havendo, portanto, uma conexão de interesses.

Assim, ainda em obra da mesma magnitude, o Professor italiano traduz as filigranas das substituição processual em excelente magistério:

"Até agora temos visto o poder de atuar em juízo, conferido a pessoa diversa do sujeito do interesse litigioso, em lugar de ao próprio sujeito, a quem, por distintas razões, priva-se do mesmo em todo ou em parte.

"O princípio a ser levado em consideração é o da interdependência dos interesses. Que o direito de alguém seja respeitado pode ser útil, não apenas a ele, mas também a outros, e no sentido de que a satisfação de um interesse destes outros dependa de tal respeito.

"O fenômeno que assim se manifesta recebe o nome de substituição processual. Sua diferença da representação é evidente: o representante atua no interesse do representado, já que é este interesse, e não o seu pessoal, o que lhe impulsiona a atuar; por isso se diz que atua nomine alieno, enquanto o substituto atua em interesse próprio, já que é um interesse seu, o que lhe impulsiona a provocar a tutela do interesse do substituído." (g.n.) [13]

Resta claro, desse modo, que o fenômeno da substituição processual dependerá – em cotejo com a representação processual – da interdependência dos interesses do substituto e substituído.

Havendo aludida interdependência, portanto, torna-se patente ser hipótese de substituição processual, no tocante aos entes intermediários mencionados.


IV. DA SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

Como conseqüência de haver na substituição processual, como observado pelo Mestre italiano, interesses variados que se interligam, cabe perquirir sobre qual o interesse defendido pelo Ministério Público.

É forçoso afirmar in initio que o fato de haver um interesse próprio a ser defendido pelo Parquet, não quer dizer que esta mesma Instituição não defenderá os interesses dos consumidores, posto que, se assim fosse, sua legitimação não seria extraordinária – ensejando substituição processual – e, sim, ordinária, eis que na defesa de interesses próprios da Instituição. [14]

Isto nos leva a ilação de que presente estará – sempre – o interesse do substituído, no caso, dos consumidores.

Insta frisar, outrossim, que tal interdependência de interesses se dá seja qual for a modalidade na qual se apresente os interesses dos consumidores posta em juízo pelo Ministério Público. Em outras palavras, não importa se nas demandas coletivas propostas pela Instituição ministerial os consumidores tenham interesses indivisíveis, ou seja, difusos, coletivos ou, ainda, individuais homogêneos – variando tão-somente o critério de aparição desses interesses, o que influirá na intensidade, sendo em uns mais e em outros menos intenso o laço da interdependência, nunca, no entanto, chegando às raias de total ausência – porquanto irrelevante para a qualificação da substituição processual operada pelo Parquet.

E assim é porquanto podem os interesses consumeristas figurar na relação processual de maneiras variadas.

Vem a calhar, assim, a distinção segundo a qual é possível os consumidores virem seus interesses individuais postos em juízo de forma coletiva (art. 91 do CDC) – a class action for damages do direito norte-americano (regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure de 1938), inspiração próxima da nossa ação coletiva para a defesa dos interesses individuais homogêneos – neste caso, os consumidores são considerados de per si, enquanto indivíduos formadores do grupo social. De outra ponta, lícita a persecução em juízo desses interesses, sem embargo de, agora, serem considerados seus titulares, não como indivíduos em si, porém como o todo social impartível – interesses difusos.

Tal divergência na natureza do interesse a ser protegido em nada afeta a natureza da posição ministerial na defesa dos supracitados direitos no processo, como explanado acima.

Foros de magnitude ganha, de seu turno, a perscrutação do efetivo interesse na tutela jurisdicional pelo Ministério Público a dar supedâneo à sua atuação como substituto processual.

Ressalva-se, no particular, que não se cogita de interesse próprio da Instituição, quando violada em seus direitos.

Dessarte, o Mestre italiano Francesco Carnelutti, analisando o assunto, assim se expressa sobre o ponto sub exame:

"Assim sendo, exatamente porque a substituição opera para o impulso do interesse do substituto, é necessário levar em consideração a hipótese de que nem sequer este outro interesse seja suficiente para estimular a ação. Estes casos apresentam-se quando não se movem nem o substituto nem o substituído. Em tal hipótese, o que se decide é a importância social do interesse de cuja tutela se trata ou, mais exatamente, da existência de um interesse público quanto à sua tutela e, portanto, sua conexão com o interesse público transcendente. Quando esse pressuposto existir, a ação não pode ser confiada, ou, pelo menos, não pode ser confiada exclusivamente à parte ou a seu substituto. Por isso criou-se um órgão adscrito a seu exercício, que recebe o nome de Ministério Público." (g.n.) [15]

E, após elencar as atribuições ministeriais no âmbito penal, assevera que:

"De modo algum está excluído que semelhante pressuposto se apresente também no processo civil...

"O certo é que a razão que determina a instituição do Ministério Público encontra-se nos interesses públicos que as diversas normas jurídicas têm a missão de tutelar e, portanto, entre outros, o interesse quanto à segurança do território nacional, quanto à ordem interna, quanto à incolumidade da população e da riqueza nacional etc.

"Esboça-se, assim, claramente, a antítese entre o Ministério Público e o juiz quanto à função, posto que o juiz não tem para realizar mais interesse do que o interesse externo (quanto à composição do conflito) enquanto o Ministério Público opera para a tutela de interesses internos (interesses públicos conexos com o interesse em litígio). Sob esse aspecto, o Ministério Público talvez apareça como um tertium entre o juiz e a parte, já que os interesses que tende a desenvolver não se identificam, mesmo sendo internos, com todos os interesses em litígio que são, em todo caso, essencialmente públicos." (g.n.) [16]

Extrai-se, de conseqüência, a lição segundo a qual o interesse que legitima o Ministério Público para as demandas coletivas consumeristas é o interesse público que recai sobre o objeto litigioso.

Destarte, podemos distinguir os interesses que impulsionam a substituição processual operada pelo Parquet na defesa dos consumidores: de um lado, os interesses (difusos ou individuais) dos consumidores; de outro, o interesse público na harmonia entre fornecedores e consumidores (enquanto indivíduos ou coletivamente considerados) cuja titularidade pertence ao Ministério Público.

Vislumbra-se, em razão disso, que somente estará o Ministério Público legitimado a defender os interesses dos consumidores se e quando, junto a interesses consumeristas, existir interesse público na extinção do conflito desses mesmos interesses por meio da tutela jurisdicional.

É oportuna uma ressalva.

A expressão interesse público, entendemos, não satisfaz, hodiernamente, com o advento da Constituição de 1988, as reais atribuições conferidas à Instituição ministerial.

Com efeito, deixou o Ministério Público de ser, na nova ordem constitucional, a procuradoria do rei, como ocorre na Itália – e em outros países latinos, para ser o defensor da sociedade.

Estamos, lado outro, que não devemos atualmente confundir as expressões interesse público e interesse social, haja vista ser aquela consubstanciadora dos interesses do Estado, enquanto Administração Pública, e, esta, dos da sociedade civil, que, não raras vezes, possui interesses diametralmente opostos aos do Poder público, no particular, este como fornecedor de serviços e produtos.

De efeito, parece-nos mais apropriado a utilização atualmente da expressão interesse social para determinar o interesse que dá impulso à substituição processual levada a efeito pelo Parquet.

Não é por outra razão que a Constituição Federal de 1988, no capítulo atinente às Funções Essenciais à Função jurisdicional do Estado, em preceito sob o número 127, caput, incluiu o comando segundo o qual:

Art. 127 – O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. (g.n.)

Por sua vez, a jurisprudência ampara a tese italiana – vez que esta encontra refúgio na legislação pátria (CDC) – sendo que o egrégio Superior Tribunal de Justiça, por sua 5ª Turma, em aresto do ano de 1998, já deixava consignado:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITOS E INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. RECURSO ESPECIAL

1.Há certos direitos e interesses individuais homogêneos que, quando visualizados em seu conjunto, de forma coletiva e impessoal, passam a representar mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, mas verdadeiros interesses sociais, sendo cabível sua proteção pela ação civil pública.

2. É o Ministério Público ente legitimado a postular, via ação civil pública, a proteção do direito ao salário mínimo dos servidores municipais, tendo em vista sua relevância social, o número de pessoas que envolvem e a economia processual. (g.n.)

(Resp. nº 95.347-SE, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ 01.FEV.1999)

Mais recentemente, agora pela sua Corte Especial, o mesmo Tribunal fixou entendimento que:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. CUMULAÇÃO DE DEMANDAS. NULIDADE DE CLÁUSULA DE INSTRUMENTO DE COMPRA-E-VENDA DE IMÓVEIS. JUROS. INDENIZAÇÃO DOS CONSUMIDORES QUE JÁ ADERIRAM AOS REFERIDOS CONTRATOS. OBRIGAÇÃO DE NÃO-FAZER DA CONSTRUTORA. PROIBIÇÃO DE FAZER CONSTAR NOS CONTRATOS FUTUROS. DIREITOS COLETIVOS, INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS E DIFUSOS. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. RECURSO PROVIDO.

3.O Ministério Público é parte legítima para ajuizar ação coletiva de proteção ao consumidor, em cumulação de demandas, visando: a) a nulidade de cláusula contratual (juros mensais); b) a indenização pelos consumidores que já firmaram os contratos em que constava tal cláusula; c) a obrigação de não mais inseri-la nos contratos futuros, quando presente como de interesse social relevante a aquisição, por grupo de adquirentes, da casa própria que ostentam a condição das chamadas classes média e média baixa.

4.Como já assinalado anteriormente (REsp. 34.155-MG), na sociedade contemporânea, marcadamente de massa, e sob os influxos de uma nova atmosfera cultural, o processo civil, vinculado estreitamente aos princípios constitucionais e dando-lhes efetividade, encontra no Ministério Público uma instituição de extraordinário valor na defesa da cidadania.

5.Direitos (ou interesses) difusos e coletivos se caracterizam como direitos transindividuais, de natureza indivisível. Os primeiros dizem respeito a pessoas indeterminadas que se encontram ligadas por circunstâncias de fato; os segundos, a um grupo de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária através de uma única relação jurídica.

6.Direitos individuais homogêneos são aqueles que têm a mesma origem no tocante aos fatos geradores de tais direitos, origem idêntica essa que recomenda a defesa de todos a um só tempo.

7.Embargos acolhidos.

(EREsp. nº 141.491-SC, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 01.AGO.2000)

Como se observa dos arestos transcritos, o Ministério Público só terá interesse em agir como substituto processual quando cumprido o requisito do interesse social.

Porém, o que vem a ser interesse ou relevância social?

Trata-se de questão tormentosa que, a nosso sentir, possui conceituação extra-jurídica, abeberando-se de definições políticas e sociológicas.

Para Rodolfo de Camargo Mancuso:

"Interesse social é o interesse que consulta à maioria da sociedade civil: o interesse que reflete o que esta sociedade entende por ‘bem comum’; o anseio de proteção à res publica; a tutela daqueles valores e bens mais elevados, os quais essa sociedade, espontaneamente, escolheu como sendo os mais relevantes." [17]

Sem nos estendermos demasiadamente, posto que o problema é digno de ser objeto de monografia, poder-se-ia dizer que o interesse social é aquele inerente ao corpo social – em seus anseios e vacilações – bem como a cada sujeito, individualmente considerado, na busca do Bem Comum em determinada época e em determinada sociedade.

Fixa-se, destarte, que o interesse social alcança, em sua conceituação, a finalidade da conduta humana, individual ou coletivamente considerada, ao auferimento do Bem Comum, analisada indutivamente.

Frise-se, lado outro, que, uma vez acolhida a Teoria dos Interesses[18] em substituição à do Consentimento, há de haver identificação entre os interesses do grupo com os interesses sociais para que possa, cumpridos os requisitos da ação, o Ministério Público deflagrar a demanda.

Em compêndio, resta fixado que somente será lícita a propositura de demandas pelo Ministério Público na defesa de consumidores se e quando existir relevância social sobre o interesse a ser protegido por aquela Instituição.


V. VULNERABILIDADE E HIPOSSUFICIÊNCIA

Estabelecidos os limites da substituição processual viável pelo Parquet, passemos a outro tópico de mesma importância que reside na fixação dos conceitos de vulnerabilidade e hipossuficiência.

Como asseverado supra, tais institutos ainda não receberam, em sede doutrinária, a precisão conceitual necessária aos institutos jurídicos.

De seu turno, Judith Martins Costa, citada por Paulo Valério Dal Pai Moraes, afirma que:

"Um e outro conceito denotam realidades jurídicas distintas, com conseqüências jurídicas também distintas. Nem todo o consumidor é hipossuficiente. O preenchimento valorativo da hipossuficiência – a qual se pode medir por graus – se há de fazer, nos casos concretos, pelo juiz, com base nas ‘regras ordinárias de experiência’ e em seu suporte fático encontra-se, comumente, elemento de natureza socioeconômica.... Todo consumidor, seja considerado hipossuficiente ou não é, ao contrário, vulnerável no mercado de consumo. Aqui não há valoração do ‘grau’ de vulnerabilidade individual porque a lei presume que, neste mercado, qualquer consumidor, seja ele hiper ou hipossuficiente do ponto de vista sócio-econômico, é vulnerável tecnicamente: no seu suporte fático está o desequilíbrio técnico entre o consumidor e o fabricante no que diz com a informação veiculada sobre o produto ou serviço." [19]

Estabelecendo critérios de distinção, a Professora ensina, em rápidas linhas, que a vulnerabilidade é uma presunção absoluta – jure et de juris – ao passo que a existência de hipossuficiência deverá ser analisada casuisticamente.

Neste passo, o membro do Parquet rio-grandense-do-sul, verbis:

"Por isso a definição sobre a hipossuficiência é open juris, cabendo ao Magistrado a definição no caso concreto (topicamente), tendo em vista a sua experiência como julgador, mas principalmente como pessoa que está integrada na sociedade, observando todas as realidades que em geral circundam uma demanda judicial, bem como com vistas à implementação concreta das funções sociais do direito.

"Também é a hipossuficiência um critério que necessita ser aferido levando em consideração os sujeitos da relação processual entre si, a fim de que possa ser feita uma hierarquização valorativa voltada para a posição individual (socioeconômica) de ambos, o que resultará na distribuição mais justa dos ônus da prova." [20]

Divisa-se que diferem os institutos sob comento, sendo a vulnerabilidade fenômeno de direito material e a hipossuficiência, de índole processual. Sendo, ao nosso ver, mais correta a assertiva segundo a qual a hipossuficiência é a manifestação processual da vulnerabilidade.

Assim, vislumbra-se que a hipossuficiência nada mais é que um atributo, de índole processual, da vulnerabilidade do consumidor, nada importando se este consumidor figura na relação jurídica processual de forma individualizada ou coletivamente, por meio do fenômeno da substituição processual.

Tanto isso é verdadeiro que a mais abalizada doutrina entende ser a hipossuficiência uma vulnerabilidade de ordem econômica e técnica.[21] Daí não ser relevante a presença ou não do consumidor no pólo ativo da relação jurídica processual, posto que os seus interesses, ainda sim, estarão em litígio da mesma forma.

Outra não é a conclusão de Paulo Valério Dal Pai Moraes:

"Os eminentes juristas apresentam, então, outro critério para a definição da hipossuficiência, qual seja, a facilitação da defesa do consumidor em juízo, respeitada a sua natural vulnerabilidade e os demais critérios antes apontados. Este novo elemento é quase que um dogma, pois está afinado com a idéia de que vários entes coletivos passam a integrar o mundo processual brasileiro, com maior freqüência, na defesa do consumidor." [22]

Ora, se o consumidor é vulnerável seja qual for sua condição financeira, de instrução, econômica, etc., por presunção absoluta, hipossuficiente sê-lo-á, ao revés, por presunção relativa, cabendo, destarte, prova em contrário da inexistência de deficiências de ordem técnica, econômica, cultural, etc., independentemente de estar em juízo pessoalmente ou por meio de substitutos.

Em outras palavras, resta claro que a hipossuficiência é um desdobramento da vulnerabilidade consumerista não importando a existência de litígio em juízo proposto pelo consumidor ou por substituto processual.

Alfim, frise-se que a hipossuficiência está umbilicalmente ligada à vulnerabilidade do consumidor, sendo aquela tão-só uma das muitas vertentes que possui esta. E mais, a hipossuficiência consignada no código consumerista é, inclusive, a técnica, e, não tão-somente a econômica.


VI. Hipossuficiência como Presunção Relativa

Prima facie é imperioso ressaltar que a problemática do presente trabalho cinge-se tão-só – como já afirmado – à inversão do ônus da prova em razão da hipossuficiência do consumidor, quando proposta a demanda pelo Ministério Público.

Isto porque quanto ao outro requisito autorizativo da inversão do ônus da prova – a verossimilhança – não há que se falar de impossibilidade da inversão quando aforado o pedido pelo Parquet ou qualquer outra parte ideológica posto tratar-se de requisito objetivo, referente a elementos probatórios que nada interferem no que diz respeito à pessoa que figura em juízo.

Com efeito, à quaestio iuris sobre ser possível a inversão do ônus da prova em razão da hipossuficiência do consumidor quando proposta a demanda por ente intermediário, estamos que a resposta afirmativa se impõe.

Como sabido, o juiz poderá inverter o ônus da prova, segundo as regras ordinárias de experiências.(art. 6º, VIII, CDC)

A última cláusula do dispositivo – segundo as regras ordinárias de experiências – tem aparição anterior no Código de Processo Civil – art. 335 – no capítulo VI – Das Provas.

Como ocorre na lei geral, o CDC deferiu ao magistrado o poder de inverter o ônus da prova com supedâneo nas regras comuns da experiência.

Assim, para Stein, estas regras:

"São definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, desligados dos fatos concretos que se apreciam no processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram induzidas e que, além desses casos, pretendem ter validade para outros que venham a ocorrer." [23]

Como se vê, quando necessitar decidir baseado em regras comuns da experiência – como ocorre no caso da inversão do ônus da prova nas relações consumeristas – o juiz buscará, através do método indutivo, postulados que sirvam para casos futuros.

E mais.

Essas regras assim extraídas da realidade subjacente, possuem normatividade à símile do que ocorre com a presunção relativa – juris tantum – presumindo-se, em favor de quem aproveite, fatos favoráveis à comprovação de suas alegações.

Não é outro o magistério do Professor Antonio Carlos Cintra:

"E a regra de experiência tem natureza normativa, em posição equivalente às normas jurídicas que estabelecem presunção relativa, produzindo presunções que, igualmente, dispensam a parte por elas favorecida, do respectivo ônus da prova, embora autorizem a prova em contrário." [24]

Por fim, define o que sejam regras comuns da experiência:

"A experiência comum a que se refere a lei é a experiência de vida, no seu sentido mais amplo, ou seja, o conhecimento adquirido pela prática e pela observação no quotidiano,... " [25]

Com efeito, faz-se mister a análise das regras ordinárias da experiência (art. 6º, VIII, CDC), que sustentam a hipossuficiência consumerista, dentro na realidade brasileira latente, no afã de serem valoradas adequadamente.

Via de conseqüência, é lícito afirmar que os consumidores brasileiros, em sua maioria, carecem dos mais comezinhos atributos para uma vida digna, necessitando de elementos mínimos para a própria sobrevivência, como alimentação, saúde, etc., sem se falar no aspecto intelectual.

Assim, fatores das mais variadas espécies, tais como econômicos, sociais, culturais, políticos e etc. aconselham presumir-se hipossuficiente qualquer consumidor sem que haja uma declaração formal no processo.

A demonstração desses fatores, mesmo que perfunctória, na realidade brasileira não é despicienda.

Destarte, em estudos realizados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – DIEESE, no ano de 1999, sobre o índice de analfabetismo no Brasil – como um todo – e por regiões, constata-se que, só na região nordeste do País, entre pessoas de 07 anos ou mais, este índice chega a ultrapassar um quarto da população ali existente, conforme quadro demonstrativo abaixo [26]:

Com índices de analfabetismo desta grandeza, não seria concebível exigir de um consumidor a prova de sua hipossuficiência técnica.

Anote-se que argumentamos com o analfabetismo total, isto é, não o analfabetismo setorial, sobre o conhecimento de alguma particularidade ou ciência do conhecimento.

Em claras palavras, força é admitir que mesmo pessoas que possuam instrução adequada – minoria do país – são passíveis de se tornarem hipossuficientes frente a determinado ramo do conhecimento, v. eg., um dentista será sempre um analfabeto setorial sobre a ciência jurídica, posto que não foi formado culturalmente nestas letras.

Com efeito, se boa parte da população consumidora do País (10 anos ou mais) não possui conhecimento sobre o meio de verbalização de idéias (lingüística), como apreender conhecimento técnico? Mesmo para aquelas pessoas devidamente alfabetizadas torna-se impossível conhecer tecnicamente todas as áreas do saber, como exemplificado supra.

Mas não é só.

Sob o aspecto econômico, a realidade brasileira não é muito diferente, haja vista a distribuição de renda, sendo certo afirmar ter o fornecedor meios mais eficazes para a demonstração, no processo, da inexistência da hipossuficiência alegada.

Como modo de confirmação da assertiva, no decênio 1989-1999, o mesmo Departamento de Estatística – DIEESE – elaborou gráfico onde compara a distribuição pessoal de renda entre alguns países, levando como critério 20% da população mais pobre e 10% da população mais rica de cada um dos países. [27]

Pode-se divisar que no Brasil, no decênio 1989-1999, 20% da sua população mais carente possuía tão-só 3,6% da renda produzida no País, enquanto 10% da população mais rica detinha 46,8% dessa mesma renda.

Porém, os fundamentos materiais da presunção relativa de hipossuficiência do consumidor não se esgotam aqui.

De certo, não é possível negar a íntima ligação entre as relações consumeristas e trabalhistas. Isto porque só haverá consumo se houver trabalhador que perceba salários, haja vista ser este assalariado um consumidor em potencial, inserido no mercado de consumo, que dá base de sustentação àquela relação de compra e venda de produtos e serviços.

Portanto, em uma sociedade saudável deve existir uma melhor repartição do Produto Interno Bruto (PIB) de maneira que Trabalho e Capital sejam agraciados em porcentagens equivalente, e, via de conseqüência, circule em maior quantidade as riquezas – evitando assim seu acúmulo – que, de seu turno, ensejará um aumento nas relações consumeristas.

Não obstante, no Brasil, o contrário ocorre, segundo, ainda, trabalho realizado pelo DIEESE, é constatável que ao longo dos anos, os trabalhadores vêm recebendo uma porcentagem menor que o Capital, tornando, por isso, a classe patronal mais rica, e, por corolário, a classe trabalhadora mais pobre, arrefecendo, por conseqüência, a circulação de riquezas, diminuindo, de seu turno, as relações de consumo. [28]

Por razão diametralmente oposta, os fornecedores – classe patronal – terão maiores condições financeiras, como afirmado, para, no processo, provar a inexistência da hipossuficiência alegada pelo consumidor.

Tais estatísticas não podem ser olvidadas no momento de ser apreciado o pedido sobre inversão do ônus da prova em razão da hipossuficiência posto ser presumível não poder arcar com os custos financeiros da demanda o consumidor inserido nos 90% da população que não detém nem mesmo 50% da renda produzida no País.

Ademais, os fatores analisados traduzem-se no preenchimento do conteúdo axiológico de que a norma jurídica carece, posto que, uma vez deslembrados, tornam a norma sob comento ilegítima.

Além disso, deslembrando o magistrado de tal realidade sócio-econômico-cultural e, por conseqüência, não visualizando que a hipossuficiência constitui presunção relativa de todo consumidor, estará malferindo o princípio da igualdade material no processo que, desde a concepção aristotélica, agasalhada por Rui Barbosa, possui sentido mais amplo do que simples igualdade formal.

"A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real."

Dessarte, mostra-se justificável, bem como juridicamente possível e relevante, presumir-se hipossuficiente todo consumidor que requeira a inversão estampada no artigo 6º, VIII, do CDC, franqueando o ônus de provar o contrário ao fornecedor.


VII. CONCLUSÃO

O legislador, ao criar a legislação consumerista, teve em mente o cumprimento de preceptivo constitucional que determina ao Estado a promoção da defesa do consumidor (art. 5º, XXXII, CF/88).

Tal defesa, como descrita na Carta Maior, se estabelecerá na forma da lei.

Assim, o instrumental posto à disposição do legislador ordinário é vasto, tendo em conta as variadas formas de se promover a defesa do consumidor.

Dentre as muitas previstas pelo legislador no CDC, inseriu-se a defesa coletiva de tais interesses consumeristas.

Ressalta-se que a defesa coletiva em apreço se perfaz sobre quaisquer natureza de interesses consumeristas, ou seja, não importando se se trata de interesses difusos, coletivos ou individuais, estes, desde que homogêneos.

De efeito, a substituição processual nada mais é do que mero instrumento de proteção, no particular, de uma coletividade de interesses que, não raras vezes, ficando ao crivo do consumidor individualmente considerado, resta lesado sem a necessária recomposição, seja por desídia do próprio consumidor – no caso dos interesses individuais homogêneos, seja por ausência de previsão legal – no caso de interesses difusos.

Não raras vezes, em virtude do montante pecuniário devido por força da lesão sofrida pelo consumidor, este não se sente motivado a procurar proteção jurisdicional, restando a lesão que sofre o direito incólume.

Daí ser o Ministério Público um ente intermediário – dentre os muitos existentes – que instrumentaliza a defesa coletiva dos interesses consumeristas.

Nesta esteira, é forçoso admitir a tese segundo a qual é possível a inversão do ônus da prova em razão da hipossuficiência do consumidor em ações civis propostas pelo Ministério Público tendo em vista que, uma vez presumida a hipossuficiência dos consumidores fundamentada em fatores reais existentes – regras ordinárias de experiências, o aforamento de demandas pelo Parquet em nada alterará aquela realidade.

Em claras palavras, a aparição do Parquet no pólo ativo da relação processual nada mais significa do que um instrumento à disposição do consumidor na defesa dos seus interesses, coletivamente considerados, que deve ser conjugado, frise-se, com a presunção relativa da hipossuficiência dos consumidores, tendo em vista as regras ordinárias da experiência.

Por fim, pontifica o membro do Parquet rio-grandense-do-sul:

"Um outro enfoque que evidencia não poder o conceito de hipossuficiência estar restrito à definição da Lei nº 1.060/50 é o fato de que a norma consumerista não é orientada somente para o consumidor individual, mas, em especial, para o consumidor coletivamente considerado. Desse modo, é fundamental que o critério da hipossuficiência seja apreciado também naquelas situações em que existe substituição processual, quando associações ou órgãos de defesa do consumidor são obrigados a demandar na defesa da coletividade." (g.n.)[29]

Em compêndio, chega-se às conclusões seguintes:

  1. A hipossuficiência, que ensejará a inversão do onus probandi, lastreada no inciso VIII do artigo 6º da Lei consumerista, possui presunção relativa de existência haja vista a realidade brasileira (regras ordinárias de experiências) no tocante aos aspectos econômico, cultural, social e outros, sendo deferida ao fornecedor a oportunidade da prova em contrário.

  2. Para a inversão do ônus da prova em razão da hipossuficiência é tão-somente necessário o requerimento do consumidor ou do substituto processual (Ministério Público, associações, etc.) neste sentido, sendo despicienda a respectiva declaração, posto presumir-se esta, ainda, das regras ordinárias de experiência.

  3. A propositura da demanda pela parte ideológica, especialmente pelo Ministério Público, não macula aquela presunção, posto ser o Parquet mais um meio eficaz de proteção dos consumidores, atento que foi o legislador consumerista aos princípios da economia processual e do acesso efetivo à Justiça, sendo lícito ainda asseverar que a propositura de demandas por estes entes em nada mudará a realidade subjacente.

  4. No sistema de proteção consumerista não há antinomias, sendo, portanto, certo admitir que a defesa coletiva dos interesses dos consumidores pelas partes ideológicas e a presunção relativa da hipossuficiência não se repelem, antes se conjugam.


VIII. BIBLIOGRAFIA

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IX.NOTAS

1. Ou legitimação processual, como quer Pontes de MIRANDA. Tratado das Ações, v. VI, p. 221-2

2. José de Almeida LEÃO & Luiz de França COSTA FILHO. Os Princípios da Administração Pública: aspectos a considerar (On-line) Disponível: www.uel.br/cesa/dir/pos/artigo/artigoluizdf.html: "Costuma-se falar em sistema fechado, para designar o sistema que não se abre para um ambiente, isto é, que não possui um ambiente. Seus elementos interagem apenas entre si, sem qualquer comunicação com elementos externos ao sistema"

3. Nicolai Hartmann contrapôs duas modalidades fundamentais de pensamento: o sistemático (o ordenamento como sistema fechado) e o aporético (sistema aberto), abrindo caminho à restauração da tópica. Para Hartmann: " o pensamento sistemático parte do todo. A concepção é aqui primordial e permanece dominante. Não buscamos aqui o ponto de vista senão que o presumimos... Conteúdo de problema que não se compadece com o ponto de vista é recusado." Já quanto ao aporético (aberto): "O modo aporético de pensar em tudo procede de forma diferente. Os problemas antes de mais nada se lhe afiguram sagrados. Não conhece nenhum fim da pesquisa que não seja o da investigação do problema mesmo... O próprio sistema não lhe é indiferente, mas vale para ele apenas como idéia, como perspectiva. Não põe ele em dúvida a existência do sistema, apenas encontra o que o determina latente em seu próprio pensamento. Disso está certo, ainda quando o não compreenda." Apud Paulo BONAVIDES. Política e Constituição: os caminhos da Democracia. p. 123/124. Cf. ainda: Paulo Valério Dal Pai MORAES. Código de Defesa do Consumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade e nas demais práticas comerciais. p. 33. "Os sistemas também podem ser abertos ou fechados, existindo os primeiros quando são admitidas trocas com outros sistemas, mais especificamente quando aceita o ingresso de informações ‘estranhas’, bem como quando é possível a emissão de informações para outros sistemas, configurando os chamados outputs, os inputs e o fenômeno do feed back..."

4.Fernando NORONHA, apud Paulo Valério Dal Pai MORAES, ob. Cit., p. 38

5.Paulo BONAVIDES. op. Cit. p. 127

6.Reinhold ZIPPELIUS. apud Paulo BONAVIDES. ob. Cit., p. 127

7.Theodor VIEHWEG. Topik und Jurisprudenz, apud Paulo BONAVIDES. ob. Cit., p. 126

8.Eduardo Gabriel SAAD. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. p. 581

9.Eduardo Gabriel SAAD. ob. Cit., p. 583

10.Lopes da COSTA apud Celso Agrícola BARBI. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. I, p. 78

11.Francesco CARNELUTTI. Instituições do Processo Civil. vol. I. p. 222

12.idem. ob. Cit., p. 223

13.Francesco CARNELUTTI. Sistema de Direito Processual Civil. vol. II. p. 71-72

14.Cf. divergência: Rodolfo de Camargo MANCUSO. Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. p. 189: "Basta, portanto, que se interprete com a devida abertura e atualidade o art. 6º do CPC, e se poderá concluir que é ordinária a legitimação das entidades referidas no art. 5º da citada Lei sobre os interesses difusos."

15.Sistema..., p. 77-78

16.op. Cit., p. 79-80

17.Rodolfo de Camargo MANCUSO. Interesse Difusos: conceito e legitimação para agir. p. 25

18.Márcio Flávio Mafra LEAL, Ações Coletivas: História, Teoria e Prática. p. 63: "O elemento que viria dar legitimidade ao representante foi desenvolvido na Inglaterra no século XIX e adaptou-se às exigências de acesso à Justiça do século XX. Esse elemento teórico seria a identificação do interesse do grupo com o interesse do autor, de forma que seja ‘inconcebível’ que o representado não aprove a representação de seu direito deduzido em juízo. Este é o cerne da Teoria dos Interesses."

19.Apud Paulo Valério Dal Pai MORAES. Código de Defesa do Consumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade e nas demais práticas comerciais. p.100

20.ob. Cit., p. 103

21.Nelson NERY JUNIOR apud Paulo Valério Dal Pai MORAES, Comentários..., p. 105; Mirella D’Angelo CALDEIRA, Inversão do ônus da Prova. p. 166-180. Assevera a eminente articulista: "Tanto a doutrina como a jurisprudência ainda não chegaram a um consenso, no que tange ao conceito de hipossuficiência do consumidor. Muitos defendem a tese de que se trata de hipossuficiência econômica e, outros, que se trata de hipossuficiência técnica.

"Nos filiamos à última tese, enfatizando que a proteção deve atingir àquele que não detém conhecimento técnicos – o que ocorre em qualquer classe social – e não àquele que não possui recursos financeiros." (p.174)

22.ob. Cit., p. 105

23.STEIN. El Conocimiento Privado del Juez, apud Antonio Carlos de Araujo CINTRA. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. IV. p. 30

24.Antonio Carlos de Araujo CINTRA. Ob. Cit. p. 31

25.idem, Comentários cit., p.31

26.DIEESE (2001) Anuário 2000-2001 (On-line). Disponível: www.dieese.org.br/anu/2001/anu2001-1.html

27.DIEESE (2001), ob. Cit.

28.DIEESE (2001), ob. Cit.

29.opus cit., p. 104


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Renato Franco de. O Ministério Público, o Codecon e a inversão do ônus da prova.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -488, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2754. Acesso em: 26 abr. 2024.